Academia.eduAcademia.edu

A Construção da Ordem Política como Processo de Longa Duração: Estados Pós-Coloniais e Desenvolvimento Desigual na América Latina (c.1770-1945)

Abstract

Tese defendida no PPGCP do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2019.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIAIS E POLÍTICOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA A CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA COMO PROCESSO DE LONGA DURAÇÃO: ESTADOS PÓS-COLONIAIS E DESENVOLVIMENTO DESIGUAL NA AMÉRICA LATINA (c.1770-1945) Pedro dos Santos de Borba Rio de Janeiro Março de 2019 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIAIS E POLÍTICOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA A CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA COMO PROCESSO DE LONGA DURAÇÃO: ESTADOS PÓS-COLONIAIS E DESENVOLVIMENTO DESIGUAL NA AMÉRICA LATINA (c.1770-1945) Autor: Pedro dos Santos de Borba Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência Política. Orientador: Prof. Dr. Breno Marques Bringel Rio de Janeiro Março de 2019 A CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA COMO PROCESSO DE LONGA DURAÇÃO: ESTADOS PÓS-COLONIAIS E DESENVOLVIMENTO DESIGUAL NA AMÉRICA LATINA (c.1770-1945) Nome do Autor: Pedro dos Santos de Borba Orientador: Prof. Dr. Breno Marques Bringel Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência Política. Aprovada por: ____________________________________________ Orientador: Dr. Breno Marques Bringel (IESP/UERJ) ____________________________________________ Prof. Dr. José Maurício Castro Domingues da Silva (IESP/UERJ) ____________________________________________ Profa. Dra. Maria Regina Soares de Lima (IESP/UERJ) ____________________________________________ Profa. Dra. Monica Esmeralda Bruckmann Maynetto (UFRJ) ____________________________________________ Prof. Dr. Rafael Bivar Marquese (USP) Rio de Janeiro Março de 2019 DEDICATÓRIA Dedico esta tese a todas e todos que, com trabalho, luta e esperança, mantêm viva a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pela bolsa de “Doutorado Nota 10” (2016-2018), à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de doutorado (2014) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de doutorado (2014-2016). Em paralelo, gostaria de agradecer à criadora do Sci-Hub, Alexandra Elbakyan, e a todos aqueles que mantém e alimentam plataformas digitais de compartilhamento de livros, como a Library Genesis. Em segundo lugar, gostaria de agradecer aos professores que, à sua maneira, foram fundamentais no percurso, em particular a César Guimarães, José Maurício Domingues e Breno Bringel. Sou grato também à professora Elisa Reis por sua generosa intervenção em minha banca de qualificação, além dos seminários preparatórios da tese conduzidos no IESP por Christian Lynch e Cristiana Buarque de Hollanda. Nestes seminários, contei com a colaboração solidária de inúmeros colegas do Instituto que não conseguiria nomear individualmente. Ainda em Botafogo, deixo meu fraterno agradecimento à toda a equipe que trabalha no cotidiano do IESP, José Márcio, Alessandra, Maricleide, Simone, Louise, Leonardo, e tantos outros, mas especialmente à querida Cristiana Avelar. Também gostaria de agradecer pela acolhida na Universidade de Buenos Aires à professora Verónica Giordano em 2016, que me proporcionou inestimável diálogo com pesquisadores de sociologia histórica de diferentes quadrantes da América Latina. Outra oportunidade singular de discussão do trabalho se deu em 2015 no Laboratório de Doutorandos da Associação Internacional de Sociologia, pelo que gostaria de agradecer também a cada um dos participantes. Esta tese não teria sido possível sem o afeto, a companhia e o intercâmbio com amigos e amigas do Núcleo de Estudos em Teoria Social e América Latina, do qual faço parte desde 2012. Pela leitura atenta e generosa de versões e partes intermediárias, sou muito grato aos queridos Guilherme Benzaquen, Simone Gomes, Pedro Cazes e Juan Pedro Blois. Por todo o companheirismo, às vezes perto, às vezes longe, alargo o agradecimento a Alfredo Job, Fernando Vieira, Marcelo Viola e Juliane Furno. Nesses anos de doutorado no Rio de Janeiro, contei com a acolhida terna de Márcia Ribeiro, Carlos Augusto Campos, Maíra Campos e Cicilia Guimarães, a quem também sou muito grato. E à Luna Campos sou infinitamente grato por tudo o que vivi nos últimos anos e espero viver nos próximos. Sem seu carinho, sua força e seu inconfundível senso prático, não consigo imaginar como chegaria ao final desta etapa, e ir além dela. Não caberia aqui tampouco a gratidão que tenho ao Ramiro Santos, à Lorena Martins e aos luminosos Augusto e Júlio. E se houvesse quem devesse constar em cada nota de rodapé de cada página como agradecimento, estes seriam o Clóvis Borba e a Maria Angélica Santos, porque afinal eles estão sempre em tudo o que faço. A CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA COMO PROCESSO DE LONGA DURAÇÃO: ESTADOS PÓS-COLONIAIS E DESENVOLVIMENTO DESIGUAL NA AMÉRICA LATINA (c.1770-1945) RESUMO Este trabalho pretende rediscutir a formação histórica dos estados modernos na América Latina, mobilizando uma crítica ao eurocentrismo como plataforma de reconstrução conceitual. O argumento principal é que a autoconstrução institucional desses estados foi propulsionada por um dínamo causal que conectava o alargamento do ciclo extrativo-coercitivo às oportunidades fiscais do ciclo sistêmico liderado pela industrialização britânica no “longo século XIX”. Durante a Era das Revoluções (1770-1840), que marca o arranque do ciclo, a crise dos impérios ibéricos produziu uma abertura do horizonte de possibilidades. No contexto das independências, a disputa por imaginários incompatíveis de ordem política se combinou com uma tendência à proliferação de reivindicações autonômicas de províncias, regiões e cidades. Diante disso, a reciprocidade formada entre estadistas e capitalistas teve como subproduto um processo longo de desencaixe desses espaços locais, cada vez mais subordinados às injunções de um liberalismo hegemônico. Nesse sentido, a nacionalização da disputa política é também um fechamento do horizonte de possíveis abertos no ciclo das independências. A tese desenvolve três estudos de caso para projetar empiricamente essa explicação em trajetórias particulares. Através do percurso, a tese rejeita a hipótese de replicação, na qual os estados latino-americanos são considerados unidades analiticamente equivalentes e independentes do processo que ocorreu na Europa. A contrapartida é partir das conexões mundiais que envolvem Europa e América Latina no mesmo processo de expansão, embora desigual, do sistema interestatal moderno. A crítica ao eurocentrismo, nesse sentido, é encaminhada como uma reconstrução conceitual que traga ao primeiro plano a dimensão imperial da política moderna e o desenvolvimento desigual da economia mundial capitalista. Palavras-chaves: Construção da Ordem; Eurocentrismo; Transições Hegemônicas; América Latina; Sociologia Política. THE MAKING OF POLITICAL ORDER IN THE LONGUE DURÉE: POSTCOLONIAL STATES AND UNEQUAL DEVELOPMENT IN LATIN AMERICA (c.1770-1945) ABSTRACT This dissertation intends to rediscuss the historical formation of modern states in Latin America, calling upon a critique of Eurocentrism as platform of conceptual reconstruction. The main argument is that institutional buildup was propelled by the connection between an enlargement of the coercive-extractive cycle and the fiscal opportunities of British world hegemony during the “long XIX century”. During the Age of Revolutions (1770-1840), which stands in the beginning of the cycle, the Iberian empires crisis had broadened the horizon of historical possibilities. During Latin American independencies, the struggle among opposing imaginaries of political order has intertwined with the proliferation of autonomic vindications of provinces, regions and cities. In this context, the link formed between capitalists and state-makers resulted, as a by-product, in a long process of disentanglement of these local spaces, as they became more subordinated to hegemonic liberalism. Hence, the nationalization of political dispute is also a closure in the horizon of possibilities opened during anti-imperial struggles. The dissertation develops three case studies to cast this explanation into particular trajectories. Along the way, it rejects the replication hypothesis, by which Latin American states are considered unit-like cases of the process previously fulfilled in Europe. The theoretical counterposition emphasizes world connections that encompass Europe and Latin America in the same and unequal process of development of the modern interstate system. The critique of Eurocentrism, in this sense, is developed as a conceptual reconstruction that brings to the forefront the imperial dimension of modern politics and unequal development in capitalist world economy. Key-words: Political Order; Eurocentrism; Hegemonic Transition; Latin America; Political Sociology. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................11 PARTE I: SOCIOLOGIA HISTÓRICA COMO TEORIA POLÍTICA...................... 33 1. A construção social da ordem política..................................................................... 34 1.1. Dominação e obediência política como relação social..................................34 1.2. A tessitura de relações ético-políticas........................................................... 42 1.3. Da política do medo: os arranjos móveis de proteção mediante extorsão.....48 1.4. Da extração em geral ao ciclo extrativo-coercitivo como mecanismo contingente........................................................................................................... 62 2. O sistema mundial visto da periferia........................................................................74 2.1. Anarquia e hierarquia: a soberania como hipocrisia organizada...................79 2.2. Mercados e contramercados.......................................................................... 87 2.3. O tempo do mundo: transições hegemônicas e caos sistêmico..................... 94 2.4. Expansão e formação de um sistema em movimento..................................101 3. Estados latino-americanos, eurocentrismo e seus impasses...................................105 3.1. Estados modernos e “uma Europa que se autointerpreta”...........................109 3.2. A teoria do estado na América Latina: reiteração e diferença.................... 115 3.3. Sociologia política diante da história mundial............................................ 123 3.4. Para além da reiteração e diferença: estados pós-coloniais na periferia..... 131 PARTE II: A AMÉRICA LATINA NO LONGO SÉCULO XIX.............................141 4. A Era das Revoluções e as independências latino-americanas (1770-1840)......... 142 4.1. Os espaços imperiais em uma corrida competitiva..................................... 144 4.2. A Era das Revoluções em perspectiva mundial.......................................... 154 4.3. Contingência, conflito e impérios no percurso das independências............159 4.4. Localismo e soberania................................................................................. 170 5. Capitalismo, tributação e violência: as forças de desencaixe da política de seus contextos locais (1810-1930)..................................................................................... 176 5.1. Os atores e bastidores do liberalismo mundial............................................179 5.2. Soberania e comércio .............................................................................. 186 5.3. A utopia de mercado na periferia................................................................ 194 5.4. As escalas da violência e seu controle.........................................................203 5.5. O desencaixe como processo autoestimulante............................................ 210 6. Os sinais do outono: progresso e desdemocratização na financeirização da hegemonia britânica (1873-1931).............................................................................. 214 6.1. A crise de 1873 como inflexão mundial......................................................220 6.2. A política dos governados........................................................................... 229 6.3. Intransigência e rotina: o liberalismo em desdemocratização.....................235 6.4. Sobre a possibilidade de oligarquias em meio à turbulência global............245 7. As guerras euroasiáticas e o colapso da civilização do século XIX (1910-1945)..248 7.1. Os giros da bússola do progresso................................................................ 253 7.2. A crise do liberalismo latino-americano..................................................... 258 7.3. O magnetismo dos Estados Unidos............................................................. 266 PARTE III: ESTADOS PÓS-COLONIAIS EM PERSPECTIVA COMPARADA.. 272 8. México: construção da ordem política no “longo século XIX”............................. 273 8.1. Conjunção crítica I (1808-1824): revolução agrária e municipalismo........274 8.2. A formação de um liberalismo hegemônico no México (1810-1910)........ 286 8.3. Conjunção crítica II (1910-1940): a via revolucionária para outra nação...300 9. Argentina: construção da ordem política no “longo século XIX”..........................309 9.1. Conjunção crítica I (1810-1827): das margens do império ao impasse federal312 9.2. A formação de um liberalismo hegemônico na Argentina (1810-1916).....324 9.3. Conjunção crítica II (1912-1946): os descamisados na política nacional... 339 10. Brasil: construção da ordem política no “longo século XIX”.............................. 349 10.1. Conjunção crítica I (1820-1840): a antecipação monárquica e a “segunda escravidão”......................................................................................................... 357 10.2. A formação de um liberalismo hegemônico no Brasil (1838-1930)......... 365 10.3. Conjunção crítica II (1917-1945): as ruas, o povo e o desenvolvimento..377 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 385 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 392 ANEXOS....................................................................................................................424 INTRODUÇÃO Um ano antes dessa tese ser apresentada, no dia 14 de março, a vereadora Marielle Franco foi assassinada junto com seu motorista, Anderson, no Rio de Janeiro, uma execução política que ainda permanece impune1. Alguns dias antes de morrer, Marielle denunciara a onda de violência em curso no bairro de Acari, sede do 41o batalhão da Polícia Militar. O estado do Rio de Janeiro estava sob intervenção federal, que transferira para competência militar diversas áreas da administração pública. Em seu último discurso na Câmara dos Vereadores, no contexto do 8 de março, ela denunciou a violência institucional e a marginalização das mulheres na política; foi interrompida inúmeras vezes e recebeu uma flor de um vereador enquanto falava. Embora a filmagem não permita identificar seu interlocutor, em dado momento ela olha-o dizendo que não seria interrompida por quem usa o parlamento para homenagear a ditadura. O desprezo pela democracia, prossegue a vereadora, é a incapacidade de ouvir a uma mulher eleita. Diz eleita pausadamente, com os olhos ainda firmes no interlocutor. Um dia antes de morrer, Marielle mencionou o assassinato de Matheus Melo Castro (23 anos) em seu Twitter e disse: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”. A “guerra” tem como pano de fundo a seletividade com que a força de estado é organizada na cidade. Em sua dissertação de mestrado na UFF, “UPP: a redução da favela em três letras”, Marielle argumentava que, sob a guerra às drogas, “o que de fato existe (...) é uma política de exclusão e punição dos pobres, que está escondida por trás do projeto das UPPs” (FRANCO, 2014: 11). Como ela diz, “as práticas policiais nesses territórios violam os direitos mais fundamentais, e a violação do direito à vida também está incluída nessa forma de oprimir” (FRANCO, 2014: 97). O questionamento à seletividade da violência de estado é uma contestação da forma como se divide politicamente o que constitui uma ameaça potencial do que é o terreno da proteção devida. Ou ainda, como a segurança pública, a garantia da lei e da ordem separam, em inúmeras pequenas decisões práticas, o que exige ação e urgência daquilo que é indiferente, tolerado ou tergiversado. As informações relacionadas ao inquérito foram extraídas da série de dez reportagens publicadas pelo Intercept Brasil, chamada “Caso Marielle” (INTERCEPT, 2018/2019). Durante o mês de março de 2019, após a redação desta introdução, novos desdobramentos do caso levaram à prisão de dois acusados, vinculados a uma milícia da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Um terceiro acusado permanece foragido. O contratante dos matadores responsáveis pelo crime, contudo, ainda não foi esclarecido. 1 11 Uma das questões candentes que percorrem a tese é que essa seletividade e seus significados são objeto de uma disputa contínua, ainda que não simétrica. Com efeito, é possível observar essa disputa em uma semana trágica na cidade do Rio de Janeiro, mas também em períodos muito mais longos de tempo. Em última instância, o estado não é uma realidade institucional prévia, um arcabouço dado em que a disputa ocorre, mas um resultado dessa própria disputa. A preocupação da tese é conferir profundidade histórica a essa ideia. Não é por isso um argumento exclusivamente sobre o passado, pois, se bem encaminhada, a sociologia histórica interpela o presente. É notório que instituições poderosas produzem uma ilusão de permanência e atemporalidade, o que já foi chamado de uma “amnésia da gênese” (BOURDIEU, 2014). Essa amnésia é um passo para a naturalização do existente. A luta de Marielle foi tão potente e incômoda não só por contrariar decisões políticas como a intervenção federal ou as Unidades de Polícia Pacificadora, mas por contestar quais são a lei e a ordem que na prática são garantidas. Como construção política, a ideia de ordem nunca foi uma realidade independente de suas contestações e seus dissensos, da indignação moral com a autoridade, da fricção contra suas práticas de exclusão. Esta tese procura construir um tratamento original para os desenvolvimentos de longo prazo da política moderna na América Latina, à luz da discussão acumulada pela sociologia histórica sobre o tema. Mais especificamente, ela pretende oferecer recursos para oxigenar os estudos sobre a formação de estados na região, aproximando-os de uma teoria crítica. A rigor, “formação do estado” é um tema suficientemente vago para comportar diversas linhas independentes de pesquisa, com técnicas, linguagens e escalas próprias. Em diversas oportunidades em que resultados preliminares da tese foram debatidos, foi possível perceber que a expressão evoca problemas muito diferentes conforme a área de especialização e a bagagem teórica do interlocutor. O papel dessa introdução é, na medida do possível, esclarecer quais as questões que estão em jogo, a razão de sua importância e a forma como elas serão enfrentadas no restante do trabalho. O primeiro passo para fazê-lo é destacar uma linha de continuidade com a dissertação de mestrado que a precedeu (BORBA, 2014). O argumento desenvolvido ali era que persistia uma espécie de viés modernizador na sociologia histórica sobre os estados latino-americanos, em alusão às teorias da modernização correntes nas décadas de 1950 e 1960. Embora nominalmente 12 descreditadas, suas fundações permaneciam sub-reptícias em diversos campos da literatura especializada. Pode-se simplificar essas fundações por meio de uma conjugação entre um pressuposto desenvolvimentista de mudança histórica com uma teoria apologética do estado moderno. Assim, em momentos diferentes em cada sociedade nacional, com resultados mais bem-acabados conforme o caso, a formação do estado se confundia com a própria realização das expectativas normativas da modernidade. Ao destrinchar o conteúdo desses termos e cotejá-los com o estado da arte sobre o tema, a dissertação oferecia uma revisão bibliográfica que municia muito do argumento agora apresentado. A contrapartida propositiva indicava então a possibilidade de uma teoria crítica do estado moderno a partir de seus processos históricos de formação. De forma sintética, reivindicava a sociologia histórica como teoria política. As balizas da agenda de pesquisa giravam na órbita do trabalho do sociólogo norte-americano Charles Tilly (1929-2008), cuja obra foi decisiva, a certa altura, para uma reorientação interdisciplinar do que entendemos como construção de estados. Especialmente entre 1975 e 1990, seus trabalhos galvanizaram uma série de perspectivas inovadoras na intersecção entre história e sociologia política (TILLY, 1975; 1978; 1984; 1985; 1990). No embate direto às teorias do desenvolvimento político, a agenda seguia três preocupações axiais: (1) o interesse pela explicação histórica em ciências sociais, incorporando a contingência em escalas longas de tempo; (2) a relevância da agência política popular como parte de um gabarito amplo de confronto político [contentious politics], capaz de englobar a guerra, os movimentos sociais, o nacionalismo, os conflitos étnicos, entre outras formas de ação coletiva; (3) por fim, a crítica ao desenvolvimentismo político, naquele contexto, carregava uma premissa de desnaturalização do processo de formação de estados, despindo-o de um conteúdo ético intrínseco. Relido nesse prisma, o processo se convertia em um conflitivo e acidentado percurso pelo qual organizações políticas em contínua competição foram impelidas a mobilizar volumes crescentes de capital e coerção para continuar existindo. Em sua forma mais crua e também mais célebre, ele postulava que os estados fizeram a guerra enquanto a guerra fazia os estados (TILLY, 1975). Mais do que a ênfase na guerra, a tese privilegia as três preocupações mais gerais. Como propôs Breno Bringel para o campo de movimentos sociais, o desafio 13 era aproveitar a originalidade do programa de pesquisa de Tilly e levá-lo adiante, em um conflito criativo com suas fragilidades (BRINGEL, 2012). Reconhecer que a sociologia histórica anglo-saxônica estabeleceu os termos do problema não significava que ela era capaz de oferecer todas as respostas. Aliás, a apropriação de suas contribuições fora de seu contexto original de formulação criava inclusive um tipo novo de problema que, a rigor, ela sequer havia se colocado. Um dos traços renitentes do viés modernizador é ler a experiência latino-americana na chave da negação, da incompletude, da temporalização da diferença. De forma mais ou menos explícita, estabelece-se um hiato entre a realidade observada e o significado da política moderna em suas formas genuínas, a cidadania, o estado burocrático, a democracia, a nacionalidade. Tratam-se de sociedades ainda em processo de modernização, mesmo que a palavra tenha sido substituída por variantes menos datadas. A modernidade política se define no restrito círculo da Europa Ocidental, enquanto que, para o resto do mundo, ela representava um projeto importado e aclimatado, um porvir auspicioso, uma transformação social que ainda não maturou completamente. Fora do debate sobre formação de estados, essa gramática da ausência tinha raízes mais profundas a serem revolvidas. “Mais do que qualquer outra região”, escreveu recentemente Achille Mbembe, “a África permanece o receptáculo supremo da obsessão ocidental e do discurso circular sobre os fatos da ‘ausência’, da ‘falta’, do ‘não-ser’, da identidade e diferença, da negatividade” (MBEMBE, 2001: 04). Algumas décadas antes, um argumento muito parecido fora apresentado sobre o Oriente em um dos livros mais influentes do século passado (SAID, 2008). Mais do que um vício dos estudos latino-americanos em particular, o que foi identificado como resquício das teorias da modernização era, até certo ponto, a reinvenção de um discurso etnocêntrico mais amplo. Portanto, esta pesquisa atingiu o problema do eurocentrismo enquanto representação hegemônica de mundo. Diante disso, a tarefa era menos diagnosticá-la nos conceitos, bibliografias e exemplos históricos que ainda hoje povoam a sociologia política; o desafio era sobretudo levar a denúncia para um terreno reconstrutivo, propositivo, instituinte no plano teórico (BRINGEL & DOMINGUES, 2015). Nesse sentido, ao resgatar a hipótese de uma teoria crítica do estado a partir seus processos históricos de formação, a tese também postula que essa possibilidade não consegue subsistir sem uma crítica consequente ao eurocentrismo. Se bem 14 compreendida, a questão não é perseguir uma teoria sem eurocentrismo, mas sim contra ele. A contraposição funciona como plataforma de reelaboração teórica, de desvelamento do que havia sido negligenciado e apagado. Nessa passagem, a crítica ao eurocentrismo tem como contrapartida um reposicionamento forte do colonialismo na sociologia do estado (BHAMBRA, 2016). Do ponto de vista conceitual, isso fertiliza uma hipótese de desenvolvimento desigual da política moderna como processo macro-histórico, uma ideia que remonta às teorias da dependência. Explorar caminhos nessa direção foi, por assim dizer, o primeiro conflito criativo com o programa de pesquisa tal qual definido por Tilly e seus colegas. Em segundo lugar, havia o problema da mobilização de capital e coerção como eixo da autoconstrução de estados no longo prazo. Também aqui se revelavam dificuldades do argumento ao ser interpretado desde suas margens. Na América Latina, a forma mais comum de fazê-lo reduziu essa mobilização à preparação para a guerra, levando a uma comparação entre continentes com resultados paradoxais (CENTENO, 2002, entre outros). Ao restringir à guerra o que fora pensado como um gabarito amplo de confronto político, esse procedimento sacrificou elementos importantes do programa de pesquisa. Ao invés disso, a estratégia que a tese propõe é repensar a questão da mobilização de capital e coerção na América Latina no marco da análise dos sistemas mundiais. Dito da forma mais geral possível, isso implica que não é indiferente o fato de que estados se situem nos centros ou nas periferias para avaliar suas trajetórias de longo prazo. Ou ainda, é dizer que o insulamento dos casos de suas conexões sistêmicas subtrai aspectos relevantes para a explicação. Em si, essa é uma constatação pouco operacional. Sua aplicação à pesquisa se deu por meio da teoria de transições hegemônicas mundiais formulada por Giovanni Arrighi (2009), cujos detalhes serão apresentados mais adiante. Com ela, foi possível reenquadrar o século XIX na América Latina em um conjunto definido de tendências de grande escala, discernindo também as oportunidades e pressões postas às periferias em tal contexto. Os estados latino-americanos, assim, fazem parte de um sistema mundial cujo desenvolvimento é desigual no tempo, com momentos generalizados de expansão e crise, e no espaço, com centros e periferias articuladas em um ciclo de acumulação. Enquanto incorporação teórica, a análise de sistemas mundiais foi um segundo ponto de apoio da tese na tentativa de “provincializar” o argumento de Tilly. 15 Por fim, havia outro flanco frágil no que diz respeito às dimensões intangíveis da ação política. A prioridade analítica ao capital e à coerção deixava pouco espaço para a linguagem, o imaginário, a utopia, a valoração, isto é, as visões de mundo que atravessam o confronto político. As tentativas do próprio Tilly em reparar esse materialismo forte não foram muito convincentes2. Talvez aqui o desafio maior seja admitir a relevância do conteúdo das ideias políticas (e não apenas sua eficácia relativa), sem para isso recair em noções reificadas de legitimidade, nação ou outras. Naturalizar a legitimidade ou a nacionalidade ao redor da autoridade política encerraria de antemão os horizontes de uma teoria crítica. Logo, a demanda é conceber a reflexividade dos atores e seus imaginários políticos no bojo do gabarito amplo de confronto político contingente que a sociologia histórica havia proposto inicialmente. Para isso, uma terceira apropriação teórica é desenvolvida ao longo da tese. Trata-se da discussão sobre a construção social da ordem política, enquanto um processo agonístico de definição da realidade, dos sujeitos e do significado da própria política (LECHNER, 2013; 2014). Tanto o uso da força como a barganha pelo capital envolvem, pois, interpretações contraditórias do dever político, sentidos diversos de como a sociedade é e de como ela deve ser, do que é justo, imutável, urgente e aviltante, para quem e em quais circunstâncias. Assim, a ordem não é a negação simétrica da desordem, mas sim o triunfo prático de certa visão de mundo sobre concepções alternativas e subalternas de ordenamento da sociedade, que permanecem desarticuladas, episódicas, subterrâneas. Essa chave de interpretação já havia encontrado eco na obra de Waldo Ansaldi e Verónica Giordano (2012) e é aqui retomada. Dessa forma, a construção de uma saída propositiva ao viés modernizador na sociologia política latino-americana encaminha o programa original de pesquisa sobre formação de estados em três novas direções: a crítica ao eurocentrismo, a reavaliação da condição periférica e o lugar das ideias políticas. Essa interpelação franqueou o diálogo com três campos distintos que a tese buscou concatenar em seus capítulos Ver, por exemplo, os conceitos tardios de “conexão” (TILLY, 2003) e de “redes de confiança” (TILLY, 2007). Em certa ocasião, ao comentar o conceito de legitimidade, o autor a traduz em termos de estabilidade. Isto é, em lugar de esmiuçar o que seria ou não legítimo, cabe ao analista tomar como legítimo aquele governo que se sustenta, da forma como consegui-lo (TILLY, 1985). Em seu contexto, essa manobra não deixa de ter seu mérito, mas leva longe demais sua iconoclastia. O conteúdo do imaginário com que se produz obediência política não é irrelevante, inclusive para compreender o intercurso de capital e coerção. 2 16 iniciais. Antes disso, contudo, convém delinear mais claramente o terreno no qual aterrissam essas diferentes balizas teóricas. Iremos discutir os elementos básicos do desenho de pesquisa: (A) as perguntas, (B) as escalas espaciais, (C) as escalas temporais, (D) o método pelo qual se constroem as explicações e (E) a justificativa dos estudos de caso. (A) Perguntas de pesquisa: A primeira das perguntas precisa ser necessariamente lidar com a definição do objeto. Nesse ponto, a formulação é delicada. Por exemplo, indagar simplesmente “o que é o estado?” não é só imprudente, mas contraproducente. O leitor seria abalroado por um vendaval de definições, obras e autores, e o resultado seria fatalmente uma definição a mais para uma palavra já saturada delas. O objeto da pesquisa é antes de tudo um processo, ou um feixe de processos de longo prazo. Chamá-lo de formação, desenvolvimento ou construção apenas ratifica esse aspecto, mas faz pouco além disso. A forma mais usual de torná-lo empírico seria indagar o que ocorre com determinada organização política ao longo desse processo, ou seja, que tipo de mudanças institucionais são discerníveis. Esse ponto de partida tem por vício analisar o estado desde um ponto de vista de estado, observando a mudança de cima do ombro do Príncipe. Se adotamos a perspectiva dos governados, a ênfase recai sobre as consequências práticas das mudanças institucionais para a forma como a maioria das pessoas experimenta a política. O conteúdo das mudanças institucionais não é o interesse em si, mas um subsídio indispensável para entender como “ser governado” é uma circunstância histórica e móvel. O tema da formação do estado é refraseado como a possibilidade de discernir, em recortes longos de tempo, mudanças significativas na condição dos governados, em seu espaço de experiências e de expectativas com relação à autoridade política. Como esclarecimento do domínio da pesquisa, a primeira pergunta poderia ser então formulada como segue: Pergunta 1: o que significa dizer que há uma tendência à concentração da vida política em torno a um estado moderno? 17 Em termos coloquiais, parafraseando um professor e mentor, a questão diz basicamente o seguinte: como é que eu sei o que é uma “formação de estado” quando estou na frente de uma? É, pois, uma pergunta de tipo o-que3. Ora, seria possível objetar que essa pergunta não prescinde de uma definição do que é “estado”, “tendência”, “moderno”, “vida política”, e assim sucessivamente. Mas há que ter certo cuidado para não ser empurrado a uma regressão interminável às premissas, como na “armadilha de Confúcio”4. Os termos empregados para formular a pergunta serão resolvidos com definições de trabalho que permitam respondê-la. Uma segunda objeção possível seria que a questão não pode ser trabalhada adequadamente em termos tão gerais, o que é certo. Ainda nesta introdução, discutiremos as operações para delimitar, no tempo e no espaço, o contexto empírico relevante para a pesquisa. No entanto, é pertinente que a pergunta inicial seja mantida no plano conceitual, isto é, mantida como um problema de teoria política para o qual a sociologia histórica é mobilizada. A segunda pergunta possui caráter propriamente explicativo e, para isso, se apoia sobre a anterior. Supõe de saída que a formação do estado se realiza como uma tendência real no contexto observado. Isso pode parecer autoevidente, mas curiosamente um dos paradoxos da interpretação “belicista” na América Latina foi Há uma sutileza aqui que convém esclarecer: haveria uma circularidade no fato de que uma das perguntas da pesquisa é definir o objeto de interesse dela mesma? Do ponto de vista formal, isso parece tautológico. Para estudar, digamos, as democracias, o caminho lógico é definir de antemão o que uma democracia é para saber onde buscá-las. Isso, contudo, responde a uma metodologia normativa, que estipula como uma pesquisa deve ser, e não como ela realmente funciona. Coloca os requisitos lógicos do contexto de validação à frente dos procedimentos concretos do contexto de descoberta. Assim, esconde o percurso de suposição, descarte, reelaboração, tentativa e erro para apresentar o resultado final como uma simples execução de um desenho de pesquisa previamente projetado. Na prática, diversas definições provisórias foram sendo adotadas para enquadrar o objeto desta tese em seu desenvolvimento. Assim, optou-se por considerar esse trabalho de bastidor como a primeira pergunta de pesquisa, ao invés de apresentar artificialmente seu ponto de chegada como se fosse um ponto de partida. 3 A “armadilha de Confúcio” é uma expressão que faz alusão ao risco de, na busca pela fundamentação adequada ao problema, criar-se uma regressão às premissas na qual se perde de vista a questão original (PÖSSEL, 2013). Baseia-se em uma interpretação sarcástica do seguinte trecho de Confúcio: “Os antigos que quisessem difundir a virtude pelo reino, primeiro deveriam ordenar bem seus próprios estados. Querendo ordenar bem seus estados, eles primeiro regulavam bem suas famílias. Querendo regular suas famílias, eles primeiro cultivavam suas pessoas. Querendo cultivar suas pessoas, eles primeiro retificavam seu coração. Querendo retificar seu coração, eles primeiro buscavam ser sinceros em seus próprios pensamentos. Querendo ser sinceros em seus pensamentos, eles primeiro estendiam ao máximo seu conhecimento. Esta extensão de conhecimento estava na investigação das coisas” (apud PÖSSEL, 2013: s/p). 4 18 justamente negar, até certo ponto, o processo que pretendia explicar5. Além de assumir que ele ocorreu, é preciso determinar referências no tempo e no espaço para observá-lo. Isso feito, pode-se colocar uma questão de cunho causal nos seguintes termos: Pergunta 2: Por que razões ocorre, como resultado tendencial, uma concentração da vida política ao redor de estados modernos na América Latina durante o “longo século XIX” (1770-1945)? Esse é o núcleo da tese em termos de sociologia macro-histórica. Sua operacionalização metodológica será tratada nos próximos apartados desta introdução. É preciso, antes, desenvolver uma terceira pergunta que nasce no espaço intermediário entre as outras duas, ou melhor, no hiato entre uma discussão conceitual que recorre a termos abstratos (Pergunta 1) e uma explicação construída sobre um processo histórico concreto, situado na América Latina (Pergunta 2). A rigor, não se trata simplesmente de uma mediação entre generalidade e particularidade, ou entre teoria e empiria. Revela-se aqui o impasse com relação ao estatuto teórico das experiências latino-americanas uma vez descartada a hipótese de replicação, segundo a qual elas poderiam ser lidas como unidades analíticas equivalentes (eventualmente incompletas ou deficientes) dos processos que haviam ocorrido anteriormente na Europa. Dessa forma, o eurocentrismo não se manifesta unicamente no amplo predomínio de referências teóricas da Europa e dos Estados Unidos, mas também da dificuldade de pensar o resto do mundo fora dessas referências. Esse impasse põe em primeiro plano a vinculação entre conhecimento e poder, ou ainda, uma geopolítica do conhecimento. A ideia de elaborar uma explicação plausível para as trajetórias latino-americanas no século XIX carrega consigo uma indagação sobre o lugar que essa explicação há de ocupar diante do que se sabe sobre o estado-nação europeu ocidental. A tese de certa forma aposta que as duas questões também se resolvem de maneira associada. A pergunta sobre os caminhos propositivos contra o eurocentrismo, então, se formula como segue: Um olhar mais detalhado sobre a recepção da tese de Charles Tilly nos estudos sobre a América Latina pode ser encontrado na dissertação já mencionada (BORBA, 2014: 157-197). 5 19 Pergunta 3: qual a posição da reflexão sobre os estados latino-americanos diante do debate eurocêntrico estabelecido sobre o tema? O tratamento dessas três perguntas perpassa a tese como um todo, e é sistematizado em suas conclusões. A originalidade da tese está menos na formulação desses problemas do que na tentativa de mobilizar recursos novos para enfrentá-los, cujo mérito está, como sempre, aberto ao debate. Do ponto de vista acadêmico, sua relevância se justifica pelo potencial de estabelecer conexões substantivas entre campos de especialização institucionalmente distanciados, tentando resgatar agendas de pesquisa efetivamente multidisciplinares. No debate público, os argumentos apresentados na tese contribuem para um contraponto crítico a visões estereotipadas sobre passado, cujas apropriações cotidianas da “formação nacional” adquirem visibilidade ainda maior por ocasião dos bicentenários da independência. (B) Escalas espaciais O primeiro parâmetro de operacionalização é o tratamento do recorte espacial, antes formulado superficialmente como “América Latina”. Há conhecidas razões para o ceticismo com relação ao termo (FERES JR., 2005). Seu emprego frequentemente subentende uma homogeneidade social que serve de base para “raciocínios sinedóquicos”, em que a parte é tomada pelo todo e o todo, pela parte. Um estudo sobre um aspecto particular observado em qualquer quadrante do continente é imediatamente transposto como “latino-americano”, em uma falácia metodológica não raro eivada de preconceito e exotismo. Ora, argumentos desse tipo abundam na bibliografia consultada, mas isso não quer dizer que só se possam produzir raciocínios sinedóquicos sobre a América Latina. Em verdade, a tese transita entre diferentes escalas, e o que se dirá a seguir sobre esta tem validade para as outras. Antes de tudo, uma escala não pressupõe uma regularidade empírica de observação. Dizer, por exemplo, que houve nos anos 2000 um giro à esquerda na política latino-americana não conota um movimento uniforme em todos os países, ou ainda, uma afirmação que seja potencialmente falseável pela eleição de um governo de direita naquela década. Da mesma forma, reconhecer que, durante a primeira 20 metade do século XX, houve uma espiral de belicosidade na política internacional não exige que isso açambarque todas as relações diplomáticas no mundo. Situar um fenômeno em uma escala não significa preenchê-la com uma generalização, ou contemplar extensivamente tudo aquilo transcorrido nela. Recortar a escala serve antes de tudo para delimitar o escopo adequado para melhor discernir as características do fenômeno que se quer observar. Além disso, tempo e espaço não são realidades dadas com escalas uniformes, nos termos estabelecidos na ciência ocidental clássica (BRUCKMANN, 2011: cap. 1; WALLERSTEIN et al, 2007). Com efeito, a construção metodológica de escalas não é independente da forma como imaginamos nossa experiência espaço-temporal no mundo. Enquanto tal, ela também concorre a constituir as escalas que utiliza. Por exemplo, o sistema mundial se mostrou uma escala pertinente para observar o desenvolvimento do capitalismo no longo prazo. A partir do momento em que projeta uma divisão entre centros e periferias, e um desenvolvimento desigual em sua interação, essa escala também constitui uma imaginação espacial condizente, que orienta determinadas práticas por oferecer uma apreensão relevante sobre o mundo. Uma escala espacial desse tipo não é uma métrica da natureza, independente do esforço e das preocupações daqueles que a elaboram. Inserido no processo de produção de conhecimento, o debate sobre as escalas adquire sentido em sintonia com os problemas colocados. Mesmo que a lógica abrangente do sistema mundial tenha oferecido uma apreensão relevante sobre o mundo, isso não implica automaticamente que qualquer evento precise dela para ser decifrado. Um dos riscos da análise de sistemas mundiais, inclusive, foi superestimar a densidade explicativa que tal sistema podia oferecer para a multiplicidade de realidades específicas e contingentes, que transcorrem em seu espaço. Por sua vez, a naturalização da escala espacial de estados individuais para captar e explicar processos sociais já foi criticada como “nacionalismo metodológico”, uma vez que ceifa conexões importantes que não são visíveis apenas em uma “sociedade nacional”. Ao fim e ao cabo, toda análise acaba manipulando diferentes escalas, e essa manipulação precisa decidir estrategicamente o que ganha ou perde, ora com observações mais agregadas e abstratas, ora com a imersão nas sutilezas de uma situação concreta. 21 Em termos espaciais, há três escalas prioritárias adotadas na tese: em ordem decrescente, o sistema mundial, a América Latina e a espacialidade que os estados pós-coloniais circunscreveram em sua autoconstrução. A primeira é a mais vasta e heterogênea, englobando as outras duas, enquanto que a terceira é obviamente menor e inserida nas anteriores. É certo que essas não são as únicas escalas possíveis, e sequer as únicas utilizadas na exposição da tese. Por vezes, determinado fenômeno é posicionado na escala da economia atlântica, que foi um segmento importante do sistema mundial, ou da Bacia do Rio da Prata, de determinado estado imperial espalhado por diferentes continentes, de uma província irrendenta e mesmo em uma localidade específica, como o vilarejo indígena de Buriticá na Colômbia, quando este tinha pouco mais de 700 habitantes (ver seção 4.3). Há um trânsito constante entre escalas na exposição, mas a prioridade atribuída àquelas três obedece aos termos das perguntas formuladas. A escala da América Latina serve para desenvolver uma resposta à obsessão modernizadora de defini-la pela ausência ou pelo atraso. Desde os anos 1960, o pensamento crítico latino-americano desenvolveu aportes originais nessa direção, partindo de uma realidade periférica para um contradiscurso sobre as desigualdades mundiais. Na crítica ao eurocentrismo, desde uma perspectiva latino-americana, jaz a possibilidade de explorar o significado do colonialismo e da condição periférica em uma sociologia política crítica. O recorte está orientado, portanto, à Pergunta 3 sobre o estatuto das trajetórias latino-americanas perante o debate eurocêntrico estabelecido. Ao reduzir a escala espacial para os estados individuais, a prioridade recai sobre a Pergunta 1, que versa sobre a tendência de concentração da vida política ao redor de estados modernos. Embora contribuições possam ser extraídas de escalas maiores ou menores, a verdade é que a tendência se realiza como a própria produção de sua escala espacial. Por fim, a análise dos sistemas mundiais atravessa de alguma forma essas duas perguntas (1 e 3), porque oferece o pano de fundo da cena. No entanto, a vitalidade dessa escala se torna indispensável para desenvolver os argumentos explicativos demandados pela Pergunta 2. (C) Escalas temporais 22 O recorte temporal de quase duzentos anos pode soar estranho, mas esse tipo de imprudência é mais comum do que parece. Recentemente, um historiador israelense causou algum furor pela originalidade de sua narrativa sobre a espécie humana, em uma escala de nada menos que dez mil anos (HARARI, 2015). A sociologia histórica de Michael Mann, por exemplo, põe em tela os últimos quatro mil anos, com a pretensão de estabelecer ali um modelo geral de funcionamento do poder político (MANN, 1986; 1993). Como não poderia ficar de fora, Charles Tilly é ele próprio um entusiasta de “grandes estruturas” e “comparações enormes” (TILLY, 1984). Seu argumento sobre a formação dos estados europeus manipula uma escala temporal de um milênio (TILLY, 1990), com razoável sucesso a julgar pela recepção do livro. A intenção dessa digressão não é relativizar a extensão desse chamado “longo século XIX”, que começaria já pelos anos 1770 e viria a soçobrar só em meados dos novecentos. Seja em dez, cem ou mil anos, o problema da inteligibilidade de uma escala sempre concerne ao fenômeno que quer capturar. A ideia de que as escalas temporais são construções analíticas gera resultados às vezes bizarros para um leitor desavisado: a tomada da Bastilha em Paris, como é sabido, ocorreu durante a tarde do dia 14 de julho de 1789, mas o historiador William Sewell Jr. (2005) argumenta que, como evento histórico, ela teria começado no dia 12 e terminado só no dia 23, mais de uma semana depois. No mesmo espírito, um filósofo brasileiro considerou que o fim do século XIX teria acontecido só na década de 1970 (ARANTES, 2014). Essa revolta contra os calendários não é uma excentricidade de eruditos. Para Sewell Jr., a tomada da Bastilha só acaba de fato quando a Assembleia Nacional decide reivindicá-la como uma expressão da soberania popular contra a autoridade do rei, e não mais como a ação de uma turba violenta e descontrolada (SEWELL JR., 2005: 236-244). Através da escala de duas semanas, a intenção é mostrar que a interpretação que os atores formam sobre um evento histórico é parte constitutiva dele, logo, é inseparável das mudanças que por ele desencadeadas. Da mesma forma, o “longo século XIX” aqui tem como referência o ciclo hegemônico britânico, perfazendo emergência, ápice, declínio e crise. Com isso, seu objetivo é mostrar que o sistema mundial não é uma constante ambiental no qual ocorrem processos individuais de formação do estado. Com uma escala longa, é possível discernir movimentos de caos e governabilidade no sistema, tendências de expansão e travamento que são melhor visualizadas na longa duração. Informado por 23 essa teoria, o “longo século XIX” é usado como uma convenção, portanto, para referir-se ao ciclo sistêmico de acumulação que tem o Império Britânico como potência hegemônica. Daí sua elasticidade com relação ao século XIX cronológico. Essa escala secular é a mais abrangente: uma vez estabelecido esse bloco temporal, é possível manobrar com diferentes escalas em seu interior, inclusive para mostrar como a trama real dos eventos não acata às tendências de longo prazo identificadas na escala do sistema. Quanto mais nos aproximamos das guinadas e da incerteza no calor dos eventos históricos, mais remotos e inconsequentes tendem a ficar os processos sistêmicos gerais. Em outros termos, o desafio é demonstrar a consistência dos desenvolvimentos de longo prazo sem precisar sacrificar, nem mantê-los imunes a, o aspecto contingente que é irredutível da história. O teor do intercurso entre processos e eventos, contudo, não é meramente uma questão de escala, mas fundamentalmente um problema metodológico sobre a explicação em sociologia macro-histórica. (D) Explicação e método Como já observou José Maurício Domingues (2015), a sociologia histórica como campo apresenta certo viés antiteórico, como se a história viesse para substituir raciocínios gerais, abstratos, descontextualizados, pretensamente universalistas. Importando um forte empirismo historiográfico, trata o explicandum como eventos e observações históricas, e o explanans na forma de uma narrativa da situação concreta, da malha de antecedentes que localiza esse evento. A explicação é tomada como um procedimento eminentemente empírico e descritivo. No limite, o risco desse empirismo é estabelecer princípios explicativos à maneira do Dr. Seuss: “calhou de acontecer, mas não é muito provável que venha a acontecer de novo” (GOLDSTONE, 1998a: 832); ou ainda, como dizia Chicó, o carismático personagem de Ariano Suassuna, “não sei, só sei que foi assim”. Nesse contexto, permanece incontornável a provocação: “o que há de história e o que há de sociologia na sociologia histórica?” (DOMINGUES, 2015: 214). O hiato entre o sequenciamento e a explicação exige o recurso a algum mecanismo mais geral, cuja operação pode ficar implícita. Por exemplo, a pergunta “por que a caneta caiu?” pode ser respondida “porque eu a soltei”, isto é, com um evento anterior relevante. 24 Implícito, contudo, existe um mecanismo causal que explica porque a caneta, o copo, a bola, quando soltos, tendem a cair. Ora, a gravitação universal não explica porque eu soltei a caneta na hora e lugar em que isso ocorreu. De fato, não diz efetivamente nada sobre a sequência real de eventos que levou, naquela circunstância, a canela ao solo. Na linguagem corriqueira, há uma elipse dos mecanismos causais por razões óbvias, mas não se deveria fazer o mesmo na análise social. Em termos metodológicos, isso significa que não é possível ligar as condições iniciais aos resultados efetivos sem a aplicação de algum mecanismo que explique porque, dadas essas condições, tais resultados são esperados, prováveis, possíveis (GOLDSTONE, 1998a). A presunção de que a causalidade jaz na ligação direta entre eventos subsequentes é uma falácia empirista (BHASKAR, 2008; DOMINGUES, 2018). Vista dessa maneira, a atuação de mecanismos transfactuais não é incompatível com a contingência, pois esses mecanismos não estão agarrados ao que Roy Bhaskar chamou de “determinismo de regularidades” (BHASKAR, 2008: 59-69). O mecanismo não diz que “sempre que eu soltar uma caneta, uma caneta vai cair no chão”, isto é, que um evento determina a ocorrência de um evento subsequente. Ele diz que os corpos se atraem na proporção de sua massa e do inverso do quadrado da distância entre eles. Ora, alguém sempre pode agarrar a caneta no caminho, ou eu posso soltá-la em uma nave espacial com gravidade zero – e isso, por si só, não desmente ou falsifica a proposição geral. Pesquisadores sociais de orientação empírica, particularmente “sociólogos históricos” ou historiadores, têm um receio desmesurado com teorias e generalizações, tidas como perniciosas por encaixotar, distorcer, submeter as nuances da realidade às exigências pré-definidas do modelo. É inadequado, no entanto, supor que toda a teorização equivale ao positivismo como epistemologia. As ciências sociais se valem de diversas formas de mecanismos gerais, sem que isso seja em si uma tentativa de determinismo universal. Eles trabalham com maior abstração diante dos casos empíricos: a extração de mais-valia elaborada por Marx é um mecanismo abstrato, cuja formulação prescinde das situações concretas de trabalho assalariado na história. Ele não é uma lei geral falseável, passível de ser descartada por observações discrepantes. Em seu escopo de atuação específico, é um mecanismo causal abstrato a partir do qual se pode construir uma explicação para a 25 acumulação capitalista em geral, o que serve a entender contextos específicos, se feitas as mediações adequadas. A abstração não significa a normalização das leis universais do comportamento humano, mas uma vinculação não-empírica (portanto, “transfactual”) entre fenômenos. Ao contrário do determinismo, essa vinculação não é incompatível com o intercurso de fatores imponderáveis, com a imprevisibilidade do mundo social, ou dito sucintamente, com a contingência. Tampouco há uma anulação da autonomia dos agentes, cujas decisões de fazer uma greve, ir à guerra ou soltar uma caneta não são derivadas nem causadas por leis gerais de desenvolvimento. A análise empírica é insubstituível porque o encadeamento real entre fenômenos é uma possibilidade realizada dentro do universo de possíveis constituído por um encaixe particular entre condições iniciais, processos e episódios. A saída para o caráter híbrido da “sociologia histórica” passa por desfazer a oposição rígida entre os termos: nem a sociologia opera somente no plano teórico e nomotético, nem a história é uma ciência particularista e descritiva (WALLERSTEIN et al, 2007). Isso dito, o próximo passo é observar o caráter da causalidade como ligação entre fenômenos. Em geral, esta é pensada a partir de uma direcionalidade da causa para o efeito: eu soltei a caneta (causa) leva à queda da caneta (efeito). Por certo pode haver fatores intervenientes (como alguém agarrar a caneta) ou condições iniciais relevantes (como a gravidade zero), mas a direcionalidade permanece decisiva. A forma mais comum de modelá-la é através de variáveis independentes (causas) e variáveis dependentes (efeitos). Mudanças na variável independente permitem explicar o comportamento da variável dependente. Queremos explorar uma via alternativa que, embora contraintuitiva, revela-se adequada para a análise causal em escalas grandes. Em lugar da variação independente, presume que uma explicação plausível pode ser obtida pela interação continuada entre processos ao longo do tempo. Uma primeira pista é encontrada em um texto tardio de Norbert Elias intitulado “O recuo dos sociólogos ao presente”, publicado em 1987. A certa altura, o autor sinaliza as consequências extraordinárias advindas da interligação histórica entre a produção de excedente agrícola e o surgimento das primeiras cidades-estados. Da combinação entre esses fatores decorrem inúmeras transformações na organização política das sociedades sedentárias, como os registros escritos e a consolidação de uma elite não-produtiva. 26 O que nos interessa aqui é a objeção de Elias a pensar essa combinação em termos de causa e efeito. O excerto é longo mas vale reproduzi-lo na íntegra: Já foi defendido algumas vezes que a apropriação do excedente econômico foi a fonte principal do poder dos dois grupos dirigentes desses primeiros estados [sacerdotes e guerreiros]. No entanto, o excedente não estava lá simplesmente. Ele cresceu junto, e em si fazia parte da organização humana que assumiu as características de uma cidade-estado, inicialmente centrada no templo e depois no templo e no palácio. Uma explicação causal confunde a questão. Nesses casos uma explicação processual é mais apropriada. O estágio final do processo, que é o único visível para nós, mostra claramente que não só o excedente de alimento extraído da população trabalhando na terra era condição para a existência de uma população citadina, mas também que uma organização estatal capaz de coordenar o trabalho na terra e manter obras de irrigação e defesa era condição para a produção regular de excedente” (ELIAS, 1987: 240-241). Em suma, sua opção por uma “explicação processual” [process-type explanation] em vez de uma “explicação causal” faz sentido porque não há uma direcionalidade clara de um fator sobre o outro, mas uma alimentação recíproca. A produção de excedente agrícola é ao mesmo tempo consequência de e condição para a centralização política. A busca pelo fator originário perde de vista o essencial, que é a reciprocidade entre ambos os processos no tempo. Um raciocínio muito parecido é aplicado por Charles Tilly ao falar do papel da guerra na formação dos estados na Europa. Salvo melhor juízo, a guerra não é uma variável independente no modelo, capaz de determinar uma variação concomitante da variável dependente. A guerra foi feita pelos próprios estados, cuja mobilização militar acabou produzindo certos “resíduos organizacionais” (cf. TILLY, 1985: 181), que por sua vez transformaram continuamente a escala e os métodos da guerra. Não há variação independente porque os dois processos entrelaçam seus efeitos no tempo, como se uma afinidade efetiva entre eles produzisse uma causalidade circular e acumulada. Afora a questão da guerra, compreender esse tipo de interação causal é fundamental para a tese. É a partir dessa dinâmica recíproca que se concatenam os elementos para a explicação de resultados tendenciais, nos termos da Pergunta 2. Tal qual no caso dos eventos, essa causalidade processual não se resume à justaposição no tempo e no espaço. É preciso soldar as pontes que efetivamente explicam por que os processos em questão são interdependentes, isto é, quais os reagentes e os produtos que formam uma autocatálise. De resto, é justamente pelo exame dessas pontes que podemos avaliar quão convincente é o argumento apresentado. 27 Entre a “produção de excedente agrícola” e a “centralização política” se soldam pontes plausíveis: as obras de irrigação, a coordenação do trabalho agrícola e a defesa dos campos cultivados estabelece uma relação relevante com a elevação do excedente obtido da terra, ao passo que a sustentação material de uma população não-produtiva também tem forte incidência sobre a chance de construir diques e canais, armazenar as colheitas e expulsar eventuais saqueadores. Evidentemente essas pontes causais podem ser sempre rediscutidas à luz da pesquisa empírica. Mas sua força não é medida pelo acúmulo de demonstrações observacionais, mas porque se apoia sobre mecanismos robustos: é plausível pensar que, em geral, populações agrícolas desarmadas, vulneráveis ao saque, tenham menos facilidade de acumular excedentes produtivos no longo prazo. Não é por ser processual, pois, que o tipo de explicação defendido por Elias não deixa de apoiar-se sobre algum mecanismo geral para estabelecer uma ligação entre as condições iniciais e os resultados efetivos. A necessidade de abstração fica ainda mais clara quando os processos transcorrem em escalas muito grandes: afinal, no tratamento de milênios ou séculos, é virtualmente impossível manipular o material empírico em seus detalhes. Como recurso, a tese emprega uma última ferramenta para controlar a complexidade de seu universo observacional, a ideia de conjunção crítica6. A proposta é que as explicações processuais, baseadas em causalidades recíprocas, não são necessariamente um gradualismo de longo prazo, mas possuem pontos cruciais para compreender seu arranque histórico. Uma conjunção crítica é um momento decisivo para a definição de trajetórias de prazo mais alargado, um recorte temporal que sobressai no estudo da mudança. Nesse sentido, contradiz a imagem de uma evolução homogênea em processos de longo prazo. Uma conjunção crítica implica uma descontinuidade no fluxo do tempo, uma espécie de aceleração que a torna mais atrativa em termos explicativos. Nesta tese, as duas conjunções críticas são identificadas a partir das duas transições que demarcam o começo e o fim do “longo século XIX”, a “era das revoluções” aproximadamente entre 1770 e 1840 e as chamadas “guerras euroasiáticas” da primeira metade do século XX. Esses nomes foram espelhados da literatura como Como ideia e recurso metodológico, “conjunção crítica” é um termo bastante explorado nas Ciências Sociais, em particular no chamado “institucionalismo histórico” (HALL & TAYLOR, 2003). Possivelmente o trabalho de pesquisa mais consagrado por empregá-lo é o de Ruth Collier e David Collier (2002) sobre a incorporação da classe trabalhadora à arena política na América Latina. 6 28 convenção. Ambas correspondem ao momento entre ciclos hegemônicos, tidos como caos sistêmico (ARRIGHI & SILVER, 2001). A tentativa mais rigorosa de aplicar a ideia de conjunção crítica à formação dos estados latino-americanos utilizou basicamente os mesmos períodos de referência, embora com outra denominação (KURTZ, 2013). Para Marcus Kurtz, as trajetórias institucionais seriam pontuadas por conjunções críticas no momento das independências (aqui inseridas na “era das revoluções”) e na emergência da questão social durante o século XX (aqui inserida nas “guerras euroasiáticas”). De certa forma, essa escolha vai na contramão de uma visão muito comum sobre a história da região, que identifica sua virada mais importante em meados do século XIX, ora com a “unificação política”, ora com a “transição para o capitalismo”. Ainda mais, rechaça a imagem genérica de que nos oitocentos “as sociedades latino-americanas não protagonizaram acontecimentos importantes (...) O essencial da história da América Latina estava reservado para o século XX” (SADER, 2000: 95). Do ponto de vista analítico, as conjunções críticas não são definidas apenas pelo caos sistêmico. A erosão do ciclo de acumulação é acompanhada por uma aceleração da agonística da construção social da ordem política, isto é, um acirramento da disputa entre horizontes possíveis de futuro. Nesse sentido, a crise se expressa como abertura do horizonte de possibilidades históricas. A decolagem de um novo ciclo, por seu turno, gera uma pressão contrária de estreitamento desse horizonte. A conjunção crítica, portanto, é uma circunstância privilegiada para identificar o entrelaçamento contingente entre processos e eventos que delineia explicações tendenciais. Por fim, conjunções críticas também são recursos comparativos, na medida em que se delimitam como “períodos analiticamente equivalentes” (COLLIER & COLLIER, 2002: 32). Ora, se esses períodos concentram em intensidade a mudança, é possível usá-los para discernir variações de trajetória através dos casos empíricos. Para dar um primeiro passo nessa direção, a tese apresenta três estudos de caso, organizados transversalmente pelas conjunções críticas que vertebram o “longo século XIX”. Cabe, pois, um esclarecimento sobre sua escolha. (E) Estudos de caso 29 De saída, é preciso perceber por que estudos de caso são uma ferramenta relevante na economia da tese, isto é, porque ela não cumpriria satisfatoriamente o que se propõe sem eles. Para tal, os estudos de caso são pensados como momento de síntese. Eles fazem valer o que se disse sobre a importância da análise empírica para concatenar explicações processuais, conceitos e contingências em direções particulares. A plausibilidade desse procedimento demanda na prática um trânsito entre escalas diferentes de tempo e de espaço. Ao fazê-lo, ressalvam de maneira substantiva a heterogeneidade da América Latina como recorte. Ao invés de frases protocolares sobre o risco de se generalizar, os estudos de caso permitem observar concretamente as diferenças e suas implicações explicativas. Esse olhar individualizante também se aplica às consequências do colonialismo e da posição periférica para a construção da ordem política. No debate contra o eurocentrismo prevalecente na sociologia histórica, essas duas categorias são fundamentais para descartar a hipótese de replicação dos casos europeus. Elas oferecem, como foi dito, o chão sobre o qual se pode pensar a hipótese de um desenvolvimento desigual, e não simplesmente assimétrico, da política moderna. No entanto, elas não podem aterrissar imediatamente em um caso para explicar sua trajetória, porque se tratam de níveis de abstração distintos. Para que o colonialismo e a periferia sejam efetivamente categorias históricas e relacionais, não seria possível tratá-las somente no recorte da América Latina ou do sistema mundial. Os três estudos de caso são México, Argentina e Brasil, os três maiores países latino-americanos em área e população. A designação é algo anacrônica, uma vez que entidades políticas assim identificadas não existiam em boa parte do período histórico analisado. Esses três casos apresentam trajetórias significativamente diferentes na construção da ordem política no “longo século XIX”, com uma bibliografia bastante consolidada a respeito. É preciso esclarecer que, embora a análise de uma conjunção crítica nos três casos ofereça insumos comparativos, a prioridade não é estabelecer um desenho convencional de comparação pela semelhança ou diferença. Os estudos de caso não foram escolhidos pela capacidade de extrapolar uma inferência geral, nem por sua representatividade amostral do que seria a América Latina. (F) Plano da tese 30 A estrutura geral da tese está dividida em três partes. A Parte I (“Sociologia histórica como teoria política”) tem cunho teórico. Seus três capítulos reconstroem o debate do plano mais abstrato ao concreto, buscando conferir organicidade às apropriações teóricas enunciadas acima. O primeiro elabora desenvolve os procedimentos intermediários para uma síntese entre conceito de ordem política com a dinâmica de um ciclo extrativo-coercitivo. Ocupa-se, dessa forma, de uma sociologia política pensada em termos conceituais. O segundo capítulo trata da análise de sistemas mundiais, buscando pôr em relevo as diferentes formas de estratificação que se formam em seu desenvolvimento. Aqui, a teoria de Arrighi sobre as transições hegemônicas é tratada em maior detalhe. Por fim, o terceiro capítulo lida frontalmente com o problema do eurocentrismo, o que aproxima o debate pós-colonial contemporâneo. A Parte II (“A América Latina no ‘longo século XIX’”) segue uma ordem cronológica, pautada por diferentes recortes dentro do ciclo. Sua prioridade é observar a inserção da região de forma panorâmica, recorrendo constantemente à escala sistêmica. Os capítulos 4 e 7 tratam das duas conjunções críticas (c.1770-1840 e c.1910-1945) como momentos de aceleração do confronto político. Ao posicionar a América Latina nesse contexto, ambos se preocupam em salientar as origens multicêntricas da mudança e da criatividade. O capítulo 5 trata especificamente dos processos de desencaixe da política de seus contextos locais ao longo do ciclo, destrinchando as soldas de sua explicação processual. O capítulo 6 recorta o período declinante do ciclo, a partir da década de 1870, para reinterpretar o fenômeno das “oligarquias”. De forma geral, a Parte II cumpre um papel intermediário: historicizar as categorias apresentadas na Parte I, mas também delinear os processos amplos que atravessam os estudos de caso da Parte III. A Parte III (“Estados pós-coloniais em perspectiva comparada”) compreende estudos de caso sobre Argentina, Brasil e México. A ênfase recai, pois, sobre a escala espacial que os estados pós-coloniais circunscreveram em sua autoconstrução. Se, na Parte II, a preocupação era mostrar que, a despeito de inúmeras particularidades, era possível discernir tendências gerais na região, na Parte III a questão se inverte: mesmo inseridos em processos mais amplos, a trajetória de casos particulares revela a heterogeneidade desses processos e sua maleabilidade às contingências. Os três 31 capítulos estão organizados de forma a propiciar uma perspectiva comparativa do desenrolar das duas conjunções críticas em cada caso. 32 PARTE I: SOCIOLOGIA HISTÓRICA COMO TEORIA POLÍTICA A primeira parte da tese é composta por três capítulos e tem como objetivo estabelecer o terreno conceitual em que o argumento se desenvolve. Ao invés de uma revisão bibliográfica, optou-se por estipular os conceitos operacionais da pesquisa e mobilizar a literatura em função deles. Ainda assim, o capítulo 3 reserva espaço para uma interlocução mais sistemática com a agenda de pesquisa sobre estado e política na América Latina, em particular seus desdobramentos recentes. No conjunto, os capítulos apresentam uma tentativa de reconstruir o problema desde sua forma mais simples e abstrata, definida como uma relação contingente de dominação política. No capítulo 1, o fio condutor é esmiuçar essa unidade analítica. A partir dela, elabora-se duas noções basilares para a tese, além de outras intermediárias. A primeira delas é a de ordem política, cuja inspiração mais forte é o trabalho do sociólogo teuto-chileno Norbert Lechner (2013; 2014). A segunda é a de ciclo extrativo-coercitivo, que é herdeira da sociologia histórica weberiana (TILLY, 1975). Ambas as noções são eivadas por uma dinâmica de confronto, que é a chave para o entendimento da mudança. O segundo capítulo oferece os insumos para compreender um ciclo hegemônico como recorte de longa duração histórica. Desse ponto de vista, a construção da ordem política pós-colonial na América Latina está inserida em um processo mais amplo sem ser redutível a ele. Para compreender essa escala temporal longa, é preciso mobilizar uma escala espacial correspondente, aquilo que a literatura especializada chama de sistema-mundo ou sistema mundial. O problema essencial do capítulo gira ao redor das consequências de se estudar esse sistema desde suas margens ou de suas periferias. Por fim, o terceiro capítulo caminha um passo adiante em especificidade. Centra-se sobre o estatuto teórico dos estados latino-americanos diante da crítica contemporânea ao eurocentrismo. Aqui, a proposta de reconstrução pós-colonial de conceitos, defendida atualmente por Gurminder Bhambra (2014), serve de eixo. Como preâmbulo da Parte 2, o capítulo explora o significado de repensar a sociologia histórica dos estados latino-americanos em suas conexões sistêmicas, posicionando-os, assim, como trajetórias de formação de estados pós-coloniais na periferia. 33 1. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA ORDEM POLÍTICA “Acredito na resistência do mesmo modo que acredito que não pode haver luz sem sombra; ou melhor, não pode haver sombra a menos que também haja luz” Margareth Atwood 1.1. Dominação e obediência política como relação social O percurso que vamos seguir nesse capítulo é de organização e encadeamento de conceitos, com o intuito de produzir explicações processuais a partir de mecanismos não-deterministas. O ponto de partida inevitavelmente exige algo de abstração. A unidade fundamental sobre a qual o raciocínio se apoia não é um “estado” tomado isoladamente em seus atributos, nem um indivíduo abstrato capaz de, junto a seus pares, delegar e constituir uma autoridade política. Há boas razões para sustentar que a configuração mais simples da sociologia do estado parte de uma relação contingente de dominação política7, de modo que tentaremos detalhar cada um dos termos dessa expressão. A “relação” aqui faz jus ao caráter interativo que engaja quem pretende governar e quem é governado em um processo contínuo. Em outras palavras, não existem dois sujeitos pré-constituídos – com suas preferências, interesses e capacidades – que decidem entrar em uma relação de dominação política, mas é pela dinâmica dessa relação que se pode acessar e explicar as partes envolvidas8. O primado da relação de dominação é uma forma de deslocar as chamadas “robinsonadas” dedutivas, isto é, uma axiomática calcada em indivíduo genérico, atomizado e modelável, isto é, apartado de sua inserção social concreta. O tema ganha força na dialética hegeliana do senhor e do escravo e é recuperado na antropologia filosófica liberal feita por Marx, que faz diversas referências às “robinsonadas” (em alusão à Robinson Crusoé) da época. Em síntese, essa axiomática essencializa o interesse egoísta e o cálculo racional. A contingência irredutível das relações de dominação política foi um tema caro a Weber (PALONEN, 2011). No século XX, a crítica ao individualismo metodológico ganhou um novo fôlego com o trabalho de Norbert Elias (2001), publicado como heterodoxia no auge da teoria da escolha racional. Recentemente, com tonalidades simmelianas, Charles Tilly retomou essa abordagem ao propor “fazer da interação social a unidade fundamental de observação, de análise e da teoria” (TILLY, 1992: 358) 7 A constituição prática de sujeitos por relações de poder foi objeto por excelência da extensa reflexão de Michel Foucault (2005), mas antes dele o tema já fora tratado, sem os mesmos termos, por Antonio Gramsci (2000) e por diversos pensadores anarquistas clássicos como Proudhon e Bakunin (para um panorama, ver GUÉRIN, 1980). Nos anos 1970, percebe-se a absorção relativa do contraponto foucaultiano no pensamento marxista, tendo como pivô o trabalho de Ernesto Laclau (1977) contra o reducionismo de classe, com grande influência sobre a sociologia política de Norbert Lechner naquele momento (LECHNER, 2013). A obra tardia de Poulantzas (1979) também tentou conciliar uma teoria marxista do estado com a dinâmica produtiva (e não simplesmente inibidora) do poder político. 8 34 Não existem “estados”, “estadistas” nem “cidadãos” em uma redoma abstrata, congelados para que se possa observar suas propriedades. São nas relações de poder móveis, porque históricas, que se podem observar dominantes e dominados a partir de sua interação. O segundo termo da expressão alude à contingência, um termo bastante difundido pelas ciências sociais contemporâneas. Para entender seu sentido aqui, o primeiro passo é supor, por enquanto de forma muito genérica, que em uma relação de poder existe uma imposição de comportamento, alguma forma assimétrica de manuseio da vontade alheia. Quando uma regra prevê que todos os jovens de dezoito anos devem se apresentar ao serviço militar, trata-se de um comportamento compulsório – com o qual esse jovem põe à disposição sua própria vida. Para obter obediência ao recrutamento, estadistas ao longo da história recorreram ao mais variado leque de ameaças e penalizações, ofereceram remuneração e benefícios, tentaram controlar os castigos disciplinares a que o recruta poderia ser submetido, além de explorar diversas formas de adesão pela sacralidade da causa, pela grandiosidade da luta, pelo amor à pátria. Não obstante, não há como assegurar o consentimento por quaisquer dessas induções, não há necessidade ou determinismo causal que produza os comportamentos esperados por quem governa. Uma vez que a evasão, a insubordinação e a contestação são possibilidades constitutivas da relação de poder, existe um hiato entre a pretensão de dominação e sua efetivação, entre a reivindicação de mando e a obediência, no extremo, contingente9. Contingência, então, se refere à indeterminação em última instância, não ao sentido comum de aleatoriedade. O caráter contingente da dominação política se expressa pela impossibilidade de se pressupor conformidade a uma ordem política por seus atributos intrínsecos (isto é, sua capacidade de convencer, ameaçar, subornar, etc.). Fazê-lo seria suprimir o caráter relacional do poder político: os jovens de dezoito anos então acometeriam lobotomizados para os quarteis. Por que há interação A relação entre interação de vontades e a dominação como saída contingente é um ponto de partida weberiano, que pretendia limar de sua sociologia as figuras coletivas reificadas herdadas do idealismo alemão (Estado, Nação, Exército, Igreja, etc.). Suas relações de dominação são sempre entre indivíduos em ação, e portanto sempre sujeitas à incerteza (BENDIX, 1980: 3-20; CENTENO, 2014; HÜBINGER, 2011; PALONEN, 2011). A proposta conceitual de José Maurício Domingues sobre as subjetividades coletivas incide nesse ponto sensível, permitindo que a contingência irredutível às interações sociais não necessariamente carregue sua dissolução analítica em uma sociedade de indivíduos em ação (DOMINGUES, 1999). A seu modo, a reflexão sobre os giros modernizadores opera sobre uma causalidade coletiva e contingente (DOMINGUES, 2008). 9 35 entre vontades e um conflito em potencial, há uma margem irredutível de fricção e indeterminação no consentimento político. Definitivamente não é uma maneira intuitiva de pensar, afinal não andamos pela rua e vemos pessoas decidindo se vão obedecer ao governo ou vão sabotá-lo. As coisas na realidade são mais complexas, mas é justamente para compreender essa complexidade que precisamos começar com raciocínios simples. Em uma relação de dominação contingente, pois, a obediência convive com seu contrário, a hipótese de deserção, insubordinação, conspiração, revolta, boicote. Temos a seguinte formulação, aparentemente banal: a obediência política é sempre a insubmissão que não chega a se realizar, assim como a revolta é a obediência que não se efetiva. Constatá-lo é mais do que um malabarismo lógico: o consentimento em uma relação de dominação se torna inteligível nos termos de seu contrário, nas condições de sua negação. Mesmo no exemplo hipotético do alistamento dos jovens de dezoito anos, a conformidade à regra não se resolve no plano do exercício abstrato do juízo prático, ou seja, da deontologia. É pelo significado e pelas consequências de desobedecer, tal qual postos para um grupo ou pessoa em uma dada circunstância, que é possível compreender seu consentimento contingente, tal qual a insubordinação faz sentido como negação das induções com que se espera produzir o consentimento. A advertência coloquial de que “se você não se alistar você vai preso” poderia exemplificar o argumento em sua forma mais singela: a prisão, mesmo quando não se efetiva, é inseparável do alistamento. O alistamento, por outro lado, pode significar a participação em uma guerra com a qual não se compactua, ao que se pode preferir a prisão ou o exílio. A ação sobre o alistamento não faz sentido fora dos termos específicos da interação continuada entre quem recruta e quem é recrutado, que recém começamos a explorar. O cerne do apelo à contingência na relação de dominação política, então, é que a autoridade, o estado, o governo ou o império, não importa quão poderosos à primeira vista, não são capazes de suprimir o hiato entre a reivindicação de mando e a obediência civil, e, portanto, a insubordinação, mesmo quando não se realiza, é central e inseparável da interação entre governantes e governados. Isso dito, vamos agora observar melhor o último termo, “dominação política”. Sem dúvida, estadistas não passam seus dias como um profeta em cima da montanha ditando regras imperativas sobre o comportamento das pessoas, assim como essas não 36 se dividem simplesmente entre a resistência heroica e o conformismo bovino. Já não precisamos mais simplificar tanto, ou seja, mando e obediência precisam ser entendidos para além de seu sentido corriqueiro. Para tal, o primeiro esclarecimento é que a dominação política, e consequentemente sua institucionalização como estados, não tem uma finalidade intrínseca, e, portanto, não pode ser definido por seu propósito10. Dos teóricos do contrato social ao funcionalismo norte-americano, uma longa tradição de pensamento atribuiu ao poder político um sentido último, seja garantir a segurança, a propriedade, a vontade geral ou resolver os problemas alocativos da sociedade. Por exemplo, Gottfried Fichte, um romântico alemão escrevendo à época da ocupação napoleônica, pensava que o estado era “meramente um meio para o mais elevado propósito do eterno, regular e contínuo desenvolvimento do que é puramente humano na nação” (FICHTE, 1922: 147). Pelo contrário, assumimos aqui que esse propósito mais elevado não existe enquanto tal. Justamente porque há dissenso quanto ao significado e ao propósito das relações de dominação política que sua efetivação é contingente. Boa parte da incerteza envolvendo a obediência e seu contrário resulta da disputa entre horizontes distintos com relação à razão de ser do governo em inúmeras circunstâncias específicas. Tampouco se pode estipular uma coerência última das práticas que até então tratamos genericamente como desobediência, que iriam, em tese, da mais retumbante ofensiva revolucionária à evasão fiscal encoberta de um opulento capitalista. A clivagem entre consentimento e não-consentimento continua fundamental, mas não se pode transpô-la diretamente para a realidade sem produzir esse efeito de desorientação. Por ora, embora tentador, é improdutivo tentar discernir as formas de insubordinação que efetiva e deliberadamente buscam confrontar a posição dos dominantes daquelas que supostamente servem apenas a motivações oportunistas e limitadas, que são específicas, pontuais ou que desafiam o poder político sem perceber-se como tal. Os jovens podem desertar por suas convicções religiosas ou A impossibilidade de definir o estado por seu propósito último advém de um contraponto tanto ao instrumentalismo marxista (no qual o estado tem como finalidade as condições exteriores da acumulação capitalista) quanto as inúmeras variações do argumento liberal do bem comum, seja ele de acepção contratual, utilitária ou funcional. Isso não significa que as relações de dominação política não têm um desígnio. Pelo contrário, é pelo fato de terem múltiplos propósitos práticos diante de circunstâncias móveis, muitas vezes contraditórios ou incoerentes entre si, que uma definição teleológica é improdutiva. Perceber que esses objetivos circunstanciais não são redutíveis a uma lógica estrutural é também assumir sua opacidade e sua irracionalidade em última instância. 10 37 para não abandonar seus entes queridos, para lutar do outro lado da guerra ou por medo da morte – essa falta de coesão de propósitos não impossibilita que ecloda uma crise de dominação política pela objeção generalizada ao recrutamento. O que confere unidade às diferentes configurações particulares é que a dominação política é imposta, em última instância, pelo uso da força física ou sua ameaça. Como Max Weber tornou célebre, ela não se define por seus fins, mas por seus meios (WEBER, 2013). Qualquer discussão sociológica sobre o estado, a autoridade, o governo ou o sistema político esbarra em uma gramática da violência, sua distribuição, organização, método e representação como prática social. A assimetria pela qual se constituem governantes é uma assimetria na organização social da coerção. No entanto, o emprego da violência nunca é o ato abstrato de bater em alguém com um porrete, descolado do mundo como se em um tubo de ensaio. Ao contrário, o emprego concreto da violência é inseparável do intercurso de juízos de valor sobre quem está coagindo e quem está sendo coagido, por quais razões e de que forma — mesmo quando quaisquer desses juízos estão sendo brutalmente violados na interação. Nesse caso, é justamente o fato de que certas expectativas sociais de reconhecimento, dignidade e proteção estão sendo violadas que torna a situação substancialmente diferente de quando, digamos, esse mesmo castigo físico corrobora expectativas de punição, culpa e reparação adequada. Nenhuma prática violenta está isenta da disputa pelas representações éticas dessa violência (BOURDIEU, 2014). As ideias compartilhadas ao redor de uma certa organização da violência não são um enfeite, um engodo ou uma proteção avançada que resguarda um suposto núcleo da dominação como força pura, porque nenhuma força é rigorosamente pura. Mesmo o mais brutal dos governos recorre, nas palavras de um sociólogo que nos será muito útil mais adiante, ao “poder normativo do fático” (LECHNER, 2013). Se a definição da dominação por seus meios nos levou a uma gramática da violência, essa não pode ser desenvolvida sem recurso às dimensões intangíveis do poder político. Pensada como célula básica da construção da ordem política, toda relação de dominação envolve o intercurso entre coerção e consenso, entre a capacidade de 38 coagir e de persuadir11. Para dissipar mal-entendidos, é importante esclarecer que essas duas categorias não serão empregadas com nenhum destes dois sentidos: primeiro, coerção e consenso não são dois instrumentos alternativos e excludentes à disposição dos governantes, que fariam escolhas análogas ao dilema entre manteiga versus canhões12. Segundo, o binômio coerção e consenso não serve para decifrar uma especificidade histórica das democracias liberais ou do estado de bem-estar na Europa do pós-guerra, em que aparatos de consenso (hegemonia) teriam se sobreposto às instituições estatais convencionais de repressão e controle13. Ao contrário, são categorias mais genéricas que servem para entender a pretensão de dominação como uma unidade entre esses dois opostos14. Para transmitir essa unidade, Maquiavel, e Gramsci depois dele, se valeu da analogia com o centauro mitológico, que conectava força (cavalo) e astúcia (humano) de forma “orgânica” (BIANCHI & ALIAGA, 2011). Um dos textos mais brilhantes e intrigantes de Marx afirma que, embora o consumo seja o contrário da produção, “a produção é imediatamente consumo e o consumo é imediatamente produção”, porque, na produção, trabalho e insumos são literalmente consumidos e, no consumo final, as pessoas e suas necessidades são produzidas (MARX, 2011a: 64). Ao invés de isolar a análise da produção na economia ou da violência na política, podemos decifrá-las por seu contrário: onde a produção é consumida, onde a dominação não é violenta. Por seu apelo, esses termos e seus correlatos já foram explorados das mais diferentes formas nos estudos sobre o estado. Destaque é merecido pela linhagem de estudos inspirados pela atualização de Maquiavel por Gramsci (GRAMSCI, 1980; MAQUIAVEL, 2006; ver também ANDERSON, 1976; ARRIGHI, 2009; BIANCHI, 2007; BIANCHI & ALIAGA, 2011; POULANTZAS, 1979). 11 12 O dilema da manteiga e dos canhões foi cunhado originalmente por Joseph Schumpeter e expressa uma disjunção lógica entre o gasto público com fins civis e com fins militares, tidos como opostos e mutuamente excludentes. O melhor exemplo de uma abordagem para a coerção e consenso como ferramentas alternativas é a obra de Margaret Levi (1988) sobre a tributação, que assume os estadistas como maximizadores de receita em um modelo de escolha racional. A conclusão de Levi é de que solução ótima seria uma “obediência consentida”, uma proporção ótima de coerção e de convencimento. Perry Anderson (1976) mostrou como essa foi uma das leituras derivadas da noção de hegemonia de Gramsci. Por um lado, essa interpretação acentua a singularidade da experiência europeia do pós-guerra, colocando tanto o Terceiro Mundo à época como o passado europeu em uma mesma condição de não-hegemonia. Por outro, ela precisa descartar ou separar as estratégias de construção de consenso que não equivalem à hegemonia propriamente dita. Em suma, para além do apego à conjuntura, há um viés eurocêntrico marcante nessa leitura. 13 14 Para Bianchi e Aliaga (2011: 29), a coerção e o consenso “estão em relação de unidade-distinção”. 39 Usando uma analogia menos onírica que centauros, pensemos na circulação de papel moeda15. No primeiro plano, a validade do dinheiro depende de que a autoridade monetária, quando demandada, seja capaz de convertê-lo em reservas de valor; contudo, a disponibilidade de reservas não resume a crença no valor da moeda. Cotidianamente, a circulação desse dinheiro depende de uma relação fiduciária, do estabelecimento de confiança sobre a qual se acredita na moeda mesmo sem dispor de dados atualizados sobre o nível de reservas correspondentes. Essa atribuição de confiança, que pode ser justificada pelo acompanhamento das finanças públicas, pode ser também, e mais frequentemente o é, ancorada em um amálgama casual de costume, comodidade, senso comum, propaganda, desinformação ou outras razões irrefletidas ou tácitas. O elemento crucial é que esse delicado equilíbrio de contingências que faz a moeda circular pode se romper, pondo à prova a capacidade da autoridade monetária de fazer jus às suas obrigações e eventualmente levando ao seu colapso: o dinheiro se torna então apenas um pedaço de papel, e outras unidades de valor o substituem. “Reservas” e “juízos sobre o valor da moeda” são separáveis como noções opostas, mas na realidade elas se fundem. Não há como medir o quanto da confiança advém das reservas e quanto das crenças, nem calcular uma proporção áurea que otimize o consentimento com o papel moeda. Isso dito, convém observar com mais detalhe os termos em uso. Como noção teórica, a coerção corresponde à prerrogativa de violência sobre os corpos, produzindo uma política da proteção, do medo e da ameaça; no limite, da vida e da morte. Por seu turno, o consenso não corresponde à noção corriqueira em que as pessoas “chegam a um consenso” sobre um tema, mas sim, como antípoda da coerção, opera como o poder sobre o certo e o errado. Como tal, abre o terreno da luta pelas representações da sociedade, pelo significado das palavras, pelo imaginário de futuro, pelo senso de pertencimento ou exclusão, e, consequentemente, pelos meios através dos quais essa disputa de valores é travada na prática. À primeira vista, a criminalização de um movimento social estaria tipicamente no campo da “coerção”, enquanto que a isonomia legal, isto é, o princípio de que as pessoas são iguais perante a lei, no do “consenso”. No entanto, sem que isso deixe de valer, a repressão ao movimento social apela, no plano do certo e do errado, àqueles que veem esse Essa analogia é explorada tanto por Perry Anderson (1976) quanto por Reinhard Bendix (1980), dois autores com perspectivas, se não opostas, bastante distantes. 15 40 movimento (ou o próprio grupo social mobilizado, ou o repertório de ação empregado) como ilegítimo, perigoso ou inaceitável. Da mesma forma, a isonomia legal, sem deixar de ser uma forma não-coercitiva de reivindicar a obediência política, é um gabarito específico de delinear as expectativas de uso da violência. Os princípios de isonomia jurídica e o devido processo legal subsidiam, inclusive, a própria criminalização de movimentos sociais. Com o percurso que fizemos até aqui, demonstramos como a unidade fundamental da nossa análise é a de uma relação contingente de dominação política, que se produz por uma dialética entre a coerção e o consenso. O passo seguinte é entender a noção de ordem política como projeção espaço-temporal de relações contingentes de dominação política, transpondo a bagagem do raciocínio anterior. Com isso, o tema da coerção se converterá na análise dos arranjos continuados de proteção mediante extorsão e de suas linhas de fratura. Enquanto isso, o tema do consenso, projetado na história e no espaço, se torna o problema de relações ético-políticas que reivindicam consentimento e pertencimento ao poder instituído, delineando com isso movimentos práticos de inclusão e exclusão. A explicação de cada uma dessas expressões é a função do resto do capítulo. Do que vimos até agora, podemos intuir que uma ordem política, como projeção de relações de dominação, está continuamente produzindo subjetividades em sua interação. Por exemplo, Mara Loveman mostrou como “estados que institucionalizam legalmente distinções raciais ‘produzem a raça’ ao fazer a raça importar, direta e explicitamente, na vida das pessoas individualmente” (LOVEMAN, 2014: 05). Essa ideia pode ser levada em várias direções, como indicaremos adiante. Em segundo lugar, qualquer ordem política é fundamentalmente contingente, atravessada pela possibilidade de sua ruptura. Tal qual entendemos a obediência nos termos de seu contrário, qualquer ordem política é sempre inteligível por meio da contestação pretérita, do conflito político no presente e de suas possibilidades contingentes no futuro. A ordem política, nessa medida, não se define como oposição simétrica à “desordem”, mas como triunfo agonístico com relação a projetos alternativos de ordenamento político que permanecem interditos, marginais, controlados, tácitos (LECHNER, 2013: 267-422 e 439-446). Em terceiro lugar, podemos intuir que, para a reprodução da ordem política, interatuam a violência sobre os corpos e a colonização do juízo ético, não em uma relação de hierarquia ou 41 alternância, mas como contrários recíprocos. Toda a persuasão é coercitiva em última instância, assim como toda a coerção apela a valores últimos. Seguindo a trilha aberta por Norbert Lechner (2013: 79-102), a ordem política se realiza como um processo de definição política da realidade: do bom, do justo, do necessário, do urgente, assim como do criminoso, do impróprio, do intolerável, do desumano. Nesses termos, estipula determinados limites de possibilidade para a política em um dado momento histórico. 1.2. A tessitura de relações ético-políticas A dimensão intangível do poder político é uma longeva preocupação da sociologia política, que para tratar dela recorreu a noções como legitimidade, hegemonia, poder simbólico, nacionalismo, ideologia, consenso, mito, conexão, e mesmo outras mais exóticas como “poder brando”, “estórias de povo” ou “reciprocidade ética". Não cabe aqui uma revisão bibliográfica detalhada, mas é preciso sublinhar que os termos não são equivalentes: não dá no mesmo falar em uma ocultação mistificadora de relações reais de exploração, em uma atribuição individual de legitimidade à dominação, em uma superioridade intrínseca da democracia liberal baseada no consenso ou em uma manifestação da estrutura estruturante subjacente à ação. Com a licença dos teóricos de ofício, iremos atalhar o caminho buscando demonstrar como a noção de relações ético-políticas, tomadas enquanto pretensão de adesão com base no que é ou não certo, desdobra o que dissemos antes sobre dominação, contingência e relação. Em primeiro lugar, ética é empregue aqui em acepção diferente de moral. Como aspirou Kant, a moral se forma na busca de um juízo abstrato sobre a ação humana a partir de seus motivos, de modo a depurar das contingências do mundo uma noção racional de certo, de um dever moral universal. Ao contrário, a ética se abstém da posição transcendental, submergindo os juízos de valor na existência concreta de comunidades humanas, entendendo que a obrigação moral ou ética se apresenta como fenômeno histórico. A presunção de que a ética está enraizada em sociedades concretas tem como corolário de que ela se solidifica pela disputa nessas mesmas sociedades. As condições pelas quais se produz essa dimensão ético-política foi um tema crucial para Gramsci, que articulou ao redor dele sua análise dos intelectuais, da 42 cultura, do partido e do chamado “estado ampliado”. Ao comentar sobre Maquiavel, ele diz que “o príncipe ocupa, nas consciências, o lugar da divindade ou do imperativo categórico” (GRAMSCI, 1980: 15), isto é, da obrigação moral incondicional. Ora, quem governa reivindica o lugar de um imperativo categórico na medida em que produz deveres políticos como deveres éticos, por isso se trata de uma relação ético-política. Para além do medo da prisão, o alistamento aspira obediência como algo que se deve fazer em nome da pátria, da nação, da comunidade. Pagar os impostos aspira ser certo, e não só imposto, na medida em que se pretende uma forma de servir ao interesse público. De forma geral, a identidade da lei com o certo ou justo é uma forma cotidiana de observar a efetivação de reivindicações ético-políticas. Ela é contingente porque o edifício ético-político da ordem convive com a possibilidade de sua erosão, com a contestação social de seu sentido de justiça, com a inadequação do que está sendo vivido com as representações éticas que lhe são imputadas. Com efeito, é pelo dissenso produzido em torno ao conteúdo, à circunscrição e às consequências desses apelos ético-políticos que a ordem política se movimenta. Assim, iremos olhar nessa seção para os três momentos: a vigência de imaginários ético-políticos como produção de subjetividades, as práticas de inclusão e exclusão que ela implica e a contestação política sobre o pertencimento e suas consequências. Como ponto de partida para pensar a reprodução desses imaginários, é preciso superar a falsa dicotomia entre naturalismo e ideologia, como se eles necessariamente fossem ou realidades dadas ou mistificações fictícias. Usando os termos de um estudo famoso, se as pessoas estipulam determinadas situações como reais, elas são reais em suas consequências; isto é, as abstrações se tornam reais na prática16. Não há sentido em investigar se há de fato uma nação boliviana, francesa ou catalã, se a isonomia jurídica é real em si ou se determinado governo é ou não a verdadeira expressão do povo. Essas abstrações não existem senão por meio das práticas que organizam. Em um tribunal, pode haver advogados, juízes, promotores, testemunhas, policiais, réus, júri e o que seja, mas seguramente quem não está presente é “a lei”. Sem dúvida, é possível apelar à lei, ao mandato dos céus, à vontade da nação, à defesa do povo ou à O estudo foi feito na década de 1920 por William Thomas e Dorothy Swaine Thomas, intitulado The child in America. Extraio a citação especificamente de Wallerstein (1988: 131), mas um comentário mais sofisticado sobre o “teorema de Thomas” pode ser encontrado em Peters (2017). Há interessante paralelismo com o tema marxiano do trabalho abstrato e suas derivações (ver, em particular, CHAKRABARTY, 2000: 54-56). 16 43 honra da família, mas as consequências desses apelos não são dadas pela validade real da “lei” ou da “nação”, mas pelas circunstâncias práticas em que o apelo está posto. Pensando nessa chave, podemos abrir um leque variado de reivindicações ético-políticas sem a necessidade de submetê-las a uma taxonomia, hierarquia ou tipologia geral. Por ora, o importante é ter em mente que a noção é mais geral e indeterminada que sua acepção liberal ocidental, na qual a obediência voluntária se efetiva através de instituições democráticas, eleições e liberdades civis. Na tradição confuciana, por exemplo, o poder investido nos líderes tem como contrapartida exigências com relação a seu comportamento na família e na comunidade. Nesses termos, a legitimidade das lideranças está mais ligada à observância desse código de conduta que ao sufrágio. Igualmente, a fundamentação no mandato divino para governar, destrinchada há décadas por Bendix (1980), compõe esse leque de possibilidades ético-políticas sem necessariamente se limitar a um passado remoto ou pré-moderno17. Embora derrotado, um dos mais recentes processos de formação de estado, o chamado Daesh ou Estado Islâmico, recorreu fundamentalmente a um mandato divino. De saída, não é plausível teoricamente nem prudente empiricamente assumir que as relações ético-políticas na modernidade correspondem aos arranjos representativos de democracias liberais em sociedades capitalistas. Mais exatamente, a representação liberal pertence a uma família ampla de formas possíveis de construção de consenso com base no imaginário de soberania popular, isto é, na crença em um mandato do povo para governar (BENDIX, 1980). Do socialismo de estado aos movimentos de libertação nacional, do nacional-popular ao fascismo, existiram diversas formas práticas de construir adesão política ao encarnar interesses e identidades dos próprios governados, e não dos governantes18. A soberania popular não é em si um fato nem um discurso, mas uma matriz da qual se podem produzir argumentos não só diferentes como conflitantes. Ora, quem é o povo e quem encarna a vontade popular, por que meios, com que instituições e com qual No caso da obra de Reinhard Bendix em particular, há um raciocínio subjacente de progressão histórica do mandato divino para o mandato popular, com diversas trajetórias empíricas. Como dito, estamos trabalhando aqui sem essa progressão (ver capítulo 3). 17 A ciência política como área acadêmica, formatada nos Estados Unidos durante a Guerra Fria, tem o cacoete, hoje mais recalcado, de separar regimes “democráticos” e “autoritários” como duas espécies opostas, bifurcando duas agendas de pesquisa: a Ciência Política propriamente dita ocorreria unicamente nos sistemas democráticos, como os próprios Estados Unidos. 18 44 linguagem política são questões em aberto entre uma reivindicação ético-política e sua efetivação. A efetivação de relações ético-políticas conforma, portanto, aspectos fundamentais do sentido que governantes e governados têm de si mesmos. Uma ordem política que apela à igualdade cidadã e ao governo da lei, por exemplo, pressupõe uma cadeia de práticas correspondentes com consequências reais. Por isso Lechner advoga o estudo da “construção da ordem junto com e por meio da formação dos sujeitos” (LECHNER, 2014: 389). Isso dito, passamos ao segundo aspecto: qualquer relação ético-política é um contínuo movimento entre práticas concretas de inclusão e exclusão. Essas linhas podem adquirir inúmeros recortes contextuais (classe, religião, língua, gênero, raça, posição política, de repertório de ação, etc.), ou serem mesmo mais arbitrárias que essas categorias gerais. O importante é perceber que essas exclusões não são meramente a ausência do reconhecimento em potencial, mas sim práticas efetivamente orientadas a negá-lo. Assim como observamos a obediência política pelo prisma da resistência, a construção de consenso através de relações ético-políticas também precisa ser lida através de sua negação, quando decisões concretas circunscrevem a igualdade, o povo escolhido, a comunidade política, os sujeitos de direito. Os estudos sobre a cidadania moderna tem chamado atenção para essa reciprocidade entre inclusão e exclusão de diversas maneiras, ora teóricas, ora empíricas (BHAMBRA, 2015; GONZALO SÁNCHEZ, 1999; ISIN & TURNER, 2007; PATEMAN, 1988; SASSEN, 2006). Esse olhar coloca em contato diferentes situações de marcação institucional da diferença, do colonialismo à migração, da segregação urbana à perseguição política. Ao invés de erguer uma teleologia da inclusão, em que diferentes grupos sociais são incorporados progressivamente às formas em si universais, uma perspectiva que parta de suas práticas de exclusão, nos contextos em que se desenvolvem, permite visualizar a componente propriamente política do pertencimento e do reconhecimento. A construção social de uma ordem política também é o arraigamento de suas linhas de inclusão e exclusão, a naturalização de sua seletividade formal ou informal como prática cotidiana. Por certo a seletividade e o conteúdo dos apelos ético-políticos são objeto de dissenso, de disputa, de indignação moral e de contestação prática – esse aspecto é o 45 terceiro que devemos somar à linha de raciocínio. Além de produzirem realidades enquanto ordem vigente (1) e discernirem suas linhas de inclusão e exclusão (2), as relações ético-políticas são objeto de contínuo litígio por seu significado e suas consequências (3). Como dissemos antes, a ordem política não se define pela simples ausência de desordem, mas como uma ordem historicamente triunfante, hegemônica frente a outros projetos alternativos, subalternos, invisíveis de ordenamento social, que tendem a ser por ela igualados à desordem e ao caos. Uma ordem é política, e não simplesmente ordem em abstrato, no sentido em que se reproduz, no tempo e no espaço, pelo controle, modulação e criminalização de suas alternativas, aspirando a “conquista da inevitabilidade”19. Portanto, é necessário pensar qualquer relação ético-política como uma pretensão, uma tentativa, uma reivindicação que se quer efetiva. Por exemplo, o descrédito recente da democracia liberal passa pelo descrédito do apelo de que, através de seus mecanismos, se pode fazer valer a vontade dos governados. Se democracia permanece como algo desejável, os governos que se dizem democráticos, por outro lado, não fazem jus às aspirações do termo. No mesmo sentido, as teses pregadas por Lutero em 1507 contestavam que a ancoragem do poder político na fé cristã fazia jus ao seu conteúdo religioso. A luta contra o apartheid na África do Sul afrontava a estória de povo africâner e suas linhas raciais de inclusão e exclusão. De forma geral, os movimentos nacionais-populares na América Latina do século XX pretenderam inverter os termos da ideia de “nação” para deslocar a soberania popular em nova direção: a “oligarquia” podia ser retratada como antinacional enquanto que os trabalhadores iletrados de massa passavam a povo, depositário genuíno de soberania. Como rastilho subterrâneo da indignação, então, correm determinados sentidos práticos de justiça: sobre o direito aos frutos de seu trabalho que as pessoas contrapõem a um coletor de impostos, de que sua vida não há de ser posta em risco por uma guerra alheia, de que é inaceitável a inanição, de que existem meios adequados para que elites políticas cheguem a sê-lo, de que há tratamentos desumanos A expressão foi importada do livro de Barrington Moore Jr. sobre a injustiça e a indignação moral, mais especificamente para lidar com a aceitação de condições flagrantemente opressivas, como os campos de concentração nazista e a discriminação contra os intocáveis na Índia. Para o autor, mesmo a mais brutal das situações alimenta processos psicológicos, sociais e culturais que revestem o sofrimento com autoridade moral, aspirando, assim, a conquista da inevitabilidade (MOORE JR., 1979: 80). 19 46 e indignos para os filhos do mesmo deus, da mesma nação, da mesma etnia. Toda a luta social tem implícita alguma concepção de sociedade, um senso de ordenamento social alternativo. Não é necessária uma teoria “pan-humana”20 da indignação moral para perceber como o edifício ético-político da ordem vigente necessariamente se equilibra delicadamente sobre o que os governados imaginam que seja uma sociedade bem governada, especificamente em suas consequências particulares a si ou seu grupo. Não há razão para supor que esse seja necessariamente um contraponto igualitário: não raro, figuras com distinção econômica, cultural, política alimentam uma visão de justiça que lhe assegure privilégios correspondentes a esse estatuto, que corresponda ao valor que elas julgam ter socialmente. Pondo seu papel, ora como empresários, salvadores de almas, distribuidores de justiça, raça superior, fazedores de chuva ou defensores do povo, em relevo como um benefício para todos, desenvolvem uma crença compartilhada de que um bom governo é o que reconhece essa condição específica e especial, uma sociologia implícita da devida desigualdade que organiza a ação política desses segmentos. Pode se dizer que há, pois, uma política competitiva em torno ao conteúdo das relações ético-políticas: oposicionistas avançam um entendimento diferente de quais são os anseios do povo, de quais leis são justas ou necessárias, de como vertebrar as práticas de inclusão e exclusão política. Elites governantes, por seu turno, flexionam imaginários abstratos para conferir-lhes consequências reais, aspirando a coincidência entre o imaginado e o existente. Ao fazê-lo, também modulam as relações ético-políticas conforme sua origem social, seu universo cultural, seus interesses concretos – em suma, como racionalização de seu próprio poder político. Nesse sentido, os termos de persuasão e consenso são imanentes à própria disputa política em que são mobilizados, se movem no intercurso entre a vigência de ordem e sua contestação, entre um projeto hegemônico e suas alternativas. O significado do léxico corrente pelo qual a política é designada abre-se como terreno de batalha dessa política competitiva, como ilustramos nos exemplos da crise da democracia contemporânea (o que é democrático?) e da emergência dos blocos nacional-populares no século XX (quem é a nação?). A alusão aqui é extraída do já citado livro de Barrington Moore Jr. (1979), que pretende um argumento tão amplo a ponto de recorrer à expressão diversas vezes. 20 47 Ora, a disputa em torno ao que é “cidadania” é uma disputa em torno a quem pode (ou não) reivindicar o quê com base nesse pertencimento político, de garantias previdenciárias, integridade física, língua materna, ou o direito de trabalho. Igualmente, a polêmica sobre o que é uma “ditadura” é hoje inseparável do significado de consentir a quem governa sob essa caracterização. Quanto maior a indefinição ou o estiramento a que esses termos são submetidos na polarização política, menor é a força com que o status quo é capaz de determinar os limites cotidianos da política, seus atores, discursos e repertórios coletivos. Quanto menor essa força, mais maleáveis ou transigentes ficam os imaginários políticos para projetos alternativos de ordenamento social, consequentemente mais abertos ficam os horizontes de futuro. Ao observar a tessitura das relações ético-políticas como processo de longa de duração histórica, convém então deslocar a teleologia da inclusão política em que sucessivamente grupos subalternos passam de “fora” para “dentro” da política institucional. Nela, mulheres, ex-escravos, trabalhadores, analfabetos, colonizados, intocáveis, indígenas e demais grupos excluídos seriam incorporados historicamente ao escopo da cidadania moderna, uma vez que o conteúdo desta é intrinsecamente universalista. Nessa chave, a história realiza o que já estava posto como ideia. Por outro lado, desenvolvemos um raciocínio que assume as práticas de exclusão como ponto privilegiado de observação, assumindo-as não como o pertencimento que ainda não veio, mas como o lócus fundamental da fricção política. Nesses termos, as relações ético-políticas se desenvolvem na longa duração através do movimento contingente de suas linhas de inclusão e exclusão, bem como das formas e consequências do pertencimento político. Se bem entendidas, essas relações se dão como móveis da interação entre governantes e governados: ao fazer do dever político um dever ético, reivindicam que o certo coincida com o existente. 1.3. Da política do medo: os arranjos móveis de proteção mediante extorsão A projeção das relações de dominação no tempo e no espaço é uma medida de força. Embora ainda haja filósofos que atribuam a constituição de estados a uma “mão 48 invisível” orquestrando acordos voluntários ao longo do tempo21, tomamos aqui o ponto de partida da sociologia histórica: estados são resultado de processos contingentes de conflito político violento, são formas de organização da violência através de seu exercício. O objetivo nessa seção, então, é perceber as consequências da projeção da categoria coerção no tempo e no espaço, percebendo como a violência sobre os corpos se torna processo histórico na forma de arranjos móveis de proteção mediante extorsão. Toda ordem política é uma reivindicação, mais ou menos bem-sucedida em cada contexto, de controle sobre o uso da violência por uma organização política, como um império, um principado, um partido, um califado, uma guerrilha ou uma milícia paramilitar. A rigor, qualquer organização pode se tornar política na medida em que efetiva uma reivindicação dessa natureza, com continuidade e por seus próprios meios. A continuidade acarreta uma característica central: a organização que governa é sustentada por aqueles que são governados, daí a famosa analogia de Tilly (1985) entre formação do estado e a extorsão praticada pelo crime organizado. A dominação política se projeta no tempo e no espaço como uma espécie de venda continuada de proteção contra ameaças reais ou fabricadas, inclusive, no limite, daqueles mesmos que vendem a proteção. O controle sobre o uso da violência é também o controle sobre a definição do que configura uma ameaça, o que estabelece uma divisão entre aqueles que são titulares de proteção daqueles que são inimigos em potencial ou cujo destino é politicamente indiferente. Um arranjo de proteção mediante extorsão se sustenta no intercurso entre extração material e garantia de segurança, definindo os termos específicos (quem, quando, quanto, como, sob que justificação) que esse intercurso assumirá (ver Gráfico 1.1). Em um livro com exagerada repercussão, Robert Nozick afirma precisamente isso: o problema contratualista da origem do estado pode ser resolvido hipoteticamente por acordos voluntários entre proprietários, regidos por uma mão invisível. Senão vejamos: “desincumbimo-nos, achamos, de nossa tarefa de explicar como um Estado emergiria do estado de natureza sem que os direitos de qualquer pessoa fossem violados. São assim rejeitadas as objeções morais do anarquista individualista ao Estado mínimo. Não se trata de imposição injusta de um monopólio: o monopólio de facto cresce mediante um processo de mão invisível e través de meios moralmente permissíveis, sem que o direito de pessoa alguma seja violado e sem que sejam apresentadas reivindicações a um direito especial que outros não possuem” (NOZICK, 2011: 132). Após erguê-lo, o autor evade o tema das reparações ao lesados por quaisquer formas de apropriação não-consensual de propriedade verificadas na história. 21 49 Gráfico 1.1. Dinâmica básica de um arranjo de proteção mediante extorsão Fonte: Elaboração própria. A forma mais convencional de enquadrar a violência ao “estado”, à “ordem” e à política assume que a existência do estado se opõe simetricamente à guerra civil, quando o uso imoderado da força produz desordem, insegurança e instabilidade. Haveria uma situação pré-política de conflito social e outra propriamente política, em que o estado assegura, pelo monopólio do uso da força, a subordinação deste à garantia da lei e da ordem. Consequentemente, a prática de violência adquire significado radicalmente oposto quando é executado por autoridades uniformizadas de um estado, no que implica aplicação da lei, de quando o é por quaisquer outros grupos, no que implica distúrbios sociopatológicos, extremismos irracionalistas e ameaças criminosas (TILLY, 1984: cap. 2; HOLDEN, 2004: cap. 2). Segurança, estado, proteção, lei e ordem são postos em uma mesma linha lógica, como neutralização do medo. Desnecessário dizer, é uma cisão que assume a defesa da ordem em si, independentemente de seu conteúdo. Combinando uma versão anacrônica do contratualismo com uma leitura conservadora de Weber, produz-se uma análise do estado carregada com o ponto de vista de estado, uma sociologia política de reificação da ordem. Com a desnaturalização dessa oposição entre ordem e desordem, a violência política se torna parte da competição entre arranjos de proteção mediante extorsão, entre formas de organizar socialmente as ameaças, a culpa, as sanções e a proteção. 50 Em uma sociedade capitalista, a exploração do trabalho humano faz parte da ordem, enquanto que sua contestação é criminalizada. Sob o proibicionismo, as substâncias psicoativas são postas no campo da ameaça e do medo, enquanto que a violência rotinizada contra usuários, vendedores e produtores pertence ao campo da garantia de lei e de justiça. Em uma sociedade xenófoba, a imigração é tratada como questão de segurança nacional e de defesa dos cidadãos, enquanto que a discriminação e a segregação das populações minoritárias são normalizadas. Em um estado confessional, a livre expressão de religiosidades alternativas, o ateísmo e o secularismo podem ser postos como risco à ordem, enquanto que a prática religiosa compulsória é parte do bom funcionamento das instituições. Em um cenário como o descrito por Margareth Atwood no romance que epigrafa esse capítulo, o controle, a vigilância e a violência contra os corpos das mulheres são partes do consenso patriarcal sobre o que seria uma sociedade bem governada. Toda eclosão de uma crise pressupõe uma forma concreta de ordem que está em crise, e toda forma de ordem supõe um gabarito de inteligibilidade para a violência, padrões e critérios de distinção para suas práticas. Essas formas concretas de ordem são efetivações contingentes de controle da violência no tempo e no espaço. Assim, estados não são realidades prévias para a política ser possível, mas são organizações políticas que se constituem, se desenvolvem no tempo e no espaço e eventualmente são dilaceradas, conquistadas e refundadas. O resultado é que, assentado sobre essas bases móveis, “o estado não é um sujeito fixo ou uma coisa estável, mas um conceito do possível” (PALONEN, 2011: 107). Isso pode soar contraintuitivo porque, na escala de nossa observação cotidiana, estados simplesmente estão lá e a política ocorre em seu marco. É especialmente em momentos críticos que se entrevê a impermanência do controle político sobre a violência, a contingência que atravessa entre a reivindicação desse controle e sua efetivação. Um termo essencial para entender essa fratura é o de “soberania múltipla”, derivado por Tilly (1978) da análise de Trotski sobre a Revolução Russa de 1917. Para tanto, “uma situação revolucionária começa quando um governo anteriormente sob controle de uma autoridade única e soberana de torna objeto de reivindicações efetivas, concorrentes e mutuamente exclusivas por parte de duas ou mais autoridades distintas” (TILLY, 1978: 191). Em uma situação de soberania múltipla, não há simplesmente uma competição pelo controle da violência, mas, inseparável dela, um 51 realinhamento de fidelidades políticas entre os governados. A oposição articula uma hierarquia paralela, apela a imaginários políticos alternativos, estabelece canais de comunicação próprios com a população, estipula novos critérios para a extração e para a proteção, em suma, postula-se como outra soberania. Nos anos 1850, na China Imperial fragilizada pela ingerência ocidental, o movimento popular liderado por Hong Xiuquan estabeleceu na região de Nanjing um governo paralelo por mais de dez anos, o Reino Celeste da Grande Paz. Com milícias próprias, a rebelião de Taiping, como ficou conhecida, apelava à decadência moral da dinastia Qing combinando-a com um renovado, fervoroso e sincrético movimento religioso de base popular. Importando noções do Velho Testamento difundido pelos missionários, o regime de Xiuquan, que reivindicava parentesco direto com Jesus Cristo, impunha rígidos padrões ascéticos, ojeriza aos estrangeiros e sanções pesadas contra o jogo, o ópio, a idolatria, a prostituição e a prática de deformação infantil dos pés femininos (BAYLY, 2004: 148-155; FAIRBANK & GOLDMAN, 2006: cap. 10). Com efeito, não era simplesmente um grupo armado competidor, mas uma visão radicalmente diferente de como ordenar a sociedade. Com a formação de polos de poder alternativos, o realinhamento das fidelidades políticas se relaciona com a manutenção de um circuito entre proteção e extração. Frente às obrigações incompatíveis postas pela obediência ao governo e aos poderes alternativos, a ordem política se põe em suspenso pela indefinição do controle político da violência. Finalmente, se e quando as autoridades de governo não têm capacidade e/ou disposição para suprimir o(s) poder(es) paralelo(s), isto é, quando há uma “inibição política do uso da coerção”, situações revolucionárias atingem desfechos revolucionários (CEPIK, 1995: 165). O entendimento sobre a soberania múltipla nos será valioso para compreender posteriormente os processos de independência na América Latina durante a Era das Revoluções, bem como outras conjunções críticas na construção da ordem pós-colonial. Em processos revolucionários com ativação popular, inibição política do uso da coerção e consequências institucionais claras, essa descontinuidade é inegável. No entanto, nem toda a mudança ocorre pela demolição violenta da ordem política precedente. Com efeito, a noção de soberania múltipla tem dificuldade de diferenciar uma revolução social de qualquer guerra civil, em boa medida porque esmaece o recorte de classe que para Trotski era fundamental. 52 Adentrar as polêmicas da sociologia das revoluções parece temerário em um trabalho que não tem fôlego para apresentar-lhes soluções razoáveis. Ainda assim, é importante perceber como da fricção, contestação e conflito que subjazem a vigência de uma ordem política produzem-se também descontinuidades não propriamente revolucionárias. Ao preço de 20 milhões de vidas humanas, o movimento dos Taiping foi derrotado pelas forças imperiais com apoio ocidental, resultando em golpe de estado em 1861 que alterou o perfil da liderança Manchu. Acomodando-se ao sistema comercial imposto pelos ocidentais, a dinastia direcionou então suas energias para a reorganização de seu controle interno em uma sequência de intentos reformistas. O declínio dos Qing na segunda metade dos oitocentos é também o triunfo da reação nobiliárquica às rebeliões internas das décadas de 1840 e 1850, que aspirava resolver pelo alto as tensões rurais de uma China sitiada no litoral (SKOCPOL, 1979: 67-81). Mesmo quando não vitoriosas, como os Taiping, as contestações à ordem se inscrevem na realidade como risco de recorrência que precisa ser contido, como receio dos governantes ou demonstração de força dos governados. Esse é um sentido profundo pelo qual a compreensão de uma ordem vigente se faz pelo prisma de seu contrário. Tal qual as rupturas revolucionárias, as mudanças políticas pactuadas sem ativação popular são objeto de rico acervo de estudos e conceitos no pensamento social, como o de uma “via prussiana” de formação do capitalismo, o “transformismo” por cooptação de elites, ou as noções de uma “revolução passiva”, uma “modernização conservadora” ou uma “revolução pelo alto”. Explorar as sutilezas dos termos em seus contextos de formulação extrapola as ambições desse texto, mas seu denominador comum é a produção de consequências institucionais fortes (revolução burguesa, modernidade, etc.) sem envolver rupturas políticas correspondentes, controlando a pressão desde baixo à mudança política. Seja por um golpe militar, por uma coesa elite reformista, pela cooptação de lideranças populares ou pela ascensão de elites secundárias, produz-se, em todo o caso, um deslocamento em termos de ordenamento social, um novo projeto hegemônico do que seria uma sociedade bem governada. Como elites políticas não são um bloco atemporal, sua coesão e sua homogeneidade são móveis em alianças e barganhas concretas. Há exemplos abundantes de acordos formais ou informais para retirar intensidade dos atritos entre elites para evitar extrapolações imprevisíveis, para 53 assegurar seu controle sobre os limites da rivalidade política. Pense-se, por exemplo, nos pactos de Punto Fijo (Venezuela) e Sitges (Colômbia) em 1958, o acordo entre roquistas e mitristas em 1898 (Argentina), os gabinetes de conciliação entre liberais e conservadores no Império (Brasil) ou o regime patrocinado por Simón Patiño na Bolívia. Tanto a ruptura quanto a autoproteção Episódios de crise que colocam a ordem em suspenso não estão restritos a um passado longínquo nem a lugares onde a ordem ainda não prevaleceu contra a guerra civil. Irromperam muito recentemente sob estados que mantinham até então um controle bastante efetivo sobre a violência e suas representações ético-políticas. Se percorrermos os séculos precedentes, e esse é o ponto de partida prioritário da sociologia histórica, poderemos observar como os estados que hoje consideramos realidades dadas são resultados de sucessões bastante fortuitas de golpes de estado, revoluções sociais, guerras civis, guerras interestatais, quarteladas, conquistas e secessões em um movimento sem uma direcionalidade uniforme. Tampouco existe, como veremos melhor no terceiro capítulo, uma espécie de efeito catraca, um estágio ou forma institucional em que a ruptura política é legada ao passado e uma ordem se solidifica em definitivo. Como organizações históricas, estados são resultados de arranjos móveis de controle da violência no tempo e no espaço, estabelecendo situações de proteção mediante extorsão. Repare-se que a noção de controle político sobre a violência é usada em lugar de seu monopólio, que induz mal-entendidos. Para entender a diferença, vamos desdobrar um percurso que começa com o ponto cego do tipo-ideal de um monopólio para as margens flutuantes de violência paraestatal, em suas formas passadas e presentes22. Ao debater a contestação à ordem e a soberania múltipla, é muito persuasivo pensar, como um exagero proposital da realidade, que o estado aspira o monopólio do uso da força legítima. Neutralizando a hipótese de soberania múltipla e trazendo a resolução das diferenças a termos não-violentos, esse monopólio típico reflete a capacidade de rotinizar o poder de quem governa. De acordo com esse tipo, os estados são organizações políticas que, mesmo que não o atinjam na prática, reivindicam Essa substituição da noção de monopólio da violência congrega contribuições variadas sobre a violência e teoria política, como Ansaldi e Giordano (2014), Azellini (2005), Bolívar (1999; 2010), Davis e Pereira (2003), Migdal (2001), Schmitt (2009) e Tilly (1985), além da crítica de Bhambra (2014; 2016) e Cardoso e Faletto (1970) ao método de tipos-ideais. 22 54 subjugar os demais detentores de violência, desarmá-los ou assimilá-los às rotinas institucionais. Essa é a imagem clássica do poder soberano, do Leviatã hobbesiano: a prerrogativa de uso da força concentrada toda em um só decisor. A questão fica mais escorregadia quando a palavra legitimidade entra em cena, no sentido em que o monopólio reivindicado seria não de qualquer, mas da violência tida como legítima (BEETHAM, 1991). Na leitura weberiana convencional, essa legitimidade adviria da prevalência do direito racional e do procedimento burocrático: o emprego da força pelo estado moderno, ao contrário dos demais grupos sociais e estados precedentes, estaria respaldada por uma racionalização impessoal, em que o arbítrio casuístico seria substituído pela lei abstrata. Por um lado, é lógico que isso não corresponde à realidade, uma vez que foi pensado como um tipo-ideal. Por outro, com base no percurso já feito até aqui, podemos observar que não se trata simplesmente de um mal-entendido metodológico, mas de que, mesmo que ideal-típica, a caracterização baseada no “monopólio” e na “legitimidade” deixa-nos sem ferramentas para lidar com questões importantes. Em primeiro lugar, a atribuição de legitimidade à violência pressupõe, na tradição weberiana, a vigência de relações ético-políticas baseadas no governo da lei: o uso legítimo da força é aquele que se exerce consoante às normas procedimentais válidas igualmente para todos. Mais do que isso, há uma compactação, uma sobreposição, um alinhamento, mesmo que só no terreno ideal típico, entre o uso da violência por um estado (moderno) e o imaginário de um estado de direito. Em termos mais simples, a violência por parte do estado é aquela que é praticada conforme a lei, e a lei estipula uma gramática da violência que é praticada pelo estado. Ao fazer essa equiparação, a ideia weberiana de dominação racional-legal produz um ponto cego que não se resume às distâncias entre as formas empíricas e o tipo-ideal. Para levar esse ponto cego às suas devidas consequências, iremos observar por um momento o uso paraestatal da violência, então generalizar um pouco mais para o debate sobre as “margens do estado”, até chegar a uma rediscussão sobre exceção, decisão e coerção que englobe as formas móveis de controle político da violência como uma reivindicação contingente. Ora, nem toda a violência empregada por grupos sociais que não o estado expressa as aspirações dos subalternos, contesta a ordem vigente, aspira uma mudança revolucionária – como qualquer estudante da história latino-americana prontamente é 55 obrigado a reconhecer (ANSALDI & GIORDANO, 2014; HOLDEN, 2004). Na análise da violência organizada na região, encontramos grupos como as Autodefesas Unidas da Colômbia, os Esquadrões da Morte em El Salvador, as Patrulhas de Autodefesa Civil na Guatemala, entre tantas outras milícias contrainsurgentes que não pertencem ou não obedecem à organização do estado, mas nem por isso o contestam. A propósito, esse fenômeno não é exclusividade da região; ao contrário, a suposição de que a forma final e irreversível de organização da violência na modernidade seja forças nacionais regulares está sendo fortemente revista pela literatura especializada (DAVIS & PEREIRA, 2003). De forma panorâmica, o uso da força por estados na história foi predominantemente apoiado por parcerias, subvenções e subcontratações, formais ou informais, públicas ou secretas, com agentes não-estatais. Dos mercenários e corsários nos séculos XVI e XVII às companhias militares privadas do século XXI, esses arranjos não ocorrem porque os estados são monopólios imperfeitos, mas porque há vantagens e oportunidades específicas em fazê-lo dadas as circunstâncias. Ao invés de dois polos estanques, exércitos, polícias, milícias, jagunços, grupos paramilitares, bandidos, mercenários e guardas nacionais flutuam em um espectro de maior ou menor subordinação institucional à autoridade política, em um extremo confundindo-se com ela, em outro operando com recursos próprios em hierarquia paralela. O uso de forças irregulares para manutenção da ordem, reprimir greves, perseguir dissidências religiosas, fazer a guerra e impor obediência é um tema fundamental teórica e politicamente. Por controle político da violência, ao invés de virtual monopólio, refere-se à capacidade das elites políticas de manter a constelação de grupos armados (regulares e irregulares) nos limites da ordem política vigente, assegurando relativa coerência e direção ao emprego da força. Subordinar a violência, em suma, a um arranjo contingente de proteção continuada. Isso não implica necessariamente, embora seja uma forma de fazê-lo, a subordinação institucional de todas as forças armadas atuantes no terreno: no extremo, improvável mas possível, o controle político da violência pode se dar mesmo sem o controle direto sobre os grupos armados, como na descrição da Grécia oitocentista feita por Achilles Batalas (2003)23. O argumento de Batalas se constrói por uma inversão da proteção mediante extorsão, em que os grupos armados transitam entre a criminalidade e a oficialidade: “o Império Otomano, operando dentro de relações societárias mais amplas de patrão-cliente, contratava forças armadas privadas dos mais 23 56 Por hipótese, se quaisquer desses grupos, sejam bandidos, milícias ou corporações militares, se movem para fora do controle prático dessas elites e dispõem de recursos suficientes para manter uma reivindicação de poder contra elas, tende-se a evoluir para uma situação de soberania múltipla ou um golpe de estado. A situação mais comum, contudo, é a de que os grupos armados paraestatais encontrem espaço para operar sem conflito, não raro com clara afinidade, com a ordem política vigente. Sob o regime proibicionista atual, organizações narcotraficantes, embora frequentemente tomadas como ameaças à soberania dos estados, são em geral muito adaptadas à ordem política vigente, que lhes rende lucros extraordinários (RODRIGUES, 2003; TOKATLIÁN, 1988). Não se deve perder de vista que a mobilização e a desmobilização de forças repressivas ocorre no bojo de relações contingentes de dominação política, e os exércitos ou polícias regulares de cidadãos não necessariamente são a opção mais interessante. Lembrando a constatação de Jean Bodin, pensador central para a noção de soberania do século XVI, “é virtualmente impossível treinar todos os súditos de um reino nas artes da guerra, e ao mesmo tempo mantê-los obedientes às leis e aos magistrados” (apud ANDERSON, 1974: 30). As tropas mercenárias, cujo predomínio à época de Bodin permitiu um salto de escala na guerra europeia, são uma das formas possíveis de contornar ou aliviar os custos políticos da conscrição. Ao supor que estados são formas mais ou menos definidas de monopólio da força se obscurece o componente estratégico do uso de forças irregulares. A mobilização e a desmobilização de forças regulares de cidadãos exigem maior coerência com os imaginários ético-políticos que envolvem governantes e governados, por isso são frequentemente contornados. Há uma literatura exuberante sobre a construção de direitos e prerrogativas civis com base na barganha social contra o recrutamento: ao apelar aos cidadãos em armas, aos filhos da pátria, ao povo em alerta, as autoridades foram crescentemente comprometendo-se com garantias de poderosos capitães, cuja lealdade era assegurada enquanto pudesse pagá-los. Os capitães, por seu turno, pagavam capitães sob sua patronagem que então pagavam seus homens. Como resultado, os armatoloi eram homens de seus capitães mais do que do estado otomano. (…) A mudança de armatolos para klepht, ou klepht para armatolos era uma ocorrência normal para a maioria desses capitães e seus respectivos bandos. De fato, é durante a administração otomana que a proteção mediante extorsão inversa [inverse racketeering relationship] entre estado e formações militares irregulares emerge” (BATALAS, 2003: 156). Essa mobilização fluída de forças legais (armatoloi) e ilegais (klepht) prosseguiu após a independência, diante dos sucessivos fracassos dos governos provisórios entre 1821 e 1827 de formar um exército regular. 57 invalidez, com a atenção às famílias, com a educação aos jovens, com as pensões aos veteranos. Nos Estados Unidos, onde essa barganha foi historicamente acentuada, os custos políticos da cidadania armada se tornaram elevadíssimos no século XX, abrindo fértil terreno para a terceirização com contratistas paramilitares. O pensamento estratégico estadunidense foi, nesse e em outros sentidos, profundamente marcado pelo “fantasma do Vietnam”, isto é, pelo rechaço amplo à conscrição (ROXBOROUGH, 2003). O problema da compactação entre monopólio e legitimidade pelo tipo-ideal weberiano não advém, portanto, unicamente do tema do monopólio, mas também do da legitimidade: estados modernos continuam se aproveitando das oportunidades do uso da força por fora do imaginário de governo da lei, mesmo quando reivindicam o estado de direito. As Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) não foram diretamente organizadas por agências de estado, mas usufruíram de tolerância e colaboração para conduzir a contrainsurgência e a perseguição política no país, especialmente após a chegada de Álvaro Uribe ao poder em 2003. Como aliados não-oficiais do governo na guerra civil, as AUC puderam manobrar com discricionariedade, brutalidade e sigilo que seriam interditos legalmente às forças armadas colombianas, podendo contar com uma fonte de financiamento igualmente inviável para as forças regulares, o narcotráfico. Manobrar fora dos quadros institucionais era uma vantagem para a contrainsurgência, e o sucesso desta, ao sufocar a soberania múltipla criada pelas guerrilhas rurais revolucionárias, encaminhava a prevalência da ordem vigente e suas elites dirigentes. Além da mobilização/desmobilização, a violência organizada envolve custos e riscos por seus métodos na repressão social. Por essa razão, inclusive, forças policiais profissionalizadas foram desmembradas dos exércitos nos últimos duzentos anos, com técnicas, armamentos e hierarquia específicos para a repressão civil urbana (MANN, 1993: cap. 12). Ao substituir o monopólio do uso legítimo da força pelo controle político da violência em um arranjo contingente de proteção mediante extorsão, temos melhores condições de lidar com a violência paraestatal que orbita, por assim dizer, as margens do estado. Com efeito, floresceu nos últimos anos uma agenda de pesquisa específica sobre as “margens do estado”, observando “os campos de força que se estruturam nas dobras do legal e ilegal” (TELLES, 2012: 31). Através da barganha contingente entre 58 policiais e trabalhadores informais, entre políticos e milicianos, entre agentes públicos, narcotraficantes e lideranças comunitárias, para usar apenas alguns exemplos, as linhas entre o crime e a lei são definidas por agenciamentos específicos, que manobram, ignoram ou subvertem a referência institucional. Ao invés de aplicar a lei indistintamente, o estado produziria uma “gestão diferencial dos ilegalismos” através de inúmeras práticas de seus agentes. Dessa forma, essa linha de pesquisa tem sistematicamente contraposto, desde as margens, a ideia do estado como ente coeso, burocrático, com monopólio do uso legítimo da força (DAS & POOLE, 2004; TELLES, 2012). As margens, por sua vez, não são confins em que o estado atinge precariamente, regiões onde a lei mal chega; são, isso sim, espaços em que o legal e o ilegal são agenciados e tramados ao cotidiano, mesmo que isso ocorra, por hipótese, na residência oficial do presidente fora da agenda pública. O tema das “margens do estado” permite generalizar com relação ao que dissemos sobre a violência paraestatal no sentido em que agenciamentos oportunistas, ambiguidades institucionais e práticas extraoficiais não se limitam à operação dos grupos armados. Ao lançar nova luz sobre a zona de ambiguidade entre o legal e o ilegal, essas pesquisas também colocam a construção da ordem política em movimento cotidiano, prático e conflitivo, não como uma idealização jurídica uniforme – daí sua convergência com o tema deste capítulo. Por outro lado, pela crítica que desenvolve a essas leituras institucionalistas, a linha de pesquisa sobre margens do estado não deixa claro se pretende ser-lhes uma alternativa em sentido estrito, de forma que tudo o que elas reconhecem como estado possa ser etnografado como uma margem, ou se existe alguma forma de núcleo que não se comportaria como tal24. Por um lado, é bastante claro que os campos de força entre o legal e o ilegal podem ser criados em qualquer escalão do aparato de governo, de modo que as margens não se confundem com o que a ciência política norte-americana chamou de “burocracia do nível da rua” (street-level bureaucracy), isto é, os funcionários públicos diretamente engajados com a população (policiais, assistentes sociais, agentes de fiscalização, etc.). Por outro lado, na forma que assumem no presente, os estados envolvem complexas e diferenciadas estruturas administrativas que sequer interagem com o público. É verdade que um agente comunitário, por hipótese, pode negociar os benefícios de uma política social com traficantes, policiais ou milicianos em bairros pobres, mas, para que isso chegasse a termo, essa política social eventualmente foi planejada por especialistas, deliberada por congressistas e seus assessores, aprovada por um ministério do planejamento, difundida por publicitários e marqueteiros políticos em escala nacional. Ora, que sociólogos e antropólogos fariam um exaustivo e monótono trabalho de campo em repartições públicas aleatórias não parece ser o caso. As etnografias sobre as margens do estado são atraídas para situações particularmente interessantes de conluio, conflito e barganha em torno da aplicação da lei, dos mercados ilegais e do poder político, mas isso não ocorre exatamente em 24 59 Para costurar nossa discussão, sem enveredar a uma polêmica metodológica desnecessária, podemos trazer a forma de pensar o estado a partir de suas margens para o tema da reprodução da ordem política como arranjo de proteção mediante extorsão. A rigor, no exemplo sobre a violência na Colômbia, do que antes falávamos é justamente uma forma de gestão diferencial de ilegalismos: as FARC e as AUC foram grupos armados ilegais tratados de forma fortemente distinta pelo governo colombiano. Outros exemplos dessa seletividade prática são fáceis de encontrar. Na história do Brasil rural, a tolerância com a jagunçagem contrasta com a brutal resposta institucional às iniciativas de organização popular para ocupação de terras. O silêncio no Sul dos Estados Unidos sobre os linchamentos e as milícias supremacistas é nitidamente diferente da mobilização repressiva contra o Partido dos Panteras Negras nas décadas de 1960 e 1970. Na Itália do pós-Primeira Guerra, a atuação dos camisas negras como milícia anticomunista era vista com olhares condescendentes das elites liberais, aterrorizadas pela onda de greves no norte e de invasões de terra no sul. Com efeito, nesses exemplos há um tratamento desigual de usos políticos da violência, e os critérios que explicam essas diferenças não se encontram na lei, mas na expediência política. Invisível no tipo-ideal do monopólio da força, essa seletividade prática é uma expressão do que o controle político sobre a violência significa como prerrogativa de decidir perante a realidade. Observemos, agora, as consequências desse ponto. Em qualquer arranjo de proteção continuada, existe uma divisão quem é protegido e quem é, ao menos potencialmente, a ameaça para a qual a proteção se presta. Sabemos que a “ordem” não existe em si porque essa distinção entre ameaças e protegidos não é dada pela natureza. Há entendimentos contrastantes e aspirações incompatíveis sobre a definição do que deve ser protegido do quê, por quem e com que métodos. A definição de uma ameaça e a mobilização de meios para neutralizá-la é uma demonstração de poder, enquanto que a garantia de proteção é uma afirmação do pertencimento político. Como Thomas Hobbes (1979) mostrou com singular frieza, a ausência de violência hostil não é o mesmo que a proteção garantida: como animais errantes, os indivíduos que povoam seu estado de natureza sofrem violência esporádica, mas vivem em constante e apavorante incerteza, com medo, insegurança e toda a rotina administrativa e política, nem é necessariamente o mais importante para entender a disputa política em curso. Em suma, o argumento sobre as margens do estado parece potencialmente válido como chave de crítica teórica e referência para o trabalho etnográfico, mas não parece preocupado com a mediação entre antropologia política e sociologia política. 60 desconfiança. Sua filosofia política é uma demonstração do intercurso imperativo entre obediência e proteção. Como percebemos já no começo de nosso percurso, o controle político da violência é também um processo ético-político. Se todo o emprego da força é envolto por interpretações e símbolos que lhe tornam inteligível para os agentes, toda a ordem política aspira correspondência com o que é o uso desejável e necessário da violência coletiva. A vigência de um arranjo de proteção mediante extorsão é, pois, uma reivindicação bem-sucedida de separar um terreno ético-político de pertencimento – reconhecendo pessoas, práticas e instituições que merecem proteção – do terreno da indiferença ou da guerra contra os inimigos, terreno este em que se suspendem os imaginários ético-políticos em nome da ordem, em que a exceção se pratica contra as ameaças. As clivagens ético-políticas entre cidadãos e não-cidadãos ou entre nacionais e estrangeiros são inseparáveis das linhas de separação entre a latência da proteção devida e a latência da repressão necessária. “Cada parágrafo da Constituição”, como escreveu Marx em 1852, “encerra sua própria antítese” (MARX, 2011b: 42). Cada afirmação ampla de liberdade, igualdade, justiça e imparcialidade, ele dizia, entreabre os termos de sua suspensão emergencial25. Quando Walter Benjamin afirmou que, para os oprimidos, vigora um estado de exceção permanente, ele não dizia que o estado de direito era falso ou incompleto porque não atingia a todos da mesma forma; dizia, com muito mais profundidade, que um governo de exceção contra os oprimidos era a regra informal que sustentava o estado de direito para os cidadãos (AGAMBEN, 2004). Assim, do ponto de vista de quem é tratado como ameaça em potencial, a proteção não é um direito, mas um privilégio de poucos. No momento em que a exceção se coloca, “o Estado suspende o direito por virtude do direito à própria conservação” (SCHMITT, 2009: 18). Como bom leitor de Vale reproduzir a citação em seu contexto: “Quando ela proibiu ‘aos outros’ essas liberdades ou lhes permitiu gozá-las sob condições que implicavam outras tantas armadilhas policiais, isso sempre ocorreu apenas no interesse da ‘segurança pública’, isto é, da segurança da burguesia, como prescreve a Constituição. Em consequência, ambos os lados se reportam, posteriormente e com toda razão, à Constituição, tanto os amigos da ordem que suprimiram todas aquelas liberdades quanto os democratas que exigiram o seu cumprimento. Isso se deve ao fato de que cada parágrafo da Constituição contém a sua própria antítese, a sua câmara superior e a sua câmara inferior, a saber, na sentença universal, a liberdade e, na nota marginal, a revogação da liberdade. Portanto, enquanto a denominação da liberdade foi respeitada e somente a execução efetiva desta foi impedida – pela via legal, bem entendido – a existência constitucional da liberdade permaneceu incólume, intocada, por mais que a sua existência ordinária tenha sido suprimida” (MARX, 2011b: 42-43). 25 61 Hobbes, Carl Schmitt percebeu que o Leviatã não se apoiava simplesmente no monopólio da força, mas no monopólio da decisão: decidir quando a realidade cabe à norma ou à exceção, estabelecer “critérios de distinção para a realidade” é o ato fundamental do poder soberano (VILLAS-BOAS, 2012: 125). Discernir o ordinário do excepcional é separar a ameaça da proteção, conferindo coerência ao emprego da violência sob o gabarito da ordem política. Por essa razão, enquanto poder de definição sobre a realidade para agir sobre ela, “o caso excepcional transparenta de maneira mais luminosa a essência da autoridade do Estado” (SCHMITT, 2009: 18). A presunção do estado de direito como realidade em si, ou da coextensividade entre coerção e legitimidade em um monopólio típico, obscurece a reciprocidade entre proteção e ameaça, ou melhor, a seletividade própria à distribuição de proteção em cada ordem política concreta. Justamente porque a lei não governa, nem tampouco Deus, a nação ou o povo, toda a prática de governo, do mais alto escalão aos funcionários rasos, implica uma decisão concreta perante a realidade, mas nunca uma decisão tomada individualmente no vácuo. Projetado no tempo e no espaço, o decisionismo se converte na seletividade prática de uma ordem política em discernir as ameaças e agir sobre elas, valendo-se para tal da violência organizada que controla. Com isso em mente, nos voltaremos agora para o outro termo da equação: a extorsão continuada em troca de proteção. 1.4. Da extração em geral ao ciclo extrativo-coercitivo como mecanismo contingente Quando autoridades requisitam cavalos para a guerra, trigo para as tropas, impostos para a saúde pública, pessoas para combater ou terra para seu controle, elas estão pondo em prática formas de extração compulsória de recursos daqueles sob seu governo. Alguém certamente poderia objetar que é inadequado colocar em um mesmo saco a exigência de trigo sob a lâmina de uma espada e o imposto votado em uma casa parlamentar, ou a saúde pública e a guerra como gastos equivalentes. Embora pareça intuitiva, a objeção não encontra terreno firme. De um lado, ela demandaria que erguêssemos essa forma parlamentar ou representativa de governo como distinta em si, para então dividir a noção de “extração” entre democracias liberais e não-democracias, ou em graus da primeira. 62 De outro, ela pressuporia que existem propósitos vis (guerra) e propósitos nobres (saúde pública) para o emprego desses recursos, o que é uma linha muito complicada de traçar por inúmeras razões. A tentativa de observar a extração compulsória e suas finalidades políticas por uma divisão desse tipo não é só difícil de executar na prática, mas turva o essencial: a imbricação existente entre finalidades tidas como nobres e finalidades tidas como vis, entre métodos oficiais e práticas informais, entre procedimentos legais e ilegais no circuito da extração compulsória. Descartando de saída essas divisões normativas, vamos desdobrar o tema da extração continuada de recursos humanos e materiais no bojo de relações de dominação política; em última instância, o que importa não é o rito institucional em si pelo qual uma requisição se produz, mas sim a interação entre vontades que ela implica, a obediência ou o dissenso resultante dessa requisição. Qualquer liturgia institucional, ocorra em um parlamento, em um comício ou em um templo, é imanente à extração como relação social. Assim, toda extração é uma reivindicação contingente sobre recursos alheios, sujeita, enquanto tal, a formas múltiplas de deserção, elisão, evasão e contestação organizada. No ambiente neoliberal em que vivemos no Brasil, em que ricos e proprietários capitaneiam o rechaço aos impostos que proporcionalmente pouco pagam, é fácil esquecer que o fardo fiscal foi, ao longo da história, uma fagulha recorrente entre os mais pobres de indignação contra a autoridade. O objetivo dessa seção é desenvolver o tema da extração regular para entender como toda ordem política tece uma seletividade própria em termos de extração e gasto, uma distribuição desigual de ônus e bônus materiais entre grupos e indivíduos, que se movimentam em função dessa seletividade. Ao final do percurso, encadeia-se o tema da seção anterior a partir de uma atualização da noção de “ciclo extrativo-coercitivo” (FINER, 1975). A contestação da seletividade própria do ciclo extrativo-coercitivo é uma chave de leitura para perceber, em um plano ainda geral, de que forma a indignação moral contra a autoridade se efetiva como projetos alternativos de ordenamento social. Mesmo quando não se consideram como tais, esses projetos são contraposições à forma como uma ordem vertebra socialmente o pertencimento ético-político e sua negação, a proteção e exceção, os bônus e os ônus da fiscalidade. O primeiro passo é perceber que toda a extração é um redirecionamento social de recursos, de modo que ela implica, em seu revés, uma injeção, um dispêndio, um 63 gasto do que está sendo extraído. A mesma organização política que cobra tributos, quintos e pedágios emprega esses recursos para remunerar seus subordinados, amortizar dívidas, organizar banquetes, contratar mercenários ou manter uma rede oficial de escolas primárias. Utilizam esses recursos, inclusive, para sustentar um aparato administrativo que cobre regularmente novos tributos e pedágios. Nesse ponto inicial, precisamos pensar toda a estrutura administrativa, o funcionalismo, a política pública, os braços armados da organização política como uma cristalização concreta de seu “gasto” continuado, mesmo que eles não tenham sido literalmente comprados por ela. Se um governo ocupa um prédio para torná-lo repartição administrativa, ou expropria terras para a reforma agrária, extração e gasto passam ao largo do mercado imobiliário, mas ocorrem igualmente. Extração e gasto são termos que, embora opostos entre si, se explicam reciprocamente: formam o circuito material que engaja governantes e governados. No plano político, o intercurso entre extração e gasto implica necessariamente favorecidos e prejudicados (OSZLAK, 2015: 196). Se uma empresa recebe um vultoso contrato de fornecimento para o governo, se um latifundiário conta com a cooperação de um instituto estatal de pesquisa, se um setor capitalista recebe isenções fiscais, se o governo subsidia uma festa tradicional de uma região específica, é razoável pensar que essa política apela, mesmo que sem pretendê-lo claramente, ao apoio dessa empresa, desse latifundiário, das pessoas que prezam essa festa regional. Se o financiamento dessa mesma festa é cortado, se o salário de alguns funcionários é parcelado, se uma moratória da dívida é declarada, se os jovens são massivamente recrutados para a guerra, é igualmente razoável pensar que essas políticas distribuem ônus para os afetados. Independente da forma como vem a público, os governados produzem expectativas, juízos e interesses múltiplos sobre a forma com que se distribuem a extração e o gasto das organizações políticas que os governam. Avaliam essa seletividade a partir de um senso compartilhado de justiça. O que à primeira vista poderia parecer um egoísmo coletivo de interesses adquire densidade ético-política na medida em que se mistura com as formas pelas quais os envolvidos pensam seu lugar em uma sociedade bem ordenada. Assim, a seletividade inerente à fiscalidade não deve ser avaliada como se as pessoas fizessem a todo momento cálculos entre o total que pagam e o total que recebem do governo, nem deve ser assumido um parâmetro 64 igualitário implícito contra o qual poderíamos medir desvios mais ou menos revoltantes para as pessoas. Sob o prisma das relações de dominação em que ocorre, a distribuição de fardos e benefícios é um movimento de coerção e consenso dentro do circuito fiscal. Percebe-se que toda a extração, embora seja antes de tudo uma medida de força, faz apelos ético-políticos para obter consentimento, na forma de um imposto justo para o interesse público, de uma contribuição emergencial diante das circunstâncias, do recrutamento que se faz necessário. Não há extração regular que seja força irrestrita e saque violento; ela se projeta no tempo e no espaço com alguma forma de convencimento de sua adequação, mesmo que uma conformidade provisória, parcial, seletiva26. Por sua vez, o dispêndio dos recursos extraídos, ao abrir o leque de transferências diretas e indiretas, se apresenta como terreno por excelência da distribuição de benefícios, favores e inclusão política, da construção de consenso, do aliciamento não-coercitivo à ordem. É um terreno aberto para a solidificação das relações ético-políticas. Ao mesmo tempo, qualquer arranjo de gasto, dentre suas inúmeras possibilidades, precisa manter algum aparato responsável pela extração compulsória. Na medida em que o controle político da violência precisa ser sustentado pelo emprego de recursos humanos, físicos e financeiros, há um substrato coercitivo incontornável na alocação dos recursos. Em outros termos, todo o arranjo seletivo entre extração e gasto produz dois efeitos continuados: a imposição, no extremo armada, do projeto hegemônico de ordem sobre suas alternativas e as condições materiais pelas quais os imaginários ético-políticos possam ser reais em suas consequências. A rigor, todo o tipo de classificação, regramento, interdição, símbolo ou propaganda que se atribui genericamente ao poder de estado passa em alguma medida por seu metabolismo fiscal, porque sem isso eles carecem de consequências reais Citando diretamente Samuel Finer, cujo trabalho se orientou explicitamente para a relação entre mobilização militar e estruturas políticas, encontramos que “as forças militares exigem homens, materiais, e, uma vez deslanchada a monetarização, também dinheiro. Extraí-los foi uma tarefa frequentemente difícil. Tornou-se mais fácil e mais genericamente aceita conforme os séculos passaram. Onde as populações se mostraram recalcitrantes – e, eu poderia acrescentar, elas foram como um todo e na maioria dos países extraordinariamente recalcitrantes até o século XIX, em um nível que faz a recalcitrância popular estadunidense à Guerra do Vietnã parecer apenas um gesto – então os governantes tiveram apenas duas rotas alternativas. Eles poderiam tentar coagir ou podiam tentar persuadir” (FINER, 1975: 96). 26 65 sobre a vida dos governados. Quando mencionamos acima o trabalho exemplar de Mara Loveman sobre a produção institucional de raças na América Latina, estava implícito que essa produção se faz através de recursos, instituições e oportunidades no aparato de estado que são dispostos como se raças existissem. Da mesma forma, a garantia de proteção sobre determinadas instituições, práticas, pessoas ou grupos se transpõe necessariamente para uma seletividade fiscal, caso contrário seria igualmente uma decisão sem consequências. O que divide os titulares de proteção do vasto terreno da indiferença ou da ameaça potencial não é uma declaração abstrata, mas um conjunto de práticas conduzidas por agentes e agências de governo, que discernem e incidem sobre os inimigos, os subversivos, os disfuncionais, os criminosos, os antissociais – tratando-os como tal. Está igualmente inscrito, pois, na seletividade fiscal da organização política as condições materiais pelas quais se almeja preservar a ordem vigente contra suas alternativas, neutralizando ou modulando as ameaças. Com isso, temos dispostos todos os elementos para entender a noção de ciclo extrativo-coercitivo, que se desdobra da anterior de arranjos contingentes de proteção mediante extorsão (ver Gráfico 1.2). Se a proteção exige recursos, ela não se limita à mobilização desses recursos como uma dotação orçamentária; o controle político da violência implica a capacidade de decidir sobre o que deve ser protegido de quais ameaças. Penitenciárias, armamento, sanatórios ou espiões não são simplesmente recursos alocados dessa forma, mas recursos que adquirem coerência relativa nos termos da ordem vigente, que estabelece o terreno da proteção como prática seletiva de pertencimento político. Os gastos para manter uma penitenciária não dizem que tipo de pessoas devem ser presas, mas ninguém será preso se não houver uma penitenciária funcionando. Da mesma forma, se a extorsão exige o controle dos meios de coerção para fazer valer a proteção, ela não é simplesmente uma sucção compulsória de recursos, mas uma malha política que diferencia socialmente métodos de extração, proporcionalidades, isenções e inclusive tolerância seletiva à evasão, conforme circunstâncias e pretextos que sedimentam privilégios sob uma ordem vigente. Na forma como os recursos são dispostos como gasto, essa malha se completa. Não há sustentação política que prescinda de gastos que tentam traduzir concretamente os apelos ético-políticos vigentes, bem como da distribuição de cargos, favores materiais 66 ou oportunidades de ganhos extraordinários que atendam a expectativas e interesses específicos27. Gráfico 1.2. Ciclo extrativo-coercitivo e sua seletividade prática Fonte: Elaboração própria. Um dos temas clássicos do estudo do Porfiriato no México é a tendência de concentração privada da terra, como veremos em outros momentos da tese. De um lado, a privatização da terra se respaldava em uma utopia de mercado como via de progresso nacional. De outro, a transferência de terras para proprietários privados foi uma das moedas com a qual o regime angariava apoio e respaldo: após a derrota dos Yaquis em Sonora, uma única empresa recebeu nada menos que 547 mil hectares do governo (BULMER-THOMAS, 2003: 92). Através da extração de terras ocupadas pela Igreja, por povos indígenas e por adversários políticos, o governo podia distribuir recompensas via mercantilização da terra enquanto reforçava o imaginário do liberalismo oitocentista. Com a reforma agrária no governo de Cárdenas, na década de 1930, foram transferidas cerca de 17,8 milhões de hectares para camponeses e ejidos, criando um sólido pilar de sustentação política pós-revolucionária no novo mundo rural (SANTANA, 2007). Há, assim, uma reorientação forte na seletividade entre extração e gasto decorrente de uma mudança legal, que, recalibrando a distribuição de ganhos 27 Na descrição de um país africano como um “sistema político de prebenda”, em que se produzira uma “unificação pela corrupção”, o antropólogo Richard Joseph atribui o termo “às situações nas quais os atores políticos concorrem em obter posições de poder no seio do Estado a fim de utilizá-las em benefício pessoal ou dos grupos que os sustentam” (JOSEPH, apud BADIE, 1984, 191). Dissipando o etnocentrismo, é de se perguntar qual sistema político não seria de prebenda nesse sentido. 67 entre os camponeses, oferece consequências reais para o imaginário nacional-popular que emergira da Revolução. Indo além do exemplo mexicano, uma leitura política da seletividade e suas reorientações não precisa assumir que todos os seus efeitos passam pela lei e sua aplicação. Como ilustramos no caso da violência nas margens do estado, aqui também inúmeros ilegalismos fiscais e monetários são regularmente utilizados para colher dividendos políticos, ou contornar o dissenso consequente de uma aplicação muito estreita das normas. O poder político se efetiva menos como imposição uniforme de regras e diretrizes, mas na prerrogativa de gerir politicamente os ilegalismos a partir de suas consequências previstas. Nesse terreno, a tentativa de separar os gastos com propósitos particularistas e universalistas é fadada a fracassar, porque, em primeiro lugar, as pessoas não usam um véu rawlsiano para separar seus interesses de seus juízos práticos. Todo o raciocínio que fizemos sobre o termo “ético-político” se baseava nessa suposição de que utopias de ordem social não são separáveis de interesses, posições e estratégicas particulares – esse é o espírito do realismo político de Gramsci (1980) a Lechner (2013: 259-266). Além disso, as sociedades em que vivemos são suficientemente complexas para que nenhuma política pública produza unicamente o efeito para o qual o foi projetada. Suponha-se que uma elite política reformista lance, por pura convicção no progresso da nação, um programa para universalizar a alfabetização. Por sua própria operação, ele pode vir a beneficiar certos setores industriais, empresas de comunicação, forças políticas oposicionistas, isso sem mencionar o grupo de educadores mobilizado para a tarefa e as pessoas que efetivamente aprenderão a ler e escrever. Sem prevê-lo, pode eventualmente contrariar certas lideranças rurais ou religiosas que se apoiam sobre o analfabetismo popular, ou que veem com maus olhos a presença desses educadores em suas comunidades. Sem que se aperceba, ademais, esse programa de alfabetização concorre para o fortalecimento da língua do estado como língua única, destravando o caminho para uma uniformidade cultural que não fora intencionada pelos reformadores. Mesmo o mais idealista deles se veria diante dessas injunções políticas. Por isso a seletividade inerente ao ciclo extrativo-coercitivo é acompanhada por alguma forma de cálculo do dissenso, uma aproximação dos resultados esperados de uma decisão política no bojo da interação entre governantes e governados. 68 Dessa forma, o ciclo extrativo-coercitivo é entendido como um arranjo de proteção mediante extorsão refratado por uma seletividade política, com que essa ordem e suas elites aspiram sua própria preservação. Essa preservação significa a reposição das condições de dominação política. O ciclo extrativo-coercitivo é um intercurso contingente em que proteção e exceção, bônus e ônus fiscais são costurados ao tecido social, são discriminados em práticas concretas por uma organização política que efetivamente governa. Através dessa seletividade política, é barganhada a reprodução da ordem no tempo e no espaço, pelo controle, modulação ou repressão do dissenso. Ora, toda a seletividade política almeja dissolver-se como natural, devida, sagrada, necessária ou correta para o bem de todos. E é nos termos em que essa reivindicação é posta que ela pode ser contestada. Para concatenar os pontos do raciocínio, pensemos por um momento em uma questão clássica de teoria crítica do estado: a garantia pelo estado da propriedade privada dos meios de produção. De saída, ela implica uma seletividade bastante clara do ponto de vista de organização da coerção, colocando contratos, heranças e propriedades no terreno da proteção devida, enquanto que o dispêndio de recursos para fazê-lo, no campo do necessário e do desejável. A regulação de práticas sociais como se a propriedade fosse de fato inviolável depende do trabalho acumulado e cotidiano não só de polícias e presídios, mas de cartórios, tribunais, arquivistas, peritos e oficiais de justiça que demandam recursos regulares. Ao se firmar esse terreno ético-político em que a propriedade é um direito inviolável dos cidadãos, abre-se a margem de decisão sobre a exceção, de uma gestão seletiva dos ilegalismos. Isso porque, mesmo em uma sociedade capitalista, o direito à propriedade privada nunca é um princípio universal que se justifica em teoria. Seja pela despossessão de uma etnia minoritária ou de uma religião perseguida, pela grilagem de terras indígenas, pelo desmanche da sede de um partido de oposição, pelo confisco de um trabalhador informal, pelo saque em território inimigo ou pela expropriação de uma empresa específica, o princípio abstrato é modulado de forma circunstancial sem que isso seja propriamente uma anomalia. Como o apelo ético-político foi firmado não por uma declaração de princípios, mas por uma estrutura de poder e governo, ele porta consigo o poder de decidir sobre sua própria suspensão, manobrando entre a inclusão e a exclusão. Em uma sociedade capitalista o direito à propriedade é transgredido a todo o momento, inclusive por 69 agentes de estado, sem que isso produza uma reação de classe por parte dos proprietários dos meios de produção28. Por outro lado, a possibilidade dessa reação se efetivar inscreve um enorme poder dissuasório no cálculo do dissenso de quaisquer decisões políticas. Ao controlar as alavancas do investimento e do crédito, dispor de conexões políticas e recursos materiais desproporcionais, a classe proprietária tende a dispor de meios para tornar impensável politicamente qualquer iniciativa nessa direção, ou que sequer possa ser percebida como tal. “O que importa não é só que certas decisões não são tomadas”, disse um importante sociólogo contemporâneo, “mas que elas não são sequer consideradas” (GIDDENS, 1989: 10). Salvo por revoluções, guerras ou outros momentos críticos de suspensão da ordem, a hipótese de uma contraofensiva de classe permanece latente como resguardo da propriedade capitalista, como uma interdição da disputa política, como delimitação tácita do possível29. Portanto, em seu cotidiano institucional, sociedades capitalistas alimentam assimetrias políticas tais que não só tornam proibitivos desafios ao caráter de classe da propriedade, mas também dispõem recompensas de diversas naturezas à propulsão da acumulação capitalista, à aliança particularista com capitalistas e financistas, ao disciplinamento da força de trabalho (BLOCK, 1987: caps. 3 e 5). No próximo capítulo, rediscutiremos as condições dessa sinergia à luz da sociologia histórica, mais especificamente da teoria das transições hegemônicas mundiais. Por ora, é importante perceber que o entendimento desse terreno de reciprocidades entre capitalistas e estadistas pode ser construído sem que recorramos à presença ou não de A rigor, o argumento de Marx permite inferir que a exploração do trabalho é uma transferência não-paga de propriedade do trabalhador para o capitalista. O funcionamento do capitalismo exige que essa violação da propriedade do trabalhador sobre os frutos de seu trabalho seja reconhecida legalmente. Se isso é verdade, não há como o estado capitalista ser indistintamente o garantidor da propriedade privada, mas deve garantir uma propriedade de classe que é a dos meios de produção, em uma desconexão entre produção e apropriação do qual depende a acumulação. 28 Ora, esse argumento não deve ser reduzido ao absurdo de que estadistas são implicitamente contra a propriedade privada em qualquer circunstância, mas simplesmente não podem levar a cabo seus desígnios por prudência. Que haja uma ampla promiscuidade na relação entre estadistas e capitalistas ao longo da história é algo relativamente banal, de modo que explicar sua cooperação nesses casos é quase irrelevante. O ponto aqui é que não pode extrapolar disso uma identidade entre estadistas e capitalistas em sociedades capitalistas, nem que os segundos dependam de posições da estrutura de estado para fazer vale seus interesses. É justamente para lidar com casos em que há fricção entre estadistas (mesmo que não sejam propriamente anticapitalistas) e capitalistas (ou alguma fração de classe específica) que precisamos conservar a contingência imanente à relação política. Assim, o raciocínio simplesmente assume que esta, como qualquer outra delimitação de possibilidades, não está fora da disputa política como uma cláusula pétrea; ao contrário, é o caráter da disputa, ou melhor, sua assimetria, que lhe confere essa aura de inviolabilidade. 29 70 capitalistas no aparato de governo para dirigi-lo a seus fins, nem que precisemos abdicar da contingência para recorrer a imperativos funcionais, determinações estruturais ou uma essência política pré-formada. Como observamos desde o princípio, qualquer ordem política não é formada por decisões monocráticas do poder instituído, mas pelas injunções da interação continuada entre governantes e governados. Entender a ordem pelo prisma de seu contrário é perceber que a hipótese de dissidência e contestação que não se efetiva, não só por parte dos subalternos mas também por grupos privilegiados, molda e circunscreve os limites da rotina política. Por outro lado, a naturalização do privilégio de classe em sociedades capitalistas foi de fato contestada historicamente por movimentos sociais antissistêmicos, lastreados por reivindicações igualitárias de justiça e pelo rechaço à exploração do trabalho humano. De um lado, essa contestação se efetiva como lutas concretas, com uso de repertórios específicos como greves, marchas ou guerrilhas, com pautas e resultados variáveis ao contexto. De outro, ela se apresenta como projetos subalternos de ordenamento social que rejeitam as relações ético-políticas em que a defesa da propriedade se sustenta. Ao fazê-lo, necessariamente contestam também a seletividade do ciclo extrativo-coercitivo: a violência e a vigilância sistemática contra sindicatos, sem teto, comunistas, anarquistas e bairros pobres; o recrutamento de trabalhadores para combater na guerra; os subsídios, juros e contratos com que a fiscalidade reproduz privilégios de classe. Na própria contestação à seletividade vigente, emergem formulações alternativas fora da ordem: a hipótese de que, por exemplo, a violência organizada seja empregada para expropriar capitalistas ou latifundiários, ou que seja subordinada a conselhos de bairro. No movimento pelo qual a seletividade vigente é questionada, a reivindicação coletiva de alternativas pressiona os horizontes de possibilidade que a vigência da ordem tende a naturalizar e ossificar, disputa os limites da política, das práticas, dos atores e das palavras com que ela é feita. Para além da política da propriedade privada, essa é um quadro mais geral da agonística da ordem política. Ao se disputar o conteúdo e a extensão dos imaginários ético-políticos (quem é a nação, o que significa ser cidadão, como governar devidamente segundo a palavra divina, etc.), há um impacto carregado à seletividade do ciclo extrativo-coercitivo, sobre quem é titular de proteção contra quem é posto no terreno da indiferença ou da ameaça potencial, sobre quem arca sobremaneira com o 71 fardo fiscal, sobre como os recursos são ou devem ser direcionados. Pode-se também observar ao inverso: toda a disputa sobre a seletividade do ciclo fiscal e coercitivo (pelo direito à aposentadoria, pelo fim da guerra, por políticas ambientais consequentes, pelo fim de perseguições religiosas ou culturais, etc.) implica uma disputa de horizontes ético-políticos sobre o pertencimento e sua negação, sobre os termos de uma sociedade bem ordenada. O vértice que une os dois pontos é a mobilização concreta de subjetividades coletivas diante de oportunidades políticas históricas, com sentidos alternativos do que é necessário, justo e bom. Por esses contrapontos práticos, dizemos que o horizonte de possibilidades se dilata, mais ou menos, com relação à rotina da ordem política vigente, com sua semântica estabelecida, sua arena e seus protagonistas. Nesse sentido José Maurício Domingues (1999) trabalha o conceito de “criatividade social” em sua teoria das subjetividades coletivas, ou Norbert Lechner (2013: 209-230) resgata o tema das utopias, ressoando Mannheim e Polanyi. A Revolução Haitiana era impossível até o momento em que aconteceu, diz-nos Trouillot (1995), porque ninguém até então havia concebido que escravos negros pudessem conquistar eles próprios sua liberdade. O fato de ela ter triunfado transformou o horizonte de possibilidades históricas da época30. Se uma ordem política pretende equivaler o existente ao possível, sua contestação resiste a essa redução, mesmo que não o formule explicitamente ou se perceba como tal. Atualizado com relação ao trabalho de Samuel Finer (1975), o ciclo extrativo-coercitivo, nesses termos, é um mecanismo contingente pelo qual uma ordem política aspira sua continuidade no tempo e no espaço, assentando bases sociais pelas quais um estado mobiliza regularmente capital e coerção (TILLY, 1990). Essa mobilização envolve conflitos e compromissos, revoltas e aliciamentos, já que toda a seletividade prática é entremeada com reivindicações ético-políticas de pertencimento, justiça e bom governo, assim como linhas decisórias sobre a exceção, a desigualdade e a necessidade. Do ponto de vista conceitual, esse movimento 30 Em seu combate contra a filosofia de Althusser, o historiador E. P. Thompson demarcou a centralidade da experiência em confrontar esquemas vigentes de pensamento, contra o que se blindava o estruturalismo althusseriano: “Pessoas estão famintas: seus sobreviventes têm novos modos de pensar em relação ao mercado. Pessoas são presas: na prisão, pensam de modo diverso sobre as leis. Frente a essas experiências gerais, velhos sistemas conceptuais podem desmoronar e novas problemáticas podem insistir em impor sua presença” (THOMPSON, 1981: 17) 72 constitui a construção da ordem política como projeção contingente de relações de dominação no tempo e no espaço. 73 2. O SISTEMA MUNDIAL VISTO DA PERIFERIA "Como pode ver, é uma história muito comprida e, se eu tentar explicá-la em detalhes, você vai se entediar. Assim, em linhas gerais, direi que tudo começou com o desenvolvimento da construção naval na Europa, com a utilização da bússola – descoberta pelos chineses – e com o aprimoramento da arte da navegação. Tudo isso permitiu que os navegadores europeus (a começar pelos genoveses, venezianos, florentinos e portugueses) descobrissem novas rotas marítimas que acabaram por dar origem ao comércio global. Comerciantes portugueses, holandeses, britânicos e espanhóis carregavam os navios com lã da Inglaterra e da Escócia, que trocavam por espadas japonesas em Yokohama. Depois voltavam para o Ocidente, mas antes faziam escala em Bombaim, na Índia, onde trocavam as espadas pelas especiarias, que levavam para a Europa a fim de trocar por... quantidades de lã muito superiores às que tinham levado para o Oriente, E assim recomeçava o ciclo."31 Yanis Varoufakis Se pensamos na projeção de relações de dominação no tempo e no espaço, precisamos necessariamente lidar com um problema de escalas espaço-temporais. Sabemos do capítulo anterior que uma ordem política se reitera através da acomodação circunstancial de interesses e aspirações ético-políticas em um projeto hegemônico de ordenamento social, barganhando e sufocando o dissenso efetivo ou esperado. Esse ordenamento é promovido por uma organização política, que faz girar continuamente um ciclo extrativo-coercitivo com os diferentes segmentos da sociedade que governa. Esse quadro não nos deve induzir a equiparar necessariamente a escala dos fenômenos políticos à redoma do estado nacional, procedimento que ficou conhecido como “nacionalismo metodológico”32. O objetivo do capítulo é desbravar a premissa de que há uma escala mais ampla que os estados individuais, porque estados se formam e se destroem no sistema em que interagem regularmente. A esse sistema coexiste uma malha de relações econômicas que produzem a vida material nesse espaço alargado, o que Braudel chamou de “economia mundo”. A interação entre uma economia-mundo e o sistema de estados delimitam as dinâmicas de um sistema mundial (ARRIGHI, 2009; 31 Extraído de Varoufakis (2013: 47). Para um bom panorama sobre a origem do termo, ver Chernilo (2007: cap. 1). Para situar a crítica ao nacionalismo metodológico: Agnew (1998: introdução e cap. 3), Chernilo (2007: cap. 2), McMichael (1992) e Wallerstein (2000: cap. 5-7), entre outros. 32 74 BRAUDEL, 1972; KARATANI, 2014; QUIJANO & WALLERSTEIN, 1992; WALLERSTEIN, 1974). A leitura clássica considera que viveríamos atualmente no único sistema mundial da história, tendo se originado na Europa Ocidental em algum momento entre os séculos XV e XVI, e se espalhado posteriormente para o resto do mundo. Por essa singularidade, Immanuel Wallerstein (1974) comparava seu método de análise com a astronomia, que não pode replicar, isolar e comparar fenômenos, mas sim intuir a partir de certas regularidades em um único sistema integrado. Especialmente após o trabalho seminal de Janet Abu-Lughod (1989), que estudou a formação e desintegração de um sistema mundial policêntrico na Eurásia do século XIII, essa crença começou a ser matizada. Hoje é mais razoável advogar que o atual sistema mundial, baseado em uma economia mundial capitalista e um sistema competitivo de estados soberanos, é uma das configurações possível do termo, a que chamamos “moderno” sistema mundial. Existem então duas controvérsias imediatas: uma ligada à origem e outra ao caráter desse sistema. No saber corrente, a origem do sistema remonta à crise do feudalismo na Europa, à erosão das autoridades supranacionais do Império Germânico e da Igreja Romana e à pacificação das guerras religiosas a partir do princípio de soberania exclusiva em Vestefália (1648)33. Conforme o trabalho assalariado começa a despontar na agricultura voltada ao mercado, e a política europeia se organiza pela competição anárquica entre estados independentes, cria-se as instituições básicas do sistema que posteriormente se globalizou. Com isso, subentende-se também os temas centrais à dinâmica do sistema: de um lado, a soberania e a anarquia competitiva, entendida como ausência de qualquer poder sobreposto às partes; de outro, a concorrência intercapitalista no mercado mundial e o conflito de classes pelo excedente34. Nessa chave, não só o sistema amadurece institucionalmente antes na Europa como sua formação responde a causalidades internas ao continente; “formação” e “expansão” no moderno sistema mundial são processos separados temporal e Para os propósitos deste texto, é secundária a controvérsia sobre o mito fundacional criado ao redor do Tratado de Vestefália de 1648, que imputa significados sabidamente anacrônicos ao episódio. 33 Na passagem final, recuperada por Arrighi (2009: xi), de um dos mais incisivos livros de Charles Tilly, sustenta-se que há “dois processos-chave interdependentes da era moderna: a criação de um sistema de estados nacionais e a formação de um sistema capitalista mundial” (TILLY, 1984: 147). 34 75 analiticamente. Trata-se claramente de um quadro eurocêntrico em que o resto do mundo recebe e se adapta à modernidade que provem daquela estreita península da Eurásia. Constatá-lo é trivial; a questão mais desafiadora é em que sentido se altera, pela crítica ao eurocentrismo, nosso entendimento sobre a origem e as dinâmicas do sistema. Em outros termos, dizer que a modernidade na América Latina tem origem colonial é algo bastante óbvio; a pergunta é o que isso efetivamente interfere em nossa compreensão sobre a modernidade mesma. Para quaisquer fins teóricos, o quadro antes esboçado apaga o colonialismo da história35, subestimado como uma via transitória pela qual a dinâmica do sistema interestatal capitalista pôde se instituir no resto do mundo não-europeu, ou como um elemento peculiar da história dos países colonizados. A crítica ao “nacionalismo metodológico” precisa nos levar, assim, à crítica do eurocentrismo ou da colonialidade. Com efeito, essa dupla crítica já desbravou um vasto terreno na rediscussão sobre a constituição do sistema mundial moderno, contrapondo a premissa do desenvolvimento endógeno, singular e difusionista da sociedade europeia ocidental36. Um tema candente da sociologia histórica passou a ser então as conexões entre histórias de sujeição e espoliação colonial na expansão ultramarina europeia e a produção das condições de possibilidade dessa mesma expansão. Em outras palavras, interroga-se de diversas maneiras sobre “o papel que o ‘resto’ [rest] cumpriu na própria ideia de ‘Ocidente’ [West]” como epicentro desenvolvido, racional e moderno (HALL, 1995: 279). Desse ponto de vista, os resultados da escravidão atlântica, do comércio exclusivo, das guerras e da evangelização no Atlântico e no Índico se envolvem reciprocamente ao que se atribuía como causas endógenas da ascensão europeia, como o processo de monetarização da economia, o salto qualitativo da competição interestatal, as revoluções “industriosa” e industrial, a estabilidade de um sistema internacional de crédito, bem como as leituras de mundo, proselitistas, Christopher Chase-Dunn, por exemplo, descreve um “sistema de estados desigualmente poderosos em competição” (CHASE-DUNN, 1981: 32) e Agustín Cueva, uma “‘cadeia’ composta por múltiplas entidades nacionais” (CUEVA, 1980: 30). Em ambas as definições, aqui simplesmente usadas como exemplo, é claro o aspecto interativo do sistema interestatal; contudo, a interação dada por estados soberanos ou nacionais apaga qualquer alusão a sua dimensão imperial (BHAMBRA, 2016). 35 Seria possível rastrear essas críticas por todo o século XX, mas congregamos aqui algumas das referências importantes no debate atual (AMIN, 1988; ARRIGHI, 2008; BHAMBRA, 2007; 2014; BLAUT, 1993; DUSSEL, 1992; GOLDSTONE, 1987; 1998b; GOODY, 2006; QUIJANO, 2000; POMERANZ, 2000; WALLERSTEIN, 1997). 36 76 orientalistas, iluministas, racistas, evolucionistas, que autorreferenciavam esse poder mundial sobre os povos. Para os objetivos dessa tese, é menos importante a controvérsia sobre os processos da formação empírica do sistema mundial moderno do que o são suas dinâmicas de longo prazo, assumindo que “o desenvolvimento internacional ocorre dentro de uma estrutura colonial” (CASANOVA: 2006: 191). Se pensamos o sistema mundial pelo prisma do colonialismo, como exatamente isso altera nossa leitura sobre a competição interestatal e acumulação capitalista? Ou ainda, de que forma a competição interestatal e a acumulação capitalista permitem explicar a extroversão violenta de impérios europeus? Nessa direção, para entender a formação de estados na América Latina, é preciso reconstituir o sistema do qual estes fazem parte desde as suas periferias, admitindo que isso permita iluminar aspectos que permanecem entreditos na escala unicamente europeia. Entender essa escala mundial da formação de estados modernos é um passo para conectar a sociologia política da dominação contingente, que antes esboçamos em termos gerais, com o debate histórico-sociológico sobre estados nacionais na Europa Ocidental e fora dela, que os atrairá no próximo capítulo. Na primeira seção do capítulo, o foco será o sistema competitivo de estados soberanos, que propulsiona a reprodução ampliada dos ciclos extrativo-coercitivos como uma “reação em cadeia”. Em primeiro lugar, está posto que o princípio da soberania moderna esmaece, sob a igualdade abstrata, assimetrias de poder que se plasmam como uma hierarquia informal. Ademais, a experiência colonial põe em destaque a negação de soberania, ou seja, a circunscrição ou suspensão do princípio. Conectando os dois aspectos, a soberania se converte em uma reivindicação contingente que se resolve, como afirmação ou negação, pelas injunções da hierarquia informal do sistema. Mesmo quando soberanos, países periféricos e pós-coloniais convivem com a possibilidade de violação dessa soberania pela imposição vertical do sistema. Essa possibilidade, mesmo quando não se efetiva, está inscrita no cálculo do dissenso dessas elites políticas, isto é, sobre a projeção de consequências que pesa sobre uma decisão estratégica, encurtando ou alargando o horizonte de possíveis. Na segunda seção, observamos a economia mundial capitalista desde as margens, sinalizando como os arranjos de exploração de força de trabalho através do mercado são rodeados, acolchoados e impulsionados por formas sociais outras de 77 trabalho e acumulação de excedente. Este foi um tema clássico de toda a economia política crítica no Terceiro Mundo durante o século XX. Organiza-se sua exposição desta forma: de um lado, partimos do trabalho coagido sob o colonialismo para conectar outras formas de violação do valor da força de trabalho, assalariado ou não. De outro, no estrato superior, posiciona-se as possibilidades de entender o capitalismo como um superlativo, como um “contramercado” que institui e amplia oportunidades para lucros extraordinários pela possibilidade de burlar, alterar ou ignorar os termos correntes da competição no mercado. Seja do ponto de vista de estadistas interessados na reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, seja do ponto de vista de capitalistas em busca de lucros extraordinários, o colonialismo serve como ponto privilegiado de observação das sinergias que se solidificam entre capital e coerção na ponta de lança do sistema mundial. Colocando essa ponta de lança em perspectiva histórica, a terceira seção discute a teoria das transições hegemônicas como ciclos longos no moderno sistema mundial, como ciclos sistêmicos de acumulação. Isso nos servirá futuramente para enquadrar o “longo século XIX” como recorte empírico da pesquisa. As análises sobre a América Latina recorrem frequentemente a termos de viés estrutural ou sistêmico, como “periférico”, “dependente”, “colonial” ou com variações da noção de desenvolvimento (“sub”, “em”, “tardio”). Mesmo no alvorecer das historiografias nacionalistas no século XIX, a intelectualidade da região posicionava o “nacional” em um quadro mais amplo, à época dominado pela marcha da civilização ocidental37. De certa forma, o nacionalismo metodológico foi precocemente contido por esse sentido geral de que, para entender essas sociedades, são importantes Alguns historiadores já mostraram como a euforia com a nova historiografia “global”, “conectada” ou “transnacional” desmerece o pensamento latino-americano precedente, que, ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, nunca enveredou convictamente na senda da fabricação nacionalista de mitologia fundadora. A historiografia latino-americana foi, em alguma medida, permeável às conexões em escala mundial, mas a nova historiografia global tem relativamente pouco interesse sobre a América Latina se comparado com a Eurásia (ADELMAN, 2005; PRADO, 2012; MARQUESE & PIMENTA, 2015; WEINSTEIN, 2013). Como apontou João Marcelo Maia (2013), o mesmo ocorre na sociologia “pós-colonial” anglo-saxônica. 37 78 explicações e inspirações que transcendem suas fronteiras oficiais38. Por outro lado, existe o risco de reproduzir certos vícios herdados do pensamento oitocentista: usar o “colonial”, o “dependente” ou o “tardio” como forma de lidar com o que discrepa com relação à versão original, sem levar a sério o truísmo de que para que haja colonial precisa haver impérios, ou se há periferias, por definição, elas precisam estar em interação com os centros no sistema. Seguindo o espírito da sociologia histórica contemporânea, o desafio do capítulo é refazer as conexões recíprocas dessas histórias para acessar conceitualmente as dinâmicas desiguais desse sistema mundial, que produziu tanto a soberania como o colonialismo, tanto a escravidão como o assalariamento. Para não vulgarizar as alusões ao periférico ou o pós-colonial, precisamos de atenção com sua posição histórica em relação a essa escala abrangente que precisa ser explicada, e não simplesmente presumida. Simultaneamente, ao considerar os processos desiguais e hierárquicos que moldam essa escala mundial, evitamos que a crítica ao “nacionalismo metodológico” seja capturada por um cosmopolitismo inócuo, que já foi ironicamente apelidado de uma “consciência de classe do passageiro frequente” (CALHOUN, 2002) 2.1. Anarquia e hierarquia: a soberania como hipocrisia organizada Em um texto hoje clássico, o historiador Gabriel Ardant (1975), especialista em história das finanças públicas na França, reproduz um diálogo entre o rei Luís XII (1498-1515) e um condottiere italiano à época da segunda invasão francesa da península. Preparando sua investida contra Milão em 1499, o rei inquire sobre o que seria necessário para seu sucesso militar, ao que Trivulce responde: “três coisas são necessárias: dinheiro, dinheiro e ainda mais dinheiro” (ARDANT, 1975: 164). Este é um dos gatilhos com que o autor desenvolve o funcionamento do sistema fiscal como um “transformador” da infraestrutura econômica em estruturas políticas, uma tese de No primeiro volume de sua quadrilogia sobre o sistema mundial moderno, Wallerstein (1974) explica que seu ponto de partida para a elaboração da teoria foi a análise da política na África antes e após a independência, debatendo-se na época com as referências da modernização. Seu depoimento é eloquente do léxico parsoniano que dá luz à perspectiva: “Foi nesse momento que eu abandonei de todo a ideia de usar como unidade de análise tanto o estado soberano como aquele conceito ainda mais vago, a sociedade nacional. Eu decidi que nenhum deles era um sistema social e que só se podia falar de mudança social em sistemas sociais. O único sistema social nesse quadro era o sistema-mundo” (WALLERSTEIN, 1974: 07). 38 79 certa forma assimilada ao capítulo anterior. Dito genericamente, o sistema interestatal cria pressões competitivas que impulsionam uma reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo. Nesse sentido, a autoconstrução de estados opera como uma violenta “reação em cadeia” em escala sistêmica (HOLSTI, 2004: 44), em que guerra e diplomacia se encadeiam ao desequilíbrio dinâmico produzido pelo “dilema da segurança”39. Embora isso não seja sempre evidente, o intercurso entre governantes e governados é inserido na competição entre governantes de diferentes organizações independentes. No sentido mais imediato, isso se aplica ao que se disse no capítulo 1 sobre a proteção e a extração. Mas a competição interestatal é uma constante mesmo quando não se manifesta empiricamente como guerra ou barganhas diplomáticas. Seus efeitos envolvem e contagiam a expediência com que elites políticas conduzem seus impasses, dos conflitos industriais à educação oficial. É possível detectar as dimensões empíricas dessas relações (pense-se, por exemplo, no papel da alfabetização popular para o desempenho militar ou para a competitividade econômica), mas neste momento nos interessa sobretudo sua forma conceitual. Nesse terreno, o emprego da violência para dobrar a vontade de um estado inimigo não é substantivamente diferente de seu emprego como repressão policial para dobrar a vontade da oposição de grupos dissidentes, ou de impor determinados parâmetros de conduta sob a ameaça da coerção. Isso se depreende dos aforismas espelhados de Clausewitz e Foucault40 sobre a guerra e a política. A despeito das diferenças observáveis, a coerção em ambos os casos se situa em uma relação política entre vontades coletivas, sujeita, pois, à incerteza, ao erro e às consequências não O dilema da segurança é uma expressão de John Herz que resume o mecanismo pelo qual a incerteza induz consequências não-intencionadas na segurança internacional. Mais especificamente, a preocupação de um estado com sua própria segurança o leva a investir em defesa, mas esse gasto militar não pode ser claramente separado de seus empregos de ataque. A incerteza produz insegurança nos demais estados do sistema, que são induzidos a investir em sua própria defesa, gerando o mesmo receio com relação a suas intenções. Assim, o incremento dos gastos individuais para a segurança produz insegurança generalizada. 39 O famoso aforisma de Carl von Clausewitz diz que a guerra é a continuação da política por outros meios, enquanto que a inversão proposta por Michel Foucault, comentando Clausewitz, diz que a política é a continuação da guerra por outros meios (FOUCAULT, 2005: 54-55). É também digno de nota, a esse respeito, um comentário epistolar de Stálin sobre as notas de Lênin a respeito de Clausewitz. Argumentando que o líder bolchevique não estava estritamente interessado nas questões militares da obra do general alemão, ele diz que “Lênin ponderava a Clausewitz antes de tudo porque, não sendo este marxista, (...) confirmava em seus trabalhos a conhecida tese marxista segundo a qual entre a guerra e a política existe um enlace direto, que a política engendra a guerra e que a guerra é o prolongamento da política por meios violentos” (STALIN, 1979: 104; grifo adicionado). 40 80 intencionadas da ação. Na metáfora clausewitziana, aliás, a atividade militar não pode ser rigorosamente modelada porque em sua execução uma “névoa da guerra” torna opacas aos decisores as exatas condições da disputa e as consequências precisas de suas iniciativas. A guerra pertence à política do medo que a coerção organiza; e todo o uso da coerção é interativo como a guerra, e portanto em alguma medida estratégico. Assim, independente da escala, a violência de estado implica uma adequação tentativa de meios e fins, em que a distinção de uma ameaça real ou fabricada carrega consigo uma mobilização correspondente do ciclo extrativo-coercitivo para neutralizá-la. Seja para combater uma invasão militar inimiga, o narcotráfico, os planos secretos da Internacional ou uma onda de greves, os estados ativam alguma logística específica de polícias, soldados, espiões, equipamentos, suprimentos, para não falar da rede de órgãos de bastidores de sua atuação. Há uma reciprocidade entre a decisão subjetiva sobre a ameaça potencial e o direcionamento objetivo de capital e coerção, que estabelece consequências reais para essa decisão. Não há uma peculiaridade da guerra nesse aspecto, inclusive porque ela sequer precisa ser entendida em um binômio rígido de guerra e paz. Os estudos historicamente orientados preferem matizá-lo em um continuum de empregos táticos, dos mais aos menos incisivos, da força armada para atingir determinado objetivo político (TILLY, 1985; MARES, 2001). Para além das guerras deflagradas há formas muito mais veladas e sutis pelas quais se faz valer o poder das armas em uma interação estratégica. Igualmente, todo o emprego da força abre os flancos de sua contestação: a contestação do limite prático traçado entre ameaça e proteção, bem como a disputa sobre os fardos e ganhos da mobilização extrativo-coercitiva. A ativação da força armada para qualquer propósito impõe um cálculo do dissenso àqueles que a empregam, com consequências não-intencionais. Se o uso da força está subordinado à política, a névoa da incerteza não se dissipa totalmente quando não há guerra. Dessa forma, um primeiro aspecto importante é que a competição militar entre estados não está separada da dinâmica contingente da sociologia política que antes esboçamos, por mais que seja impraticável reconstituir empiricamente todos os infinitesimais movimentos que subjazem a essa “reação em cadeia” mundial. Se a ordem política é a projeção espaço-temporal de relações de dominação, o sistema interestatal é o intercurso, com maior ou menor atrito, entre reivindicações 81 concorrentes de exercer a autoridade política. Se a violência organizada é entendida não por parâmetros abstratos, mas nos termos da ordem política vigente, então ameaças, sanções, a barganha militarizada ou guerras formam parte dos recursos estratégicos para fazer prevalecer uma ordem concreta sobre suas alternativas imediatas. Para tal é irrelevante se a guerra é fabricada para angariar adesão popular, perseguir minorias vulneráveis ou alimentar a indústria bélica; ela continua sendo uma aposta, sempre contingente em seus resultados, de reforçar a sustentação política de quem governa. O controle político da violência existe enquanto possibilidade de discriminar, dissuadir e suprimir reivindicações alternativas de governo, sejam elas postas por grupos de oposição ou por estados rivais. Uma derrota militar pode disparar a ruptura da ordem política tanto quanto uma revolução social desde baixo, e não raro ambos os fenômenos se entrelaçam (SKOCPOL, 1979). A segunda ideia importante é que, neste vasto campo do confronto político contingente em que guerras e revoluções acontecem, o que está em jogo é a reprodução e ruptura do ciclo extrativo-coercitivo, bem como suas perspectivas relativas de ampliação ou de contração no tempo e no espaço. Quando Theda Skocpol (1979) comparou as revoluções agrárias na França, na Rússia e na China, o triunfo revolucionário se mostrou condicionado ao desmoronamento do aparato coercitivo e fiscal do estado, para o que a pressão militar internacional foi decisiva. Mesmo quando não atinge o limiar crítico da guerra e da revolução, a competição interestatal é parte central das expansões e travamentos do circuito entre extração e gasto, entre proteção e ameaça, que cada organização política faz girar no tempo e no espaço. As guerras têm o potencial de abrir oportunidades fiscais não só quando os vitoriosos passam a controlar poços de petróleo, regiões industriais ou minas de prata, mas também pelas exigências postas à sociedade em condições emergenciais. A competição interestatal, mais do que o militarismo indiscriminado, é uma competição pela reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, com a qual a organização política pode dispor de maiores recursos para manobrar coerção e consenso. A ampliação do ciclo reduz, nesse sentido, as pressões sociais sobre sua seletividade, enquanto que sua contração tende a acentuá-las. Isso dito, essa competição transcorre em condições de óbvias desigualdades. As bases sociais de mobilização de coerção e capital, ou “infraestrutura econômica” para 82 Ardant (1975), constituem os esteios logísticos sobre os quais se forma uma hierarquia informal. A hierarquia é informal na medida em que as assimetrias entre estados individuais são negadas pelo princípio normativo de que eles são iguais e soberanos, o que cria uma contradição. A oposição convencional entre hierarquia e anarquia em Relações Internacionais esforça-se por diferenciá-las com base no princípio aristotélico do “terceiro excluído”, o que mal representa tanto o “interno” hierárquico como o “internacional” anárquico (WALTZ, 1979). Do ponto de vista de quem deve obedecê-los, um acordo entre grandes potências é provocativamente similar a um acordo entre elites políticas que dispõem de polícia e exército para impô-lo. Dado que esse sistema existe, nenhum estado é ou pode ser soberano enquanto tal. É a partir do momento em que, em uma relação concreta, atores se comportam como se essa soberania fosse real que ela se torna real em suas consequências. Dessa forma, um ponto crucial para entendermos o funcionamento do sistema interestatal é que ele cinde práticas concretas de afirmação e de negação do princípio da soberania. Em outras palavras, entre a reivindicação e a efetivação da soberania há um hiato que depende de práticas que a efetivem realmente; logo, as práticas que suspendem ou ultrapassam essa regulação abstrata, por contraste, são práticas orientadas a negá-la e circunscrevê-la. É nestas últimas que aflora mais claramente a hierarquia informal do sistema. A fundação mitológica do sistema interestatal em Vestefália (1648), para além das inúmeras imprecisões históricas, tem o efeito letal de desconectá-la da linhagem dos tratados e bulas coloniais, como Tordesilhas (1494). De fato, os reinos ibéricos já eram a ponta de lança da expansão europeia no Atlântico, mas, por uma sucessão de acordos, foram atribuídos a eles domínios formais divididos por um meridiano, ficando excluídas as terras controladas por cristãos. Essa titulação não simplesmente ignorava os povos vivendo no que hoje conhecemos por América, África e Ásia, mas os subsumia deliberadamente ao poder concedido aos reinos de Portugal e Espanha, então responsáveis por sua evangelização. Aqui reside um aspecto inventivo fundamental: institui-se uma prerrogativa soberana contra os povos, como criação de direito pelo colonialismo moderno. O símbolo mais forte disso talvez seja o infame 83 “requerimento” espanhol, avalizado em última instância por Jesus Cristo41. Aos povos americanos era dada a escolha entre aceitar a suserania ao rei ou morrer pela guerra. Cria-se o poder de governar sobre um espaço subentendido como vazio de qualquer direito e de qualquer política. No mesmo movimento, essa soberania colonial, que cria ex nihilo o poder de Portugal e Espanha nas Américas, também ratifica sua primazia ultramarina na política europeia, congelando de certa forma o status quo frente a outros competidores imperiais. Conforme Holanda, França e Inglaterra vão infiltrando a divisão de Tordesilhas, a erosão do status quo transparece como reivindicações soberanas de outros colonizadores, ou seja, como negação reiterada de autogoverno aos povos americanos. O notável filósofo John Locke, que trabalhou na América do Norte no princípio da colonização inglesa, produziu uma teoria da propriedade privada em que o uso comum e coletivo da terra não conferia qualquer direito sobre ela, de modo que a invasão colonial não configuraria propriamente uma despossessão, uma violação de direitos, mas exatamente sua instituição primordial (HOLMWOOD, 2016: 152-154). A adequação do princípio filosófico, tal qual no caso da soberania, é agenciada pelo colonizador, que só reconhece direitos em um colonizador rival. Como extroversão do sistema de estados soberanos, o colonialismo se realiza como uma competição entre impérios coloniais que instituem sua soberania contra os povos. O tema não é que Tordesilhas seja mais importante que Vestefália, pois ambos são eventos igualmente arbitrários para reflexões mais abrangentes. O crucial é que o princípio de soberania igualitária que atribuímos a Vestefália – assim como o jusnaturalismo do século XVII que lhe embasa – é melhor entendido no reverso da soberania colonial de Tordesilhas. Eles são inteligíveis por oposição em um processo que é contraditório. O mundo da soberania pelo direito natural circunscreve uma geografia imaginária em que os cristãos, os civilizados, os brancos estabelecem parâmetros que não são aqueles com que se relacionam com os demais povos, que constituem uma categoria fora do direito internacional propriamente dito (KEENE, 2004). Emergem, assim, princípios universais que regulam sua realidade intramuros, que refletem presunções sobre o caráter humano, sobre a cultura e a história que não O “Requerimento” é como ficou conhecido o documento lido pelos invasores castelhanos aos nativos para justificar seu direito de ocupação, amparado pela concessão papal e pela cosmovisão cristã. O papel do requerimento era sobretudo criar para a monarquia uma legitimidade teológico-política para o empreendimento colonial, quando os primeiros trinta anos haviam sido marcados pela brutalidade desmesurada. 41 84 cabem aos colonizados. As convenções de Augsburg (1585), Vestefália (1648), Utrecht (1701) ou de Viena (1815) amadurecem a ideia de que as relações entre as nações europeias, mesmo fraturadas pela religião ou pela revolução, não haveriam de replicar os termos em que os europeus se relacionam com os povos outros – desumanizados, colonizados e escravizados. A maturação do direito universal entre os povos é refratada pelo que Partha Chatterjee (1993) chamou de “regra da diferença colonial”. Pelo prisma do colonialismo, somos obrigados a observar o desenvolvimento da noção de soberania por meio de sua persistente negação, o que não é o mesmo que sua ausência. Do ponto de vista daqueles que nunca puderam ser tidos como soberanos no sistema interestatal moderno, como os astecas ou os zulus, a soberania moderna é simplesmente uma afronta colonialista, em que os invasores se autointitulam direitos e prerrogativas de mando. Enquanto as formas políticas nativas são invalidadas, os estados europeus dividem soberanias coloniais entre si, trazendo-as para a esfera da competição interestatal. A pressão competitiva no topo do sistema empurra a corrida colonial, como ocorreu após celebrada a paz de Vestefália (1648): o século que seguiu o apaziguamento da Europa central testemunhou a mais incisiva ofensiva até então de impérios europeus sobre o resto do mundo. Visto desde as margens, a soberania, princípio que se calca na igualdade abstrata e na não-ingerência, se realiza justamente pela desigualdade e pela intervenção fora de seu perímetro. Dessa perspectiva, a hierarquia informal do sistema interestatal irrompe como decisão prática sobre a extraterritorialidade, como imperialismo, como policiamento internacional, como flexão casuística do princípio da não-ingerência, da igualdade abstrata. Um poder de decisão que se exerce como pressão vertical do sistema. Assim, o fim do colonialismo europeu durante o século XX não é a afirmação última o princípio da soberania em todo o mundo, culminando sua longa difusão civilizatória que se iniciara em Vestefália. Ao invés de universalizar a soberania como síntese entre política, ordem e direito, o sistema mundial sem colônias oficiais desenvolve a contínua reinvenção da relação histórica entre sua afirmação e sua negação. Quanto mais se complexifica institucionalmente uma legalidade igualitária sobre o sistema de estados, tentando encapsular a hierarquia competitiva à estática jurídica, maiores são as margens para práticas concretas que manobram ilegalismos, isto é, suspendem, 85 transgridem ou refazem a regra à expediência política. Para dar conta dessas práticas, aliás, um cientista político conservador propôs que pensássemos a arquitetura normativa da soberania como uma “hipocrisia organizada” (KRASNER, 1999). Para a história latino-americana, como questão de fato, o reconhecimento institucional de estados pós-coloniais soberanos não retirou essa margem de arbitrariedade: o bloqueio naval a portos, a cobrança armada de dívidas, os privilégios legais a cidadãos estrangeiros, a invasão, a ocupação e a mudança de governantes demonstram esse transbordamento de hierarquia internacional por entre as brechas da soberania igualitária. Nas palavras de Theodore Roosevelt, assiduamente citadas por sua crueza e por suas consequências, “a delinquência crônica [de alguns países latino-americanos] pode [...] fazer necessária a intervenção de alguma nação civilizada, e no hemisfério ocidental a Doutrina Monroe pode obrigar os Estados Unidos [...] a exercerem um papel de polícia internacional” (apud BOERSNER, 1996: 149). Esse intercurso entre afirmação e negação de soberania é sempre historicamente situado, e a citação de Roosevelt é extraída de um contexto sabidamente acirrado das pressões verticais do sistema (ver capítulo 6). Ainda assim, de forma mais geral, essas pressões não deixam de existir quando arrefecem. Dessa forma, a possibilidade da guerra se inscreve no jogo político mesmo quando não se realiza. A hipótese de que outros estados respondam com guerra uma dada iniciativa pesa sobre essa decisão assim como, por exemplo, trabalhadores podem responder com greves, passeatas e confronto civil à retirada de direitos assegurados, ou capitalistas podem desinvestir e financiar oposicionistas frente ao receio de que seus interesses estejam em risco. Elites políticas podem estar mais ou menos conscientes das implicações possíveis de suas decisões específicas, mas nunca são capazes de domesticá-las todas a um cálculo de otimização. Se há hierarquia internacional, em sua base a intervenção extraterritorial impõe-se como risco latente, impondo um recorte potencial à construção da ordem política. Em 1954, na Guatemala, o projeto de reformas nacionais-desenvolvimentistas foi ceifado pela intervenção estadunidense, que guinou as balizas da ordem vigente no país instaurando uma ditadura militar. Na década de 1930, a guerrilha sandinista na Nicarágua foi combatida sob o mesmo estandarte anticomunista, sob imprecações do Departamento de Estado dos EUA contra as supostas maquinações da Comintern no istmo. 86 A ideia de que existem pressões verticais no sistema dadas por sua hierarquia informal se inscreve, portanto, na construção da ordem política em países na base dessa hierarquia42. A iminência de retaliação imperialista restringe o horizonte de possibilidades da disputa política, ainda que nunca pode fazê-lo de forma pétrea. Não obstante a assimetria do conflito, o imperialismo também está sujeito à “névoa da guerra” e ao cálculo do dissenso no emprego da força. À primeira vista, intervenções desse tipo são feitas pelas razões mais fortuitas e irregulares. Se vistas em conjunto, as práticas de negação de soberania formam uma porta móvel para a expansão do ciclo extrativo-coercitivo nos estados imperialistas, não só pelo que pretendem atingir (espoliação colonialista, agenciamento de comércio, cobrança coagida de dívidas, promoção de um governo dócil), mas pelo que exigem para sua execução (mobilização militar, aparato de governo colonial, sinergia tecnológica, gastos de reconstrução, etc.). É sobretudo quando a estática jurídica do sistema de estados soberanos é rompida que se criam oportunidades extraordinárias de acumulação capitalista pelas bordas da concorrência de mercado. 2.2. Mercados e contramercados Em Marx (1996), a crítica da economia política cumpre o papel de desvelar a espoliação de trabalho humano que ocorre no capitalismo sem que sejam expressamente violadas as leis do intercâmbio de mercadorias. Essa apropriação de trabalho não-pago através do mercado é chamada de mais-valia, sendo a plataforma sobre a qual se desenvolve a acumulação capitalista. A perspectiva de que a vida social possa ser regulada pela troca de mercadorias é o fundamento da economia mundo moderna. A confecção histórica das condições para a acumulação capitalista ficou conhecida, graças ao célebre capítulo d’O Capital que leva esse nome, de acumulação primitiva ou originária: por processos erráticos de espoliação e violência, o trabalho humano é posto no mercado para ser empregado por quem passa a controlar os meios de produção (MARX, 1996: 339-381). Uma corrente pouco lida da teoria da dependência, preocupada em se afastar o marxismo, entendeu essa supressão de autonomia dizendo que, ao contrário das “nações dominantes”, para uma nação dependente “a estratégia racional (...) sói ser a de utilizar só uma fração do poder real de sua própria nação” (O’DONNELL & LINK, 1973: 42). Celso Furtado, por sua vez, entendia o desenvolvimento em íntima ligação com a “internalização dos centros de decisão” em países periféricos. 42 87 Não é o objetivo dessa breve seção adentrar-se por debates espinhosos sobre a origem do capitalismo, sobre o eurocentrismo de Marx ou sobre a atualidade de suas categorias. Muito mais contido, nosso objetivo parte das ligações pelas quais a já citada exigência de “dinheiro, dinheiro e mais dinheiro” pelos estados do sistema submerge a construção da ordem política em uma economia mundial capitalista cujas dinâmicas eles não conseguem controlar diretamente. Isso nos obriga a entender um pouco a relação entre coerção e trabalho, repensando as relações entre “acumulação primitiva”, colonialismo e o capitalismo propriamente dito. Em geral, o marxismo clássico importou a premissa de que a coerção extraeconômica pertencia a um passado pré-capitalista que tendia a se dissipar em direção às formas capitalistas mais maduras, tornando assim mais evidentes e pulsantes as contradições de classe que moveriam a história para além dele. Desde Rosa Luxemburgo, pelo menos, abriu-se um flanco de renovação da economia política marxista a partir da acumulação primitiva continuada, permanente, reposta como imperialismo. Isso permitia não só pensar o imperialismo à época da II Internacional, mas abria uma ponte crucial com os trabalhos sobre escravidão atlântica e da produção colonial, que a partir dos anos 1930 começaram a conectá-las a um desenvolvimento capitalista desigual (JAMES, 2000; PRADO JR., 1963; WILLIAMS, 2012). O capitalismo deixava de ser um sistema fechado para ser um sistema que depende de sua própria expansão. Destarte, foi sofisticada em várias direções a ideia de que, sob o capitalismo, pensado da vida doméstica à escala sistêmica, reproduziam-se lógicas desiguais de extração de excedente para além das relações de trabalho “livres” no mercado43. O gatilho veio sobretudo do estudo de sociedades fora do núcleo industrial a que Marx se dedicara, mas suas conclusões retroagiram para a classe trabalhadora como um todo. Provocativamente, um importante historiador do trabalho afirmou recentemente que o “assalariado puro” é uma “abstração” criada pelo movimento marxista tradicional, uma vez que está rodeado, em fronteiras fluidas, com semiproletários Todo o debate marxista sobre formação social tem a preocupação de desvelar as conexões entre relações de trabalho “capitalistas” e “não-capitalistas” (AMIN, 1973; HOBSBAWM, 1985). Diretamente derivado de Rosa Luxemburgo, o debate contemporâneo de David Harvey (2004: cap. 4) sobre acumulação por despossessão incide sobre outra face do problema, que é a resiliência histórica de estratégias de acumulação capitalista por fora da mais-valia do trabalho assalariado. A crítica feminista de Silvia Federici (2013) atualiza com profundidade a ideia de um trabalho não-pago às mulheres nas tarefas de reprodução da força de trabalho, subentendidas e invisibilizadas pelas relações contratuais de trabalho no capitalismo. 43 88 como “ambulantes, meeiros, trabalhadores a domicílio, prostitutas, trabalhadores por conta própria, ladrões e catadores de lixo” (VAN DER LINDEN, 2002). A lógica capitalista não estava contaminada com impurezas contingentes herdadas de formas históricas anteriores, mas recriava essas diferenças de forma racializada (QUIJANO, 2000; HOLMWOOD, 2016) e generificada (FEDERICI, 2004). Mais do que concentrar e expropriar trabalhadores, constata Silvia Federici, a acumulação primitiva era “uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, na qual as hierarquias construídas sobre o gênero, assim como sobre a ‘raça’ e a idade, se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno (FEDERICI, 2004: 113). A acumulação capitalista não só é expansiva, como é desigual: pensada no plano mundial, sua reprodução explora assimetrias ao invés de uniformizar o trabalho sob a lógica universal do capital. Pensando desde suas margens, trabalho excedente e violência se reencontravam nos “bastidores” do mercado capitalista, para o qual é indiferente se o que está sendo comprado e vendido como mercadoria foi expropriado à força, foi produzido com trabalho coagido ou por produtores independentes, foi reproduzido graças a trabalho doméstico não-pago, foi rapinado do que era antes comum, sagrado ou estatal. Em algum momento, essa profusão de bens era trazida à órbita do mercado, mesmo que isso implicasse uma viagem intercontinental, onde toda a violência se esfuma em capital na forma dinheiro. A produção que, estando orientada ao mercado capitalista, não satisfaz o valor de troca da força de trabalho sempre foi um tema caro ao marxismo latino-americano, da escravidão colonial à superexploração do trabalho assalariado. O tema era inseparável da apropriação desigual nas cadeias mundiais de valor que formam centros e periferias, e como tal foi apropriado pelos teóricos do sistema mundo como Immanuel Wallerstein44. Daqui podemos observar a questão por outro ângulo. Ao comentar a prosperidade da economia de plantation escravista organizada pelos portugueses, por exemplo, Wallerstein (1974: 121-123) destaca a alavanca do crédito obtido da Europa do Norte contra mercadorias coloniais vendidas antes da produção. Essa prática 44 Sem dúvida, a formulação de Wallerstein (1974) era fortemente determinista nesse aspecto, indicando que haveria uma relação entre os diferentes estratos do sistema (centros, semiperiferias e periferias) e o regime de trabalho predominante, o que se relacionaria com o nível de coerção sobre a força de trabalho. Não é preciso endossar a ideia de forma tão esquemática para conceber que o sistema mundial articula formas não-livres ou não-assalariadas de trabalho no processo geral de acumulação, e que isso não é reminiscência do passado pré-capitalista. 89 interceptava-as da venda no mercado aberto, permitindo a esses financistas aproveitar-se das oscilações de preço, em particular da tendência inflacionária que ficou conhecida como “revolução dos preços” no século XVI. Ao controlar o nó entre crédito e distribuição na Europa, usufruíam de posição dominante na apropriação do excedente de um setor em expansão. Em um mercado concorrencial, as margens de lucro tendem a ser niveladas e achatadas pela pressão dos inúmeros competidores. É pela capacidade de aliviar essas pressões competitivas que determinados segmentos das cadeias de valor se tornam centrais na economia mundo, acumulando lucros literalmente extraordinários. Em contraste, quanto mais periféricos forem os nós na cadeia, mais expostos eles estão à competição irrestrita, de modo que seu lucro é nivelado por preços de mercado que não controlam (ARRIGHI, 1997). Essa prerrogativa de transferir para outras partes as pressões competitivas do sistema pode se efetivar por diversos expedientes, como a formação de oligopólios, oligopsônios ou cartéis, pelas oportunidades de uma nova tecnologia, por subsídios ou isenções fiscais, por compras governamentais ou pelo monopólio colonial. Essa propensão ao descolamento de certos setores privilegiados fez com que Fernand Braudel considerasse o capitalismo como uma espécie de superlativo, um setor restrito em que se produziam “contramercados”, isto é, vias de acumulação que subvertem os procedimentos e condições vigentes no mercado competitivo em busca de lucros superiores. O historiador francês chamou a atenção para algo crucial: em sua ampla maioria esses contramercados são agenciados pelo estado, daí sua célebre formulação: “o capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado” (BRAUDEL, 1987: 44). Retornando ao exemplo das plantations escravistas nos séculos XVII e XVIII, a historiografia hoje substituiu seu suposto primitivismo tecnológico por uma leitura oposta, na qual a organização do trabalho, os ganhos de escala e os melhoramentos técnicos faziam delas unidades com elevada produtividade para a época, orientadas por cálculos econômicos bastante instrumentais. Dispondo do trabalho coagido de duzentos ou mais escravos, as técnicas de divisão e padronização de tarefas, com turnos de trabalho definidos e regidos por um sino ou sirene, as usinas açucareiras serviriam de modelo para a administração das primeiras indústrias na Europa (BLACKBURN, 1998; GÓMEZ-GALVARRIATO, 2008). Apesar disso, os ganhos 90 de produtividade eram relativamente homogêneos para as firmas individuais, submetidas à competição de preços no mercado mundial. Como vimos, a posição dominante nessa cadeia de valor, aonde gravitava o grosso de seus lucros, estava distante, nas praças capitalistas de Amsterdã ou Antuérpia, não obstante os incrementos de produtividade realizados nas plantations americanas. Por contraste, na Inglaterra após 1750, quando o efeito encadeado de inovações técnicas e disciplinamento fabril do trabalho fez saltar a produtividade industrial, esse salto foi revestido com patentes, restrições setoriais à exportação e mesmo à migração de técnicos que asseguraram, por intervenção política, contramercados temporários para a produção inglesa. Embora tenham sido burladas antes disso, a proibição à livre circulação de artesãos foi revogada só em 1825 e a restrição à exportação de maquinário, em 1842. Ao contrário das plantations, o salto de produtividade interagia reciprocamente com o domínio das cadeias mundiais de valor, que permitia arrefecer a pressão competitiva ao dividir entre empresas inglesas o mercado mundial de têxteis maquinofaturados. A mais-valia extraída do operariado fabril inglês era, então, sobremaneira apropriada pelos capitalistas ingleses, que controlavam, de resto, a distribuição, a corretagem e os seguros subsidiários ao impulso dado pela indústria. A apropriação do excedente econômico era modulada pela intersecção entre mercados e contramercados. Por duas frentes, estamos cercando a questão da relação entre violência organizada e acumulação capitalista: do ponto de vista do trabalho que não está inteiramente desamarrado da coerção extraeconômica, ou do ponto de vista dos capitalistas que conseguem acesso a determinados contramercados em conluio estado. Uma das questões chave da ideia original de “acumulação primitiva” é que o mercado capitalista não é um desdobramento espontâneo, mas se fabrica politicamente como contramercado, como manobra de força, como desenraizamento da vida econômica. É isso que retorna em Polanyi (2012) para entender a utopia oitocentista de ordenamento social através do mercado autorregulado, que tem no estado liberal seu demiurgo. A expansão da economia mundo é movida por esses desenraizamentos violentos e pelos lucros extraordinários que eles ensejam, daí a interligação íntima entre colonialismo, capitalismo e acumulação primitiva tornada permanente. Podemos, a essa altura, substituir essas alusões a “estado” ou “violência organizada” pelos termos da seção anterior, de um sistema competitivo de estados 91 soberanos, cuja hierarquia informal extravasa como negação de soberania. O que isso significa exatamente? Em primeiro lugar, a capacidade de agenciar contramercados com determinadas frações capitalistas é desigualmente distribuída conforme a hierarquia informal do sistema, moldada pelas assimetrias nos ciclos de extração e coerção. Por um lado, qualquer agenciamento desse tipo demanda recursos específicos de estado, para subsidiar uma indústria nascente, desenvolver tecnologia sensível, discriminar compras governamentais, restringir legalmente a competição com consequências efetivas. Porque contramercados são uma torção particular da seletividade do ciclo extrativo-coercitivo, com seus ganhadores e possíveis dissensos, a maior escala de recursos abre maiores possibilidades para produzi-los com sucesso. Por outro lado, a proteção desses contramercados depende, no extremo, do controle político da violência, o que também reflete as assimetrias do sistema interestatal. A introdução massiva de têxteis britânicos na Ásia teve como contrapartida a destruição deliberada da base manufatureira indiana durante o século XVIII, especialmente em Bengala (BHAMBRA, 2007: cap. 6). Com efeito, explicações baseadas na produtividade superior da indústria ocidental perdem de vista que a entrada nos circuitos de comércio do Índico prescindiu da livre competição de mercado, valendo-se da eficiência de sua força a par com a força de sua eficiência (POMERANZ, 2000). Dos invasores portugueses aos ingleses, os estados europeus que aplicaram com sucesso o comércio armado passaram a controlar os nós centrais das redes já existentes no Índico, subordinando-as à política imperial europeia. Usando a linguagem de Frederick Lane (1979), a ameaça de disrupção dos concorrentes pela força abria a possibilidade de converter “protection rackets” (arranjos de proteção mediante extorsão) em “protection rents” (rendas de proteção) para as companhias comerciais ocidentais. Em segundo lugar, substituir “estado” ou “violência organizada” por um sistema assimétrico de estados também nos permite observar que as atividades centrais nas cadeias mundiais de valor são desproporcionalmente concentradas nos estados do estrato superior da hierarquia. De um lado, essa é outra forma de observar a desproporção na capacidade de agenciar contramercados, que produz uma territorialização desigual dos segmentos de vanguarda da acumulação capitalista. A territorialização das cadeias de valor, e as oportunidades fiscais decorrentes, se conectam com as segmentações e hierarquias produzidas na classe trabalhadora. Se o 92 capitalismo não se realiza uniformemente como capital industrial e trabalho livre, essa desigualdade se transpõe, inclusive, como “encapsulamento jurídico e político das massas trabalhadoras” por estados com diferentes posições no sistema (FONTES, 2000: 357). Essas posições, por sua vez, dependem do grau em que esses estados internalizam, em sua jurisdição, segmentos de altos lucros, onde a competição é rarefeita ou controlada, em contraposição com os vastos segmentos periféricos da economia mundial premidos pela concorrência irrestrita. Além das divisões de raça e de gênero, a classe trabalhadora é segmentada mundialmente através da hierarquia de estados. Dito de forma sintética, há um entrecruzamento entre a hierarquia informal entre os estados no sistema e o desenvolvimento desigual de centros e periferias na economia mundial capitalista. Como sublinhou Arrighi (1997), o centro do sistema não só usufrui de uma posição privilegiada nos termos do comércio internacional, mas também um controle desproporcional sobre os fluxos de pessoas (imigrantes, degredados, colonos, etc.) e capital circulante (crédito, dividendos, patentes, investimento especulativo, etc.). Esse controle extraeconômico cria “movimentos unilaterais de capital e trabalho” no sistema para além do que decorre diretamente do comércio (ARRIGHI, 1997). No contexto dessas assimetrias, a busca pela reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo faz com que estados individuais se engajem politicamente em aliviar as pressões competitivas mundiais sobre sua base econômica de tributação, ou seja, em galgar posições relativas na economia mundial45. Em síntese, em uma economia capitalista, a competição não é um dado, mas uma dinâmica na qual se busca transferir as pressões competitivas para outro lado46. Como a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo tende a esmaecer as tensões sociais ao redor de sua seletividade, estadistas tem ganhos concretos com arranjos de extração e gasto que ensejem retornos crescentes, que ampliem a perspectiva fiscal além dos dividendos políticos imediatos. Assim, se a acumulação Nas palavras de Giovanni Arrighi, a assimetria internacional se explica pelos “estados conterem dentro de seu domínio jurisdicional uma combinação de atividades de núcleo orgânico e de periferia que eles lutam para melhorar” (ARRIGHI, 1997: 153). E completa: “quanto maior o peso das atividades periféricas na combinação que se encontra dentro da jurisdição de um dado estado, menor será a parcela dos benefícios totais da divisão mundial do trabalho comandada pelos residentes daquele estado” (ARRIGHI, 1997: 162-163). 45 “Como resultado”, ainda de acordo com Arrighi, “os nós ou atividades econômicas de cada uma das cadeias de mercadorias tende a se polarizar em posições que transferiram as pressões da competição para outro lugar (atividades típicas do núcleo orgânico) e posições para as quais essa pressão se transferiu (atividades periféricas)” (ARRIGHI, 1997: 146). 46 93 capitalista tem vetores expansivos a partir de agenciamentos de estado, esses agenciamentos não são resultado de uma determinação causal da política pela economia, mas têm uma lógica política interna inteligível. No sistema mundial moderno, a exigência de “dinheiro, dinheiro e mais dinheiro” por parte dos estadistas para fazer girar o “transformador” fiscal os recompensa por produzir estímulos à mercantilização e à acumulação capitalista, recorrendo à “violência organizada” para expandir seu perímetro. Sem dúvida, o colonialismo foi a expressão mais radical, e portanto um ponto privilegiado de observação, desse processo. Nele, sinergias entre estado e capital propulsionaram, entre aqueles no topo do sistema, imensos contramercados à acumulação capitalista através de sua extroversão violenta. Por essa extroversão, as oportunidades de lucros extraordinários se articularam à negação do princípio de soberania e à segmentação dos regimes de trabalho sob o capitalismo, com a instituição de trabalho coagido nas periferias coloniais. Ao contrário das interpretações eurocêntricas que equiparam o sistema ou a modernidade exclusivamente à Europa, o colonialismo está inscrito na formação e na dinâmica dessa escala histórica que enquadramos como sistema mundial moderno. Entender suas forças motrizes nos leva além da experiência estrita de governo colonial nos lugares onde ele ocorreu, refinando categorias e mecanismos mais gerais sobre a interação expansiva entre estados e capitais. Ao analisar a construção da ordem nos estados pós-coloniais na América Latina, isso nos permitirá contextualizar a acumulação primitiva tornada permanente e a mercantilização como política governamental, sem para isso recorrer ao determinismo econômico. Oferece também ferramentas para entender o limiar delicado com que o princípio de soberania foi, circunstancialmente, escancarado como hipocrisia no continente. Antes disso, contudo, precisamos completar o raciocínio sobre o sistema mundial a partir da ideia de transições hegemônicas como ciclos longos, conectando, dessa forma, uma escala espacial a uma temporal. 2.3. O tempo do mundo: transições hegemônicas e caos sistêmico O debate sobre transições hegemônicas tem duas vertentes distintas: uma tem origem em Charles Kindleberger e seu principal discípulo em Robert Gilpin (1987), 94 enquanto a outra tem inspiração em Fernand Braudel, encontra-se nos anos 1970 com a perspectiva dos sistemas-mundo e desemboca na trilogia liderada pelo economista italiano Giovanni Arrighi (ARRIGHI, 2008; 2009; ARRIGHI & SILVER, 2001). Aqui nosso percurso segue a trilha da segunda. Vamos expor aqui alguns fundamentos dessa teoria que, costurando noções já apresentadas no capítulo, perfazem o arco que sustenta a segunda parte da tese. Esperamos recompensar a síntese em pelo menos dois aspectos: de um lado, deixar claro que o “sistema mundial” não é uma variável ambiental constante para o estudo da construção da ordem política, mas, situado historicamente, desenvolve movimentos discerníveis de expansão e crise, de provisória governabilidade e de caos sistêmico. De outro lado, pela análise desses movimentos, é possível estipular uma escala temporal para a mudança de longo prazo sem implicar uma homogeneidade ou sincronia mundial. Articular a história latino-americana a esses processos sistêmicos, de resto, pode contribuir a descentrar certo viés neohegeliano da análise das hegemonias mundiais, manifesto como prioridade única à ponta da flecha da história, ou seja, aos pivôs ou líderes de cada reorganização geral do sistema – como se eles subentendessem o resto47. Esse panorama básico da teoria será explicado através de três ideias-força: (1) ciclos hegemônicos são processos sistêmicos, distintos portanto da agregação empírica de histórias nacionais ou da repetição histórica; (2) cada um desses ciclos longos é liderado por um arranjo hegemônico entre estado e capital, percorrendo uma fase de expansão produtiva, um zênite de liberalização mundial e uma fase declinante de financeirização; (3) na antípoda dos momentos de governabilidade hegemônica do sistema estão períodos críticos de agravamento do conflito (interestatal e social), que constituem “conjunções críticas” de aceleração e definição dos rumos no próximo ciclo longo. Assim, a análise do “longo século XIX” enquadrada pela ascensão e colapso da hegemonia britânica é limitada por duas conjunções críticas de desmoronamento da ordem vigente, a chamada Era das Revoluções (c.1770-1840) e as Guerras Euroasiáticas (c.1910-1945). 47 A crítica é postulada, por exemplo, por Walter Mignolo como segue: “Na reconstrução de Arrighi, a história do capitalismo é vista ‘dentro’ (na Europa), ou de dentro para fora (da Europa para as Colônias) e, por isso, a colonialidade do poder é invisível. A consequência é que o capitalismo, como a modernidade, aparece como um fenômeno europeu e não planetário, do qual todo o mundo é partícipe, mas com distintas posições de poder. Isto é, a colonialidade do poder é o eixo que organizou e continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza” (MIGNOLO, 2005: 36). 95 Começando pelo item (1), é preciso dissipar de saída a ideia de que, ao conferir motricidade ao sistema mundial, a teoria advoga explicar estruturalmente as histórias nacionais, regionais ou locais nesses termos. Justamente porque o sistema mundial não é uma agregação putativa de unidades nacionais, não se pode confundir um processo naquela escala como uma regularidade empírica em todas as suas partes. Se é possível discernir uma tendência sistêmica à financeirização, por exemplo, em um dado contexto histórico, a demonstração de casos onde essa financeirização não se efetiva não é razão suficiente para falseá-la. Assumir que tendências e processos ocorrem em escala sistêmica, assim, não subentende sua homogeneidade ou sincronia empírica, mas sim que tais processos adquirem maior inteligibilidade se postos nessa escala. Consequentemente, embora os ciclos hegemônicos refiram coloquialmente aos estados que os lideraram, como o britânico, o holandês ou o estadunidense, “os ciclos mesmos se referem ao sistema como um todo e não a seus componentes” (ARRIGHI, 2009: xiii). Uma hegemonia não se define, pois, pela supremacia de um estado individual sobre os demais, mas pela capacidade de, em uma conjunção crítica, uma articulação entre estado e capital oferecer um horizonte de expansão para a economia mundial, capitaneando o sistema em um novo ciclo de acumulação. Um ciclo sistêmico de acumulação se identifica, pois, pela ascensão, apogeu e crise de uma conformação histórica de mobilização do capital e do trabalho, de regulação política da acumulação capitalista. Por exemplo, a produção fordista, a integração vertical de empresas transnacionais e mediação coletiva entre capital e trabalho pelo estado são características nucleares do ciclo sistêmico liderado pelos Estados Unidos no “longo século XX”. Novamente, isso não quer dizer que a produção fordista foi “universalizada” em todo o sistema durante esse período, o que seria um absurdo mesmo para a economia estadunidense, mas sim que essa ponta dinâmica passou a mobilizar lucros extraordinários que assentaram trilhos para uma expansão econômica, obviamente desigual e combinada, em escala sistêmica. O fordismo estadunidense não está só na Detroit dos anos 1920: ele põe em conexão o trabalho forçado nas seringueiras da Amazônia, o café cultivado por semiproletários rurais na Meseta Central da Costa Rica, a ditadura petroleira de Juan Vicente Gómez na Venezuela, o Plano Marshall na Europa e a invenção do consumismo de massas pelas agências de 96 publicidade em Manhattan. Nessa acepção, que sugere um feixe expansivo de cadeias mundiais de valor, refere-se ao ciclo de acumulação como sistêmico. Passando ao ponto (2), a teoria discerne três fases fundamentais em um ciclo hegemônico (ver gráfico 2.1). A primeira fase diz respeito a uma vantagem desenvolvida na esfera da produção, cujas oportunidades de ganho atraem o capital circulante nas finanças mundiais. Essa vantagem é territorializada no sentido em que é garantida por uma aliança concreta entre capitalistas e estadistas no centro emergente do sistema. Sua decolagem, contudo, oferece perspectiva de complementaridade produtiva através de uma nova divisão internacional do trabalho. O novo ciclo vai se delineando quando esse padrão emergente de acumulação produtiva se combina com o apaziguamento da beligerância interestatal e da contestação social. Em sentido gramsciano, a potência hegemônica então faz universal seu interesse particular pela estabilização da nova ordem, gerindo politicamente as raízes da turbulência global precedente. Gráfico 2.1. Etapas do ciclo hegemônico segundo Arrighi e Silver (2001) Fonte: ARRIGHI & SILVER, 2001: 19. Enquanto ordem política singular, o estado hegemônico emergente se apresenta como via exemplar de resolução de conflitos e de prosperidade material, pelo que 97 atrai os demais estadistas e capitalistas para sua órbita política, para sua via de desenvolvimento, para seu imaginário de ordem. Com a decolagem da produção fordista, essa posição foi sendo ocupada na primeira metade do século XX pelos Estados Unidos, cujo dinamismo econômico parecia superar as contradições de classe que haviam engolfado a Europa. Antes disso, foi ocupada pela Inglaterra em industrialização durante a Era das Revoluções, que parecia assentar as aspirações de liberdade, igualdade e razão como uma via de progresso material. No ciclo anterior, foi ocupada pelas Províncias Unidas dos Países Baixos e suas companhias de comércio, cujo ecumenismo instrumental oferecia um horizonte de futuro em pleno apogeu das guerras religiosas europeias entre 1618-1648. O segundo momento corresponde ao zênite do ciclo como expansão econômica mundial, que culmina tendências de extroversão espacial e relativa liberalização econômica. A potência hegemônica transfere sua supremacia da produção para o comércio, orquestrando, à força quando necessário, uma divisão internacional do trabalho que oferece aos agentes margens de complementaridade sobre a competição. Ao proporcionar certos alicerces para a economia mundial, como uma referência de valor, uma praça de crédito, canais logísticos, difusão de tecnologia ou uma força armada para abrir comércio e pagar dívidas, a potência hegemônica capitaneia uma governabilidade provisória ao sistema ao redor de seus próprios interesses estabelecidos. Essa janela de crescimento material generalizado tende a proporcionar um período de estabilidade, o que decididamente não é o mesmo que paz. Especialmente nas margens coloniais, periféricas e rurais, o impulso à extroversão espacial se realiza como brutal processo de desenraizamento humano, negação de soberania e inserção subordinada nas cadeias mundiais de valor. Para elites políticas nas periferias, as oportunidades de associação dependente à economia mundial se reforçam em sua expansão, alavancando um desenvolvimento em que “se desenvolve tudo o que é dependente e se elimina ou estanca o que é independente” (CASANOVA, 2006: 229). É possível distinguir essas janelas de governabilidade provisória nos períodos entre 1846-1873, sob liderança britânica, e entre 1945-1973, sob liderança dos EUA; com menos nitidez um processo análogo ocorre após 1648 sob a batuta holandesa. Entretanto, esse zênite hegemônico tende a produzir contratendências que corroem suas bases. No centro do sistema, as condições econômicas favoráveis funcionam 98 como uma incubadora para competidores emergentes, que desafiam o predomínio da potência hegemônica na esfera da produção e do comércio. Através da emulação e de novos contramercados, eles vão congestionando o controle sobre as cadeias mundiais de valor. O acirramento da competição sistêmica enxuga a margem de complementaridade e, consequentemente, vai solapando as bases da liberalização precedente. Na forma de protecionismo, mercantilismo ou nacionalismo, as vantagens competitivas sobrepujam as vantagens comparativas: a reprodução ampliada no ciclo extrativo-coercitivo tende à encarniçada soma-zero. A supremacia da hegemonia declinante se transfere, então, para o mundo das finanças, que adquire ímpeto e atratividade. O enorme excedente acumulado ao longo do ciclo não encontra canais amplos o suficiente para reinvestimento na produção, inflando a massa de capital circulante que lucra sobre si mesmo. Essa financeirização assegura opulência e poder à hegemonia em declínio, mas sinaliza, na expressão de Braudel, o “sinal do outono” de sua posição mundial. Enquanto isso, entre os novos competidores vão se gestando estratégias de acumulação capitalista que sinalizam tendências de desenvolvimento do próximo ciclo. Saturado como liquidez financeira, o capital migra silenciosamente para os novos polos dinâmicos na produção, como o capital holandês se transferiu para Londres na primeira metade do século XVIII para financiar a revolução industrial, e o inglês para os EUA na segunda metade do século XIX para construir ferrovias e bancos. Gráfico 2.2. O “longo século XIX” como ciclo hegemônico mundial Fonte: Elaboração própria. 99 Como observou Arrighi (2009), o movimento do ciclo se assemelha ao esquema de acumulação de Marx: um momento inicial de capital abundante na forma dinheiro (D) se converte à produção material de mercadorias (M), que produzem uma expansão material (M + m). Ao saturar-se, essa expansão culmina em uma fase final de liquidez financeira aumentada (D + D’). Nesse sentido, a financeirização da hegemonia declinante se conjuga com a incipiente vantagem produtiva da hegemonia ascendente, um ciclo longo começa sem que o anterior tenha se dissipado – por isso a agenda de pesquisa trata de transições hegemônicas mundiais. O que nos leva ao ponto (3), sobre o caráter dos momentos críticos de caos sistêmico. Uma crise hegemônica se desencadeia quando a governabilidade provisória é irreversivelmente ultrapassada pelas pressões competitivas do sistema mundial, isto é, quando o encadeamento de inúmeras decisões estratégicas no contexto dessa competição produz um “ponto de não-retorno”. Conforme se sufocam as condições de acumulação capitalista e de reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, a beligerância interestatal e a contestação social espiralam. Sem dúvida, a projeção espaço-temporal de uma ordem política concreta se refere ao estado que a governa, então não há, nos termos do capítulo anterior, uma “ordem política mundial” em sentido literal. No entanto, percebemos como a decolagem de um ciclo sistêmico de acumulação logra, mesmo que em uma conjunção efêmera, proporcionar alguma governabilidade ao sistema, injetando combustível no ciclo extrativo-coercitivo dos estados que o compõem. A disponibilidade desses recursos para barganhar tende a solidificar a ordem política vigente, arraigando seus procedimentos, suas hierarquias e suas elites. Ainda que isso sabidamente não se produza de forma uniforme ou síncrona em todos os lados, a expansão material liderada por uma hegemonia mundial alimenta uma tendência de arrefecimento da agonística da ordem nos estados individuais. Além da expansão material, o próprio sucesso testemunhado por essa via de desenvolvimento afunila as controvérsias sobre o que é desejável, necessário e impensável para a política. No reverso, consequentemente, o declínio e a crise desse ciclo hegemônico fazem aflorar mais agudos os conflitos. Ainda que não se possa falar em uma ordem política na escala do sistema, a crise produz um abalo sistêmico aos alicerces sobre os quais os estados individualmente se amparam, com consequências largamente 100 contingentes. Nesse sentido, a desestabilização da ordem ocorre também como uma “reação em cadeia”, e não como regularidade síncrona de histórias nacionais. O acirramento da rivalidade interestatal e intercapitalista pressiona os governantes a aumentar a constrição social do ciclo extrativo-coercitivo, levando-o eventualmente ao limite de sua ruptura. Esse quadro geral servirá de referência para observarmos as duas conjunções críticas que balizam o “longo século XIX”, nos capítulos 4 e 7. Há dois aspectos importantes para sublinhar aqui com relação à contingência: em primeiro lugar, por mais que possa parecer claro aos nossos olhos no presente, não esteve dado de antemão qual das potências emergentes iria capitanear, em meio à crise, uma reorganização do sistema e de que forma. Não há um critério formal de eficiência para arbitrá-lo, mas somente o acidentado percurso da rivalidade ascendente, no qual há emulação institucional e técnica, a névoa da guerra, disrupções revolucionárias, erros estratégicos e vantagens meramente contingentes. O formato da sinergia entre estado e capital que emerge hegemônica da crise não foi previamente projetada nem solidificada, mas define seus contornos últimos na própria convulsão sistêmica da qual é parte. Consequentemente, o “caos sistêmico” é uma conjunção crítica não só porque o novo ciclo sistêmico de acumulação emerge dos escombros do anterior, mas porque, no turbilhão em que isso ocorre, afirma-se politicamente um horizonte hegemônico do que venha a ser uma sociedade bem ordenada. O segundo aspecto pelo qual convém sublinhar a importância da contingência é que a crise sistêmica favorece uma dilatação do horizonte de expectativas históricas, aliviando, por assim dizer, o peso do passado sobre o presente. O abalo das hierarquias e procedimentos institucionais rotinizados se corrobora com a pressão sobre as linhas de inclusão e exclusão da ordem política, fazendo-as mais maleáveis. Não se trata, por isso, de uma intensificação da contestação social ou da beligerância interestatal simplesmente, mas de seu desenvolvimento em direções até então desconhecidas e imprevisíveis. A conjunção crítica é um ponto privilegiado para observar a emergência de projetos alternativos de ordem política e sua confrontação contingente, a densidade associativa de subjetividades políticas até então inexistentes, a polarização posta na linguagem com que a política é feita, as pressões sociais sobre a seletividade prática do ciclo extrativo-coercitivo. Em uma palavra, a agonística da ordem se acelera. 101 2.4. Expansão e formação de um sistema em movimento Cristóvão Colombo acreditava que sua expedição em 1492 poderia contribuir para a libertação das cidades sagradas pelos reis católicos. Supunha que a Terra fosse do formato aproximado de uma pera, com o Eldorado ao topo, e que suas viagens desbravavam uma quarta península do continente asiático, a leste do Vietnam. Seus marinheiros, que se rebelaram contra aquela viagem suicida à borda do mundo, estavam presumivelmente ainda mais desorientados. Os navegantes portugueses atraídos pela opulência do reino cristão de Preste João acabaram por atingir em cheio as rotas comerciais do Índico. O fato de que nenhum deles não tivesse então dimensão nem compreensão acurada do que estava acontecendo não os impediu de tomar parte no que são possivelmente os eventos mais decisivos para a conformação do sistema mundial moderno. De forma geral, a narrativa sobre grandes escalas de análise às vezes dá a impressão de que a atuação humana é mecânica, irrelevante ou pré-determinada. Seria insuportável e um pouco protocolar, por outro lado, reafirmar em todas as frases a importância da incerteza, de decisões mal informadas, de oportunidades políticas específicas, de emoções, de valores compartilhados e de consequências imprevistas para a tessitura do emaranhado de ações envolvidas. Ao postular que existe uma escala mais ampla para analisar a construção da ordem, o objetivo foi mostrar que é possível discernir processos nessa escala que são efetivos e relevantes para aquele propósito, e não abarcar toda a complexidade vivida em seu desenrolar. Pelo que foi dito até aqui, a formação e a expansão do sistema se fazem em um mesmo movimento, de modo que nem a formação é precedente no tempo, nem a expansão é subsequente no espaço. “As Américas não foram incorporadas a uma economia mundo capitalista pré-existente”, diz o célebre artigo de Aníbal Quijano e Immanuel Wallerstein (1992: 549), pelo simples fato de que “não poderia ter havido uma economia mundo capitalista sem as Américas”. Nesse sentido, ao buscar a lógica expansiva própria ao sistema, atingimos as sinergias contingentes que vinculam estadistas e capitalistas, o terreno de estímulos e induções recíprocas entre a acumulação de capital e a territorialização do excedente via fiscalidade. Nas margens, por assim dizer, da troca de equivalentes no mercado, onde a força de trabalho é disposta como mercadoria e os lucros são achatados pela concorrência, a articulação 102 entre violência organizada e acumulação de capital pavimenta vias de expansão do sistema, seja pela estratificação da força de trabalho, seja pelo agenciamento de estado a frações capitalistas específicas. A acumulação primitiva se torna permanente na medida em que a violência organizada não é um estágio prévio à acumulação capitalista, em vias de dissipar-se; ao contrário, sua configuração mesma vai sendo reinventada na trajetória. Um olhar ao sistema mundial desde as margens precisa, então, conjugar uma leitura do princípio de soberania a partir de suas práticas de negação com um olhar sobre o capitalismo a partir dos bastidores violentos de sua expansão. Isso coloca o colonialismo e o imperialismo no núcleo de uma sociologia histórica desse sistema. Também descarta a tautologia do nacionalismo metodológico, que encerra a escala na jurisdição empírica de um estado cuja formação é o próprio objeto da análise. Mais do que isso, permite enquadrar a reprodução do ciclo extrativo-coercitivo nas oportunidades e assimetrias postas pela economia mundo capitalista: como o próprio Tilly (1990) notou, mas só nos limites da Europa, é profundamente diferente a autoconstrução de estado em uma paisagem econômica rural e senhorial, como eram a Rússia ou a Polônia, e em contexto altamente capitalizado e mercantil, como em Veneza ou nas Províncias Unidas. Como dissemos ao princípio, é difícil praticar sociologia histórica na América Latina sem alguma projeção, mesmo que intuitiva ou subliminar, a respeito de um espaço alargado no qual ela se insere, como o “mundo”, o “capitalismo”, a “modernidade”, o “sistema”, a “estrutura”. Recorremos aos estudos sobre sistemas mundiais para conferir mais rigor a essa escala. Isso não significa assumir necessariamente uma causalidade estrutural invariável, nem presumir um sistema fechado, nem subsumir a disputa política aos interesses de classe, nem subscrever, por vias tortas, o excepcionalismo europeu – críticas essas que já foram postas em outros contextos48. Embora o diálogo entre a historiografia “mundial” e a abordagem dos A crítica ao eurocentrismo de Wallerstein foi posta de forma contundente por Janet Abu-Lughod (1989) e recentemente retomada por Bhambra (2007). Salvo melhor juízo, a resposta de Wallerstein (1997) acaba por dar ainda mais razão às críticas, uma vez que reitera o excepcionalismo europeu com sinal invertido. Já em termos explicativos, a teoria dos sistemas-mundo foi criticada por Skocpol (1981) principalmente pelo mecanicismo causal com que a política seria determinada pela economia, e esta por posições estruturais no sistema, regido por uma lógica rígida e perene. O argumento sobre a “incorporação” ao sistema mundial, particularmente importante para o Terceiro Mundo, é fortemente determinista na adequação das estruturas políticas às exigências da economia mundo (WALLERSTEIN, 1984: cap. 8; 1988: cap. 3). 48 103 sistemas mundiais ainda esteja por amadurecer49, é um terreno promissor para a renovação da sociologia histórica contemporânea. Em alguns aspectos cruciais, a trilogia de Giovanni Arrighi e seu círculo de colaboradores representou um salto qualitativo para essa agenda de pesquisa. Ao invés da rigidez astronômica do sistema mundial de Wallerstein, abrem-se momentos críticos de redefinição da escala, da regulação e da localização da acumulação capitalista. Ao invés de imperativos estruturais de sobrevivência do sistema, essa redefinição se faz por obra de sinergias inovadoras entre capital e coerção, que sobressaem da competição interestatal e articulam-se com estratégias de apaziguamento do conflito social e interestatal. Nesse contexto, a potência hegemônica adquire o aspecto de um “bloco histórico” emergente, galvanizando certas aspirações epocais a uma organização política concreta. A dinâmica expansiva do sistema mundial pode ser então situada na matriz que conecta ciclos sistêmicos de acumulação às hegemonias mundiais. Ao invés de uma repetição ou circularidade histórica, constitui-se uma trajetória longa pontuada por conjunções críticas de redefinição sistêmica, cujos protagonistas, inovações e continuidades podem inclusive ser objeto de pesquisa comparativa. Sobre a constituição de uma perspectiva mundial na historiografia como construção de realidade, ver Conrad (2016: cap. 8). 49 104 3. ESTADOS LATINO-AMERICANOS, EUROCENTRISMO E SEUS IMPASSES “A História é uma estória que os entusiastas da cultura ocidental contam uns aos outros”50 Donna Haraway "A primeira vez que os navios rasgaram as águas do Nilo, vieram carregados de canhões, não de pão, e as ferrovias foram construídas, na verdade, para transportar tropas. Ergueram escolas para nos ensinar a dizer 'sim' em sua língua"51 Tayeb Salih “As forças principais que capacitaram as pessoas de cor para afirmar que são iguais foram as ideias e técnicas que as potências europeias disseminaram por todo o mundo” (CROSSMAN, 1987: 351). Com essa constatação, Richard Crossman (1907-1974), outrora importante intelectual do Partido Trabalhista britânico, parecia justificar a ausência de todo o mundo fora da Europa e dos Estados Unidos em sua “história das ideias políticas e da prática política” nos últimos quinhentos anos. Ela percorre o caminho habitual: a Renascença e Maquiavel, o absolutismo, a Revolução Inglesa e Hobbes, a Revolução nos Estados Unidos e Os Federalistas, a França revolucionária e o Iluminismo, a Alemanha do romantismo ao nazismo, o comunismo de Marx à URSS. A irrelevância do resto do mundo para a “biografia do estado moderno”, título que o livro recebeu em espanhol, contrasta com a precocidade assombrosa das certas sociedades europeias: ele identifica, por exemplo, traços de um estado-nação na Inglaterra já por volta do ano 1100 (CROSSMAN, 1987: 56). Embora intrigante, o argumento de Crossman está longe de ser uma exceção. Para o medievalista norte-americano Joseph Strayer, “o estado moderno, onde quer que o encontremos hoje, é baseado em um padrão que emergiu na Europa entre o período 1100 e 1600” (STRAYER, 1973: 12). A mesma ênfase no Medievo tardio para o surgimento de estados nacionais reaparece na ambiciosa obra de Michael Mann, que por volta de 1000 d.C. já converte a Europa na ponta líder (leading edge) de sua 50 Extraído de Haraway (1995: 10-11). 51 Extraído de Salih (2018: 95). 105 história mundial (MANN, 1986: cap. 12-14). A narrativa de Martin Van Creveld (2004) sobre o surgimento, apogeu e crise dos estados modernos deixa a mesma impressão: o resto do mundo aparece muito recentemente como um apêndice do desenvolvimento da história ocidental. É até irônico que os estados africanos e latino-americanos ajudem a compor o quadro da crise histórica do estado sem terem participado efetivamente de seu desenvolvimento. Quando o historiador Adam Watson, por seu turno, concebe a ideia de uma “sociedade internacional” como modulação cultural da beligerância irrestrita e calculista entre os estados, esta emerge nos círculos diplomáticos da Europa Ocidental cristã para em seguida “universalizar-se” por meio da expansão colonial. “Portanto, dentro da estrutura de dependência externa”, comenta Watson sobre as Américas como um todo, “os colonizadores europeus desenvolveram uma crescente capacidade de administrar seus assuntos, e adquiriram a experiência de governo necessária para a inclusão na sociedade internacional europeia quando a hora chegasse” (WATSON, 1992: 221). Os europeus não só são inventores e protagonistas da história universal como também tem a capacidade de ativá-la no resto do mundo conforme o controlam. Como ritual de iniciação, qualquer estudante interessado em sociologia dos estados modernos será invariavelmente submerso em referências europeias. Desafiado a ler Pierre Bourdieu, Perry Anderson, Max Weber ou Norbert Elias, sua iniciação teórica se faz por intermédio de instituições, narrativas e modelos referenciados nessa península ocidental da Eurásia. Enquanto tal, o longo percurso da Antiguidade greco-romana e do feudalismo à modernidade atinge o estatuto de passado comum de toda a humanidade, de linha de imaginação histórica universal (GOODY, 2006: cap. 2, 3 e 11). Essa “ignorância assimétrica”, como chamou Gyan Prakash, tem consequências teóricas: a política moderna na Europa se confunde com a própria teoria, enquanto que o resto do mundo tem nela um “referente silencioso” obrigatório (PRAKASH, 1994: 1484). A posição de importação e consumo de teoria oriunda de um núcleo autorreferenciado projeta uma relação assimétrica no campo do conhecimento, aparentando as periferias do sistema-mundo com as periferias da produção de conhecimento. O interesse pelas experiências coloniais e pós-coloniais na América Latina, partindo dessa formação teórica encerrada na Europa, colocou o eurocentrismo na rota desta pesquisa desde seus primeiros momentos. O amadurecimento de respostas, no 106 entanto, tomou um longo percurso, que, por limitação de espaço e foco, não será transposto inteiramente para esse capítulo. Restringindo especificamente ao problema da tese, a primeira constatação importante é que a maré de críticas ao eurocentrismo nos últimos quarenta anos repercutiu de forma relativamente diminuta na agenda de pesquisa sobre formação histórica dos estados modernos, bem como na Ciência Política de forma geral (CHANDRA, 2013). Embora argumentos importantes tenham sido levantados por Bhambra (2016), Cooper (2005), Bayly (2004: cap. 7) e Quijano (2000), sua repercussão foi epidérmica frente ao que é o conhecimento estabelecido sobre o tema, assentado sobre a premissa de que a política moderna tem uma origem endógena, independente e pioneira na Europa Ocidental. A segunda constatação importante é que o eurocentrismo não é uma distorção intelectual artificial, um erro que possamos simplesmente corrigir. Ele se constituiu historicamente pela reflexividade imperial de um mundo que “eurocentrou-se” por meio da expansão colonial europeia, reflexividade que se alimentou dessa expansão, buscou compreendê-la e concorreu a legitimá-la. Nesse sentido, a crise do eurocentrismo como visão de mundo é inseparável da obsolescência do mundo eurocentrado que o engendrou (ver capítulo 7). No último século, as lutas de libertação nacional, os movimentos antirracistas e o terceiro-mundismo fustigaram na raiz a plausibilidade da visão eurocêntrica de progresso. A decolagem econômica do Leste Asiático nos últimos cinquenta anos desafia na prática as premissas excepcionalistas e orientalistas da prosperidade ocidental, especialmente diante de seu declínio relativo. A própria consciência crítica de que existe “eurocentrismo” em nossa forma de pensar já revela o gatilho do processo pelo qual ele obsolete. Das fissuras do pensamento eurocêntrico abrem-se esforços por reaver a agência, a criatividade e a autonomia dos povos até então “sem história”, revolver os silêncios históricos impostos pela dominação ocidental (BHAMBRA, 2007, 2014; TROUILLOT, 1995; WOLF, 1982). Desvela-se igualmente um debate sobre as consequências teóricas, institucionais e éticas de fazê-lo (KNOBL, 2016). Nesse sentido, a crítica do eurocentrismo é um movimento em curso, uma contraposição tomada frente ao “modelo de mundo do colonizador” (BLAUT, 1993). A razão do argumento é que parece ilusória a expectativa de pensar uma teoria política isenta de eurocentrismo, como se fosse possível neutralizar, por um movimento interno à consciência, o peso da história sobre as condições de produção do conhecimento. Ao 107 invés de aspirá-la sem eurocentrismo, é mais consequente elaborá-la contra ele, como uma forma de construção crítica52. Isso dito, não há evidentemente um consenso sobre como fazê-lo. A proposta que exploraremos neste capítulo não aposta em um programa paroquialista de substituição de importações intelectuais (ver, para um extremo, CERVO, 2008). Tampouco se acredita, seguindo a exposição já feita por Gurminder Bhambra (2014), que o pensamento eurocêntrico se desintegraria pelo simples acréscimo de pensadores não-ocidentais ao cânone acadêmico, diluindo-o por “igualdade putativa” em uma sociologia política “global”. Da mesma forma, simplesmente incluir casos não-ocidentais no radar da análise não significa que ela deixa de ser eurocêntrica, como as teorias da modernização não deixam dúvida. É preciso enfatizar que as histórias e saberes periféricos têm um potencial de subversão semântica diante do conhecimento eurocêntrico que lhes marginalizou, o que não se resume à agregação multicultural (BHAMBRA, 2014). Um caso ilustrativo do ponto é o do filósofo Enrique Dussel (2005) em sua polêmica sobre o conceito de modernidade. A ideia até hoje corrente de que esta representaria “uma emancipação, uma ‘saída’ da imaturidade por um esforço da razão como processo crítico” constitui, para ele, um conceito “eurocêntrico, provinciano, regional” da mesma (DUSSEL, 2005: 28). Não parece casual o deslizamento de eurocêntrico a provinciano na mesma frase. Vista da América Latina, a modernidade é fundada sobre uma dimensão sacrificial e colonial, que sublinha a razão do ego conquiro (eu conquisto) um século antes ao ego cogito (eu penso) cartesiano: “a conquista do México foi o primeiro âmbito do ego moderno” (DUSSEL, 2005: 30). Em outras palavras, não é possível reduzir a modernidade a um projeto de emancipação universal uma vez feita a crítica ao eurocentrismo desse projeto. Não é possível acrescentar a modernidade na América Latina à modernidade em geral sem subverter o significado mesmo do termo. Neste capítulo, iremos nos aproximar da literatura de sociologia histórica sobre os estados modernos, com ênfase na América Latina, imbuídos do propósito de uma 52 Na síntese de Bhambra: “O eurocentrismo é a crença, implícita ou não, da significância histórica mundial de eventos que se desenvolveram supostamente de forma endógena dentro da esfera cultural-geográfica da Europa. Ao contestar o eurocentrismo, contesto o ‘fato’ da ‘singularidade da Europa’ – tanto em termos de sua cultura e de seus eventos; o ‘fato’ do desenvolvimento autônomo de eventos, conceitos e paradigmas; e, finalmente, o ‘fato’ da Europa mesma como uma entidade coesa e limitada dando forma ao que disse acima” (BHAMBRA, 2007: 05). 108 crítica consequente ao eurocentrismo no campo. Implicitamente, as ferramentas para fazê-lo já foram sendo dispostas nos dois capítulos anteriores. Na contraposição ao imaginário eurocêntrico de uma Europa moderna de estados-nação soberanos como um sistema fechado, será necessário lembrar, por exemplo, que o princípio da soberania é historicamente refratado pela regra da diferença colonial, que o pertencimento político sempre traça linhas práticas de inclusão e exclusão, que a vigência de uma ordem política não é o contrário do caos, da mera ausência de ordem. Culminando o movimento que fizemos contra os raciocínios ideal-típicos nos capítulos anteriores, a construção histórica da ordem política na América Latina não pode ser atrasada, incompleta nem desviante com relação à modernidade enquanto tal, abstraída de uma Europa desconectada e reificada. Pensados a partir de suas conexões mundiais, os estados latino-americanos durante o longo século XIX podem ser analisados como “estados pós-coloniais” e “estados na periferia”, enquanto posições em processos sistêmicos desiguais como o colonialismo e o capitalismo. Esse será o ponto de chegada do capítulo, que prepara a próxima parte da tese. Se temos claro conceitualmente o que é um ciclo extrativo-coercitivo, podemos investigar quais as consequências de mobilizá-lo no “núcleo orgânico” do capitalismo e em suas periferias, no ápice do ciclo sistêmico de acumulação ou em sua crise. Não há um sistema de estados como constante ambiental, mas fundamentalmente dinâmicas desiguais que estabelecem posições relativas na expansão desse sistema. Se bem encaminhada, a crítica ao nacionalismo metodológico se consubstancia a uma crítica ao eurocentrismo. 3.1. Estados modernos e “uma Europa que se autointerpreta” A mobilização em massa das tropas napoleônicas sob os lemas revolucionários é possivelmente a imagem mais vívida do alvorecer do moderno estado-nação, ribombando sob uma carcomida Europa feudal e dinástica. Dos escombros da guerra e da revolução, erguera-se uma máquina militar cuja vantagem decisiva era o apelo igualitário aos cidadãos, armados em defesa da pátria. O governo da razão adquire também um inédito apelo popular, heroico e épico. Reinventando a relação entre a política e a guerra, o levée en masse francês torna obsoleto o Antigo Regime no continente, do racionalismo aristocrático prussiano ao monarquismo neoescolástico 109 ibérico. Por trás do brilhante general, que ascendera na hierarquia militar por suas conquistas, jazia uma nação em armas como vontade soberana, despida da arquitetura gótica de estamentos, corpos intermediários, privilégios e superstições. Um novo Código Civil instituíra um mundo jurídico de livres contratos, propriedade inalienável e cidadania igualitária; não obstante a derrota napoleônica, seu desígnio constitucional serviria de modelo ao mundo moderno. Ao som da Marselhesa ou da Eroica de Beethoven ao fundo, a modernidade política insinuava-se pujante no palco da história. O único problema dessa vívida imagem é que ela abdica, em nome da coerência interna, de importantes laços com a realidade que quer retratar. Observemos por um momento essas nuances. A mobilização em massa em nome da pátria ameaçada, em verdade, havia deslanchado no período jacobino e logo se esgotado: já em 1798 fora instituído o recrutamento forçado de soldados. No período das guerras napoleônicas, o exército fora largamente mobilizado em movimento nos próprios territórios conquistados, uma das muitas inspirações do general corso em Júlio César. O resultado era uma força multinacional de inúmeras línguas, procedências e etnias. Mais do que uma força de cidadãos franceses, a fisionomia do exército napoleônico era imperial. Como disse Frederick Cooper, “a ideia que o sentimento nacional significava que jovens iriam voluntariamente morrer por seu país pode ser convincente para os acadêmicos do século XX, mas era insuficiente para os líderes pós-revolucionários” (COOPER, 2005: 168). A resistência ao recrutamento forçado era violenta no que fora a França monárquica tanto quanto nos territórios recém conquistados. Mais do que isso, o espaço político forjado pelas vitórias francesas estava longe do que convencionalmente se supõe a forma essencial da política moderna, um estado-nação. Em determinados contextos, como em Nápoles ou na Espanha, os franceses governaram por linhas dinásticas instituídas desde a própria família de Napoleão. Em muitos outros, as tropas napoleônicas carregaram consigo o estandarte republicano, instaurando regimes vassalos de Paris, como as repúblicas Liguriana, Transalpina e Helvética. No mundo germânico, onde a autoridade claudicante do Império é definitivamente destruída, os invasores mantiveram um regime de ocupação. O nacionalismo que emerge ali, tal qual na Espanha, não é despertado pela chegada das tropas revolucionárias, mas se forma justamente contra essa ocupação, estrangeira e imperial. Os horizontes de uma nação republicana de cidadãos livres, por um lado, e 110 de um império territorial diferenciado e hierárquico, por outro, estão envolvidos no mesmo processo. Ainda assim, a própria imagem de uma população unificada por um imaginário nacional está sabidamente distante do que de fato existia à época da Revolução, quando sequer se compartilhava uma mesma língua no território metropolitano francês. A outorga do Código Civil napoleônico ocorreu poucos meses após a derrota da expedição militar a Santo Domingo de 1803, em que tropas multinacionais, sob liderança do cunhado de Napoleão, atravessaram o Atlântico com a missão de restaurar a ordem escravocrata na colônia caribenha. Com efeito, a insurreição dos jacobinos negros liderados por Toussaint L’Ouverture triunfara na década anterior e proclamara uma nova constituição para a colônia que assegurava que “todos os homens nela nascem, vivem e morrem livres e franceses” (BLACKBURN, 2006: 647). Ao derrotar a expedição militar de 1803, que lhes negava a possibilidade de serem franceses e livres ao mesmo tempo, os ex-escravos declararam a independência e fundaram a República do Haiti em 1804. Mas não era somente do outro lado do oceano que a escravidão assombrava a cidadania instaurada pelo Código Civil. Uma de suas invenções fora formalizar o casamento civil como um contrato de propriedade da mulher pelo marido, o que circunscrevia a cidadania moderna aos homens proprietários. “Libertem os últimos escravos que ainda existem na sociedade francesa”, arrematava a socialista Flora Tristán na década de 1840: “proclamem os direitos da mulher” (TRISTAN, 2015: 130). Ao fim e ao cabo, o processo revolucionário francês enseja muito mais paradoxos e desajustes que a imagem laudatória de modernidade política que nele se inspira. O problema do eurocentrismo não é simplesmente que só a experiência da França ou da Inglaterra é levada em conta ao se conceitualizar nação, cidadania ou estado, porque mesmo essa experiência é eventualmente podada de suas contradições e conexões externas (KNOBL, 2013). A ironia é que muitos intelectuais periféricos, para mostrar a artificialidade dos conceitos hegemônicos diante de suas realidades, ratificaram implicitamente essa imagem homogênea e idealizada do que seria o Ocidente ou a Modernidade. Em um sentido profundo, o eurocentrismo mistura e confunde três matérias-primas: as experiências históricas da Europa e dos Estados Unidos, a história do pensamento social e político ocidental e os termos gerais que empregamos no debate sobre teoria e metodologia das ciências sociais. Ao liquidificar 111 isso tudo, forja-se também uma coerência retrospectiva da história europeia, normalizada pelos conceitos universais que presumem a modernidade como ruptura da história, como emancipação humana. A sociologia histórica dos estados modernos na Europa possui três vertentes majoritárias, talvez quatro. A primeira finca pé nas bases ideológicas de sustentação do poder político, rastreando o deslocamento da legitimidade baseada na tradição monárquica para a outra, em que a obediência civil se funde a modulações da ideia de soberania popular (BENDIX, 1980). A segunda dá prioridade à mobilização para a guerra como gatilho não-intencionado para o governo direto, para a burocratização do estado e para a barganha por direitos cidadãos (TILLY, 1990). Ao contrário destas, ambas de inspiração weberiana, a terceira coloca a classe social como principal eixo da explicação, de modo que as formas políticas modernas seriam inseparáveis da ascensão da burguesia e, portanto, da passagem do feudalismo para o capitalismo (WALLERSTEIN, 1984). A quarta, que poderíamos acrescentar, deriva das obras tardias de Michel Foucault (2005; 2008) sobre biopolítica e o surgimento da governamentalidade como saber e prática de gestão de populações pelo estado moderno, especialmente nos séculos XVII e XVIII. Não obstante suas diferenças e méritos, elas comungam a premissa de que o processo tem um fundamento circunscrito à própria Europa, ao mesmo tempo singular, dinâmica e endógena. Desses textos canônicos, as perguntas postas ao resto do mundo dizem respeito à difusão empírica da política moderna, como quer que ela seja definida: quando se instaura um governo propriamente burguês? Quando se produz a nacionalização do estado? Quando se atinge a cidadania? As perguntas de tipo “quando” são substituídas pelas de “por que” somente na medida em que se encontram obstáculos e defasagens na aterrissagem daquelas instituições, dando vazão a hiatos culturais, históricos ou econômicos que explicam a inadequação. Em síntese, como na narrativa sobre Napoleão, o resto do mundo é irrelevante para a gênese da política moderna, ao passo que a política moderna no resto do mundo não pode ser contada sem sua gênese na Europa Ocidental. Como antecipamos na apresentação do capítulo, o eurocentrismo é uma expressão do colonialismo moderno no campo do conhecimento. No quinto centenário da viagem de Colombo, Dussel fez questão de sublinhar como, ao desvelar pela primeira vez o globo terrestre, a conquista colonial tivera repercussões 112 epistemológicas, articulando a releitura do mundo “desde uma Europa que se autointerpreta, também pela primeira vez, como ‘Centro’ do acontecer humano em geral, e, portanto, lança seu horizonte particular como universal” (DUSSEL, 1992: 36). Essa reflexividade imperial oferece um gabarito da história mundial como difusão progressiva, como irradiação, como desdobramento do que ocorre em seu núcleo original. A coerência retrospectiva da história europeia, antes referida, é implicitamente assentada sobre a naturalização de sua superioridade – através da história se resgatam os traços excepcionais dessa civilização que não só lhe alçaram ao domínio mundial, mas que foram transmitidos aos outros povos por meio do colonialismo. Da marcha do progresso até a sociologia do desenvolvimento no século XX, essa geopolítica do conhecimento foi se renovando notavelmente (ESCOBAR, 2007; LEPENIES, 2008). Nunca é demais dizer: toda a conversão tácita da história europeia em história universal tem uma elipse colonial entredita. Em que sentido, então, “provincializar a Europa” pode ser uma agenda propositiva, distinta do relativismo cultural, para a sociologia histórica dos estados modernos? Tentaremos agora pavimentar o caminho para o desenrolar do capítulo. Dito sucintamente, a crítica ao eurocentrismo indica uma necessidade de reverter a compactação tripla entre as experiências históricas ocidentais, as categorias analíticas em geral e a história do pensamento político ocidental. Ao desmembrar esses campos, dividem-se agendas de trabalho independentes mas complementares. Em primeiro lugar, essa descompactação permite restituir o que é contraditório e heterogêneo nas múltiplas narrativas históricas sobre a própria Europa Ocidental e os EUA, uma vez subtraída sua coerência retrospectiva. Se dissociados das definições mesmas de “modernidade”, “democracia” ou “nação”, essas experiências podem ser reavaliadas a partir do que lhe é particular, contingente e contraditório, a exemplo do que comentamos brevemente sobre o Império Francês sob Napoleão. A rigor, a dissonância entre certas expectativas institucionais da modernidade e a realidade vivida não é algo restrito ao mundo não-europeu, que teria importado essas instituições de fora, mas é inseparável dessas expectativas mesmas. Ademais, a descompactação põe em evidência como a naturalização desse cluster regional chamado Europa resulta anacrônica em um contexto histórico de sua expansão imperial continental e ultramarina. Ao invés de reproduzir o “nacionalismo metodológico” em escala continental, “provincializar a Europa” exige observar a 113 florescente renovação historiográfica53 que tem explorado o apagamento dos “povos sem história” durante a expansão capitalista (WOLF, 1982), para a importância das conexões entre dinâmicas em que a Europa não estava no centro (SUBHRAMANYAM, 1997) e para uma perspectiva mundial tecida por essas conexões (BAYLY, 2004). Além de perder um estatuto imediatamente teórico ou normativo, a história europeia deixa de bastar-se em si, adquirindo sentido através de suas interligações mundiais tecidas por processos concretos, ora pela escravidão e pelo comércio, ora pela guerra e pelo genocídio, ora pela sexualidade, pela arte e pela crença religiosa. A criatividade social deixa de emanar de um núcleo para suas margens, mas se produz justamente nas conexões que, ainda que desiguais ou violentas, são recíprocas em seus efeitos (KNOBL, 2016). De outro lado, a descompactação dos conceitos analíticos abre uma segunda linha de trabalho, que tem mais a ver com a reconstrução desses conceitos em uma chave antieurocêntrica. Ela parte da suposição de que a teoria social existente não pode ser nem rechaçada nem aceita uniformemente. Se constatamos que as noções correntes de “cidadania”, “capitalismo” ou “estado-nação” são eurocêntricas porque são modeladas sobre a experiência ocidental e autorreferenciadas no pensamento político ocidental, como essa constatação deve repercutir sobre o conteúdo mesmo desses conceitos? Em outras palavras, como o resgate das experiências subalternas e não-ocidentais nos obriga repensar, situar ou reconstruir os próprios termos do debate? Afinal, é ainda possível falar em “capitalismo” ou “nação” como categorias válidas em geral? Uma saída provisória para esse impasse será trabalhada no final do capítulo, partindo da proposta de Gurminder Bhambra de uma “reconstrução pós-colonial de conceitos” (BHAMBRA, 2007; 2014; 2016). Por fim, a referida descompactação separa as categorias analíticas correntes do domínio vizinho da história do pensamento político e social ocidental, cujo objetivo é compreender a produção e circulação de ideias em seu sentido e contexto histórico. Não é razoável, assim sendo, dizer que Jean Bodin literalmente “inventou” a moderna noção de soberania, que Nicolau Maquiavel plasmou a “razão de estado” como a conhecemos, ou que a concepção teórica de democracia foi estabelecida por James Madison. Se “democracia” ou “soberania” são categorias analíticas importantes para a Referem-se a alguns trabalhos seminais na crítica historiográfica ao eurocentrismo, mas haveria muitos outros por mencionar. Para uma introdução ao tema, vale a consulta ao manual de Sebastian Conrad (2016). 53 114 análise social atual, elas não podem ser a mesma coisa que Madison e Bodin escreveram em seus respectivos horizontes históricos. É razoável recorrer à história das ideias para um debate conceitual, mas não se tomar uma coisa pela outra, assim como não se pode substituir o estudo empírico da política dos Estados Unidos pela leitura d’O Federalista54. Ao separar a história do pensamento político como um domínio próprio, de resto, torna-se evidente a gritante negligência com tudo aquilo que não foi escrito por homens brancos, eruditos e ocidentais. Como programa amplo, “provincializar a Europa” na história intelectual não é só destronar seu cânone de universalidade automática, mas exige uma revalorização consequente, no passado e no presente, da imaginação política produzida fora dos centros. As críticas contemporâneas ao eurocentrismo tem avançado em todas essas direções: resgatar saberes subalternos, reavaliar a história mundial desde suas margens e conexões, rediscutir conceitos supostamente universais a partir de experiências subalternas. Tudo isso tem como contrapartida uma separação entre (1) nossas definições de trabalho sobre um fenômeno (digamos, a “democracia” ou “classe social”), (2) as múltiplas situações concretas observáveis no chamado Ocidente (a classe operária inglesa ou a democracia nos Estados Unidos) e (3) aquilo que o pensamento ocidental consagrado elaborou a respeito desses fenômenos (a obra de Marx ou Tocqueville, mantendo o exemplo). Embora à primeira vista banal, essa separação é uma premissa para pensar o antieurocentrismo para além da denúncia destituinte (BRINGEL & DOMINGUES, 2015). Isso porque, no revés, a descompactação do bloco eurocêntrico abre espaço para reconciliar a história e a teoria social fora do centro, subvertendo a clivagem particularista imposta pelos chamados estudos de área. 3.2. A teoria do estado na América Latina: reiteração e diferença Os Estudos Latino-Americanos se constituíram nos Estados Unidos como uma projeção de alteridade, como uma forma de orientalismo de norte a sul (FERES JR, 2005). Em diversos sentidos, e sem uma direção deliberada para que assim fosse, o Conjunto de artigos de jornal publicados por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay para defender a ratificação da Constituição dos Estados Unidos de 1787. É considerado um texto teórico basilar sobre as noções de freios e contrapesos (checks and balances) e da separação institucional dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário). 54 115 estudo da outra América se fazia em oposição à imagem que se subentendia dos Estados Unidos – moderno, branco, capitalista, secular, racional e individualista. A presunção de que a América Latina encarna uma forma imperfeita da modernidade e da cultura ocidental transcendeu seu contexto original, adquirindo versões mais elegantes na prosa acadêmica. Desde as independências e praticamente sem cessar, a intelectualidade da região lidou com o impasse entre reiteração (a urgência de preencher o hiato que nos separa das sociedades ocidentais modernas) e diferença (a reticência com a importação de modelos exóticos a nossa realidade). Esse dilema talvez seja a expressão mais recorrente de nossa posição periférica, da colonialidade do saber ou do predomínio prático do eurocentrismo como gabarito de inteligibilidade. Como dito na introdução da tese, desenvolvi previamente a ideia de que persistiria certo “viés modernizador” na sociologia histórica dos estados latino-americanos: diante de uma concepção idealizada de estado, afirma-se ausência ou incompletude; diante de uma concepção desenvolvimentista de história, afirma-se a defasagem temporal ou a imunidade à mudança (BORBA, 2014). Reconheço que a discussão sobre o estado na América Latina recebeu bastante mais atenção do que à época eu conhecia, e certamente há muito além do que estou familiarizado hoje. O tema foi alentado sobretudo nos anos 1970 pela preocupação com as ditaduras civil-militares na região, pela efervescência do debate marxista europeu e pelas expectativas de indução estatal nutridas pelo nacional-desenvolvimentismo. Boa parte das figuras centrais do pensamento social latino-americano do período dedicaram pelo menos um trabalho a decifrar teoricamente o que haveria de próprio ao estado e à política na região (CARDOSO, 1977; CASANOVA, 1990; CUEVA, 1980; DILLON SOARES, 1973; EVERS, 1981; FALETTO, 2014; GRACIARENA, 2014; LACLAU & LECHNER, 1981; KAPLAN, 1974; 1996; IANNI, 1988; TORRES RIVAS, 1977; ZAVALETA MERCADO, 1985). Se alargarmos aos aportes sobre colonialismo interno, sobre a colonialidade do poder, sobre plurinacionalidade e sobre a democracia na América Latina, a lista seria infindável. Sendo impraticável condensar aqui uma resenha dessa literatura, que renderia um trabalho paralelo, podemos, ainda assim, reter alguns pontos mínimos sobre aquele momento: (1) existe um debate latino-americano sobre o desenvolvimento da política moderna que não se resume aos preconceitos herdados dos Estudos 116 Latino-Americanos hegemônicos, nem à reiteração do “viés modernizador” com relação aos estados europeus; (2) de forma panorâmica, essa tradição crítica não apostou sua originalidade em um rechaço do pensamento ocidental, à moda de um nativismo epistemológico ou relativismo cultural, mas a um engajamento criativo com essa literatura, estabelecendo afinidades, contrapontos e questões novas. Como nos demais campos, a reflexão latino-americana sobre a política esteve fortemente apoiada no estruturalismo cepalino e no marxismo, ao passo que o funcionalismo, as teorias da modernização e o cientificismo de matriz anglo-saxônica foram sistematicamente objetos de crítica teórica e política (STAVENHAGEN, 1981). O argumento central dessa seção é que essa sociologia crítica latino-americana oferece ainda hoje uma base muito mais promissora para avançar uma crítica ao eurocentrismo do que as correntes que se tornariam dominantes no debate posterior. Sob as críticas usuais de economicismo, determinismo e obsolescência, o pensamento marxista sobre o estado foi gradualmente sendo desalojado nas últimas décadas de sua posição de destaque, e com ele qualquer teoria crítica do estado55. Parte de um movimento mais amplo, a polêmica teórica sobre reiteração e diferença na análise dos estados latino-americanos foi refeita por três novas correntes, que merecem algum esclarecimento. A primeira delas deslanchou nos anos 1990 a partir do trabalho sobre as independências hispano-americanas do historiador François Xavier-Guerra (2000), ele próprio inspirado no revisionismo historiográfico sobre a Revolução Francesa. As reverberações de seu trabalho se alastraram amplamente no estudo da modernidade política na América Latina do século XIX, mas manteremos a ênfase em suas formulações originais56. A prioridade de Xavier-Guerra era destacar o novo ambiente cultural que passa a envolver a política a partir da crise do Antigo Regime em fins do século XVIII, quando referências modernas à nação, à soberania popular e à cidadania adquirem centralidade no debate político. Contrapõe-se, portanto, ao estudo das revoluções por sua dimensão de classe: os protagonistas na emergência da modernidade política eram antes uma classe cultural de intelectuais e publicistas, sem Desde o marxismo, a crítica ao desenvolvimento da análise política dos últimos trinta anos foi feita por Atilio Borón (2003), Agustín Cueva (2015), entre outros. 55 Para alguns dos estudos diretamente inspirados no historiador francês, ver Annino & Guerra (2003), Gouvea (1997), Knobl (2011), Rodríguez (2008), Sá Mader (2008), Uribe-Urán (2006), entre outros. 56 117 correspondência econômica imediata, unificada através do atlântico por seu credo racionalista e republicano. A modernidade, para o autor, deve ser estudada como um projeto ideológico específico, uma concepção, um imaginário radical de refundação social. A crise da monarquia espanhola abriu espaço para que se alterem os termos da linguagem política corrente, até então dominada pelo pactismo neoescolástico e pelo absolutismo doutrinário de inspiração francesa. No transcorrer da crise, a proliferação de publicações e de espaços de debate, como saraus e tertúlias, configurariam uma incipiente esfera pública independente em que autoproclamados cidadãos, despidos de seus qualificativos de status, se valeriam da razão para refazer a constituição do reino. Pela força dos acontecimentos, havia problemas imediatos a resolver em termos de soberania, de representação e de organização constitucional. Nesse contexto, é possível demarcar empiricamente, nos panfletos, opúsculos, periódicos ou discursos que essa elite cultural agita durante a crise, a transição para a linguagem política moderna, em que a soberania popular se deposita em uma nação unificada, composta por cidadãos livres e iguais entre si. Essa abordagem transfere o problema para o campo da história das ideias e prioriza a ação política de elites esclarecidas e letradas. A segunda corrente que adquiriu centralidade no debate histórico-sociológico sobre a política moderna na América Latina tem no sociólogo Miguel Angel Centeno (1997; 2002) seu expoente de maior visibilidade. Herdeiro da macrossociologia weberiana, ele a combina com uma tradição intelectual que remonta pelo menos a Samuel Huntington, que abriu seu livro dizendo, em plena Guerra Fria, que “a mais importante distinção política entre os países diz respeito não à sua forma de governo, mas a seu grau de governo” (HUNTINGTON, 1968: 01). Através de uma leitura peculiar da obra de Charles Tilly, Centeno propôs uma relação causal e recíproca entre o histórico militar da região no século XIX e a debilidade crônica de suas estruturas de governo: guerras intermitentes, internas e limitadas haveriam resultado em instituições políticas mal desenvolvidas, com precário controle sobre a violência, políticas públicas deficientes, baixa coesão territorial e arraigados traços de clientelismo, discriminação e corrupção. Esses estados, porque débeis, teriam menor capacidade e interesse em travar guerras interestatais totais que poderiam, segundo a teoria, render-lhe maiores capacidades fiscais e simbólicas. Essa circularidade negativa explicaria o que há de específico nos 118 estados latino-americanos quando comparados com seus homólogos europeus: o baixo grau de governo, para usar a expressão de Huntington57. Por fim, a terceira interpretação que ascendeu desde os anos 1990 é oriunda da chamada Nova Economia Institucional, tendo como prioridade a relação entre governança política e desenvolvimento econômico (ACEMOGLU & ROBINSON, 2012; DYE, 2008; NORTH, SUMMERHILL & WEINGAST, 2000; NORTH, WALLIS & WEINGAST, 2009). O argumento gira ao redor de um determinado conjunto de instituições – como a garantia de propriedade privada, a imparcialidade procedimental, o pluralismo social e a segurança jurídica – que teriam uma correlação no longo prazo com a performance econômica dos países que as enraízam. A pergunta posta em termos históricos é em que medida essas instituições emergem ou não, que obstáculos elas encontram e como elas explicam comparativamente o sucesso e o fracasso das nações. Com exceções pontuais, a leitura predominante é que na América Latina essas instituições nunca se efetivaram adequadamente, fazendo com que pobreza e falta de democracia se enlacem em um quadro institucional controlado por elites que dele se beneficiam. Esse retrato é emblematicamente construído em oposição aos Estados Unidos, cuja prosperidade é resultado dos incentivos de uma “ordem social aberta” (NORTH, WALLIS & WEINGAST, 2009) ou de “instituições inclusivas” (ACEMOGLU & ROBINSON, 2012). Moldando os incentivos para a acumulação privada, essas instituições políticas se tornam os trilhos do desenvolvimento econômico através da história humana: o liberalismo ressurge como sociologia histórica comparada58. Com efeito, essas três correntes ganharam relevância no bojo da crise do marxismo latino-americano, recalibrando o debate sobre estado e cidadania na América Latina nos últimos trinta anos. A avaliação que desenvolvo a seguir é a de que essas três perspectivas, a seu modo, regrediram em temas centrais da crítica 57 Uma análise mais detida sobre essa corrente pode ser encontrada em Borba (2014: cap. 3) Não se pode dizer que esse ponto de partida não seja explicitado pelos autores. Vide o excerto a seguir, que deixa muito claro o fundo valorativo e o compromisso político postos na análise: “nós entendemos que a boa organização da sociedade corresponde a um conjunto de instituições garantindo que uma ampla e variada parte da sociedade [a broad and cross section of the society] tenha direitos de propriedade efetivos. Referimo-nos a esse conjunto como instituições de propriedade privada, e contrastamo-las com as instituições extrativas, onde a maioria da população vive sob elevado risco de expropriação pelo governo, pela elite ou outros agentes” (ACEMOGLU, JOHNSON & ROBINSON, 2001: 13). 58 119 latino-americana ao discurso da modernização e seus pressupostos eurocêntricos, estadolátricos e social-evolucionistas (BORBA, 2015). No caso do institucionalismo neoliberal, que recria uma espécie de filosofia da história como foi a modernização, a situação é bastante explícita. A arquitetura de seu raciocínio está baseada em uma oposição temporalizada: na maior parte da história humana, imperaram “instituições políticas extrativistas” ou “estados naturais”, que só recentemente foram substituídos em alguns lugares específicos por formas modernas. Forjadas pela cultura ocidental, essas formas novas conciliam a virtude da justiça – pluralismo político, impessoalidade, bem público, propriedade privada – com o progresso econômico, na forma de incentivos adequados aos agentes. Há uma racionalização retrospectiva da história europeia em que sua dominação mundial se explica por essas mesmas instituições, singulares, endógenas e progressivas, exportadas para o mundo através do colonialismo e suas “neo-europas” (ACEMOGLU, JOHNSON & ROBINSON, 2000). Sendo o objeto de pesquisa os estados latino-americanos, sua relação com a teoria geral se define sempre em termos negativos. No capítulo inicial do livro, Acemoglu e Robinson (2012) comparam duas cidades de mesmo nome da fronteira EUA-México, decifrando sua diferença em termos das instituições prevalecentes em uma e outra: “Por que as instituições dos Estados Unidos”, se perguntam, “são tão mais conducentes ao êxito econômico do que as do México ou, a rigor, do resto da América Latina?” (ACEMOGLU & ROBINSON, 2012: 09). O quadro descrito para Nogales no México, que é transposto para a América Latina em geral, é de instabilidade, criminalidade violenta, serviços precários, fraude eleitoral, ou seja, a contrapartida negativa de Nogales nos Estados Unidos. A diferença se realiza como ausência crônica59: de um lado da fronteira há perfeita indistinção entre teoria geral, modelo normativo e exemplo concreto; no outro, uma descrição das deficiências que colocam o caso aquém dos padrões da teoria (ver NORTH, SUMMERHILL & WEINGAST, 2000). Para mim parece incompreensível a ligação, recentemente sugerida em uma entrevista de Centeno (2017), entre a obra de Douglass North e a teoria da dependência: “Eu suspeito que você em parte pode traçar a recente consciência de North com os padrões históricos de construção de instituições à teoria da dependência” (CENTENO, 2017: 78). A ideia de “padrões históricos de construção de instituições” é usada em termos propositalmente genéricos, e acaba dissolvendo a orientação crítica da dependência. 59 . 120 Um raciocínio semelhante transparece na obra de Centeno (2002), em que o “estado latino-americano” é revestido de características que constituem seu “fracasso” frente ao modelo da Europa Ocidental, onde guerras interestatais recorrentes produziram estados fortes e democráticos. Também aqui uma idealização da história europeia se esgueira a parâmetro teórico e normativo. Se a preocupação com a história é levada mais a sério do que no campo dos economistas institucionais, isso não altera a estrutura geral do raciocínio: a modernidade é equivalente à emancipação universalista das amarras do passado, o estado moderno realiza essa aspiração na prática, e a Europa e os Estados Unidos são os exemplos imediatos dessa possibilidade realizada. Logo, o resto do mundo se segmenta pela intensidade com que conseguiu replicar a experiência ocidental de modernidade, cidadania, propriedade privada, burocracia, etc. A pesquisa nesses casos adquire estatuto eminentemente empírico, atingindo a discussão teórica como um “contrafactual” para testar as razões do sucesso versus fracasso (CENTENO, 2002: 17). O discurso triunfalista sobre a modernidade política e suas novas sociabilidades é uma tônica da obra de Xavier-Guerra (2000), que tem o mérito de projetá-la em contexto atlântico. O que ele entende por moderno, cumpre dizer, é espelhado nas formulações iluministas que circulavam entre os letrados na época das independências, sendo a França revolucionária a baliza, mais ou menos visível, de todo o livro. Isso resulta em um conceito altamente restrito de modernidade, incapaz de reconhecer mesmo o Romantismo alemão ou o socialismo internacionalista, por exemplo, como fenômenos também modernos, para não falar da escravidão capitalista, do patriarcado e da burocratização. Isenta de traços opressivos ou contraditórios, a modernidade é reificada em oposição à tradição e ao Antigo Regime. Ao definir a modernidade a partir do discurso otimista dos intelectuais da época, resgata-se por vias tortas o problema da modernização como um projeto emancipador de elites reformadoras contra uma sociedade atrasada, patrimonialista e avessa à mudança (SHILS, 1960), resultando no que Gabriel Almond (1960), um pivô do discurso da modernização, chamou de “dualismo cultural”. A sobrevivência de corrupção, de clientelismo e de violência política não tem a ver com a modernidade em si, mas com sua deturpação ou pelas camadas populares incapazes de compreendê-la, ou por elites que se revelam insuficientemente modernas. 121 Lançamos um breve olhar sobre alguns epicentros da reorientação recente do debate sobre a política moderna na América Latina, de modo a mostrar como ele caminhou na direção contrária às críticas ao eurocentrismo que germinaram alhures durante o mesmo período. Essa dificuldade reforça a compactação antes referida que universaliza a experiência europeia: no caso de Xavier-Guerra (2000), o conceito operacional de modernidade se confunde com o Iluminismo como movimento intelectual e com a Revolução Francesa como episódio histórico; no caso de Centeno (2002), a definição geral de estado se espelha nos estados europeus concretos, mas também por uma explicação teórica produzida a seu respeito; no caso dos institucionalistas, novamente a invenção intelectual, a efetivação histórica e a produção de teoria sobre as instituições políticas modernas se resolvem internamente no círculo das potências ocidentais. A proposta de resgatar a trilha que estava sendo explorada pelo pensamento crítico latino-americano nos anos 1950 a 1970 não significa que nossa resposta está lá pronta, empoeirada nas bibliotecas, para ser lida60. Sem dúvida, ele não deixou de ser também eurocêntrico em algum grau. À época foi predominante o reconhecimento do estado de bem-estar social com democracia parlamentar, e sua crítica marxista em curso na Europa, como a mais madura das determinações ou a forma acabada do estado capitalista – o que o tempo acabou por revelar uma precipitação em parte conjuntural, em parte eurocêntrica. Ainda assim, pavimentou-se ali o caminho promissor de uma reflexão crítica sobre o estado moderno desde as margens do sistema mundial. Ademais, o estruturalismo cepalino e dependentista encaminhou uma nova chave para a polêmica entre reiteração e diferença: não mais como modelo e deformação, mas como polos interligados em um sistema desigual. O marxismo informou uma análise crítica do estado moderno, sem elevá-lo a vetor de realização de uma modernidade tida como emancipação universal. Agora nos encaminhamos para a parte mais interessante do capítulo. Até aqui fizemos um mapeamento crítico da literatura, mostrando em linhas gerais como o eurocentrismo organiza uma geopolítica do conhecimento com centros e periferias. Nela, a prevalência de raciocínios difusionistas ou modernizadores esvazia as Para uma tentativa de atualizar a discussão latino-americana sobre a modernidade, ver Domingues (2008), que também propôs uma atualização da discussão de Cardoso e Faletto (DOMINGUES, 2013). O trabalho de Monica Bruckmann (2011) também traça uma ponte entre o pensamento crítico latino-americano clássico e a análise da conjuntura, a partir da integração entre movimentos políticos de esquerda e os movimentos intelectuais de crítica imanente da realidade 60 122 periferias de significado teórico senão como contrapartida negativa de conceitos e experiências referenciadas no centro. Isso dito, vamos tentar levar adiante a proposta de reconstrução conceitual a partir de realidades pós-coloniais, em diálogo com o movimento amplo de reconstrução de narrativas historiográficas em uma chave antieurocêntrica. 3.3. Sociologia política diante da história mundial A socióloga indiana Gurminder Bhambra (2014) argumentou que nossos entendimentos sobre os fenômenos se alteram em consequência de novas e significativas conexões que são reveladas neles. Ela se referia sobretudo ao apagamento das experiências históricas de escravidão, colonialismo e despossessão na construção teórica sobre a modernidade ocidental. Como dito antes, a reversão desse apagamento é impossível por meio de seu simples acréscimo às narrativas e conceitos já estabelecidos. Ao serem retiradas da invisibilidade, essas histórias impelem uma revisão crítica dos próprios termos do debate. Por exemplo, ao investigar a relação entre o mercantilismo, a escravidão capitalista e a industrialização inglesa, Eric Williams (2012) não acrescentou meramente um capítulo à história conhecida, mas desafiou as explicações correntes sobre a Revolução Industrial, iluminou uma espacialidade que viria a ser chamada de Atlântico Negro e instigou um renovado debate sobre o significado dos conceitos de capitalismo e racionalidade em termos racializados. Mais do que a obra desse autor em particular, o desvelamento dessas conexões corresponde à crítica ao eurocentrismo em movimento. O desafio então passa a ser de reorganizar o pressuposto de que a política moderna tem sua forma plena no estado-nação criado na Europa Ocidental, forma essa que indicaria alguma coincidência entre governo, povo e território. Autores como Richard Crossman, com quem abrimos o capítulo, postulam isso de forma clara: “nação e estado são dois aspectos da ordem social ocidental, e cada um é inteligível sem o outro”, concluindo, então, que “um Estado deve possuir ou surgir de uma base de nacionalidade, e uma nação deve submeter-se a uma forma de controle centralizado, se qualquer de ambas as organizações queira perdurar” (CROSSMAN, 1987: 22). Nossa crítica agora caminha em uma direção mais propositiva. Conforme as fraturas nesse retrato forem aparecendo, resgato alguns termos apresentados nos 123 capítulos anteriores, justificando o desmembramento de uma noção genérica, o estado, em conceitos mais delimitados e processuais, como o de ordem política e de ciclo extrativo-coercitivo. Como Craig Calhoun (2008) entre outros mostraram, a imagem da Europa moderna de estados nacionais reproduz um preconceito orientalista de que “impérios” são os outros, os persas, os chineses, os turcos, os indianos, nunca os próprios europeus ocidentais. Subentende-se que os impérios na Europa pertencem a um passado remoto, o que fundamentalmente apaga o colonialismo da história moderna. Em termos espaciais, há uma desconexão forçada do espaço político das metrópoles europeias de sua contrapartida imperial, que diz respeito à história da maior parte do mundo (BHAMBRA, 2016). Em termos teóricos, a modernidade se torna um fenômeno metropolitano, vivido em suas cidades, em suas fábricas, em seus parlamentos. A ideia de igualdade entre os nacionais subjacente ao estado-nação não se sustenta na escala dos impérios, como vimos no exemplo dos revolucionários haitianos que aspiravam, em um primeiro momento, ser franceses e livres. Durante o século XIX, como aponta Cooper (2005: cap.1), a racialização é componente decisiva da divergência que vai se estabelecendo entre centros metropolitanos cada vez mais republicanos e democráticos e suas possessões coloniais, governadas de forma mais brutal e discricionária. Mas se poderia retroagir o argumento no tempo. No contexto da América após a conquista espanhola, especialmente na Nova Espanha, apartaram-se dois regimes políticos dentro da mesma sociedade: a “república de espanhóis” e as “repúblicas de índios” ou “naturais” (LEVAGGI, 2001). Dominantes na política mundial pelo menos até o século XX, impérios não são geralmente governados por regras uniformes aplicadas indistintamente a seus súditos, nem apelam a uma ideia unitária de povo, mas justamente segmentam lógicas de integração e diferenciação dos espaços políticos imperiais (COOPER, 2005: cap. 5). Deixariam então de ser modernos por isso? Teria a modernidade política começado efetivamente há apenas meio século, quando enfim soçobraram os impérios ultramarinos europeus? Curiosamente, tampouco foi este meio século o momento áureo de estados-nação propriamente ditos, mas sim, a julgar pela literatura especializada, de sua crise, enlevada pelos desafios contemporâneos do multiculturalismo, da globalização, da xenofobia, do plurinacionalismo, do supranacionalismo e das 124 autonomias subnacionais. Na ressaca pós-imperial da política moderna, o pensamento eurocêntrico passou a diagnosticar o declínio do estado-nação como se ele de fato tivesse existido solidamente no passado. Há um paradoxo pelo qual quanto mais se assume conceitualmente do estado-nação como forma política da modernidade, menos se encontram estados desse tipo quando o critério é efetivamente aplicado. Essa sobreteorização jaz sobre uma premissa, falsa pelo que se disse acima, de que o estado-nação sobrepujou efetivamente as alternativas, tornando-se o objeto dos sociólogos enquanto o resto poderia ser entregue aos historiadores. A ideia de estado-nação é um ícone do eurocentrismo não só porque ignora ou mal representa as experiências políticas das periferias, mas também porque, em outra direção, normaliza, filtra e adéqua conforme o modelo a própria história da Europa e dos Estados Unidos, onde a coincidência entre estado, território e povo, se alguma vez existiu, foi largamente marginal. Para sair desse impasse, é preciso entender em separado o que está compactado. Comecemos com a “nação”. De saída, ninguém negaria a relevância mundial do nacionalismo moderno e de sua literatura especializada. Conceitualmente, contudo, o florescimento das análises sobre o tema partiu de uma postura antinaturalista: nações não simplesmente existem enquanto grupo humano coeso, elas são construções simbólicas de unidade, são imaginários cuja tessitura é possível rastrear, documentar, explicar. Ora, a força do nacionalismo tampouco é um dado, uma espécie de exigência funcional das sociedades modernas. Sua validade depende da capacidade de, elaborando sobre os significados desse pertencimento, mobilizar as pessoas em um determinado contexto com um determinado propósito, tornando-se, então, real em suas consequências. Sem dúvida, essa é a linguagem com que falamos de relações ético-políticas no capítulo 1. Nações são apelos ético-políticos contingentes, e portanto precisam ser entendidos em seus três momentos: em sua construção como uma “estória eticamente constituída”, em suas linhas divisórias do pertencimento político e na contestação que se estabelece ao redor das consequências práticas desse pertencimento seletivo. Nessa gramática os sentidos da nacionalidade são móveis de uma disputa mais ampla sobre as fidelidades políticas, e para tal não precisam ser a forma final ou efetivamente moderna dessa disputa. Na América Latina, mas não só, o nacionalismo foi apropriado em chave anti-imperialista pelo menos desde José Martí na luta pela 125 independência de Cuba, tornando-se uma força de mobilização popular contra a ordem vigente. Agora, são estados-nação todos os estados que articulam alguma forma de apelo nacional de pertencimento? A única resposta afirmativa possível é tautológica. É possível reconhecer que apelos nacionais existiram em um império capitalista como a Inglaterra vitoriana, em movimentos insurgentes, em uma cidade-estado multicultural como Singapura, ou nas repúblicas racialmente divididas das Américas nos oitocentos. Dizer que todas e quaisquer organizações políticas onde se identifique um imaginário de unidade nacional são estados-nação é uma manobra mais retórica que conceitual, daí a tautologia. Em geral, os estudos sobre nacionalismo avançaram justamente quando assumiram o “estado-nação” como aquilo que ele de fato é: uma aspiração política do próprio ideário nacionalista, uma forma imaginada de soberania popular unitária, ligada a uma utopia de como a sociedade deva ser. Ou seja, não é porque o nacionalismo projeta o estado como a realização, a totalização e o avatar da sociedade que governa que os analistas devam manter essa reificação intocada (CHERNILO, 2007). Os apelos de pertencimento e unidade se tornam interessantes justamente quando são postos diante das clivagens raciais, religiosas, regionais, classistas e coloniais que querem obscurecer. Há outra consequência interessante nesse movimento. Historicamente a decolagem de nacionalismos no século XIX é contemporânea de um grande movimento de extroversão imperial da Europa, de modo que ele não se resume a uma aspiração de comunidade e igualdade de um povo no estado (BAYLY, 2004: cap. 6). No mesmo movimento ele circunscreveu essa nação diante de um mundo exterior, assiduamente generificado como mostra Stuart Hall (1995: 300-303), a ser conquistado em nome de sua própria grandeza. Comentando sobre a Europa contemporânea, John Holmwood alerta as sérias consequências dessa miopia: “o ponto não é que a imigração começou agora a deteriorar solidariedades, mas que as solidariedades foram formadas sobre uma política racializada dos encontros coloniais” (HOLMWOOD, 2016: 159). A tessitura cultural do nacionalismo europeu não simplesmente diferenciava o francês do alemão, como é usualmente repetido, mas 126 igualmente, dentro do mesmo império, o francês autêntico do tuaregue, do caribenho, do vietnamita, do polinésio61. Justamente por perceber esse conteúdo implícito que diversos intelectuais latino-americanos do século XX, como Eliécer Gaitán, Gabriela Mistral e José Vasconcelos, reivindicaram um significado diferente para o nacionalismo quando mobilizado fora de, e contra, as potências imperialistas (DEVÉS VALDÉS, 1997; FUNES, 2006). Para Mariátegui, em sua polêmica com a APRA, a única forma de ser coerentemente nacionalista era aderindo ao socialismo. Refeitas suas conexões imperiais e coloniais, e portanto além das fronteiras que ele próprio estabelece, o nacionalismo europeu oitocentista fortalece laços culturais internos daqueles que se percebem na cabeça do império mundial, enquanto mantém fora dessa comunhão os povos, línguas e culturas que estão nas bases subjugadas desse império em formação. Por essa razão sublinhamos, ao tratar anteriormente do imaginário nacional no âmbito das relações ético-políticas, que ele é inseparável das práticas cotidianas de exclusão que tornam a inclusão inteligível. Isso nos leva a ver a conformação de linhas móveis de inclusão e exclusão que discernem as consequências práticas do pertencimento, seja no caso do nacionalismo em um império multicontinental, seja no do colonialismo interno em uma república racista. O mesmo vale para um movimento anticolonial, que elabora um apelo nacional que exclui os colonizadores. A vigência dessas linhas divisórias não é um traço de uma modernidade ainda imperfeita, de uma herança social mal superada ou da incapacidade de chegar a um estado-nação propriamente universalista, mas sim uma visão menos eurocêntrica do que o pertencimento político significa na prática. É a agência política que move essas linhas conforme se apropria de imaginários de pertencimento político. Se descartamos a expressão original hifenizada (“estado-nação”), e deciframos o termo “nação” no bojo de relações ético-políticas mais amplas e agonísticas, como pode ficar o termo “estado” agora isolado, assim indeterminado? Por um lado, é claro que dispensamos um conceito que viaje dos hititas e sumérios antigos até o presente sob uma definição comum do que “estado” significa. Tampouco parece recomendável Falando sobre o século XIX, Bayly argumenta que “o imperialismo e o nacionalismo eram parte do mesmo fenômeno. Nacionalismo e conflito na Europa fizeram os estados mais conscientes de seus competidores estrangeiros e mais inclinados a delimitar demandas e preferir seus próprios cidadãos. A partilha da África foi, de fato, um exercício parcialmente preemptivo, pelo qual governos nacionais tentaram antecipar o caminho de seus rivais ao reivindicar faixas de território que podiam em algum momento futuro se tornar importantes econômica ou estrategicamente” (BAYLY, 2004: 230). 61 127 abandonar de todo o termo, especialmente para análises políticas de longa duração histórica. Recorrer ao adjetivo “moderno” parece uma saída simples para delimitar o alcance histórico, mas acaba recolocando todos os problemas vinculados à definição de modernidade. Conceitualmente, diríamos que um estado moderno é aquele que tem uma burocracia impessoal, uma nação consociada, um regime democrático, uma regulação efetiva da economia e um direito racional? Obviamente uma resposta positiva nos levaria de volta ao campo do weberianismo da modernização, confundindo tipo-ideal com teoria normativa e mensurando desvios, maiores ou menores, entre os casos e o modelo. Sabemos que as organizações políticas existentes durante a modernidade são muito mais heterogêneas e contraditórias que esse modelo sugere, e não são só os impérios capitalistas dos séculos passados que perturbam a uniformidade. Olhando em escala mundial, teríamos que admitir o desafio de estipular características “modernas” que englobem monarquias teocráticas como o Vaticano e a Arábia Saudita, cidades-estados como Liechtenstein e Singapura, regimes de inspiração comunista como Cuba e Coreia do Norte, regimes desenvolvimentistas autoritários ou repúblicas de apartheid racial. Quanto mais retroagimos no tempo, mais heterogêneo ficaria o universo empírico a ser coberto. Se assumimos que são modernos todos os estados existentes na modernidade, esta última precisa diluir muito do seu sentido usual. Diante desse problema, recorremos uma vez mais à abordagem sistêmica do capítulo 2: em suma, não há estados mais e outros menos modernos, nem estados modernos primeiro na Europa e depois no resto do mundo, mas sim um sistema interestatal moderno, cuja origem remonta às conexões atlânticas do “longo século XVI” (c. 1450-1650). Em outras palavras, “moderno” diz respeito às dinâmicas sociais em curso nessa espacialidade e uma temporalidade definidas historicamente, inclusive em suas situações contraditórias. Assim, são “estados modernos” aquelas organizações políticas que se engajam continuamente na dinâmica competitiva do sistema, que são partes regulares de suas interações. Por um lado, isso não incorpora indistintamente qualquer forma de organização política existente no mundo desde o século XVI, pois a maior parte delas, do império asteca sob Moctezuma, das “sociedades contra o estado” na América do Sul ao reino havaiano de Kamehameha I, foi subsumida violentamente a esse sistema ao invés de 128 se tornar parte soberana dele. De outro lado, existe uma controvérsia interessante sobre a autonomia resguardada nos circuitos políticos e comerciais no Índico mesmo com a presença dos impérios ultramarinos europeus nos séculos XVI a XVIII. A definição não se basta em parâmetros abstratos, pois ela adquire sentido conforme a circunstância histórica em que se aplica. Essa saída sistêmica tem a vantagem de remover as premissas triunfalistas que incutem no “estado moderno” uma avalanche de esperanças emancipatórias de igualdade e liberdade. Pelo contrário, resgata a perspectiva crítica que permite vincular as aspirações universalistas, inclusivas e igualitárias em um quadro sistêmico mais amplo, onde se conectam com histórias silenciadas de trabalho coagido, espoliação imperialista, controle migratório, biopirataria, exploração capitalista e troca desigual. Por certo, a história da modernidade é atravessada de práticas opressivas que não podem ser simplesmente abstraídas ou insuladas. Agora, como questão prática, o que significa dizer que uma organização política interage com as demais como uma unidade do sistema interestatal moderno? O elemento fundamental é sua capacidade de comandar um ciclo extrativo-coercitivo próprio no tempo e no espaço, isto é, a capacidade de extrair recursos regularmente e dispor do controle político da violência, com o qual essa extração seja protegida, renovada e eventualmente expandida. Ademais, a proteção, renovação e expansão são possibilidades que se definem, em última instância, por condições em curso no sistema mundial – pela guerra, pela diplomacia, pela crise econômica, pela concorrência interestatal pelo capital circulante, pela internalização relativa das cadeias mundiais de valor, e assim por diante. Desse ponto de vista, não é prioritário definir parâmetros formais do que deva ser um estado para fazer parte do sistema, pois substitui-os um critério de efetividade prática, qual seja, a continuidade no tempo e no espaço. É nesse sentido que “estados-nação e estados-impérios são, antes de tudo, estados” (COOPER, 2005: 27). A prioridade do “controle político da violência” sobre o monopólio legítimo da força, em nossa discussão inicial sobre a coerção, tinha justamente o propósito de deslocar as expectativas formais implícitas, atraídas pela forma da lei. Pode parecer cínico, mas a diferença crucial entre o chamado “Estado Islâmico do Iraque e da Síria” e um estado moderno não advém do fato de que o primeiro não respeite os direitos humanos, misture religião e política, obtenha receitas oriundas do contrabando 129 internacional e imponha suas leis mediante uso da força bruta, porque estados modernos também fazem isso. A diferença fundamental é que, no caso do Estado Islâmico, a capacidade de articular sua autoridade com mobilização militar e extração regular de recursos sofreu uma rápida e definitiva disrupção por ação de seus inimigos. A diferença entre regimes teocráticos, repúblicas socialdemocratas e governos fascistas não é um grau de modernidade, mas sim uma mudança na forma como uma ordem hegemônica específica se sobrepõe politicamente sobre suas alternativas. No capítulo 1, descartamos a oposição entre ordem-desordem, assumindo que a institucionalização de uma concepção de sociedade bem ordenada é um processo político, inseparável da subordinação de projetos alternativos de ordenamento. Nesse processo, incide uma circulação internacional de ideias e conhecimento aplicado, e os agentes políticos ativamente mobilizam situações exemplares e contraexemplares, no presente e no passado, conforme seus propósitos políticos (MÉNY, 2011). Isso não significa que haja concepções modernas e arcaicas, ou governos mais ou menos modernos, ou que haja um processo discernível de modernização da política em curso. Ora, projetos de reordenação social radical, como o que Xavier-Guerra (2000) encontrou nos publicistas liberais do começo do século XIX, são parte dessa disputa de horizontes, mas ela não se resume à persuasão de discursos e panfletos. Seja em espaços imperiais ou em estados territoriais, a agonística da ordem é feita de confronto político [contentious politics], com a mobilização de recursos, estratégias e repertórios pelos grupos organizados diante de suas oportunidades políticas. Nessas disputas as palavras mudam de sentido, viajam de contexto, eventualmente trocam de afiliação política e inclusive se convertem em lei escrita. Ao invés de uma invenção de um grupo restrito de intelectuais, a modernidade política se produz no entrechoque entre projetos de ordenamento social, dentre os quais participou, sem dúvida, o racionalismo republicano na Era das Revoluções. Em suma, a discussão inicial que fizemos sobre o ciclo coercitivo-extrativo, sobre a ordem política e suas linhas de inclusão e exclusão, e sobre a contestação, a barganha e o cálculo do dissenso não subentende uma forma singular de estado-nação. O sistema mundial moderno é composto por unidades relativamente heterogêneas, mas que, a seu modo, projetam com sucesso relações de dominação política no tempo e no espaço, convertem essa dominação em circuitos regulares de extração, gasto e 130 controle social, organizam formas seletivas de pertencimento que tem consequências reais para a vida das pessoas, lidam com iniciativas efetivas de contestação da autoridade e das linhas divisórias do pertencimento, de promoção de interesses particulares, ou mesmo de reivindicações concorrentes de governar. Mais do que isso, essas organizações políticas o fizeram em interação contínua com as demais, isto é, em competição pelas condições para a reprodução ampliada de seu ciclo extrativo-coercitivo, o que pode querer dizer, conforme o contexto, industrialização nacional, aquisição de novas colônias, a expansão territorial, controle migratório, a proteção contra importações ou o aumento das exportações. Todo o ciclo extrativo-coercitivo está pressionado não só pelo dissenso interno, mas pelas múltiplas interfaces competitivas na economia mundial capitalista e do sistema de estados. 3.4. Para além da reiteração e diferença: estados pós-coloniais na periferia Do ponto de vista teórico, o problema principal do debate sobre reiteração de modelos gerais versus a diferença das experiências latino-americanas foi tentar equacionar uma solução sem desafiar consistentemente o significado desse modelo, usualmente uma imagem eurocêntrica de estado-nação. A saída, então, reincidiu em premissas modernizadoras, ora como temporalização da diferença, ora como deficiência crônica com relação ao modelo. Na maior parte da história moderna, como vimos, o que esteve por trás dessa imagem de estados-nação territoriais foram impérios capitalistas multicontinentais, com lógicas raciais, culturais e espaciais de diferenciação interna. Não só a mobilização de capital e coerção, mas a imaginação política e as disputas concretas foram alimentadas pelas conexões erigidas por esses espaços imperiais em competição entre si. Diante disso, pode-se argumentar que a instituição do modelo de “um estado, uma nação” foi antes uma invenção latino-americana que europeia (LÓPEZ-ALVES, 2011a; 2011b), o que é uma provocação interessante mas inconclusiva. Faz bem em reforçar o caráter multicêntrico das origens do nacionalismo moderno, o que por certo já aparecia em Benedict Anderson (1993), e da modernidade em geral como um fenômeno que não é historicamente exótico à América Latina. Mas é inconclusiva porque mantém o problema do “estado-nação” oscilando entre dois clusters regionais 131 separados, a Europa e América Latina, restringindo o debate à questão do pioneirismo. A propósito, o ponto de partida da historiografia “conectada”, que inspirou as “sociologias conectadas” de Bhambra (2014), foi justamente questionar metodologicamente a presunção automática dos blocos regionais herdados dos estudos de área (SUBHRAMANYAM, 1997). É inglória a tarefa de definir a especificidade do “estado latino-americano” porque ela, nesses termos, parece magneticamente atraída ao paroquialismo e ao essencialismo, como se a América Latina possuísse traços, únicos se vistos de fora e uniformes se vistos de dentro, que a destacassem do escopo da teoria social enquanto tal. Provincializar a Europa acaba por, em algum sentido, exigir que se desprovincialize a América Latina em uma sociologia política conectada, conceitualmente mais densa que a controvérsia sobre pioneirismo. A teoria da dependência subverteu os estudos sobre o capitalismo ao argumentar que o subdesenvolvimento no Terceiro Mundo não era um sintoma da falta de capitalismo, mas da força de sua lógica internacionalmente desigual. Isso não fazia com que economias dependentes exigissem uma teoria à parte, mas que a economia política precisava refletir não só sobre a experiência das economias industriais do centro, mas também sobre as múltiplas situações de dependência estrutural e subdesenvolvimento a ele associadas. Ao invés de trajetórias separadas de desenvolvimento nacional escalonadas conforme seu progresso relativo, as críticas dependentistas colocavam em evidência uma economia mundial capitalista com posições hierárquicas, que só eram inteligíveis em sua interação. Ademais, buscava descrever mecanismos concretos, como a troca desigual, a dívida externa e a superexploração do trabalho, para explicar essas economias dependentes, revigorando desde as margens a economia política como um todo. O capitalismo na América Latina não era decifrado como “latino-americano” em si, mas através de situações históricas (i.e. conectadas) de dependência, que ocorriam na América Latina como alhures. A proposta de retomar a trilha da sociologia crítica latino-americana dos anos 1960 e 1970 busca resgatar esse movimento de crítica periférica ao discurso da modernização. Naquele contexto, a implicação do argumento para a análise política foi limitado, girando ao redor de uma relação causal entre dependência e autoritarismo que supunha a democracia parlamentar como um traço típico do 132 capitalismo industrial do centro. O argumento final desse capítulo coloca outras categorias para fazer esse movimento, buscando oxigenar a hipótese de desenvolvimento desigual da política moderna. A partir do arco descrito pelo “longo século XIX” na América Latina, a proposta é pensar a formação de estados pós-coloniais, que também são estados na periferia do capitalismo. As duas caracterizações precisam ser analisadas em seu próprio mérito. O exame delas não se baseia em uma tentativa de estipular coincidências empíricas através dos casos, do tipo “estados pós-coloniais” tem menos coesão nacional, ou “estados na periferia” tem maior incidência de golpes de estado. Esse tipo de regularidade não é só complicado de verificar, mas também tem certas fragilidades do ponto de vista teórico e epistemológico62. O caminho será definir essas categorias em termos dos processos de longa duração que as identificam, no caso o colonialismo moderno e a divisão internacional do trabalho, em conexão com a formação de estados – sem supor que essa relação determine uma homogeneidade empírica no presente. Se bem-sucedido, o que sim se depreende do argumento é que o sistema interestatal moderno obedece a uma lógica desigual, logo não difusionista, de expansão. Em primeiro lugar, vamos observar o tema de um estado pós-colonial. Por certo, a proliferação do termo “pós-colonial” gerou como subproduto uma agregação forçada de experiências históricas muito diferentes, do Caribe ao extremo Oriente. Dependendo do ponto de observação que se adote, “colonialismo” implica uma temporalidade histórica, um contexto e um projeto de sociedade bastante diversos. Para o estudo do que seria a sociedade “pós-colonial”, os mandatos anglo-franceses no mundo árabe do pós-Primeira Guerra acumulam diferenças significativas com o que foi a longeva ocupação espanhola no México e nos Andes, para usar um exemplo inequívoco. Para ancorar o problema em chão firme, vamos recorrer aos termos do capítulo anterior, em que o “colonialismo” se situa nas margens expansivas do sistema interestatal capitalista. A fragilidade se refere à pressuposição ontológica de uma realidade formada por eventos independentes, justaposta a uma visão humeana de causalidade como conjunção constante entre esses eventos. A influente crítica de Bhaskar (2008) ao empirismo é pertinente aqui. A categoria não adquire pela uniformidade de suas expressões empíricas, que são objeto de inúmeras outras interferências em um sistema aberto, mas pelos mecanismos causais que permitem concatenar essas trajetórias empíricas. Ver também a apropriação crítica de Bhaskar por José Maurício Domingues (2018). 62 133 O colonialismo moderno é uma plataforma de extroversão do sistema mundial, em que as oportunidades de vantagens relativas – reais, percebidas ou projetadas para o futuro – na competição interestatal e na competição intercapitalista impulsionam reivindicações de soberania contra os povos. Desse ponto de vista, já presente no capítulo 2, o colonialismo não se resume à estrutura administrativa que é formalmente instituída nas sociedades coloniais, mas à multiplicação de chances de comércio, pirataria, contrabando e trabalho coagido que se faz ao seu redor. Ao contrário do que a etimologia latina do termo sugere, o colonialismo moderno aqui menos relação com a transferência de pessoas para povoar e governar a colônia do que com o sistemático processo de expropriação de terras, rios, florestas, minérios, combustíveis e do conhecimento nativo sobre eles. Em sua contraface, essa expropriação se torna contramercados à acumulação (ver seção 2.2). Parte da ideologia do colonialismo, como já observamos, é esconder essa acumulação por despossessão subentendendo um “vazio” para explorar e povoar, com encontros acidentais ou exóticos no percurso. Do ponto de vista político, essa extroversão do sistema interestatal moderno almeja subordinar as ecologias políticas pré-existentes aos espaços imperiais que os governam. Ao sobrepor a elas essa reivindicação de soberania imperial, produz-se um estremecimento, uma interrupção das rotinas prévias da política, isto é, um impasse perante as formas pelas quais o exercício de autoridade até então se reportava a práticas e crenças socialmente arraigadas. Para lidar com esse impasse, gera-se continuamente no interior desses espaços imperiais uma expediência formal ou informal, do genocídio à indiferença seletiva, da governamentalidade colonial ao recrutamento de elites nativas. As linhas de inclusão e exclusão política formadas pela extroversão imperial abrem inevitavelmente um terreno de fricção. Igualmente, a propulsão do ciclo extrativo-coercitivo por espaços imperiais internamente diferenciados acaba por produzir dissenso e disputa sobre a seletividade inerente a esse ciclo, no caso do uso da violência contra os nativos, na sucção fiscal da colônia, no acesso a determinadas posições de poder, na tensão entre integração e diferenciação do império. O colonialismo não adquire coesão conceitual pela uniformidade da expediência política com que os espaços imperiais se ratificam no tempo e no espaço. Sua coerência interna se revela anteriormente, na própria existência desses impérios como vetores e resultados da expansão competitiva do sistema. Por isso dissemos no 134 capítulo 2 que o colonialismo não foi um traço particular das sociedades colonizadas, mas um motor do sistema como um todo. Da mesma forma, a existência de “estados pós-coloniais” não pode ser um predicado dessas organizações em particular, mas sim sua posição relativa na retroação histórica da expansão colonial. Ela assegura que estados soberanos, embora formalmente iguais entre si, não são unidades seriais com “modelos ontogênicos comuns”63, mas trajetórias opostas de um desenvolvimento desigual de expansão e retrocesso de estados imperiais. Partindo de uma leitura de sistemas mundiais, Kojin Karatani lançou uma ideia bastante original, embora por ele pouco desenvolvida: a de que o imperialismo capitalista destruiria a base comunitária agrária das sociedades que invade, fazendo com que a reação a ele não tome a forma de rebelião rural ou tribal, mas de uma comunidade imaginada de tipo nacional contra o imperialismo. Segundo Karatani (2014: 226), “o imperialismo – ou seja, o governo por um estado-nação sobre outros povos – acaba criando novos estados-nação sem nunca o ter pretendido”. Sem dúvida, o autor carrega forte herança eurocêntrica no argumento, assumindo que o surgimento do estado-nação francês com Napoleão gerou sucessivas reações nacionais em círculos concêntricos até o mundo não europeu64. Neste último, nada digno de elaboração conceitual teria ocorrido que já não tivesse sido prenunciado, por exemplo, pela resposta romântica alemã ao invasor francês. O maior ponto cego da análise de Karatani parece ser justamente a América Latina. Suas duas categorias funcionam da seguinte forma: “impérios” mundiais são contestados por revoltas tribais ou agrárias ao contrário do que ocorre com estados-nação; estes, quando governam outros povos, exercem “imperialismo” e são contestados por novas comunidades imaginadas nacionais. Na América Latina, pelo contrário, a colonização é efetivada por impérios (que não são estados-nação no sentido que Karatani extrai de Benedict Anderson), mas a independência é articulada por movimentos “nacionais”, e não rebeliões tribais. 63 A expressão é de Phillip McMichael em sua crítica aos supostos da teoria da modernização. O contexto exato é que, no âmbito daquele paradigma, “se supunha que as sociedades nacionais eram sistemas autônomos com modelos ontogênicos comuns” (MCMICHAEL, 1992: 380). 64 O trecho seguinte resume esse aspecto: “E assim como a aparição de um estado soberano imediatamente fez surgir [gave rise to the appearance of] outros, o estado-nação igualmente proliferou para produzir estados-nação em outras regiões. A primeira manifestação disso veio com a conquista da Europa por Napoleão. Ele pretendia transmitir os ideais da Revolução Francesa, mas, como nós vimos com Fichte, Napoleão abriu caminho para o nascimento de estados-nação nas áreas ocupadas pela França” (KARATANI, 2014: 224-225). 135 O que vale a pena explorar do argumento de Karatani é que o imperialismo ocidental produz uma espécie de retroação que pode resultar no desmembramento desses impérios em estados soberanos sem que isso fosse um desígnio original da própria colonização65. Karatani considera corretamente que o “conceito de estado soberano em si implica que países sem um estado soberano reconhecido podem ser governados por outros” (KARATANI, 2014: 168). A aplicação desse princípio sustentou a soberania contra os povos, nas Américas como alhures. Lembrando a alusão a Tordesilhas no capítulo anterior, a soberania só foi reconhecida pelos invasores europeus entre si, ou seja, por intermédio do colonialismo. Nesse contexto, “países que querem escapar desse tipo de governo externo precisam declarar-se estados soberanos e ganhar reconhecimento como tal das potências ocidentais” (KARATANI, 2014: 168). Mais do que o “estado-nação”, é a inclusão no perímetro de estados soberanos que se oferece como saída ao jugo colonial ou, como disse Polanyi, “alcançar o status político necessário para protegê-los das distorções sociais causadas pelas políticas comerciais europeias” (POLANYI, 2012: 204). Vistos dessa perspectiva, estados pós-coloniais são organizações políticas que se desdobram de uma situação de soberania múltipla em espaços imperiais agregados pelo colonialismo moderno; em outros termos, são reivindicações bem-sucedidas de soberania das margens contra o núcleo desses impérios. Há outra ideia interessante que se desdobra do raciocínio de Karatani. A ampla predominância no mundo atual de relações ético-políticas baseadas na soberania popular é sobretudo um resultado de sua apropriação estratégica em tais situações de soberania múltipla, isto é, nas lutas anticoloniais como lutas de “libertação nacional” em sentido lato. A forma como a dominação ocidental institucionalizou a soberania entre e contra os povos ampliou, em determinadas conjunções críticas, oportunidades políticas para quem articulasse o léxico de soberania popular contra a autoridade dos Uma hipótese conceitual subsequente a explorar nessa direção é sugerida por C. A. Bayly ao comentar as mudanças políticas na Eurásia pela pressão militar e comercial exercida pelos ocidentais no fim do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX. Para além dos espaços efetivamente colonizados, houve uma resposta preemptiva mais generalizada. Em suas palavras, foi “a expansão dos impérios europeus que estimulou o rápido desenvolvimento de formas estatais modernas por todo o arco que vai da Pérsia ao Japão. Todos os novos reinos que brotaram entre 1780 e 1820 tentaram combinar formas nativas de tributação rural, ou produção direta de receita, com a capacidade militar e avareza capitalista da Europa contemporânea” (BAYLY, 2004: 259). Essa hipótese seria coerente com o entendimento sistêmico do colonialismo postulado no capítulo 2, que o entende como um processo mais amplo que as situações imediatas de administração colonial. 65 136 impérios, isto é, para movimentos políticos que retraçassem o pertencimento político nessas linhas divisórias. Ao redefinir o pertencimento contra a autoridade colonial, pressiona-se o perímetro de reconhecimento da soberania entre os povos. Esse duplo movimento, se bem-sucedido, desenlaça o confronto político em estados pós-coloniais. O fato de que certas reivindicações anticoloniais de soberania popular triunfaram não significa que elas fossem democráticas e igualitárias. A mais conhecida delas recorreu emblematicamente à soberania popular (“Nós, o povo dos Estados Unidos...”) com um recorte racial, mantendo fora desse imaginário os afro-americanos e os povos indígenas norte-americanos. Em 1965, a independência da Rodésia britânica foi declarada por um governo segregacionista da minoria branca em nome de si mesmo (“Nós, o governo da Rodésia...”), completando então que “o povo da Rodésia apoia completamente a demanda de seu governo para independência soberana”66. A contestação dessa ordem pós-colonial pela maioria negra, em especial pelas insurgências armadas marxistas, levou à guerra civil no Zimbábue que durou até 1979. Das fricções intestinas da política imperial britânica, cuja política em 1960 contrariava a elite branca rodesiana, desencadeia-se uma disputa profunda sobre a própria definição do que seria o povo e sua expressão política no contexto pós-colonial. O governo de Robert Mugabe (1979-2017) não só simplesmente triunfa com apelos ético-políticos ligados à soberania popular, mas define efetivamente, inclusive pela perseguição de minorias étnicas e grupos oposicionistas, o conteúdo dessa nacionalidade. Há que ter certo cuidado com uma teleologia de nacionalidades predestinadas a irromper livres do casulo imperial. Em boa medida, as reivindicações de soberania adquirem conteúdo nas injunções da própria disputa política imperial, com suas referências ético-políticas correntes, suas práticas linhas de inclusão e exclusão, e sua estrutura de oportunidades para a ação coletiva. Da mesma forma como o colonialismo não tem o desígnio intrínseco nem a vocação de criar estados soberanos mundo afora, os movimentos de contestação da ordem política imperial não são necessariamente arautos de uma nacionalidade definida e sufocada. Como veremos O texto completo da Declaração Unilateral de Independência pode ser conferido em https://en.wikipedia.org/wiki/Rhodesia%27s_Unilateral_Declaration_of_Independence#Text_of_the_d eclaration. Último acesso em 10/07/2018. 66 137 em detalhe no ciclo das independências latino-americanos (capítulo 4), mesmo movimentos nitidamente comprometidos com a integridade do império podem, dadas as circunstâncias, criar as condições para que ela não seja mais viável. Frederick Cooper oferece uma bela ilustração do problema a partir da África Ocidental Francesa no pós-Segunda Guerra Mundial (COOPER, 2005: cap. 7). A onda de greves desencadeada na capital Dakar em 1946 aspirava igualdade nos termos da linguagem imperial francesa, demandando não só isonomia trabalhista com os operários metropolitanos, mas também acesso a serviços sociais correspondentes. Durante a negociação com os grevistas, o líder do Sindicato dos Empregados do Comércio, Indústria e Bancos (EMCIBA), Papa Jean Ka, passou a contestar os métodos de cálculo dos reajustes pelos funcionários coloniais, argumentando que eles “assumiam que havia um padrão de vida africano distinto do europeu, e que isso era contrário à realidade e aos princípios franceses” (COOPER, 2005: 209). Os africanos lutavam em cima das linhas divisórias entre integração e diferenciação do império, contando com respaldo de setores progressistas na metrópole. Em meados da década de 1950, “o estado francês estava preso entre a noção de equivalência dos cidadãos e a da indissolubilidade do império” (COOPER, 2005: 226). O uso estratégico da linguagem imperial pelos franco-africanos fez com que a política colonial francesa abandonasse o discurso de assimilação, aprofundando o fosso que separava a França europeia de suas colônias ultramarinas. Para os movimentos em luta nas colônias, isso reforçava o deslizamento programático para a necessidade de independência, o cultivo da unidade africana e o rechaço do “colonialismo do progresso”. Como o autor deixa claro, as apropriações estratégicas do discurso oficial do império não encerram os apelos ético-políticos que efetivamente engajaram as pessoas na luta anticolonial, como se nota pela circulação de conclamas a cosmovisões nativas (a necessidade de “curar a terra de suas doenças”, a chegada de uma “nova ordem” que redimiria a presente decadência) ou pela construção de um imaginário pan-africanista historicamente inédito (COOPER, 2005: 204). No caso do Haiti revolucionário, por exemplo, hoje é fartamente conhecido o papel cumprido pelo vodu na organização da insurreição negra, sem que isso seja incompatível com a inspiração jacobina entre os escravos. Há muito mais complexidade envolvida do que 138 o simples uso do discurso do colonizador contra ele mesmo, mas essa complexidade se descortina por meio da aproximação empírica. Conceitualmente, o importante é que a análise sistêmica de estados pós-coloniais se ancora no processo assimétrico pelo qual impérios modernos se integraram e foram desintegrados, resultando, com isso, em estados modernos com um ciclo extrativo-coercitivo próprio. Nesse duplo movimento de negação e reconhecimento de soberania, os espaços imperiais instituíram lógicas de estratificação social e diferença colonial que não desaparecem com a declaração de independência, uma ideia-força consagrada na América Latina pela expressão “colonialismo interno” e que hoje aparece com outros léxicos no pensamento pós-colonial (CHATTERJEE, 2004: cap. 2). Os estados pós-coloniais não são meramente aquilo que segue o fim da administração colonial, nem tampouco repetições tardias do que ocorreu anteriormente nas metrópoles europeias. São organizações políticas que, embora parte da retroação sistêmica ao colonialismo, governam uma sociedade talhada por ele67. Na próxima parte da tese observaremos como essa dinâmica é importante para a construção da ordem na América Latina oitocentista. No esforço de pensar a sociologia política latino-americana em suas conexões mundiais, a segunda categoria importante é a de estados na periferia, que remete às relações desiguais estabelecidas na economia mundo capitalista. O sociólogo alemão Tilman Evers fez uma lúcida contribuição à polêmica sobre o “estado dependente” ao esclarecer que não seria possível uma teoria específica do mesmo, mas sim a de uma análise sobre o estado capitalista em situações de dependência. Com efeito, a teoria do “estado dependente” foi uma porta entreaberta ao estruturalismo causal, em que os predicados políticos concretos eram determinados pela posição relativa na economia mundial. Descartando esse tipo de derivação, o problema dos estados na periferia é, Ao analisar as práticas coloniais no século XIX, C. A. Bayly (2004) oferece elementos interessantes para pensar o impacto das divisões então instituídas para a vida política pós-colonial. Ao fazer o ponto, o historiador permite ir além do senso comum que divide uma Europa onde a integração simbólica foi bem-sucedida e o resto do mundo ainda fraturado por questões étnicas, culturais e religiosas. Diz Bayly que, em comparação com a tendência do colonialismo em destruir a cultura de povos nômades e caçadores, “mais significativo para o futuro de nacionalismos e estados-nação não-europeus foi a tendência dos poderes coloniais de privilegiar diferenças de religião e raça nas sociedades majoritárias de seus territórios. Aqui, as vantagens de políticas de ‘dividir para governar’ se tornaram proeminentes. Em parte, isso emergiu do cálculo político. Um exército composto por minorias nativas, diferentes de, e suspeitas com, a população majoritária era menos arriscado de se voltar contra os colonialistas” (BAYLY, 2004: 222). 67 139 como em todos os quadrantes do capitalismo, um problema de construção social da ordem política, nos termos tratados no primeiro capítulo. No entanto, esses estados mobilizam um circuito extrativo-coercitivo diante das oportunidades fiscais do capitalismo periférico, isto é, sobre setores produtivos e frações de classe que estão em uma posição subordinada nas cadeias internacionais de valor. Essa constatação não equivale a dizer que são estados de baixa intensidade ou fracos, nem autoriza grandes inferências dedutivas sobre seu caráter em geral. De forma menos abstrata, há uma relação que se destrincha entre o movimento de ciclos sistêmicos de acumulação, a divisão internacional do trabalho e a reprodução ampliada dos ciclos extrativos-coercitivos na periferia. Na América Latina durante o “longo século XIX”, as periferias foram atraídas por uma nova divisão internacional do trabalho liderada pela industrialização na Inglaterra. As oportunidades fiscais ligadas ao novo mercado atlântico eram desproporcionais com relação à vida econômica em curso no interior, funcionando como uma vantagem decisiva na disputa sobre a ordem política pós-colonial. Essa é a história que veremos em detalhe na próxima parte da tese. Nesse capítulo o que fizemos foi analisar as consequências de uma crítica ao eurocentrismo para o tema da formação dos estados modernos na América Latina, demonstrando como elas se associam ao raciocínio que desenvolvemos sobre a construção da ordem política (capítulo 1) e sobre o sistema mundial moderno (capítulo 2). A crítica ao eurocentrismo não se manobra como rechaço irrestrito ao pensamento político moderno, mas como um esforço de reconstrução conceitual que parta das margens não-europeias, das experiências das sociedades coloniais e pós-coloniais, da “alteridade negada” para aludir novamente a Enrique Dussel (1992). O contraponto ao viés modernizador com que as experiências latino-americanas são traduzidas teoricamente precisa confrontar o tipo-ideal eurocêntrico que engolfa teoria e história europeia em um parâmetro de universalidade, que facilmente escorrega para idealização normativa. Nesse caminho a sociologia política latino-americana pode encontrar termos inventivos para superar a polêmica entre reiteração e diferença, usando a posição periférica como uma plataforma de crítica. 140 PARTE II: A AMÉRICA LATINA NO LONGO SÉCULO XIX A segunda parte da tese está composta por quatro capítulos dispostos em uma sequência cronológica. Difere, portanto, da Parte I, cuja exposição tinha um encadeamento lógico, da formulação mais abstrata do problema às suas controvérsias mais concretas. Agora, o percurso está organizado pelo arco temporal do “longo século XIX”, que, já o sabemos, não coincide rigorosamente com os oitocentos, mas com um ciclo definido na escala do sistema mundial. Assim, a discussão do capítulo 2 está historicizada aqui em quatro momentos que perfazem o ciclo: o caos sistêmico inicial, que corresponde às crises imperiais na chamada Era das Revoluções de 1770 a 1840 (capítulo 4); a expansão material acompanhada de apaziguamento político, que corresponde ao ciclo de acumulação industrial liderado pela Inglaterra (capítulo 5); o declínio hegemônico, demarcado a partir da crise de 1873 (capítulo 6); e o colapso do ciclo em um novo caos sistêmico, identificado nas décadas de 1910, 1920 e 1930 (capítulo 7). Ao conectar a história latino-americana a esse arco mundial, os capítulos ensejam um diálogo construtivo da sociologia histórica com a renovação historiográfica contemporânea, preocupada em revisar o eurocentrismo. Em particular, oferece parâmetros mais concretos para se projetar a situação pós-colonial e periférica como polos relacionais no desenvolvimento do moderno sistema mundial, como foi proposto no capítulo 3. Isso vale também para a sociologia política delineada no capítulo 1. Os momentos de caos sistêmico que balizam o “longo século XIX” são entendidos como conjunções críticas para a construção da ordem política. Implicam uma aceleração do conflito entre projetos alternativos de ordem e uma abertura correspondente do horizonte de possibilidades. O argumento identifica, por outro lado, uma interligação de longo prazo entre a emergência de um projeto hegemônico de ordem com as condições para a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo. Conforme se desenvolve, esse mecanismo tem como subproduto um desenraizamento de inúmeros espaços locais de transcurso da vida política. A erosão de sua autonomia é a contraface da atração da política para os espaços institucionais nacionalizados, como um resultado processual que altera os termos e os atores da disputa. 141 4. A ERA DAS REVOLUÇÕES E AS INDEPENDÊNCIAS LATINO-AMERICANAS (1770-1840) “Toda a crise escapa ao planejamento, ao controle racional sustentado pela fé no progresso”68 Reinhart Koselleck Quando os colonos norte-americanos decidiram boicotar em 1774 o comércio de escravos como forma de afrontar sua metrópole, possivelmente não tinham ciência que, do outro lado do atlântico, uma revolução muçulmana no Futa Tooro (1776) estava prestes a depor um rei especializado no sequestro de seres humanos, decidindo também interromper qualquer comércio com os britânicos na costa. Ávidos por mãos negras para cortar e moer cana, colher algodão e enrolar charutos, os europeus vinham injetando os milhares de mosquetes e garrafas de rum com que o último rei da dinastia Denyake armava seus soldados na caça por mandes, serers ou jaxankes, prestes a serem convertidos simplesmente em negros. Vitoriosos na guerra, os descendentes de europeus da América do Norte acabariam por conciliar a escravidão com belas frases constitucionais sobre a liberdade e a igualdade, em uma revolução anticolonial decidida a afirmar, como disse John Adams em 1765, que “nós não seremos os negros deles”. Quando a revolução estoura na França em 1789, os parlamentares da nova Assembleia Nacional rechaçaram a hipótese de que a cidadania universal pudesse contemplar os mulatos das colônias do império no outro lado do atlântico. Suas consciências foram subitamente despertas por uma insólita sublevação armada de jacobinos negros no Haiti, que empurrou a Assembleia a extinguir oficialmente a escravidão em 1791. Enquanto o medo do “haitianismo” se disseminava entre os senhores proprietários, escravos insurretos eram reprimidos de Maracaibo a Salvador, de Richmond a Coro. Já os eleitores da província de Oaxaca, no sul no México, imbuídos com o espírito cívico de elaborar uma nova constituição para uma monarquia em frangalhos, constatariam com desgosto que “os índios não trabalham mais como antes”. Não muito mais tarde, assistiriam aterrorizados esses mesmos 68 Extraído de Koselleck (1999: 161). 142 índios percorrerem armados o país aos brados de “viva a Virgem de Guadalupe! Morte aos gachupines!”69. Na virada do século XVIII para o XIX, um estremecimento profundo abalou as hierarquias políticas e sociais do sistema mundial, com diferentes epicentros revolucionários e contrarrevolucionários. O objetivo desse capítulo é entender o ciclo das independências latino-americanas no bojo dessa convulsão sistêmica que ficou conhecida como Era das Revoluções (c.1770-c.1840). Em termos analíticos, define-a como uma conjunção crítica na construção da ordem no “longo século XIX”70. Nesse sentido, a crise dos impérios ibéricos se insere em um caos sistêmico que marca o fim da hegemonia holandesa. Para isso, o capítulo se organiza em quatro seções. A primeira lida com a fase terminal do ciclo anterior, marcado por um acirramento da rivalidade interestatal no centro do sistema ao limite de sua ruptura. Ao sublinhar a dimensão imperial dessa rivalidade, situa as reformas administrativas ibéricas de meados do século XVIII como esforço de acompanhar a escala crescente de mobilização fiscal e militar no Atlântico. A segunda seção pretende interpelar o sentido da Era das Revoluções por meio da história mundial, descompactando-a dos eventos políticos na França e da industrialização na Inglaterra. Nesse sentido, concebe a conjunção crítica como uma abertura do horizonte de possibilidades cujo ensejo é o abalo do edifício ético-político monarquista, do poder colonial e da escravidão capitalista. A terceira seção se preocupa especificamente com as independências latino-americanas, contrapondo uma narrativa teleológica informada pelo princípio das nacionalidades. Em seu lugar, entende a independência como uma saída contingente de uma situação de soberania Sobre a revolução muçulmana de 1776, ver o trabalho de Boubacar Barry (2010). A citação de John Adams foi retirada de um texto publicado na Boston Gazette (14/10/1765) sob o pseudônimo de Humphrey Ploughjogger, a que cheguei através de menção em Greene (2008). O texto se insere na reação dos colonos à Lei do Selo (março/1765) pela coroa britânica. A citação referente aos eleitores de Oaxaca foi extraída de Xavier-Guerra (2000: 214) e se dá no contexto das eleições para as Cortes de Cádiz em 1809-1810, aproximadamente um ano antes da eclosão da insurgência liderada por Hidalgo na região de Guanajuato. Essa rebelião, que arregimentou mais de um milhão de indígenas, negros e mestiços pobres no interior, chegaria à cidade de Oaxaca em 1812, quando era já comandada por Morelos após o fuzilamento de Hidalgo pelos espanhóis em 1811. Uma explicação sucinta sobre os significados da Virgem de Guadalupe para a cultura política popular mexicana se encontra em Carmen Bernand (2016: cap. 2). 69 O tema da construção da ordem política deve ser tomado no sentido descrito no capítulo 1, que possui afinidades com o que propôs Ansaldi e Giordano (2012) e, principalmente, Norbert Lechner (2013). A reificação do problema da “ordem” política pode ser encontrada de certa maneira no estudo de Safford (1992) sobre o período pós-independência, mas atinge mais nitidez no caso dos neoinstitucionalistas, que transformam a ordem em “bem público” de neutralização da desordem (ver NORTH; SUMMERHILL & WEINGAST, 2000). 70 143 múltipla colocada, em circunstâncias distintas, nos impérios espanhol e português. Por fim, a quarta seção observa em maior detalhe a geografia política resultante da desintegração desses impérios, com particular interesse pela tendência de atração da soberania para instâncias locais e provinciais. 4.1. Os espaços imperiais em uma corrida competitiva O ponto de partida do percurso é reconhecer que o sistema interestatal do século XVIII tinha, em seu topo, estados imperiais europeus com suas conexões intercontinentais, panorama que se manteria até a Primeira Guerra Mundial. A propósito, como descreve C. A. Bayly (2004: cap. 1), a prevalência de impérios extensivos e multiétnicos era então um fenômeno mais amplo, percorrendo a Eurásia com os impérios Qing (China), Safávida (Irã), Mogol (Índia), Russo, Turco-Otomano e Ashante, em um arco geográfico da Ásia ao ocidente africano. Os estados europeus, mesmo sendo impérios, não governavam hierarquicamente uma economia mundial, que se desenvolvia nas oportunidades e interstícios criados por sua concorrência. O pano de fundo, assim, da construção do mundo atlântico controlado por europeus foi o aproveitamento recíproco entre elites imperiais em guerra constante e capitalistas em busca de lucros extraordinários (ver capítulo 2). As conexões dali criadas foram tecendo uma densa rede de circulação de humanos escravizados, de produtos tropicais, de armas, de cartas e livros, de viajantes, de têxteis e corantes naturais, de decretos régios, de metais preciosos, entre uma miríade de outros fluxos que fizeram do Atlântico uma versão ampliada do “movimento no espaço” que Fernand Braudel (1972: 277) percebera no Mediterrâneo do século XVI. Ao longo do século XVIII é possível identificar uma tendência à financeirização do ciclo hegemônico liderado pelas Províncias Unidas dos Países Baixos, sendo Amsterdam a praça financeira mundial para estadistas e mercadores (ARRIGHI, 2009). Enquanto o poder da hegemonia declinante se transferia para as finanças, uma contratendência se manifesta como rivalidade sistêmica entre potências ascendentes, no caso os impérios francês e britânico. Sua projeção econômica e política no Atlântico friccionava e corroía o congelamento de poder em prol de portugueses e espanhóis, legado do Tratado de Tordesilhas (1494). O novo patamar da competição fiscal e militar foi sendo estabelecido pela série de conflitos da Guerra de 144 Sucessão Espanhola (1700-1714) até a Guerra de Independência dos Estados Unidos (1776-1783), com destaque para a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). As exigências crescentes da maior escala da guerra geravam constrição social, uma exacerbação da extração ao limite do estiramento desses impérios. Grosso modo, pode-se dizer que, do lado britânico, a tentativa de distribuir a pressão fiscal por seu império ultramarino gerou a fissura em treze de suas quase trinta colônias americanas, insultadas pela instituição de novos impostos nas décadas de 1760 e 1770. Essas treze colônias rebeldes criariam os Estados Unidos da América na guerra anticolonial de 1776 a 1781. Do lado francês, essa escalada extrativa acabaria por levar de roldão a monarquia dos Bourbons na sucessão de episódios revolucionários entre 1789 e 1799. As guerras da reação contra a França revolucionária constituiriam os momentos finais da longa queda de braço estratégica entre franceses e ingleses. Com a vitória naval inglesa em Trafalgar (1805), define-se o controle político sobre o Atlântico e seus circuitos econômicos. “Se a Grand Armée foi jogada de volta do leste com a ajuda dos generais Outubro, Novembro e Dezembro”, comenta R. Blackburn (1998: 568) sobre o desfecho das guerras napoleônicas, “a integridade do Sistema Continental sofreu no oeste as infiltrações dos generais Açúcar, Chocolate e Café”. Para um observador à época na China, na Etiópia ou na Ásia Central, essa crescente belicosidade entre os dois grandes impérios e seus aliados teria repercussões ínfimas ou nulas. Até o século XVIII nunca foi claro nem previsível que o sistema interestatal capitalista engolfaria irremediavelmente o destino dos povos não-europeus da Polinésia à África Subsaariana. É importante lembrar, contudo, que tal belicosidade não se tratava de uma questão interna à península europeia, seja por seus protagonistas, seja pelos objetos da disputa. O que convencionalmente se chama de França era à época um heterogêneo compósito de domínios e portos no Caribe, no Canadá, no delta do Mississipi, na costa ocidental africana, no norte da América do Sul, no litoral indiano e no Índico – ligados ao território continental europeu pela marinha e pelas companhias de comércio que Colbert tanto empenhara-se em fortalecer. O mesmo valeria para o que chamamos de Grã-Bretanha, que, além do domínio inglês imposto ao resto do arquipélago, envolvia feitorias e colônias na Índia, na Pérsia, no Japão, na Indonésia, no Caribe, no extremo sul da África e nas Américas. Eram unidades especializadas em “comércio com coerção”, como discutiu Kenneth Pomeranz (2000). Em maior ou 145 menor escala, o mesmo raciocínio se poderia aplicar aos holandeses, portugueses, dinamarqueses ou espanhóis, cuja monarquia ainda unia um mundo das Filipinas à Califórnia71. Assim, da mesma forma que os protagonistas da corrida militar europeia não eram estados propriamente europeus, tampouco o eram o objeto de seus conflitos. Na Guerra dos Sete Anos, por exemplo, a derrota francesa significou um drástico enxugamento de escopo de seu comércio ultramarino, com as perdas do porto de Saint Louis no Rio Senegal, de seu controle sobre o comércio de peles no norte da América do Norte, de várias ilhas de plantation no Caribe e de sua principal cabeça de ponte para o comércio indiano em Pondchérry. A Era das Revoluções, cujos primeiros sinais se distinguem na década de 1770, se situa no extremo crítico do processo de expansão competitiva de espaços imperiais de comércio com coerção que ligavam os territórios metropolitanos a pontos nos quatro continentes. No auge da guerra por corretagem, o vigor do comércio rebatia diretamente no peso geopolítico de cada estado (ver Tabela 4.1). Nos bastidores dos exércitos nos campos de batalha se contrapunham o maior ou menor vigor das plantations coloniais, das frotas mercantes, das manufaturas metropolitanas, da marinha, bem como da pirataria e do contrabando em larga escala. Indo um passo adiante, o eixo central da competição econômica se constituiu ao redor da escravidão capitalista no espaço atlântico (INIKORI, 2010; MANNING, 2008). Ao longo do século XVIII a quantidade de pessoas traficadas da África para as Américas elevou-se, bem como o preço médio pago por cada indivíduo (BLACKBURN, 1998: cap. 9). Esse novo e dinâmico comércio de longa distância irrigou de força de trabalho o continente americano, apresentando notável maleabilidade a diferentes contextos, como os latifúndios exportadores no Caribe, as regiões de mineração pesada no Brasil ou na Colômbia, as regiões agrícolas satélites aos centros mineradores, o trabalho doméstico e mesmo a produção para o mercado em pequena escala. Na Capitania do Rio de Janeiro em 1804, relata Jeremy Adelman (2006: 62), 72% dos fazendeiros tinham entre 1 e 5 escravos e isso perfazia 1/3 dos escravos totais. Através dos horizontes desvelados pela escravidão atlântica, a economia mundial capitalista abriu caminho após um interregno de desmobilização produtiva no Sobre o acirramento da competição militar e econômica da Europa no período 1689-1815, ver, por exemplo, Arrighi (2009: cap. 3), Beaud (1994: cap. 2), Creveld (2004: cap. 3), Gunder Frank (1978: cap. 3 e 5), Kennedy (1989: cap. 3), Wallerstein (1988: cap. 2) 71 146 século XVII. O eixo fervilhante do capitalismo comercial europeu se deslocara decididamente para os portos ocidentais de Bristol, Lisboa, Cádiz, Nantes, Bordeaux, Amsterdam e Londres. A meados do século XVIII, metade do comércio ultramarino britânico consistia de cargas de açúcar ou tabaco; café e açúcar atingiam quase a metade do francês (BLACKBURN, 1998: 396). Antes das treze colônias norte-americanas avançarem sua independência, as exportações britânicas para América e África já haviam aumentado nove vezes desde o início do século. O número de armas de fogo entrando no continente africano pela costa atingia cifras impressionantes: de 180 mil anuais por volta de 1730 já oscilava entre 280 e 390 mil anuais entre 1750 e 1807 (WOLF, 1982: 210). O diferencial do comércio atlântico, em oposição ao que florescera no Báltico no século XVII e ao que os europeus adentravam à força no Índico, é que ele criava imensas possibilidades para as exportações metropolitanas para colônias enriquecidas. De acordo com as estimativas de Robin Blackburn (1998: 395), o comércio encetado pela prosperidade das plantations escravistas girava cerca de dez vezes mais dinheiro que o tráfico de escravos propriamente dito. A discrepância é ainda maior em termos de tonelagem: mesmo no caso da marinha mercante britânica, de longe a principal operadora do tráfico de escravos no século XVIII, apenas 5% estava em média ocupada com esse setor. A cadeia de valor da produção manufatureira europeia dependia, em seus bastidores, de injeções de trabalho coagido no ultramar: para tingir os têxteis exportados em escala crescente, indígenas do sul do México produziam cochonilha sob um regime de trabalho forçado, similar ao que, nas minas de Zacatecas ou do Peru, estava recolocando a prata americana em um circuito comercial que chegava até o extremo oriente72. Desde a década de 1690 o mesmo acontecia com o ouro brasileiro, extraído basicamente com trabalho escravo negro, cuja oferta abundante permitiu maior estabilidade monetária e a adoção muito precoce da conversibilidade da libra esterlina em ouro. Na primeira metade do século XVIII, portanto, o sistema mundial parecia ter reencontrado trilhos de expansão a partir do dinamismo do Atlântico negro; a proeminência dos impérios francês e britânicos nesse processo, como dito, reorganizaria a política na Europa. Para estudos sobre o ciclo dos metais e da cochonilha na América, ver os dois artigos de Carlos Marichal na coletânea “From Silver to Cocaine: Latin American Commodity Chains and the Building of the World Economy, 1500-2000” (TOPIK; MARICHAL & FRANK, 2006). 72 147 A partir de agora, nos concentraremos sobre uma parte desse sistema, os espaços imperiais ibéricos. Visto de uma perspectiva macro-histórica, o colonialismo é como uma tentativa de congelamento do poder mundial, isto é, um esforço por enrijecer o status quo através de possessões coloniais e monopólios formais. Há uma analogia aqui entre o colonialismo ibérico nas Américas após Tordesilhas (1494) e a forma como a dominação europeia na África e Ásia se congelaria no século XIX. Enquanto esta última foi se tornando cada vez mais obsoleta e impraticável no século XX, o colonialismo ibérico na América dava sinais de caducar já no século XVII, descolando-se gradualmente da distribuição de poder na Europa. Esse anacronismo se evidenciava por múltiplas intrusões holandesas, francesas e inglesas no espaço colonial que Tordesilhas havia dividido entre espanhóis e portugueses. Da mesma forma como o descongelamento do imperialismo europeu no século XX produziu acirrada disputa entre EUA e URSS sobre os rumos e afinidades dos novos estados, as brechas e vulnerabilidades dos impérios ibéricos nos setecentos constituiriam objeto da ambição daqueles que, na expressão de Pierre Chaunu (1972: 143), seriam já as “metrópoles efetivas” de suas colônias. A Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1714), que opôs os partidários dos Bourbons franceses e os dos Habsburgos austríacos, foi o marco para inserção subordinada das monarquias ibéricas na política dos grandes impérios mercantilistas. No caso de Portugal, a ameaça de uma nova anexação pela Espanha fortaleceu a necessidade de uma mais robusta aliança luso-britânica. Em 1703, seria assinado o acordo de Methuen pelo qual os têxteis britânicos entrariam sem impostos no império português, em troca de concessão equivalente aos vinhos portugueses. Esse acordo adquiriu significado maiúsculo por interligar e reforçar três tendências: o crescimento manufatureiro britânico, o crescimento da produção de ouro no interior brasileiro e a vulnerabilidade estratégica de Portugal frente à escala da guerra europeia. Após a restituição da soberania portuguesa em 1640, a conservação das colônias vem ao preço da dependência externa com relação à Inglaterra. A força e independência da monarquia frente às elites metropolitanas envolve a capacidade fiscal das possessões ultramarinas, cuja abertura parcial à marinha mercante inglesa é a contrapartida da sobrevivência de Portugal como estado soberano no jogo europeu. O acordo de Methuen, pois, culmina e simboliza o “círculo de ferro que demarca o horizonte lusitano após a Restauração” (ALENCASTRO, 1998: 203). 148 Conforme Portugal torna-se sócio da coroa britânica, restavam aos Bourbons de Madri poucas alternativas senão assumir esse papel perante a França, especialmente após o desfecho da guerra que os assegurou no trono. Através das concessões pelo porto de Cádiz, manufaturas francesas entravam legalmente na península, enquanto que às inglesas e holandesas sobrava o contrabando. Por seu turno, graças aos termos acordados em Utrecht (1713), os ingleses obtiveram como contrapartida igualmente vantajosa: a concessão do comércio de escravos (144 mil/ano, legalmente) para as colônias espanholas na América, além de um navio de mercadorias isentas de impostos (ZORAIDA VÁZQUEZ, 2003: 253-258). Essa brecha, alargada pelo contrabando feito às suas costas, acabaria por deslocar os holandeses do chamado “comércio triangular”, alavancando a marinha e o comércio atlântico britânicos à escala antes referida. Ainda que revertida em 1739, e depois manipulada pelos decretos da segunda metade do século XVIII, essa abertura comercial da América Espanhola criaria uma cunha nas relações entre a península e a América, o que seria a contraface da expansão da economia atlântica no “longo século XIX”. Dessa forma, os acordos de Methuen e Utrecht seriam como duas grandes vigas a organizar o período 1700-1815 nos impérios português e espanhol respectivamente, na medida em que seu alinhamento geopolítico enlaçava a política comercial com fissuras, praticamente irreversíveis, no pacto colonial. A autonomização dos espaços imperiais se consolidava na medida em que “o tráfico de escravos permitia as economias coloniais estarem mais livres das metrópoles porque estavam mais dependentes do trabalho coagido” (ADELMAN, 2006: 56). Destarte, o descongelamento do status quo ibérico nos séculos XVIII e XIX seria um longo e irregular processo de adaptação à nova situação de poder mundial dominada por ingleses e franceses e suas companhias de comércio. Entre as elites políticas de Lisboa até Moscou, a agressividade desses impérios disseminou a percepção de um misto de atraso econômico, frouxidão fiscal e vulnerabilidade militar que germinaria diversos intentos reformistas na segunda metade do século XVIII73. Há um sentimento de emergência implícito aos temas racionalistas do “ressurgimento do império”, para usar a expressão de Marichal (2007: Na Península Ibérica, as figuras mais destacadas a combinar essa percepção de atraso/vulnerabilidade com o imperativo de reformas foram Alexandre de Gusmão (Portugal) e José del Campillo y Cosío (Espanha). Sobre o pensamento político do reformismo ilustrado ibérico, ver os trabalhos de Adelman (2006), Chiaramonte (2004), Halperín Donghi (1985) e Salvatore (1999). 73 149 cap. 1). A espinha dorsal desses processos reformistas foi o esforço deliberado por soldar o circuito que deveria conectar a centralização política, o alento comercial e manufatureiro, a capacidade fiscal, a musculatura militar e naval que, por sua vez, sustentaria a centralização política. No caso das monarquias ibéricas, a centralização passava por reverter o formato político construído pelas guerras contra os muçulmanos na península no século XIV, ditas de “reconquista”. Resultado de uma aliança militar em camadas, essa ordem pós-reconquista alçava o catolicismo e a coroa sobre um arranjo compósito e hierárquico de nobres, potentados e municipalidades que, resguardando privilégios fiscal-militares e autonomia local, estavam unidos pelos laços de fidelidade e compromisso que costuravam o corpo da monarquia74. Em lugar desse formato corporativo, conhecido posteriormente como “antigo regime”, a centralização imperial implicaria recolocar os portos e monopólios metropolitanos como pivôs da circulação no Atlântico, fazendo da hierarquia comercial a plataforma de lançamento para alcançar os estados comparativamente mais avançados. Em Portugal, as reformas do Marquês de Pombal (1750-1777) buscaram estreitar as amarras da monarquia para afastá-la da passividade resultante de Methuen, erigindo diques ao escoamento do ouro brasileiro à City londrina. Não por acaso, o limite político do pombalismo foi justamente uma crise militar em 1762 na qual o imperativo de reaver o respaldo britânico obrigaria a monarquia a abandonar as políticas dirigistas e protecionistas do ministro. Em seu período no cargo, Pombal adotou medidas com profundas consequências para o colonialismo português na América. Imbuído de interiorizar o poder metropolitano no Brasil, Pombal instituiu duas companhias de comércio para operar na região norte, três fortificações militares na bacia do Amazonas, espalhou funcionários régios pelo interior da colônia e criou a Junta de Comércio com o objetivo de reduzir a margem de liberdade das casas mercantis brasileiras. A unificação administrativa do espaço colonial no Rio de Janeiro, como veremos no capítulo 10, só revela a extensão de suas consequências a partir da independência brasileira em 1822. No pano de fundo do reformismo pombalino estava a escravidão africana e o ouro brasileiro: a tributação do minério foi alterada para controlar seu contrabando Para um panorama da construção monárquica espanhola após 1492, ver Anderson (1974: cap. 3) e para suas formulações doutrinárias ver Brading (2003), Chiaramonte (2003; 2004), Neves (2017), Uribe-Urán (2006). 74 150 indiscriminado e toda uma economia regional subsidiária foi alentada para atender a mineração (BLACKBURN, 1998: 483-494). De 1730 a 1770, a produção brasileira se manteve no patamar de 10 toneladas anuais de ouro. Como causa e consequência das reformas, o volume do comércio brasileiro atingiu em 1760 aproximadamente o dobro do que fora registrado em 1710, elevado sobretudo pelo açúcar e pelo ouro. A moeda de ouro fundida no Brasil e em Lisboa adquiriu ampla circulação internacional, como o peso de prata espanhol. De 1750 até a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que abalroou Portugal inclusive em território metropolitano, houve paz com os espanhóis e o comércio legal e ilegal cresceu na região fronteiriça do Prata. No caso da coroa espanhola, essa guerra foi o gatilho inicial do movimento reformista: a marinha britânica tomou de assalto Havana e Manila, beirando atacar também o porto de Veracruz no México. Enquanto Portugal temia por sua soberania continental, os espanhóis perceberam quão vulnerável estava seu longevo império colonial. O eixo central das reformas iniciadas por Carlos III em 1765 foi instituir um sistema de governo direto através de intendentes, que a partir da década de 1780 foram substituindo definitivamente o sistema de corregedores e alcaldes maiores. Tal havia sido o trauma de 1762 que o primeiro intendente, Miguel de Altarriba, desembarca em 1765 exatamente em Cuba. A exação metropolitana foi crescendo consistentemente na segunda metade do século XVIII, respondendo à pressão militar das guerras intermitentes contra o Reino Unido entre 1761 e 1803 e contra a França revolucionária a partir de 1793. Só o Vice-Reinado da Nova Espanha enviou 250 milhões de pesos de prata de excedente fiscal à metrópole entre 1760-1810 (MARICHAL, 2006; 2007; ver Tabela 4.2). Nas colônias menos opulentas tal era a escassez de prata circulando que se utilizavam meios de pagamento alternativos para as transações cotidianas. Além disso, uma transformação importante que se enseja em 1765 (continuada por decretos régios de 1778 e 1789) é a flexibilização dos monopólios comerciais no Atlântico espanhol. De um lado, isso significava a concatenação de circuitos intracoloniais independentes às corporações comerciais de Cádiz ou Sevilha, levando, por exemplo, o açúcar de Mendoza a Potosí, o couro da pampa úmida a Charcas, o milho do vale mexicano a Zacatecas ou o cacau venezuelano a Veracruz. De outro lado, o comércio entre a América Espanhola e a península desvencilhou-se do monopólio de Cádiz, abrindo-se a mais de dez outros portos; os mercadores das 151 colônias também receberam autorização para transportar em direção à metrópole com o fim do sistema de “navios de registro”. Os produtos estrangeiros puderam chegar legalmente às colônias americanas através da intermediação dos portos metropolitanos e de taxas adicionais, e o fizeram em tal monta que somavam 80% do valor dos produtos que saíam da península em direção à América (HALPERÍN DONGHI, 1985: 56). O resultado geral dessa flexibilização foi a construção inédita de um espaço de circulação desimpedida por portos coloniais e metropolitanos, conectando espaços interiores de produção primária baseada sobretudo no trabalho coagido. Com a criação dos consulados comerciais em Havana, Cartagena, Caracas e Buenos Aires entre 1792 e 1794, esse novo arranjo imperial é complementado com grupos de pressão organizados nas colônias para reivindicarem benefícios na sede do império (ADELMAN, 2006). No entanto, a liberalização comercial da segunda metade do século XVIII não deve ser confundida com nem lida como antessala do ideal de “livre comércio” da era vitoriana; seu propósito deliberado foi dinamizar o comércio intraimperial como estratégia de luta contra o inimigo britânico, como forma de arrecadar mais e reverter o contrabando que grassava desde as concessões de Utrecht (SALVATORE, 1999). Esse esforço gerará, como no caso do ouro brasileiro, um último surto expansivo do intercâmbio colonial. Até a guerra contra o Reino Unido bloquear o comércio marítimo espanhol em 1796, as exportações anuais da América para a península já eram quatro vezes maiores que em 1778 (WALLERSTEIN, 1988: 239) A contrapartida militar das reformas bourbônicas não deve ser menosprezada, já que induziu, especialmente com a criação dos corpos de milícias, a uma militarização da própria sociedade colonial (LOVEMAN, 1999: cap. 1). Só no Rio da Prata e no Chile, seriam formadas 55 novas unidades entre 1760 e 1810, superando em muito a capacidade portuguesa de reação à época (VOGEL, 2001). A criação das capitanias gerais de Cuba (1764) e Venezuela (1777), bem como do Vice-Reinado do Rio da Prata (1776) sediado em Buenos Aires, tinham explícitos propósitos militares75. No caso deste último, cujos reforços recebidos superavam quatro mil soldados, eles iam além da defesa contra assédios inimigos: em 1776, aproveitando-se do Com as reformas bourbônicas, a estrutura administrativa do Império Espanhol na América passa de dois (Peru e Nova Espanha) a quatro vice-reinados (Rio da Prata e Nova Granada), além de cinco capitanias gerais (Caracas, Chile, Porto Rico, Guatemala, Flórida). 75 152 envolvimento do grande aliado de Portugal na guerra de independência dos Estados Unidos, um destacamento espanhol invade a Colônia de Sacramento e expulsa definitivamente os portugueses da foz do Prata. Assim, há semelhanças entre as reformas pombalinas e bourbônicas no eixo coercitivo e fiscal, embebidas que estavam ambas no contexto de escalada competitiva entre os estados europeus. Se a paralisia das reformas portuguesas resultou de sua vulnerabilidade à ameaça externa, no caso espanhol o apetite fiscal bourbônico enfrentou uma escalada da resistência social, com grandes rebeliões em Quito76 (1765), em Nova Granada77 (1781) e no Peru (1780-1782) (ver Tabela 4.3). “Se, como levantamento indígena, o desencadeado por Tupac Amaru foi um fracasso”, diz-nos Tulio Halperín Donghi (1985: 70) sobre a rebelião andina de 1780-1782, “como advertência sobre os riscos de uma política de reforma em uma sociedade e uma ordem política de extrema fragilidade resultou mais eficaz”. A onda de revoltas indígenas que chacoalhou o Peru desde 1737, mais do que um prelúdio à independência criolla, foi sobretudo um protesto recorrente contra a taxação78 e o trabalho coagido sob o repartimiento de comercio colonial, operado por alcaldes maiores e corregedores reais em seus distritos. Esse sistema, que vingou sobretudo nos Andes e no México, seria extinto em 1786 com a Ordenação de Intendentes, que concedia liberdade de trabalho e comércio para os indígenas. Triunfo da resistência indígena por um lado, intento racionalista das reformas bourbônicas por outro, essa transformação geraria ressentimentos na elite colonial — inclusive entre os eleitores de Oaxaca que, à época das eleições para as Cortes de Cádiz, manifestariam seu desgosto com a indolência recente dos índios. Em outras palavras, estamos no A chamada Rebelião dos Bairros ocorrida em 1765 foi a maior sublevação urbana do período, tendo clara conotação fiscal. O vice-rei de Nova Granada havia designado um interventor em 1764 para reformar a cobrança de impostos em Quito e combater o contrabando. As medidas foram implementadas à revelia da elite local, o que motivou uma reunião de cabildo aberto na municipalidade em dezembro de 1764. A sublevação dos bairros pobres da cidade atingiu o ápice entre maio e junho de 1765, resultando na fuga do interventor. 76 A chamada Revolta dos Comuneros (1781) mobilizou considerável base popular em diversas cidades do Vice-Reino de Nova Granada. Os rebeldes denunciavam os abusos do Visitador Regente, nomeado pelo Coroa Espanhola para supervisionar e elevar a arrecadação regular. A contenção do movimento só se realizou mediante um pacto com os rebeldes, que foi ignorado e descumprido pelas autoridades coloniais. 77 Há uma discussão interessante a respeito da centralidade dos impostos ou do trabalho coagido para a eclosão das revoltas andinas do século XVIII. Com as reformas bourbônicas, a alcabala (imposto de compra e venda) deixou de limitar-se a bens sofisticados e passou a afetar a base da pirâmide social, sufocando as condições básicas de vidas da população indígena. 78 153 limiar da grande e múltipla convulsão social da virada do século XVIII para XIX, que envolveu protagonistas tão distantes quanto muçulmanos africanos, advogados franceses, cossacos russos, quéchuas andinos e nacionalistas alemães. Com base no panorama visto até aqui, podemos aproximar-nos dessa conjunção crítica a partir do entrecruzamento entre três tendências amplas: a concorrência econômica e militar de impérios mundiais, a tensão social decorrente da extração forçada de trabalho e impostos, e a rearticulação de uma economia atlântica controlada pelos europeus e calcada na escravidão capitalista. 4.2. A Era das Revoluções em perspectiva mundial O estudo da chamada Era das Revoluções esteve originalmente dominado pelos episódios da Europa Ocidental, especialmente pela conjugação de sua face econômica da Inglaterra industrial com sua face política na França republicana (HOBSBAWM, 1996). Nessa narrativa, a inclusão do resto do mundo se dá em termos difusionistas: interroga-se quando e como a ruptura histórica promovida na Europa Ocidental chegou aos outros povos. Ora, como já sabemos que “Inglaterra” e “França” não são, em fins do século XVIII, uma ilha anglo-saxã nem um hexágono gaulês, temos ferramentas para deslocar o difusionismo construído pela explicação exclusivamente europeia para fenômenos europeus. No próximo capítulo, observaremos melhor o tema da industrialização; aqui, a ênfase recai sobre o terremoto político da Era das Revoluções como uma “nova onda de rebeldia em escala sistêmica com origens profundas na luta pelo Atlântico” (ARRIGHI, 2009: 52). Para tal, o primeiro passo é projetar a escala propriamente mundial da crise, como forma de perceber também sua heterogeneidade em termos de atores e horizontes ético-políticos (ARMITAGE & SUBRAHMANYAM, 2010). Na África Ocidental, encontraríamos na segunda metade do século XVIII o apogeu dos movimentos de renovação muçulmana que haviam surgido ali cem anos antes, resultado de um tecido social esgarçado pela guerra e pela escravidão. No império russo, cuja centralização monárquica e expansão militar ao sul tentava acompanhar o esplendor mercantilista de seus vizinhos atlânticos, a exploração intensiva da servidão para uma economia exportadora primária fomentou, entre 1773 e 1775, uma gigantesca rebelião de cossacos e camponeses no vale do Volga. Com a morte do 154 imperador chinês Qiang Long em 1799, acendem-se rumores e conspirações de que a dinastia Qing estaria perdendo o Mandato do Céu para governar, germinando revoltas de variadas inspirações, das quais a da Lótus Branca (1796-1805) foi certamente a mais impressionante (POMERANZ, 2010). Como esses, outros exemplos poderiam ser buscados nos Andes, na Arábia, na Indonésia ou no Caribe para demonstrar a diversidade dos conflitos sociais em curso nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do XIX. De uma forma muito ampla, o que se percebe é a reversão mundial do ímpeto imperial do século anterior (c.1650-1740), em que formações tributárias extensivas se consolidaram na Eurásia (BAYLY, 2004: cap.1). Esse movimento inicial de ampliação do escopo de observação coloca outro tipo de risco. Estariam todos episódios de insubordinação e conflito social ao redor do mundo ligados causalmente a algo vagamente definido como “sistema” ou “Era das Revoluções”? Uma resposta afirmativa nos levaria a um estruturalismo bastante simplista, convertendo a “história mundial” em uma narrativa totalizante que encaixota a priori o significado das experiências históricas locais (ADELMAN, 2005). A revisão do eurocentrismo da Era das Revoluções não pode levar a assumir que uma mesma crise estrutural subterrânea está produzindo rebeliões sincrônicas da Australásia ao Caribe. Além de um globalismo sabidamente anacrônico para o período, um determinismo causal desse tipo desvalorizaria a heterogeneidade e a diversidade das lutas sociais em escala global, justamente o que se estava tentando resgatar. Reconhecer que há um acirramento do conflito social para além do escopo de Europa Ocidental e EUA é, ato contínuo, admitir que nessa tendência convivem coincidências e contingências entre contextos sociais muito discrepantes, irredutíveis a uma generalização causal forte. Ora, os muçulmanos wahhabitas que se organizaram em nome da renovação da fé na península arábica na década de 1750 não são sans-culottes maometanos. São duas histórias em si diferentes, o que não invalida a descoberta de fios que as interligam. Pelo contrário, levar em consideração que a “história mundial” não tem a missão de produzir um relato coerente, universal e unificado do mosaico da história humana é justamente abrir a possibilidade para o estudo de comparações e conexões entre seus processos. Nessa linha, seria plausível pensar como o desafio do novo estado wahhabita ao controle otomano das cidades sagradas “encontra” a Revolução Francesa quando o 155 Egito é invadido pelas tropas napoleônicas em 1798. A conexão se torna mais palpável se pensarmos do ponto de vista de um observador otomano da época, atento aos dois assédios contra seus vassalos imperiais. Usando outro exemplo contemporâneo, pensemos na agitação popular contra a invasão estrangeira da Índia, inclusive com mobilização das castas baixas. Seu crescimento remonta a uma inflexão na política colonial britânica para um controle mais estreito na Índia, cujas origens, por sua vez, se conectam à procura de alternativas fiscais após das treze colônias norte-americanas (1776-1783). Dessa forma, um passo importante para reavaliar a Era das Revoluções seria substituir a imagem de um par de nações europeias na ponta da flecha da história, irradiando mudança pelo mundo, ou de um mesmo movimento orquestrado e coerente em todo o planeta, para um conjunto de conexões, processos e contingências históricas que espiralaram em uma economia mundial em expansão, criando pontos de não-retorno e epicentros revolucionários. Um segundo passo para repensar a Era das Revoluções em escala mundial, que encontra respaldo na historiografia mais recente sobre o tema, é relativizar o singularismo modernista da linguagem revolucionária francesa ou anglo-saxã (ARMITAGE & SUBRAHMANYAM, 2010; BAYLY, 2004). Trocando em miúdos, isso significa o seguinte: ao assumir que a Revolução Francesa foi movida pelo uso da razão abstrata, pela crença no individualismo e no progresso, pela soberania nacional, popular, laica e liberal, somos obrigados a cristalizar essa revolução como inauguração épica da modernidade no palco da história (ver capítulo 3). No entanto, além de invisibilizar os paradoxos e contradições da própria Revolução Francesa, isso dinamitaria todas as pontes possíveis de conexão e comparação com o resto do mundo, subitamente reduzido a povos “sem história”. A mera expectativa de que no Oriente Médio, nos Andes ou na China os desafiantes da ordem estabelecida recorressem à linguagem ocidental da razão, dos direitos ou da cidadania já é uma presunção de universalidade bastante etnocêntrica. Ainda mais etnocêntrico seria supor que, por não se valerem dessa linguagem, os povos do resto do mundo não fossem capazes de expressar sua indignação e revolta no ciclo de conflito social de 1770-1840, nem sua projeção própria de justiça e bom governo. Considerar as revoluções ocidentais descoladas dos demais contextos contemporâneos de fricção política exige alguma etiqueta de conotação orientalista (como tradicionalismo, milenarismo, fanatismo religioso) aplicada aos segundos. 156 Mais do que isso, hoje já dispomos de trabalhos que tensionam exatamente essa fronteira. No caso do mundo anglo-saxão, o reexame da tradição do republicanismo cívico, essencial na independência dos Estados Unidos, revela suas raízes nos valores comunitários, no apreço à virtude, no localismo e na religiosidade popular mais do que um apego à razão descarnada do Iluminismo. Isso permite explorar a hipótese de que “ideias não dessemelhantes às tradições europeias de republicanismo cívico existiram em muitas sociedades mundiais” (BAYLY, 2004: 288). No caso do mundo muçulmano, “muito do primeiro pensamento do nacionalismo muçulmano e do pan-islamismo foi atrás das tentativas dos moralistas medievais árabes e persas de reconciliar a moralidade cívica de Aristóteles com as normas do profeta para uma vida devota. (...) Aristóteles foi comum às duas civilizações” (BAYLY, 2004: 289) O propósito desse exemplo é esfumaçar a oposição modernista entre os eruditos ocidentais e o resto, o que será decisivo para estudar a crise dos impérios ibéricos e as independências latino-americanas. Por um lado, se deixamos de lado a régua europeia para medir o mundo, percebemos a emergência de um leque amplo de lutas sociais, utopias em conflito na Era das Revoluções, inclusive a associação, fora da Europa e frequentemente contra ela, da legitimidade do poder político em bases imanentes e populares79 (BAYLY, 2004, cap. 2). Na América Latina, o pactismo ibérico oferecia uma linguagem constitucional de soberania popular distinta daquela da Ilustração francesa (CHIARAMONTE, 2004). Diante da polêmica sobre a escravidão atlântica, emerge nessa conjunção crítica tanto um “liberalismo republicano” de viés antiescravista (HALPERÍN DONGHI, 2009: 302) como um “liberalismo escravista” calcado nos direitos individuais dos proprietários (BERBEL & MARQUESE, 2010; MARQUESE, 2003). De certa forma, é isso que se pode chamar de “origens Bayly faz a audaciosa sugestão de que o símbolo do “povo” enquanto tal unia as forças revolucionárias do período. Ele diz que “talvez mais importante que qualquer filosofia política específica era o símbolo do ‘povo’ em si. A ideia de que o povo tinha direitos e podia também agir como uma força criativa, até revolucionária, na política era global. Escravos insurretos no Caribe, ativistas das castas baixas na Índia, artesãos rebeldes em Gênova podiam invocar os direitos do ‘povo’ e ser entendidos, até temidos, muito além de suas localidades” (BAYLY, 2004: p. 107) 79 157 multicêntricas da produção ideológica”, como contraposição ao difusionismo modernista na história mundial80 (BAYLY, 2004: 471). Por outro lado, também no caso da Europa Ocidental, a ruptura da Era das Revoluções não se circunscreve ao advento da razão, da liberdade e da cidadania contra o absolutismo gótico. Ao invés de episódios equivalentes à modernidade teórica, sabemos que sua força reside na interposição de imaginários comunitários, consuetudinários e religiosos na mobilização das pessoas, para não falar, como já se estabeleceu claramente para a Revolução Francesa, de sua fome. Essa miscelânea é especialmente forte no mundo rural que foi onde se definiu a cadência de radicalização da revolução (SKOPCOL, 1979). Nesses limites, o Iluminismo foi um movimento intelectual profundo que inevitavelmente marcaria a forma como os europeus (e não só eles) articulariam seu dissenso e suas utopias; contudo, seu discurso autorreferenciado de progresso universal não pode ser aceito pelo valor de face. Além da tentação de transformar tudo em antecedentes ou consequências da Revolução Francesa, há outra tendência tão comum quanto traiçoeira: ao fincar apoios nas revoluções triunfantes, comumente identificadas com os EUA, a França e eventualmente o Haiti e a América Espanhola, tornam-se invisíveis ou irrelevantes as inúmeras resistências que não se enquadram no desfecho épico da tomada do poder. Como constatou Tilly (1978), quando falamos em revolução sempre nos vem à mente as vencedoras. No extremo, a ideia de uma conjunção crítica entre 1770 e 1840 remete a um emaranhado infinitesimal de conspirações, rebeliões armadas, fugas de escravos, petições, declarações de princípios, incêndios de fazendas, editoriais inflamados, marcha de exércitos, eleições, entre outras formas de confronto político, muitas das quais possivelmente perdemos o rastro documental. É verdade que determinados episódios adquirem maior ressonância histórica pelas apropriações que são feitas na disputa política posterior, na chave da exemplaridade ou contraexemplaridade (MÉNY, 2010). A Revolução Haitiana, na qual um de seus historiadores identificou “a característica peculiar de ser impensável mesmo enquanto acontecia” (TROUILLOT, 1995: 73), tem contágio maiúsculo e 80 Segundo o autor, seria possível “escrever uma história global das ideias, uma que também enfatize as origens multicêntricas da produção ideológica” (BAYLY, 2004: 471). Em seguida, faz menção ao período 1780-1820, argumentando que ideias contemporâneas como a ‘revolução’ no sul da Ásia, a ideia árabe/wahhabita de ‘renovação’ e o tema chinês do fim do ‘mandato do céu’ “parecem vir de tradições de pensamento muito diferentes” (BAYLY, 2004: 471). 158 imediato no contexto americano, onde se registra uma sequência de conspirações, fugas e rebeliões negras (ADELMAN, 2006: 92-96; ver Tabelas 4.4 e 4.5). Sua irradiação também ocorreu pelos instrumentos de repressão colonial: os insurgentes venezuelanos capturados com Francisco Miranda em 1806, por exemplo, foram acusados de serem traidores afeitos ao “tirano negro Dessalines” (ADELMAN, 2010: 399). Os imaginários de ordem eram mutuamente constituídos pelos eventos da época e suas interpretações. Nesse sentido, as revoluções triunfantes nos Estados Unidos, na França e no Haiti fatalmente serviriam de referência concreta a ser apropriada no confronto político do ciclo das independências hispano- e luso-americanas. Por sua vez, a experiência espanhola foi exemplo e contraexemplo recorrente nas controvérsias contemporâneas no império português (PIMENTA, 2003). O elemento central da Era das Revoluções atlântica não é a coincidência de lutas, seu número ou sua coerência ideológica; trata-se, antes de tudo, de como o encadeamento delas criou pontos de não-retorno ao desestabilizar hierarquias sociais e os fundamentos ético-políticos da ordem vigente. Os pilares da expansão sistêmica no século XVIII, a legitimidade monárquica, a escravidão capitalista e o poder colonial europeu, são postos em xeque. Alarga-se o horizonte de possibilidades no qual atores sociais e suas utopias disputam o sentido da ordem em reconstrução, inclusive pela reinvenção e adaptação daqueles pilares abalados. Com trajetórias específicas em cada contexto, há uma aceleração da agonística de construção da ordem: do vulcão de imaginários de ordenamento social revolvidos na conjunção crítica há os que são marginalizados, os que são exterminados, os que são cooptados ou moderados, e há os que vão se concatenando e solidificando em uma nova ordem vigente. 4.3. Contingência, conflito e impérios no percurso das independências Em julho de 1797, o Capitão Geral da Venezuela Don Pedro Carbonell é informado de uma conspiração republicana em La Guaira e captura 65 pessoas envolvidas. Não tardou a se descobrir as estreitas conexões dos republicanos venezuelanos com alguns intelectuais deportados da Espanha após uma tentativa de depor Carlos IV no ano anterior. Entre os expatriados peninsulares, como Manuel Campomanes e Juan Batista Picornell, e seus parceiros venezuelanos, como Manuel 159 Gual e José María España, um laço de convicção os unia em torno do republicanismo ativista, radical e anticorporativo que a Revolução Francesa inaugurara. Entre os conspiradores de La Guaira, além de traduções da Declaração de Direitos de 1789 e outros folhetos subversivos, foram encontradas canções impressas, como uma versão americana da Carmagnole jacobina em que se liam os seguintes versos: “Yo que soy un sincamisa / un baile tengo que dar / y en lugar de guitarras / cañones sonaran / Si alguno quiere saber / por qué estoy descamisado, / porque con los tributos / el Rey me ha desnudado”. Em outro cântico revolucionário, a chamada “Canção Americana”, os conspiradores de Gual e España entoavam que “La Patria es nuestra Madre / nuestra Madre querida / a quien tiene el tirano / esclava y oprimida”. Leitores de Rousseau e imbuídos do projeto de uma Venezuela independente, estes insurgentes inscreveram seus nomes entre os hoje celebrados pioneiros das lutas patrióticas, mas, ao cruzar o delicado limiar de arregimentar negros e pardos para lutar pela liberdade, foram isolados, expatriados e mortos com apoio da elite local. Dos 65 capturados em julho de 1797, apenas 34 eram brancos, sendo 21 espanhóis81. É tentador partir de casos como a conspiração de Gual e España (1797), ou a Inconfidência Mineira no Brasil (1789) e o périplo de militantes ilustrados como Francisco de Miranda e Antonio Nariño, para encontrar ali o gérmen das futuras nações americanas. Frente às novas investidas do absolutismo ibérico, forma-se no espírito dos colonos a imagem futura de uma pátria livre e progressista, que o desenrolar da história acabaria por confirmar. Sob essa insígnia, as rebeliões de índios e escravos podem também ser incluídas no majestoso desabrochar da pátria, desde que filtradas pelos ideais majoritários de liberdade e igualdade. Em um plano mais abstrato, pode-se traduzir essa narrativa como uma teleologia nacional porque a independência é antecedida e presidida por uma comunidade imaginada, encaixotando um momento de indefinição das formas políticas e de conflito social multiforme a um “princípio de nacionalidades”82. Alimentado pelo romantismo, esse princípio Sobre a rebelião de Gual e Espanha, ver Adelman (2006) e Lynch (2009). Para um estudo mais detalhado sobre a trajetória dos cantos revolucionários, ver Bugliani (1999). 81 Ninguém foi tão sofisticado e convincente na crítica à teleologia subjacente ao princípio das nacionalidades no estudo das independências latino-americanas quanto o historiador argentino José Carlos Chiaramonte (2004; 2016) em seu diálogo direto com Benedict Anderson (1993) e seus seguidores. Outras contribuições para essa revisão historiográfica se encontram em Adelman (2006), Chaunu (1972), Esheli, Kayali e Young (2006), Gouvêa (1997), Knobl (2011), Xavier-Guerra (2000). 82 160 redescreve o conteúdo anterior de “nação” pela fórmula política em que “a cada nação, um estado; em cada estado, uma nação”. Nesta seção, portanto, buscaremos demonstrar como esse ponto de vista distorce e simplifica aspectos centrais do ciclo das independências latino-americanas. Por contraste, três movimentos são destacados do ponto de vista teórico, tecendo pontes com a primeira parte da tese. O primeiro é o resgate da contingência que permeia o desenrolar das crises imperiais que desembocam em novos estados, deslocando a presunção de necessidade histórica por trás da transição de império a nação (ESHELI, KAYALI & YOUNG, 2006). Desdobrado deste, o segundo movimento é o reconhecimento da abertura de horizontes do confronto político, em lugar de polarizar dois campos antagônicos identificados como moderno e tradicional, ou o nacional e o colonial. O terceiro argumento sobre o ciclo das independências traz ao primeiro plano a dimensão imperial da disputa pela ordem naquele contexto, como uma chave alternativa à análise que segmenta o processo na escala de estados nacionais que sequer existem com nitidez à época. De forma geral, revalorizar os gatilhos contingentes da independência implica assumir que ela não era o desdobramento necessário de um desenvolvimento cumulativo anterior, isto é, de uma maturidade da nação livre sob as amarras da tirania metropolitana (KNOBL, 2011). Admite-se, de saída, que a trajetória dos espaços imperiais em crise é uma resultante específica das pressões de desagregação e reintegração, uma possibilidade efetivada dentre outras possíveis. Quando efetivada, sua explicação depende da identificação de uma aliança anticolonial específica que perceba nela, em dada circunstância, uma janela de superação da crise, conseguindo defendê-la com sucesso. O que chamamos de ciclo das independências engloba algumas reivindicações bem-sucedidas, mas muitas outras foram politicamente anuladas no processo, desde a revolta negra de Berbice (Guiana) nos anos 1760 até a República de Yucatán (México) nos anos 1840. A Era das Revoluções não demarca o fim do colonialismo ultramarino europeu, mas um movimento contingente da linha de inclusão do princípio de soberania na América. O exemplo mais comum para evidenciar o papel da contingência nesse período é a sequência de abdicações reais na Espanha após a invasão napoleônica (1807/1808), que geram uma reação em cadeia na América Espanhola que chacoalha as fidelidades e rotinas políticas (XAVIER-GUERRA, 2000). O súbito desaparecimento da figura 161 monárquica cria um gatilho para expectativas e conflitos que não estavam em gestação ou maturação prévia, ou, em outras palavras, estabelece um ponto de não-retorno no horizonte de possibilidades. É impraticável medir até que ponto a história da América teria sido alterada pelo contrafactual em que a dinastia Bourbon fosse mantida no trono espanhol, seja pelo invasor francês, seja pelo respaldo britânico. Assim como não era dado que os colonos ambicionavam sua independência política, nem mesmo quando formaram as Juntas Provisórias nas cidades americanas após 1808, tampouco era autoevidente que a reconquista espanhola após 1814 fracassaria em retomar suas colônias. Quando as forças regalistas retomaram a Nova Granada e o Chile, o próprio Simón Bolívar no exílio sugeriu que a “restauração do governo espanhol na América (...) parece certo” (apud BLAUFARB, 2007: 744). Em 1820, quando Fernando VII enviaria um comboio de reforços de Cádiz a Buenos Aires, uma rebelião de oficiais liderada por Rafael de Riego abriria uma crise institucional na Espanha que acabaria por submeter o rei a uma constituição liberal. Essa situação nova levou a uma guinada de rumos das Américas Espanhola e Portuguesa. Assim como as Abdicações de Bayona (1807-1808) não eram uma etapa necessária do roteiro da independência, a inflexão decorrente do “triênio liberal” na Espanha (1820-1823) não pode ser subsumida às tendências de longo prazo do império bourbônico ou da formação nacional. Esse tipo de esquina da história são um lembrete constante de que o passado se equilibra sobre inúmeras possibilidades não-realizadas, justamente as que uma teleologia nacional se esforça em negar em nome do progresso cumulativo. Recolocar, então, as independências latino-americanas na agonística da Era das Revoluções implica considerar a multiplicidade de projetos políticos em conflito, e suas repercussões para o cotidiano dos setores diretamente envolvidos. Muito além de arbitrar a divisão metrópole-colônia, a política revolvida nas sociedades americanas pôs em questão a validade ou não da escravidão, a monarquia ou a república, o significado do “mau governo” e seus responsáveis, o perímetro de reconhecimento da cidadania, a fronteira entre a “liberdade” e a “libertinagem” de imprensa, a distribuição do fardo fiscal, a soberania e direitos naturais dos pueblos, a arquitetura da representação política, o mandato imperativo ou livre dos representantes, a relação adequada com o comércio atlântico, a vigência ou não da religião oficial católica, a 162 manutenção ou não dos tributos indígenas, a distribuição ou não da terra entre os camponeses, a aceitação de governos militares ou civis, a validade do extermínio total dos descendentes de europeus ou a possibilidade dos ex-escravos se governarem autonomamente em estados livres ou quilombos. Argumentar que todas essas questões estavam em jogo no longo ciclo da independência não significa que elas foram sendo debatidas ordenadamente nos fóruns parlamentares, nem sequer que tiveram o mesmo peso em todo o subcontinente. Por outro lado, significa afirmar duas coisas: primeiro, como questão de fato, a política não se resume aos meios cordatos ou formais de resolução de conflitos, registrados solenemente nas atas parlamentares. A indignação com a opressão e a rebeldia contra a injustiça tomam frequentemente a via da violência, afinal não são menos violentos os meios com que a opressão se mantém. A política de definição da ordem passa por conflitos entre futuros possíveis que envolvem repressão e revolta, não só mediações e compromissos. Segundo, é preciso reconhecer que não são simplesmente “utopias” presentes na Era das Revoluções os discursos e tratados de articulistas inspirados pela Ilustração, mas que o eram também os horizontes de futuro que inspiraram movimentos plebeus em luta contra o que lhes parecia injusto ou indigno. Se, por exemplo, para os conspiradores mineiros de 1789 o fisco colonial lhes parecia ultrajante enquanto a escravidão dividia sentimentos, os escravos que se amotinaram na Nova Granada em 1799 planejavam, segundo um dos seus, “matar todos os brancos e saquear os tesouros do Rei, bem como aqueles de seus súditos” (ADELMAN, 2010: 397-398). Quando Juan Castelli, representando a Junta de Buenos Aires no Alto Peru, anuncia em Cochabamba, com tradução para o quéchua, que “a junta da capital os olhará sempre como irmãos e os considerará como iguais”, a repercussão seria tal que, na rebelião violenta em Huánuco (1812), a 2.000 km de distância, os indígenas evocariam ali o Rei Castel como encarnação do Inca salvador (BERNAND, 2016: cap. 1). Embora a monarquia inca não tenha sido restaurada nem os brancos tenham sido ao final mortos e expropriados, é importante visualizar a amplitude do conflito político para além dos parlamentos e gabinetes, porque com esse olhar temos a dimensão do estremecimento das hierarquias sociais durante o processo. De certa forma, a tendência de contar a agenda política das independências orbitando 163 unicamente ao redor dos temas da cidadania e da representação é uma forma de normalizar o passado de acordo com os temas que o liberalismo posterior sabe lidar bem. Ao ofuscar as possibilidades mais desconfortáveis como o virtual extermínio dos brancos ou o autogoverno dos ex-escravos, aceitamos apagar certas lutas populares, porque derrotadas, e repousar a história sobre uma zona de conforto criollo – conforto esse com que eles próprios não pareciam à época tão seguros de contar. A história das independências não só a de com que sonhavam as elites criollas, mas também a de o que temiam. Essa proposta – isto é, ler o ciclo das independências na chave do confronto político de impérios atlânticos sob estiramento estratégico – serve para contrapor pelo menos três leituras bastante comuns do mesmo período. A primeira é a uma espécie de tese da frivolidade, segundo a qual “a mudança de poder não significava transformação social (...). Daí o caráter essencialmente político e formal da independência” (YUNES, 2009: 216). Com boa dose de determinismo retrospectivo, essa visão tende a minimizar as possibilidades daquela situação revolucionária com base em seu desfecho, contrapondo-a a um modelo de revolução burguesa (ou democrática-popular) espelhado da Revolução Francesa. A conclusão subsequente de que o processo “esteve longe de ser uma revolução burguesa” (YUNES, 2009: 216) parece pouco produtiva e não faz jus ao redemoinho de lutas populares que não aderem às expectativas do modelo. Uma forma associada a essa é ler o ciclo das independências na chave da continuidade, isto é, como sobrevivência encoberta da estrutura de poder imperial da colônia, seu aparato fiscal, administrativo e eclesiástico (por exemplo, KAPLAN, 1996: cap. 3). Essa leitura, disfarçando ou não seu culturalismo, sinaliza um imobilismo histórico que facilmente se imiscui com mitos da “lenda negra” ou da “herança ibérica”. Empiricamente falando, é difícil argumentar pela continuidade administrativa quando a tendência foi justamente de desarticulação das práticas fiscais e legais do período colonial. Se há continuidades ou ressurgimentos, eles precisam ser descritos e explicados sem depender de um núcleo institucional indistinto e subterrâneo. Em poucas palavras, a ordem política que emerge no pós-independência não há de ser a atualização das monarquias absolutistas em nova roupagem, nem uma não-revolução criolla, não-burguesa e não-democrática-popular. O que falta 164 claramente a essas duas perspectivas é uma dinâmica de conflito de horizontes, forças sociais ou utopias que explique a ordem política pós-independência não como um resultado pré-concebido, seja ele o projeto criollo conservador ou a reciclagem da monarquia, mas como um dos resultados possíveis de uma luta que envolveu não somente elites letradas e eurodescendentes. Para discernir a abertura do horizonte de possibilidades, é preciso também evitar o procedimento dicotômico realizado por Xavier-Guerra (2000), cuja crítica antecipamos no capítulo 3. Ao enrijecer a fronteira modernista da linguagem revolucionária francesa, ele acaba por sublimar a atuação de intelectuais ilustrados como motores da revolução, porque se define a revolução em seus termos. Embora outrora inovadora, o risco principal dessa interpretação é, ao reduzir a modernidade ao iluminismo, reciclar fórmulas obsoletas como a “coexistência da modernidade das elites com o arcaísmo da sociedade” para explicar as supostas deficiências do liberalismo político realmente existente (XAVIER-GUERRA, 2000: 361). Consequentemente, a ação política digna de atenção se daria no universo moderno das elites, e não em meio à sociedade arcaica. Por não falar a língua da Assembleia Nacional Francesa, o resto da sociedade colonial fica de fora da história da Era das Revoluções, tal qual os românticos alemães, os dalits indianos ou os cossacos russos. Um volume recente de estudos sobre o pensamento liberal na América Latina oitocentista reconheceu-se tratando quase que exclusivamente de “uns poucos homens educados, porque eram estes os sacerdotes da religião secular do liberalismo” (SAFFORD, 2011: 325). Como já foi apontado na historiografia latino-americana, traduzir a polarização política do século XIX através do binômio liberal-conservador gera confusão porque assume um alinhamento vertical de todas as questões em pugna na forma de dois programas claramente contrapostos, com seus respectivos seguidores e bases socioeconômicas (HALE, 1973; LYNCH, 2008; SAFFORD, 2009). Desfeita essa imagem, é lógico que inspirações liberais ou conservadoras perpassaram diversos cenários das independências. Sobretudo, o que era entendido como liberal ou conservador foi sempre resultado de uma posição no embate político, e não uma fidelidade programática abstrata. A identificação das facções se mistura com os termos da disputa política, inclusive como forma de desqualificar e ridicularizar os adversários. 165 Em paralelo, para diversas questões em pugna, especialmente as socialmente mais explosivas, facções ditas liberais e conservadoras discursaram em uníssono. No entanto, é mais difícil, por inúmeras razões, acessar as bússolas ético-políticas dos movimentos populares no período. Seu caráter sincrético e socialmente enraizado tem sido desvelado por autores que, em contextos diferentes, tem trabalhado sobre as noções de uma “sociologia moral plebeia” (SANIN, 1999), de um “liberalismo popular” (ANNINO, 1999; YOUNG, 2008) e mesmo de uma “guerra de raças” (THIBAUD, 2011). Resumir essas interpretações da sociedade, com seus sensos subjacentes de justiça, a uma ação política “tradicional” parece arbitrário e simplista. Em poucas palavras, em um contexto de esvaziamento da legitimidade monárquica e de instabilidade das hierarquias sociais, a abertura do confronto político extrapolou as balizas do binômio liberal-conservador, este mesmo um recurso tipológico a que não se deve aferrar. Em sociedades em que geralmente menos de 1% da população era alfabetizada, é ingênuo achar que a política passaria unicamente pelos canais letrados das elites europeizadas. Como nos mostrou o exemplo da conspiração de Gual e España (1797), essa disputa política não se fez só com armas, mas também com canções; as fidelidades políticas não se manifestaram só com panfletos, mas com escolhas cotidianas de vestuário e linguagem; da mesma forma, a antipatia contra os espanhóis não foi cevada só com impostos exorbitantes, mas com peças de folclore antigachupín, por exemplo, que os que ridicularizavam83. Usando o exemplo algo extremado dos revolucionários franceses, percebemos que eles “conseguiram politizar todo aspecto imaginável da vida cotidiana, dos nomes das crianças à medida do tempo (calendário revolucionário) e espaço (sistema métrico)” (HUNT, 2010: 32). A análise do confronto político e seus repertórios de ação abre interrogações sobre as dimensões simbólicas e performáticas das lutas sociais durante a independência. Por fim, a aproximação à conjunção crítica 1770-1840 na América Latina resgata, como terceiro movimento teórico, a dimensão imperial da prática política do período, uma consequência direta do que se disse na seção anterior84. Ao contrário da 83 Para dados sobre alfabetização, ver Xavier-Guerra (2000). Para a cisão de vestuário na polarização entre unitários e federais no Rio da Prata, há um comentário breve em Sábato (1999). Para a relação entre o folclore antigachupín com as tensões intrarregionais transferidas da metrópole, há menções em Chaunu (1972). A recuperação da dimensão imperial da das revoluções atlânticas é o cerne do livro de Jeremy Adelman (2006), que explora e renova indicações de Pierre Chaunu (1972) no contexto atual da 84 166 mitologia das nacionalidades in nuce, a referência principal para a articulação de fidelidades, linguagens e reivindicações políticas no Atlântico ibérico foram os procedimentos fundadores do império, inclusive nos casos que redundaram em estados independentes. Como bem apontou Frederick Cooper, “Dentro dos impérios, o pensamento iluminista, o liberalismo e o republicanismo não eram intrinsecamente coloniais nem anticoloniais, racistas nem antirracistas, mas eles forneciam linguagens para fazer e responder reivindicações, cujos efeitos eram moldados menos por grandes abstrações do que por lutas complexas em contextos específicos, desdobradas no tempo” (COOPER, 2005: 24). Em janeiro de 1812, os indígenas de Buriticá elaboraram um memorial de protesto contra a legislação recém proclamada pela Junta Governativa de Antioquia, que determinava a liberdade total dos índios. Alegando perdas econômicas com a dissolução de sua condição corporativa, eles pretendiam conservar as isenções condizentes com o estatuto de “índios” (“a nosso entender úteis segundo nossa pobreza”) tal qual previsto na legislação colonial sem, com isso, deixar de cumprir suas obrigações como “patriotas” e “cidadãos”, “não recusando nenhuma expedição que se projete” (SALGADO HERNÁNDEZ, 2015: 36-48). Há uma manobra de sincretismo entre o “antigo regime” e a “modernidade” que só é inteligível se situada em seu contexto, em que o recurso ao imaginário imperial é atualizado como estratégia de proteção cultural frente ao ativismo do governo revolucionário. Este último, cabe acrescentar, rechaçou a demanda dos indígenas de Buriticá com base nos “princípios de liberdade e justiça” consagrados na Constituição de Cádiz, o que ainda reforça as conexões imperiais do litígio local. O tema da apropriação criativa da linguagem política imperial também repercute no já citado episódio das abdicações forçadas de Fernando VII em 1808. A reação imediata foi a formação de Juntas nas províncias e cidades do reino com o objetivo de resistir, em nome do rei deposto, ao invasor estrangeiro e ao ateísmo francês. Esse movimento se desenvolve tanto na América quanto na Península. Com isso, cria-se uma situação inédita em que as autoridades locais se reivindicam depositárias da soberania sequestrada, ou seja, o espaço imperial se afirma independentemente da autoridade régia. Isso é ainda mais relevante na medida em que, historiografia global e atlântica. Outros pesquisadores que merecem crédito pela originalidade no resgate da dimensão imperial da política moderna são Frederick Cooper (2005) e C. A. Bayly (2004: cap. 6-7). 167 desde 1796, a manutenção de ligações efetivas da metrópole com as periferias imperiais americanas esteve sujeita ao bloqueio naval britânico em situação de guerra (1796-1802 e 1804-1808). Ao mesmo tempo em que reacendia as linhas de fidelidade ao império, a ocupação estrangeira e o vácuo régio colocaram dilemas quanto ao que significava ser súdito de um rei ausente e ao que correspondia a comunidade política responsável pela resistência. Por um lado, o movimento juntista desvencilha-se das doutrinas absolutistas porque não encontra ali base alguma para a ação (XAVIER-GUERRA, 2000). Por outro, o resgate de instituições imperiais (como a convocação das Cortes do reino) e de doutrinas políticas de sua fundamentação (pactismo, jusnaturalismo, constitucionalismo histórico) ocorre em um movimento que extrapola, no plano da prática e do discurso, as referências pregressas do próprio império espanhol. Nesse movimento, abre-se a possibilidade não só de apropriação das referências de “cidadão” e “nação” inspiradas na França e contra ela, mas especialmente de reinterpretações diversas e conflitantes dos compromissos políticos válidos aos súditos do reino diante da conjuntura. No famoso Grito de Dolores (1810), marco da independência novo-hispana, Hidalgo convoca os mexicanos a erguer-se em armas contra os espanhóis em nome do rei espanhol deposto. Dessa forma, a dimensão imperial da política durante a crise não se reflete simplesmente na luta restauracionista das Juntas, mas especialmente no recurso a princípios, convenções e práticas do reino para dar sentido a uma situação radicalmente nova. Do propósito de situar bases não-absolutistas para uma curiosa monarquia sem rei, entrecruzam-se nos debates referências ao pactismo espanhol de Suárez e Vitoria, ao jusnaturalismo de Vattel, Puffendorf e Grócio, sem faltar denúncias à deturpação da autoridade real pelos três últimos séculos de absolutismo, em alusão aos comuneros derrotados em Villalar (1521). Desse revolver de compromissos pactados, memória histórica e direitos naturais, por deslizamentos de sentido e injunções práticas, consolida-se o que ficou conhecido como “primeiro liberalismo espanhol”. Embora sua origem remonte a fins do século XVIII85, seu ponto de culminância será a Constituição liberal e centralista 85 Com os olhos postos nos eventos franceses, a monarquia espanhola se entrincheira no reacionarismo após 1789, expulsando do governo os baluartes das reformas iluministas e proscrevendo o ensino do jusnaturalismo nas universidades (instituído na década de 1770). Forma-se então uma aliança de oposição entre monarquistas reformadores e liberais, campo em que será cevado o ideário de liberdades e prerrogativas individuais consagradas em 1812 (CHIARAMONTE, 2004). 168 adotada pelas Cortes de Cádiz em 1812, que reconhece pela primeira vez a figura do cidadão dotado de direitos inalienáveis (BREÑA, 2011). Na América, como veremos adiante, não foi unívoca a premissa de que fidelidade ao monarca se transferiria para os órgãos provisórios (Junta Suprema, Conselho de Regência e depois as Cortes). Cria-se assim a ironia pela qual a Constituição de 1812 atravessa o oceano junto com reforços militares contra a sublevação independentista iniciada em 1810 no México (BERNAND, 2016: 75-82). A rigor, o liberalismo político peninsular, tal qual o incipiente nacionalismo contra o invasor francês, não se forma exatamente contra o império, mas nasce em seu seio, sustentado por seus recursos e comprometido com sua manutenção. É um equívoco equivaler, portanto, a dimensão imperial ao absolutismo monárquico espanhol, acoplando essa imagem à metrópole enquanto às colônias se reputa um progressismo liberal ou nacionalista. Em seu lugar, a representação geral a que precisamos formar é de uma situação de soberania múltipla (ver seção 1.3) nos limites do espaço imperial espanhol86, com pretensões políticas concorrentes como a reunificação sob tutela francesa com a Constituição de Bayona (1808), o movimento das juntas peninsulares que redundará nas Cortes de Cádiz e, não menos importante, as diversas juntas formadas na América, com posições próprias entre a adesão e a autonomia com relação aos governos vigentes na Espanha. É dessa perspectiva que se percebe o ciclo das independências como uma sequência de “guerras civis do Atlântico espanhol” (CHAUNU, 1972: 133). No extremo, as independências (como rupturas definitivas de colônias convertidas em repúblicas) não surgem claramente no horizonte até o desenrolar da guerra após 1814, quando o aguardado retorno de Fernando VII é acompanhado de um ímpeto violento de restauração do governo absoluto e da submissão colonial. Ou seja, a separação da metrópole se torna a saída possível quando a adesão do império equivalia ao absolutismo reacionário pós-1815. Dessa forma, o encadeamento entre a luta emergencial contra os franceses, a organização de Juntas de Governo, a busca por fundamentos políticos para além do rei (sequestrado pelos invasores) e o retorno desse mesmo rei em bases reacionárias vai criando sucessivos pontos de não-retorno para Essa perspectiva já foi explicitamente sinalizada por Fernando López-Alves (2000b): “desde as guerras de independência, as primeiras guerras revolucionárias abrangentes vividas pela América Latina, a maior parte do processo de formação do estado no Novo Mundo pode ser interpretado como uma cadeia de situações revolucionárias similares ao descrito por Tilly (LÓPEZ-ALVES, 2000b: 162). 86 169 uma situação inicial de soberania múltipla, desenlaçada enfim pela separação da maior parte do império em repúblicas. Com o fracasso das tentativas de reintegrar as ex-colônias pela força no século XIX, o Império Espanhol na América fica limitado a Cuba e Porto Rico. Embora a trajetória da monarquia portuguesa pareça uma narrativa oposta, não o é de todo, como buscaremos demonstrar na terceira parte da tese (ver capítulo 10). De fato, sua longeva aliança com os britânicos e a migração para o Rio de Janeiro em 1808 fechou precocemente o espectro de possibilidades da crise imperial. É verdade que um golpe preemptivo como esse não era uma possibilidade absurda para a própria Espanha: cabe lembrar que, frente à ofensiva francesa de Madri à Andaluzia em 1809-1810, a Junta Central espanhola esteve também prestes a embarcar para a América, o que não aconteceu. O fato de a família Bragança tê-lo feito paralisou a política imperial portuguesa até o desfecho da guerra anglo-francesa. A independência brasileira em 1822 se encadeia na sequência de situações de soberania múltipla que se abriram no império com a Revolução Liberal do Porto (1821). 4.4. Localismo e soberania O último passo deste capítulo é perceber uma tendência de reassentamento da vida política nas esferas locais e regionais, tendência cuja formulação depende da dimensão imperial da política, do alargamento do horizonte de possibilidades e do percurso contingente da disputa política. Esse localismo se desenvolve de forma revolucionária no caso do Império Espanhol após 1808, e, desde então, o esforço de contrarrestar seus efeitos será um dos marcos da conjunção crítica no caso luso-brasileiro. Como ponto de partida, convém recordar que o colapso da monarquia bourbônica não deu vazão a uma série de estados nacionais, mas sim uma profusão de reivindicações territoriais de soberania. A forma predominante dessas reivindicações foi o município ou a província, subitamente desamarradas das instituições coloniais com base na doutrina de retroversão da soberania (CHIARAMONTE, 2003; 2004; 2016; XAVIER-GUERRA, 2000). Com origem no pensamento pactista ibérico, sobretudo a chamada Neoescolástica, essa doutrina previa que, na ausência da figura régia a unificar o corpo do reino, o exercício da soberania seria reassumido pelas províncias, nações, 170 reinos e municipalidades de que aquele era composto. As autoridades locais e os vizinhos reconhecidos ficariam responsáveis por estipular mecanismos de governo até que a monarquia pudesse ser reconstituída. Como vimos, a legitimidade das abdicações de Bayona (1808) é contestada pela tradição da “antiga constituição” do reino, segundo a qual a soberania não poderia ser alienada sem consentimento dos súditos (CHIARAMONTE, 2016: 77-78). Mesmo que oficial, a transferência de poder aos franceses não se sobrepõe, portanto, aos direitos naturais dos pueblos. É pelo recurso às práticas usuais do império que uma situação nova é instalada, na medida em que, em função da vacância real, os espaços locais se autonomizam como depositários legítimos de soberania. Havia duas formas principais pelas quais se interpretou a retroversão da soberania na América espanhola. Na maior parte dos casos, ela se traduziu em pretensões autonômicas de localidades, cujas instituições coloniais (cabildos e ayuntamientos) se converteriam em poder soberano, apontando, ou não, para uma disposição confederal. Essa disposição confederal demarcava, por um pronunciamento municipal ou uma constituição provincial, a intenção de unir-se às províncias vizinhas por uma delegação consentida de soberania em prol de interesses compartilhados. Em outros casos, a retroversão de soberania subentendia a hierarquia administrativa das colônias, com a precedência de uma cidade capitolina como depositária legítima da soberania no extinto vice-reino ou na capitania-geral como um todo. O conflito entre essas interpretações da doutrina talhou a situação de soberania múltipla tanto quanto os intentos de manutenção do império projetados desde a metrópole. Com a crise da monarquia não emergiram entidades nacionais chamadas Argentina, Equador ou Guatemala, e sim um emaranhado de antigas autoridades vice-reinais com juntas e cabildos abertos espalhados pelo continente, como em Coro, Tucumán, Socorro, Maracaibo, Concepción, Corrientes, Assunção, Santa Fe de Bogotá, entre outras. Premidas pelas circunstâncias, essas localidades extrapolavam a autonomia que a estrutura imperial já lhes reconhecia para uma condição inédita que não era nem nacional, nem colonial. O imperativo da resistência contra os invasores franceses, a importância do autogoverno municipal para o império e a doutrina contratualista da retroversão de soberania são os suportes dessa tendência à localização da vida política no contexto revolucionário. 171 Dessa proliferação de espaços municipais ou regionais relativamente autônomos nasce o primeiro “federalismo” latino-americano, que, a rigor, não aspirava a um estado federal com jurisdição direta e limitada sobre os governados. Tratava-se mais bem de uma pretensão confederal, no sentido de estabelecer uma liga de defesa e cooperação com governo indireto pelo consentimento de estados independentes e soberanos (CHIARAMONTE, 2016). “O que emergia da independência não era um ‘federalismo’ baseado em ‘particularismos regionais’, e sim as tendências autonômicas de cidades, estados ou ‘províncias’ soberanas, buscando afirmar sua independência ou, em caso de considerar isso inviável, unir-se aos pueblos vizinhos em uma organização política nova” (CHIARAMONTE, 2016: 202). Para entender esse horizonte confederal basta lembrar de uma de suas expressões mais célebres, o movimento liderado por José Artigas na Banda Oriental. Quando eclode a Revolução de Maio (1810) em Buenos Aires, Artigas alia-se à junta bonaerense contra os regalistas de Montevidéu, tornando-se figura-chave da independência uruguaia. Por ocasião da Assembleia Constituinte de 1813, quando representantes de todas as cidades do antigo Vice-Reino são enviados a Buenos Aires, o movimento artiguista estabelece os princípios de sua adesão ao novo corpo político constitucional através do que ficou conhecido como as “Instruções do Ano XIII”. No segundo artigo dessas Instruções, lê-se: “não se admitirá outro sistema que o de Confederação para o pacto recíproco com as províncias que formem nosso Estado”, no qual cada província “entra separadamente em uma firme liga de amizade com cada uma das outras”87. O projeto constitucional artiguista se tornou, em meados da década de 1810, a principal referência de resistência ao centralismo de Buenos Aires no Rio da Prata. Conforme os intentos unificadores fracassam ao longo da década de 1810, o marco de autonomia provincial vai sendo formalizando na sequência de constituições criadas pelas novas repúblicas, como Santa Fe (1819), Tucumán (1820), San Juan (1825) ou Santiago del Estero (1830)88. No território da atual Argentina, quatorze províncias autônomas se formam a partir das três originais do regime de intendências (Buenos Aires, Córdoba de Tucumán e Salta de Tucumán), algumas mais afeitas à adesão O texto das Instruções é apresentado em tradução livre da versão castelhana apresentada em Padoin (2013: 04-06). Veja-se também López-Alves (2000a: cap. 2). 87 Sobre a trajetória constitucional das províncias rio-platenses, ver Alonso e Ternavasio (2001) e Chiaramonte (2016: especialmente pp.118-137). 88 172 constitucional aos portenhos (como Entre Ríos, 1823), enquanto outras sequer mencionam um poder superior à própria província (como Corrientes, 1824). Em paralelo, a Junta de Assunção declara sua independência com relação a Buenos Aires já em 1811, rechaçando o exército portenho e transformando em república a antiga Intendência do Paraguai. A relevância do movimento artiguista não se resume à queda de braço sobre a territorialidade da soberania. No bojo de sua mobilização militar, ele se torna líder de um movimento popular amplo no interior organizado como Liga dos Povos Livres. Em 1815, os orientais proclamam o “Regulamento Provisório”, que previa uma reforma agrária radical em favor dos pobres rurais, mestiços, indígenas e negros, distribuindo entre eles as terras de “emigrados, maus europeus e piores americanos” (art. 12º). A disputa sobre a territorialidade da soberania estava envolta no conflito agrário e sociorracial. Como em várias partes do continente, a mobilização militar multiétnica nas guerras de independência causaria abalos mais gerais nas hierarquias coloniais, no horizonte de expectativa dos subalternos (LOVEMAN, 1999: 32-43). O movimento artiguista, ao armá-los, também flexionava o idioma constitucional do período em direção a um horizonte confederal com justiça redistributiva, uma possibilidade que, no desenrolar da soberania múltipla no Prata, acabaria sufocada pela guerra. Não se deve supor que a doutrina de retroversão da soberania ensejasse necessariamente apropriações democratizantes. Na margem oposta do Prata, por exemplo, a reivindicação de autonomia provincial foi o esteio para a deposição do jacobinismo portenho de Mariano Moreno e Juan José Castelli pelos líderes conservadores do interior. Na Nova Espanha, o direito natural das municipalidades serviria tanto para ao contágio inicial da insurgência rural de 1810 como para sua repressão, quando o general Iturbide consegue angariar apoio dos municípios constitucionais com base nas três garantias (ver capítulo 8). A abertura do horizonte de possibilidades históricas se expressava também nas projeções espaciais da política, da utopia bolivariana de união federal da América Espanhola à soberania reivindicada pelos vizinhos em um cabildo aberto. Ao fim e ao cabo, a tendência à localização da vida política desenharia uma geografia política avessa aos projetos emergentes de unificação e centralização nacional. 173 Na Capitania Geral da Venezuela, a proclamação soberana da Junta de Caracas encontra resistência por parte de juntas formadas em Cumaná, Barcelona, Barinas, Angostura e Coro, enquanto constituições independentes são avançadas em diversas províncias (URIBE-URÁN, 2006). A pretensão de criar um estado federal sediado em Caracas pela Constituição de 1811 esbarra na força dos poderes locais. Em Nova Granada entre 1811 e 1812, a formação de dois governos em separado (um centralista em Cundinamarca e outro federalista em Cartagena) foi acompanhada de uma “explosão de múltiplas soberanias locais nas cidades, vilas, paróquias e sítios que reclamavam o direito de autogoverno” (SALGADO HERNÁNDEZ, 2015: 27). Na prática, as juntas provinciais deram lugar a doze estados, declarados independentes e soberanos, com suas próprias assembleias legislativas. Mesmo depois do processo revolucionário, a denúncia da tirania remetia frequentemente à violação desse substrato natural de soberania local. Em 1845, ao destituir o governo do general Flores de seu terceiro mandato na presidência do Equador, Antonio Elizalde o declara, em nome da província de Guayaquil, um usurpador por arrebatar os direitos políticos dos pueblos e extingue sua autoridade por ter “reassumido a província seus direitos políticos por meio das armas” (apud DEMELÁS, 2003: 599). A justificativa ressoa a doutrina neoescolástica do direito à insurgência. Dois anos antes, os representantes de Guayaquil haviam se mantido em silêncio na ocasião de juramento da Constituição apoiada por Flores. Por esses procedimentos, argumenta Marie-Danielle Demelás (2003), sobrevivia o imaginário pactista de construção da soberania como contrato entre pueblos, mediado por pronunciamentos litúrgicos de lealdade coletiva. Ainda, o apelo dos direitos originários das localidades também se expressa por mecanismos que funcionam em um espaço subterrâneo às instituições liberais, sem necessariamente desafiá-las frontalmente. No México, o reconhecimento da cidadania nas municipalidades manteve até o século XX um atrelamento informal com a condição de vizinho, que “se determinava localmente a partir de um juízo valorativo que inseria o indivíduo em suas comunidades” (CARMAGNANI & CHÁVEZ, 1999: 385). Como também mostrou Demelás (2003) para o contexto andino, as práticas pactistas arraigadas nos pueblos permitiam ampliar a participação política com relação às restrições legais ao sufrágio. Fenômenos como os pronunciamentos públicos das cidades a favor ou contra um governante, as petições feitas em nome da 174 cidade, ou ainda as assembleias de apoio e abaixo-assinados que antecediam uma eleição legislativa, sinalizavam a vitalidade da política local, que funcionava priorizando o consenso e o mandato imperativo para a representação. Graças a esses mecanismos subterrâneos, preserva-se práticas comunitárias de todo alheias ao liberalismo, como a “assembleia de vizinhos cujas deliberações não podem terminar senão com uma unanimidade, da qual a eleição é a manifestação a posteriori” (DEMELÁS, 2003: 610). A tendência ao assentamento da vida política em âmbitos locais e regionais não foi inventada no ciclo das independências nem o resume. Enquanto processo, ela é uma extrapolação da vida política colonial, centrada nos municípios e intendências provinciais. Embora suas raízes remontem às reformas bourbônicas, essa extrapolação foi possível graças a um gatilho contingente, a vacância real. Uma vez em movimento, ela se imiscuiu com as inúmeras questões em pugna na construção da ordem política pós-colonial, então maleável a projetos alternativos de futuro. No próximo capítulo, nossa atenção se voltará para as forças por trás do desenraizamento das diferentes modalidades de cotidiano político local, da dinâmica de desencaixe por trás da formação de um estado centralizado. 175 5. CAPITALISMO, TRIBUTAÇÃO E VIOLÊNCIA: AS FORÇAS DE DESENCAIXE DA POLÍTICA DE SEUS CONTEXTOS LOCAIS (1810-1930) “Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural à existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e pressentimentos do porvir”89 Simone Weil Reduzido a uma sombra melancólica do que fora, o cacique Inacayal dos tehuelches da Patagônia vagava pelos corredores do portentoso Museu de Ciências Naturais da recém-inaugurada cidade de La Plata, erigida em 1882 para ser a nova capital da província de Buenos Aires. Magro, curvado e silencioso, o cacique vivia nos porões do museu como parte de sua “coleção viva”, prestando-se a inúmeras medições, testes e questionários com que os cientistas buscavam decifrar aquele parente primitivo. Com tal propósito fora ele transferido da prisão de Martín García, graças à mercê de Francisco Moreno, aristocrata com inclinações científicas que conhecera Inacayal em 1879, ainda em liberdade. Em seu novo confinamento, o cacique convivia com as ossadas expostas de seus parentes e ancestrais insepultos. Os tehuelches povoavam aquilo que o estado argentino chamava então de “deserto”, toda a região ao sul do Rio Salado que desde a colonização fora interditada aos europeus. Além de tehuelches, nesse deserto sul-americano viveram boroganos, pehuenches, pampas, ranqueles e grupos araucanos, estabelecendo com os colonos europeus relações de troca, guerra e amizade. Nas presidências de Nicolás Avellaneda (1874-1880) e de seu ministro da guerra Julio A. Roca (1880-1886), o estado argentino declarou uma guerra de extermínio contra as populações patagônicas, premiando assassinatos, separando famílias, roubando terras, torturando e aprisionando mesmo aqueles que, como Inacayal, eram tidos até pouco como índios “amigos”. Boa parte dos espólios desse genocídio foi acolhida no ambicioso Museu de Ciências Naturais de La Plata, planejado para ser o maior da América Latina. Em 1888, um ano após a morte de sua mulher nas dependências do museu, o cacique Inacayal tirou a própria vida. Segundo os registros oficiais, jogou-se de uma escada. Ainda hoje alguns funcionários do Museu atribuem certos ruídos, bater de portas e 89 Extraído de Weil (1949: 36). 176 ranger de madeira ao espírito do cacique, cujos restos mortais foram restituídos em 2014 ao território tehuelche às margens do Rio Limay na província de Chubut90. Definitivamente não se tratava de um caso isolado: a era dos reconhecidos caciques indígenas – como haviam sido Calfulcurá, que confederara nos anos 1830 os pampas, ranqueles e tehuelches, ou Juan Catriel, pivô do “negócio pacífico dos índios” estabelecido à época de Rosas – estava terminando de forma brutal, e não só na Patagônia. Observado panoramicamente, o “longo século XIX” representou uma avassaladora investida para converter os povos indígenas em “camponeses sem terra ou trabalhadores rurais” (BERNAND, 2016: 307; ver cap. 10). Partindo do caso peruano nos anos 1920, Juan Carlos Mariátegui (2007: 26-34) promoveria uma pequena revolução no chamado “problema do índio” ao constatar que a questão indígena correspondia, no fundo, à questão da terra91. A “campanha do deserto” de Roca, que repartiu as terras roubadas entre generais, fazendeiros e políticos, não poderia ser melhor ilustração para o argumento. Ainda assim, assumir uma “questão da terra” já é traduzi-la em termos de mercado, e portanto percebe a história do ponto de vista dos que a expropriaram. Para os que foram expropriados, a “terra” correspondia aos laços de parentesco e ancestralidade, ao contato cosmogônico com o sagrado, à vida de riachos, cerros e vales, a uma fauna e flora e seus espíritos, a um senso de espaço e de tempo, ao autogoverno de sua tribo. Toda essa expropriação está por trás da melancolia da “coleção viva” do Museu de Ciências Naturais. Ao rebater o que ele considerava uma forma de economicismo, Polanyi afirmou que a degradação causada pela proletarização em uma sociedade de mercado não advinha unicamente da pobreza A história da despossessão dos tehuelches e demais tribos patagônicas é tratada na extraordinária obra de antropologia política “Los indígenas y la construcción del Estado-Nación: Argentina y México, 1810-1920”, de Carmen Bernand (2016). O caso de Inacayal é especificamente tratado nas páginas 175 a 179. Além disso, houve algumas reportagens na mídia que resgataram a história por ocasião da controvérsia envolvendo a restituição de sua ossada (1995) e de seu crâneo (2014) para território patagônico. Ver, por exemplo, “Las historias ocultas del Museo” (Diario Hoy, 23/07/2007); “Los restos de un cacique emblemático ya descansan en su pueblo” (Clarín, 11/12/2014); “Fantasma del museo” (Revista Critica de la Argentina, 03/11/2008); “de cacería con Inakayal” (Revista Anfíbia, 03/06/2018). 90 91 A referência a Mariátegui se justifica pela influência do pensador marxista sobre as gerações posteriores, mas não necessariamente reflete um pioneirismo inconteste nesse argumento. Em 1909 em Cuzco, Luis Valcárcel publica sua tese de doutorado entrecruzando a questão agrária e a questão étnica, o que se tornará o epicentro do chamado “indigenismo cusquenho” nas décadas posteriores (ver capítulo 7). Informado por essa corrente, Mariátegui tenta moderar suas ambições étnicas para compatibilizar indigenismo e marxismo. 177 material, mas sobretudo da “desintegração do ambiente cultural da vítima” (POLANYI, 2012: 176). Mais do que sobre indígenas em particular, esse capítulo é sobre o desencaixe massivo que envolveu a expansão do sistema interestatal capitalista na América Latina sob a hegemonia britânica, como ele foi possível e quais os conflitos resultantes. Não raro, o estudo sobre a “formação do estado” ou sobre o desenvolvimento capitalista na região pressupõe uma espécie de vazio análogo ao “deserto” patagônico. Disserta-se sobre a evolução cumulativa de “capacidades estatais”, “poder infraestrutural” ou “integração nacional”, contrastando isso com a falta de controle sobre o território, a precariedade da tributação, o governo indireto, a inacessibilidade do interior ou a ausência de um sentimento nacional arraigado e coeso92. O deserto está lá para ser desbravado, conquistado, catalogado, tributado e integrado. Contra essa narrativa colonial, o que precisa ser restituído à análise é sua dinâmica de conflito, ou seja, o processo intrusivo e violento que subentende a dissolução de múltiplos espaços políticos pela formação de um estado nacionalizado. Em termos conceituais, nossa tarefa será decifrar esses processos de desenraizamento como contraface da expansão do ciclo extrativo-coercitivo dos estados pós-coloniais latino-americanos, impulsionados pelas oportunidades da nova geoeconomia atlântica. Iniciaremos o percurso pela formação de um ciclo econômico expansivo no século XIX ao redor da industrialização inglesa. Na segunda seção, observaremos esse ciclo desde suas periferias atlânticas, onde se forma uma ligação estreita entre soberania e comércio. Em seguida, o tema será a emergência, nesses estados na periferia, de um pensamento liberal que traduz o progresso como propulsão do mercado. Para que essa propulsão superasse as múltiplas resistências sociais à mercantilização, o fator decisivo é a concentração do controle político da violência, o que será tratado na quarta seção. No último apartado se propõe uma síntese do mecanismo de ganhos mútuos entre estadistas e capitalistas, cuja reprodução tem como subproduto o desenraizamento humano em grande escala. 92 Michael Mann (2006), por exemplo, faz justamente esse argumento, valendo-se de seu conceito de “poder infraestrutural” para se perguntar sobre os “estados-nação bem-sucedidos” (MANN, 2006: 165), chegando à insólita conclusão de que “o maior desafio, portanto, para os Estados latino-americanos permaneceu inalterado por duzentos anos, desde a independência” (MANN, 2006: 190). Ele se inspira, por sua vez, nos trabalhos de Centeno (1997; 2002; 2009; 2014). Um exemplo de análise na chave das capacidades estatais se encontra em Cárdenas (2010). 178 5.1. Os atores e bastidores do liberalismo mundial A emergência da hegemonia britânica corresponde, por um lado, à construção de um horizonte de futuro que acomodasse seletivamente os impulsos da Era das Revoluções e, por outro, ao estabelecimento de um novo arranjo econômico que arrefecesse a competição intercapitalista e interestatal em nome do ganho generalizado. Nesse sentido, consegue erguer à condição de bem comum, de aspiração geral ou interesse universal o que eram, no mundo pós-1815, os interesses imediatos do Império Britânico como sinergia particular entre estadistas e capitalistas. Ao contrário da imagem comum de uma “longa paz” ou da pax britannica entre 1815 e 1914, o período foi de fato coalhado de guerras, genocídios e protesto social, seja na Europa Ocidental ou fora dela. Se chegasse à época aos ouvidos de uma tehuelche na Patagônia, de um comunista alemão, de um soldado malaio, de um sábio sioux, ou de uma ativista negra norte-americana, a insígnia da “longa paz” soaria como um escárnio dos poderosos. Como observaremos mais adiante, para muitos povos do mundo não houve momento mais brutal e belicoso do que esses mesmos cem anos. Descartando, portanto, a hipótese genérica de “paz”, o que resulta surpreendente é como se combinaram, contra a tendência até então dominante, vetores de expansão capitalista com mecanismos de apaziguamento de conflito, combinação essa que teve a Grã-Bretanha como principal líder. De ferrenha mercantilista ela se converte em bússola de uma ordem mundial liberal, articulada pela industrialização capitalista. O que se convencionou chamar de “revolução industrial” significa na prática um salto produtivo proporcionado pela junção explosiva entre trabalho assalariado, fontes inanimadas de energia e o uso de máquinas em um ambiente fabril. Essa combinação já está consagrada na memória social pelo alvoroço de fumaça e ruído repetitivo, trabalho extenuante, poeira, poluição e iluminação precária. Sem dúvida, não haverá outro lugar para buscar esse cenário em fins do século XVIII senão na Inglaterra, mas especificamente nos arredores de Manchester (HOBSBAWM, 2003). É também na Inglaterra do século XIX que uma camada de intelectuais reformistas tentou usar o mercado como referência máxima para a regulação racional da vida social, inspirados por uma teoria do interesse individual como via para a harmonia e o 179 progresso social. Essa ambição de fazer da sociedade um apêndice do funcionamento espontâneo do mercado foi objeto do trabalho clássico de Karl Polanyi (2012). O argumento central de Polanyi é que um mercado autorregulado – em que a vida humana, a natureza e a moeda são tratadas como mercadorias como quaisquer outras – não surge pelo desenvolvimento evolutivo de mercados locais e sazonais. Em outras palavras, uma sociedade de mercado não é a culminância das formas recorrentes que as trocas mercantis assumiram nas mais diferentes culturas humanas. Há uma ruptura a ser explicada, e fazê-lo implica por em evidência o chamado deus ex machina do mercado autorregulado: o estado. É pelo frenesi legislativo dos reformadores que as amarras do mercado à comunidade vão sendo arrancadas, ou seja, o encaixe social e cultural das pessoas, da natureza e dos meios de pagamento vai sendo desenraizado ao ponto de que unicamente sua condição de mercadoria presida seu futuro. Na Grã-Bretanha, os momentos-chave dessa transformação ocorreram com a revogação do Estatuto dos Artesãos (1813), das Leis dos Pobres (1834), bem como a instituição da Lei de Bancos (1844) e a revogação das Leis dos Cereais (1846). Com essa legislação, suprimiam-se as restrições à mobilidade de mercadorias e à flutuação de preços, criando um novo tipo de sociedade baseada em um mercado de trabalho livre, no padrão-ouro e no livre-comércio exterior. Essa conjunção levou a um progresso material nunca antes visto, acompanhado de uma “avalanche de desarticulação social” (POLANYI, 2012: 42). O argumento de Polanyi é indispensável para revisar a imagem corrente de que o liberalismo econômico se constituiu ao redor da contração da ação do estado, ou que essa deveria ser sua agenda em circunstâncias normais. Ele permite também decifrar uma gama variada de resistências concretas às consequências do reformismo liberal, que o próprio Polanyi (2012) chamou de “movimentos autoprotetores da sociedade”. A importância dessas ideias para iluminar o “longo século XIX” na América Latina percorre toda esta tese, e voltará à cena ainda neste capítulo. Mas antes precisamos lidar com um problema de outra natureza: a extrapolação do que ocorreu na Inglaterra para o que consideramos um ciclo sistêmico de acumulação, no qual tanto a industrialização como a utopia de mercado autorregulado foram, sem dúvida, centrais. A seguir, rediscutiremos brevemente a incubação das indústrias de Manchester como a ponta de um iceberg composto por processos mundiais, isto é, cadeias internacionais 180 de valor que produziam lucros extraordinários perante seu entorno econômico imediato. Com isso, podemos iluminar o fato de que o dínamo do ciclo de acumulação não é, rigor, a mecanização fabril unicamente, mas uma divisão internacional do trabalho esculpida por ela e posta em movimento pelo chamado “imperialismo de livre comércio”. Senão vejamos: do capítulo anterior, sabemos que as condições de possibilidade da industrialização na Inglaterra remetem a conexões econômicas mais amplas gestadas no século XVIII, como o tráfico de escravos no Atlântico, a mineração no Brasil português, as plantations caribenhas e a financeirização do capital nas Províncias Unidas. De resto, o controle sobre essas conexões atlânticas foi objeto da corrida interimperial anglofrancesa, que atingiu seu clímax destrutivo na Era das Revoluções. Rompendo os limites do mercado interno das Ilhas Britânicas, um circuito potente e promissor vai se articulando nas duas décadas após 1782, interligando a mecanização têxtil na Inglaterra, o aumento de suas exportações liderado por esse setor, a predominância dos mercados consumidores americanos e, não menos importante, um novo papel assumido pelo comércio exterior para alavancar o crescimento econômico britânico em geral (BLACKBURN, 1998: 522-524). Por essa razão, firmar um horizonte de expansão produtiva em tal contexto dependia de um alargamento geográfico da divisão internacional do trabalho, um dos aspectos de governabilidade proporcionados pela hegemonia ascendente. Ao desenvolver condições de expansão produtiva e combiná-las com um alargamento da escala espacial da acumulação, essa hegemonia, no caso a britânica, descortina oportunidades de ganho que atraem tanto capitalistas como estadistas concorrentes. Essa é a senha para a liberalização mundial subsequente. O marco da adesão britânica ao livre-cambismo foi a revogação em 1846 das Leis dos Cereais, que até então asseguravam certa proteção aos produtores rurais britânicos para o abastecimento interno. É no contexto do acalorado debate sobre essa lei que David Ricardo formula sua lei das vantagens comparativas, como respaldo intelectual à liberalização comercial e à especialização produtiva. Como Wallerstein (1974) e Abu-Lughod (1989) nos lembrariam, essa não era a primeira experiência de divisão internacional de trabalho. O que há de novo é a especialização presidida pela indústria urbana, com periferias rurais produzindo em escala para um mercado mundial de commodities. O algodão vindo do Egito, de Coromandel ou do Alabama, a 181 lã do pampa platino ou da Austrália, as tinturas da Guatemala, o trigo da Romênia ou da Rússia, o óleo de palma do vale do Níger, o chá da China, o ouro da Califórnia e da Austrália, a carne da Nova Zelândia ou do Cabo integravam e azeitavam uma economia mundial que distribuía bens industriais a baixo custo (WOLF, 1982: cap. 9). A viabilidade dessa nova divisão internacional do trabalho tinha dois pilares, ambos muito distantes dos operários exauridos em Manchester e arredores. O primeiro deles corresponde ao que Dale Tomich (2004) chamou de “segunda escravidão” atlântica, o aparente paradoxo pelo qual o trabalho escravo negro readquire ímpeto econômico no século XIX quando os discursos políticos da época, pautados pela liberdade e da igualdade universal, pareciam tê-lo tornado irremediavelmente obsoleto e infame. Discernir os contornos do ciclo sistêmico em formação exige dissolver essa oposição. Segundo Tomich (2004), o notável crescimento do trabalho escravo estava associado a mudanças mais amplas na economia mundial: (1) a dissolução dos exclusivos imperiais do século XVIII fez com que as relações entre centros e periferias não mais se articulassem pelo controle político direto, mas por fluxos internacionais de mercadorias regidos por preços relativos. Ao invés de restrições, monopólios e padrões ditados pela metrópole, o controle sobre a divisão internacional do trabalho significava um poder econômico sobre esses fluxos, que encadeavam os núcleos industriais à produção primária periférica. Ademais, a “segunda escravidão” dependeu também da (2) reinvenção da escravidão associada à expansão do trabalho assalariado, isto é, como polo subordinado de abastecimento do novo proletariado industrial. O significado da escravidão se transforma conforme seus produtos de exportação – café, açúcar, tabaco – entravam na cesta de consumo dos trabalhadores europeus, barateando seu custo de reprodução. “Na medida em que a relação de trabalho capital-salário se tornou amplamente estabelecida”, afirma Tomich (2004: 70), “um imperativo sistêmico de elevar a mais-valia pela redução do valor da força de trabalho emergiu, o que requeria que os produtores escravocratas provessem bens cada vez mais baratos para o consumo da classe operária”. Em outras palavras, a reinvenção da escravidão estava calcada em uma estratificação da força de trabalho a nível sistêmico, em que a extração de excedente do trabalho livre no centro era subsidiada pelo trabalho escravo 182 na periferia, nomeadamente em Cuba (açúcar), no Brasil (café) e no sul dos Estados Unidos (algodão). Por fim, a “segunda escravidão” também foi possível graças a uma (3) relocalização fundamental da produção no espaço atlântico, na qual perderam força os antigos centros caribenhos controlados por Inglaterra e França, como a Jamaica e o Haiti. Esses centros estavam associados ao comércio triangular de corte mercantilista. A Revolução Haitiana e o abolicionismo inglês desferiram golpes sucessivos nesse circuito econômico, que já demonstrava sinais de desgaste e saturação. No entanto, conforme os ganhos ali obtidos eram reinvestidos na indústria, criava-se uma demanda mundial enorme por produtos tropicais, que seria ocupada por novos espaços escravocratas politicamente desvencilhados dos centros industriais. Fruto dessa relocalização, o Império Britânico abandonaria seu protagonismo no tráfico de escravos para assumir centralidade nas operações de transporte, crédito e investimento direto que inseminariam os novos polos escravocratas do outro lado do Atlântico. Por meio de adiantamentos e promissórias, os papeis londrinos circulam no que se tornava um espaço econômico subsidiário à industrialização inglesa, subordinado e indispensável a sua decolagem. Havia um impressionante ganho de escala associado à “segunda escravidão”. Já na década de 1830, a produção cubana de açúcar já havia sobrepujado o que se extraía do Haiti em 1790. À mesma época, a produção de café no Vale do Paraíba já ultrapassara largamente a soma do que se exportava em 1790 de Santo Domingo, Martinica, Jamaica, Java e Suriname (MARQUESE, 2013: 295-304). Ainda em 1850, Cuba e Brasil continuavam como os principais exportadores da América Latina (Tabela 5.1). Já o chamado “reino do algodão” norte-americano (Geórgia, Alabama, Mississipi) foi o grande provedor para a indústria têxtil inglesa, que chegou a importar 250 mil toneladas em meados do século XIX enquanto, em 1790, não consumia mais de 2 toneladas de algodão importado (TOMICH, 2004: 65). A relocalização, portanto, estava ligada à expansão produtiva a um novo patamar. Para além da “segunda escravidão” essa divisão internacional do trabalho dependia de novos mercados compatíveis com sua escala. A construção dessa ordem econômica livre cambista tem uma história de bastidores que vai além dos debates parlamentares sobre a extinção das Leis dos Cereais inglesas. 183 Já tivemos oportunidade de adiantar que o liberalismo econômico do século XIX não se efetivou exatamente como mero laissez-faire, mas sim como a ativa e deliberada fabricação pelo estado de um mercado integrado e livre, onde tudo pudesse ser comprado e vendido, usando como pagamento uma moeda que é ela própria também uma mercadoria. O mesmo vale para uma ordem econômica internacional baseada no livre comércio. Sem dúvida esteve em sua construção o trabalho político dos cobdenitas, como ficaram conhecidos os fervorosos proselitistas da crença liberal pela abertura unilateral do comércio britânico. Nos bastidores dessa militância, contudo, havia o que John Gallagher e Robert Robinson (1953) chamaram de “imperialismo de livre comércio” para representar o uso do poder político para impor, proteger e integrar uma ordem econômica internacional afeita à expansão britânica, por meio de uma espécie de “império informal” (GALLAGHER & ROBINSON, 1953). A importância do termo, como seus autores chamam a atenção, é dissolver a contradição aparente entre uma política de controle imperial e um regime de liberdade comercial. A mecanização inglesa e o ciclo de acumulação a ela associado não são um novo ciclo de prosperidade após um de turbulência: do ponto de vista das civilizações e povos do resto do mundo, trata-se uma descontinuidade brutal em termos de sua capacidade de resistir, barganhar e impor as condições de sua relação com o expansionismo europeu. Enquanto a China tinha seus portos abertos pelo Tratado de Nanking (1842), um já vulnerável império turco-otomano assinava os acordos de liberalização comercial em Balta Limani (1838), os persas assinavam um acordo bilateral em 1836 e o porto de Buenos Aires era bloqueado duas vezes contra a política rosista de resguardar os mercados interiores. No auge do liberalismo vitoriano, marinhas europeias e norte-americanas estavam impondo abertura comercial e pagamento de dívidas do México ao Japão, do Irã à China. Em 1846, por ocasião do debate sobre as Leis de Cereais, um parlamentar britânico em defesa da revogação argumentava que, com a liberalização comercial, as “nações estrangeiras se tornariam valiosas colônias para nós, sem nos impor a responsabilidade de governá-las” (apud WALLERSTEIN, 2011: 120). Assim como uma ordem política não se afirma pela inexistência de coerção, mas pelo controle dos termos de seu emprego, a hegemonia britânica não se confunde com a paz, mas com a canalização, razoavelmente bem sucedida, da violência à 184 expansão sistêmica. Em lugar das guerras avassaladoras do período 1789-1815, o “imperialismo de livre comércio” era um vetor de abertura e disciplina de novos mercados, de acumulação por desposessão, de extroversão de poder contra os povos. As novas fronteiras de expansão permitem arrefecer a belicosidade intestina do sistema. As independências na América Latina, combinadas à abertura comercial e referendadas pelo poder naval britânico, já insinuam a primazia desse “imperialismo de livre comércio” sobre a mentalidade recolonizadora capitaneada pela Espanha e seus aliados. O ciclo de acumulação britânico é comandado pela industrialização urbana sem depender de um mercado de massas. A demanda por produtos industriais, não atendida pela classe operária no limiar da subsistência, é completada pela liberalização comercial mundial, convertida em interesse generalizado. Quando a industrialização desponta, na primeira fase desse ciclo, o comércio tem duas características que reforçam sua atração. A primeira é que a mecanização acarreta um desnivelamento do tempo socialmente necessário para produzir mercadorias antes muito custosas, como os têxteis. O efeito imediato desse desnivelamento é favorecer conjunturalmente os termos de troca das periferias primário-exportadoras. Além do crescimento do volume exportado por essas periferias, há potencialmente um ganho relativo em termos da entrada de bens industriais baratos. Como veremos adiante, esse influxo de produtos importados tem efeitos colaterais a mais longo prazo: ao incidir diretamente sobre os circuitos econômicos pré-existentes, desarticulando-os pela competição de mercado, ele acaba aumentando a fatia da sociedade dependente de produtos industrializados e, consequentemente, das flutuações do mercado capitalista. Além da tendência conjuntural dos termos de troca, a segunda característica do comércio internacional na arrancada do ciclo que imiscui interesse e persuasão é o déficit comercial crônico da Grã-Bretanha. Isso significava na prática que, ao concatenar as pontas de uma nova divisão internacional do trabalho, o Império Britânico pagava mais do que recebia, “distribuía superávits” compensando-os com “créditos invisíveis” de serviços bancários, atuariais e marítimos (até a metade do século) e depois com lucros e dividendos de seus investimentos no exterior (BEAUD, 1994; HOBSBAWM, 2003; WALLERSTEIN, 2011). É óbvio que esses superávits eram distribuídos entre um ramo restrito de parceiros comerciais, mas não há razão para pensar que fosse diferente. Ao controlar o sistema nervoso das trocas, os 185 britânicos podiam atrair parceiros a um comércio expansivo e, em geral, superavitário para estes. O volume do comércio mundial cresce 260% no período entre 1850 e 1870, ápice da hegemonia britânica (ver Gráfico 2.2). Dessa forma, o império britânico esteve no epicentro de uma nova ordem mundial que ele não havia premeditado nem era capaz de impor simplesmente pela força, mas que efetivamente produziu uma conjuntura efêmera de “liberalismo global” no terceiro quartil do século. Como diz Arrighi, “ao apresentar sua supremacia mundial como encarnação dessa entidade metafísica [o mercado], o Reino Unido logrou ampliar seu poder no sistema interestatal muito além do que era justificado pela extensão e eficiência do seu aparelho coercitivo” (ARRIGHI, 1996: 55). Por um período breve de duas décadas e meia, cria-se uma configuração especial de prosperidade material e estabilidade política, com capital barato, inflação moderada e rápida redução dos custos de transação. É o momento em que as estradas de ferro operam uma auspiciosa síntese entre industrialização, atração do capital circulante à produção capitalista e redução assombrosa dos custos de transporte (HOBSBAWM, 1977, cap. 3; O’ROURKE & WILLIAMSON, 2006: cap. 3). A locomotiva britânica parecia desbravar um terreno de crescimento econômico mundial, costurado pelas oportunidades da “segunda escravidão” e do imperialismo de livre comércio. 5.2. Soberania e comércio Do recém exposto, sabemos que a industrialização inglesa, ao desnivelar o tempo socialmente necessário na produção de certos setores e depois no transporte de longa distância93, foi criando em cadeia oportunidades especiais de lucro para proprietários de fábricas, empresas de fretes, bancos, firmas de importação, varejistas, bem como fornecedores de matérias-primas industriais e alimentos. Irrigada pelo valor excedente extraído do trabalho em cada ponta do processo, era uma economia que crescia não só na Inglaterra mas nos segmentos a ela conectados. Assim, o capitalismo industrial como nível superior à economia mercantil foi interligando Os têxteis ingleses, durante décadas o principal setor em transformação, experimentaram uma redução de custos de produção de cerca de 70% entre 1780 e 1812 (GÓMEZ-GALVARRIATO, 2005). Uma redução equivalente do índice de preços dos fretes britânicos ocorreria entre 1840 e 1910. 93 186 cidades fabris, portos e regiões agrícolas em vários continentes em uma divisão hierárquica de trabalho. Na América Latina colonial, esse segmento de lucros extraordinários se conformou, de forma intermitente, nos interstícios dos espaços econômicos imperiais, ganhando novo ímpeto conforme os estados recém-independentes foram abrindo seus portos ao comércio e às finanças. Das frestas e aberturas emergenciais que se produzem no exclusivo colonial, o ciclo das independências cria uma situação nova, marcada pela reciprocidade entre soberania política e abertura econômica. As elites latino-americanas veem nela a chave para o reconhecimento diplomático dos novos estados, no que coincidem com a linha adotada pelos britânicos após 1822 (WADELL, 2009; ZORAIDA VÁZQUEZ, 2003). É sobre essa estratégia que se refere o famoso discurso de George Canning na Câmara dos Comuns em que, com uma indisfarçável empáfia imperial, ele reivindica ter ele dado “vida ao Novo Mundo para reestabelecer o equilíbrio do Velho”94. Nas primeiras décadas do século XIX, a entrada de produtos industriais na região ocorria através do que Halperín Donghi (2009) chamou de “comércio aventureiro” de alguns atravessadores britânicos. Excetuando-se casos extremos, estima-se que a venda de têxteis produzisse, pagas devidas comissões, taxas, frete e seguro (cujo valor estava ainda elevado pela instabilidade política), um lucro líquido entre 6 e 12% sobre o capital investido, próximo, portanto, da remuneração do tráfico de escravos no século anterior95. Já muito cedo, o comércio britânico se concentra desproporcionalmente em alguns mercados consumidores, nomeadamente o Brasil, o Rio da Prata, Chile e, em menor escala, os antigos centros coloniais no Peru e do As primeiras referências que encontrei ao discurso de 1826 foram em Boersner (1996) e Waddell (2009: 253). No contexto de formulação, a citação se vê assim: “Se a França ocupasse a Espanha, seria necessário, em lugar de evitar as consequências dessa ocupação, que nós bloqueássemos Cádiz? Não. Eu olhei em outra direção (...). Contemplando a Espanha, tal qual nossos ancestrais a conheceram, eu resolvi que se a França tivesse a Espanha, não deveria ser a Espanha ‘com as Índias’. Eu dei vida ao Novo Mundo para reestabelecer o equilíbrio do Velho”. A íntegra do discurso está disponível online no sítio: http://www.historyhome.co.uk/polspeech/portugal.htm. Último acesso em 23/03/2017. 94 Roger Anstey estima uma taxa média de lucro líquido de 9,5% para o tráfico de escravos no período 1761-1807 (apud BLACKBURN, 1998: 389). O cálculo do lucro líquido do comércio britânico na América Latina é feito por Platt (1972) a partir do testemunho de mercadores britânicos no Comitê de Manufaturas, Comércio e Transporte do Parlamento, em relatório do ano de 1831, que reportam como satisfatórias expectativas de lucro entre 5% até 20%. Segundo o autor, um capitalista mercantil no começo da era vitoriana esperava uma remuneração padrão de 4% sobre o investimento, de modo que se pode supor que o comércio atlântico ainda oferecia sobrelucros. A título de extraordinário, há relatos do período das guerras e bloqueios que reportam ganhos tão espantosos como 200% (Lima, 1806), 400% (Lima, 1821) e até quase 2000% (México, início dos anos 1820), todos por mercadores britânicos (PLATT, 1972: 47-61). 95 187 México. Logo após a abertura dos portos no Rio de Janeiro, mercadores da cidade registram sua inconformidade com “a convulsão geral no universo que nos condenou à total decadência, e reduziu nosso comércio à importação de mercadoria inglesa” (ADELMAN, 2006: 321). Em Valparaíso, Buenos Aires ou Santiago, grandes casarões da elite colonial eram comprados por comerciantes europeus recém-chegados, atraídos pela expectativa incerta de lucros no Novo Mundo (PLATT, 1972: cap. 3). Por um lado, a distribuição desigual do novo comércio atlântico se explica pela diferença considerável no custo dos fretes entre diferentes regiões do continente, algumas praticamente inacessíveis no começo do século. A aludida “convulsão geral”, nesse sentido, tinha um escopo geográfico limitado pela própria logística disponível. Além disso, havia outro fator que explicava essa concentração: a capacidade de pagar pelas importações. As primeiras décadas do século XIX foram particularmente desastrosas para o setor mais tradicional de exportações do continente, a mineração96. Enquanto isso, a demanda por produtos americanos se concentrava sobremaneira no espaço econômico da “segunda escravidão”, relativamente apaziguado nos turbulentos anos 1810 e 1820. Para a maior parte das repúblicas recém-proclamadas, as oportunidades de exportação eram restritas, o que se agravava pelos efeitos da guerra. A abertura ao comércio internacional vinha acompanhada, nesse caso, de um desequilíbrio crônico causado pelo estrangulamento da capacidade de importar, e consequentemente das oportunidades fiscais do comércio exterior. Esse quadro se transpôs para a vulnerabilidade das moedas nacionais, em geral fartamente depreciadas no período e/ou substituídas informalmente por outros meios de pagamento (MARICHAL, 2008). O movimento centrífugo da soberania na crise imperial tinha, por assim dizer, uma expressão monetária: a perda de controle político sobre o meio circulante. É nesse contexto que transcorre o primeiro ciclo de endividamento internacional da América Latina pós-colonial, impulsionado pela emissão de títulos dos novos estados na praça de Londres na primeira metade da A crise da produção mineira durante o ciclo das independências se mistura com a desarticulação do sistema imperial. A pior queda ocorre no México, epicentro da sobrecarga fiscal das Reformas Bourbônicas. A produção física cai pela metade nos anos 1810, o que agrava com a concomitante queda de seu valor de mercado. Assim como na Bolívia, a produção se recupera nos anos 1830 sem nunca alcançar os níveis do “século de ouro” espanhol ou das reformas bourbônicas (ver MARICHAL, 2006; TANDETER, 2008). No Brasil e no Peru, a perda relativa de importância da mineração se revela mais longeva. Para as consequências da crise mineradora e as dificuldades de recuperação econômica pós-independência, ver Bulmer-Thomas (2003: cap. 2). 96 188 década de 1820 (MARICHAL, 1989: cap. 1). Com efeito, tratava-se de uma fronteira nova para as elites políticas pós-coloniais, aberta pelo alargamento do perímetro de validade da soberania durante a conjunção crítica. A solução emergencial de contrair empréstimos estrangeiros para contrapesar a saída de divisas teve vida curta. A euforia dos papéis latino-americanos daria lugar ao pânico com a quebra da bolsa de Londres em dezembro de 1825, que secou por vinte anos o fluxo de capital estrangeiro à região, à exceção do Brasil (MARICHAL, 1989: cap. 2). Nos anos que se seguiram, surgem relatos de lojas e galpões cheios de produtos importados sem comprador no Rio de Janeiro, Lima ou Valparaíso (PLATT, 1972: 24-26). Após a primeira crise da dívida latino-americana, a garantia da capacidade para importar, e indiretamente para levantar empréstimos e sustentar o valor da moeda, foi decididamente transferida para o segmento exportador inserido no mercado mundial capitalista. Com isso, o peso desproporcional do Cone Sul (Brasil, Uruguai, Argentina e Chile) no comércio britânico do século XIX se ancorava não só em fretes baratos e em conexões mercantis pré-estabelecidas, mas também na contra-oferta de produtos primários, inicialmente lã, café, prata, trigo, couro, açúcar e cacau, posteriormente dilatada com a carne, os nitratos e o cobre97. A demanda mundial crescente permitia arrefecer as pressões competitivas sobre essas periferias primário-exportadoras. Assim, inseridos nessas novas cadeias internacionais de valor, esses setores primário-exportadores adquirem um ritmo econômico discrepante com relação a seu entorno social, incubando bolsões de riqueza. Por meio da expansão do perímetro do mercado nas décadas seguintes, esse desenvolvimento associado atingiria força para sufocar e subordinar circuitos e espaços pré-existentes de reprodução da vida material. Para nosso raciocínio, o enlace fundamental se estabelece entre o emergente capitalismo industrial e a cobrança de impostos indiretos por quem pretendia governar. Com efeito, o fim dos monopólios ibéricos não implicou “livre-comércio” nos portos americanos nas primeiras décadas do século XIX. De forma geral, impostos nas aduanas se revelaram a forma mais factível de arrecadar moeda forte, após o redemoinho social das independências e seu forte viés anti-fiscal. O que é extraordinário notar é que, visto em sua totalidade, esse novo comércio atlântico não foi paralisado pela tributação aduaneira na América; como uma corredeira, seu fluxo Sobre a inserção primário-exportadora, ver Bértola e Ocampo (2010: cap. 3), Bulmer-Thomas (2003: cap. 3-5), Furtado (1970: cap. 4), Glade (2009), Halperín Donghi (1975: cap. 4). 97 189 foi se adaptando às linhas de menor resistência. De outro ponto de vista, podemos notar que a redução do tempo socialmente necessário para produzir e transportar têxteis no centro vinha sendo tão drástica que proporcionava excedentes suficientes não só para reproduzir bancos, mercadores e seguradoras na esfera da circulação, mas também, e cada vez mais, aparatos de estado dependentes de suas aduanas na periferia. Para os estudantes da história latino-americana o crescimento puxado pelas exportações no século XIX é um velho conhecido. Sem repisar a descrição dos ciclos de commodities exportadas, o que convém sublinhar aqui é a relação disso com a chamada “transição fiscal” pós-independência, isto é, a reconstrução de um aparato fiscal após a crise dos impérios ibéricos98. Na América Hispânica, o problema não se limitava à destruição causada pela guerra: de um lado, o sistema de compensações interprovinciais (situados) havia sucumbido junto com a monarquia; de outro, os sustentáculos da fiscalidade imperial (a alcabala, o quinto e o tributo indígena) já não podiam ser recuperados no período republicano senão sob elevado custo político. Do ponto de vista fiscal, o cálculo do dissenso se alterara. As elites políticas republicanas sabiam quais impostos rechaçar mas não exatamente como substituí-los. A possibilidade de arrecadar com importações e exportações representou um ganho decisivo para a solvência dos aparatos de estado, e implicitamente para a delimitação de uma ordem política ao seu redor. Há mesmo uma tendência à redução nominal de tarifas a partir de meados do século, uma vez que o aumento do fluxo de comércio mais que compensaria na arrecadação total (BULMER-THOMAS, 2003: 72-78). No Brasil e no Chile, que são geralmente tomados como exemplos de centralização precoce ou pacificação bem-sucedida no pós-independência, as rendas alfandegárias foram um esteio invisível dessa estabilidade relativa. Na Colômbia, a escassez de oportunidades fiscais equivalentes está umbilicalmente ligada à dificuldade do governo central de rotinizar seu controle sobre a violência (DEAS, 1982). Panoramicamente falando, há um ciclo fiscal na América Latina que se O tema da transição fiscal foi competentemente proposto por Garavaglia (2010) de forma panorâmica, completando-se bem com os comentários de Gelman (2010) e Carreras (2010) no mesmo volume. Ainda nesse âmbito panorâmico, o texto de Marichal (2008) é de extrema valia. Um esforço meticuloso fora feito por Halperín Donghi há quase trinta anos para o erário das Províncias Unidas do Rio da Prata (HALPERIN DONGHI, 2005 [1982]), completando a análise de Oscar Oszlak sobre a chamada “organização nacional” (OSZLAK, 2015). Nessa linha, análises monográficas sobre a transição fiscal são abundantes, vide, por exemplo, Abreu e Lago (2001), Deas (1982), Jaramillo, Maisel & Urrutia (2001), Marichal e Carmagnani (2001) e indiretamente Rodrigues (2016). 98 190 combina à formação, apogeu e crise da hegemonia britânica e sua nova divisão internacional do trabalho. Por outro lado, a conformação política, o ritmo e a magnitude desse ciclo fiscal expansivo é variável em cada caso, arbitrada pela disputa política em torno do fardo fiscal. Não se pode generalizar a partir de algumas situações de rápida e unívoca transição para a arrecadação aduaneira, como o Uruguai ou o Chile, onde uma inserção primário-exportadora acelerada criou oportunidades excepcionais. Na Bolívia, por exemplo, as poucas importações e o refluxo da mineração fizeram com que a elite política forçasse a reinstituição dos tributos indígenas. No Peru, é só com as enormes rendas do guano que o peso dos antigos tributos é aliviado, enfraquecendo os chefes do interior que os extraíam e unificando a aristocracia limenha ao redor do presidente Ramón Castilla nos anos 1840. A força dos governos provinciais no México foi decisiva para a manutenção de impostos de circulação, que mantinham sua autonomia financeira em detrimento da integração econômica nacional. Na Colômbia, o crescimento relativo das receitas aduaneiras já se percebe nos anos 1820 e 1830, mas seu volume não é capaz de suplantar os estancos sobre o sal e o tabaco senão em finais do século XIX, com a cafeicultura (JARAMILLO; MAISEL & URRUTIA, 2001). Comparar as trajetórias fiscais no período sob um índice de “desempenho” ou “eficiência” é escamotear o caráter desigual da expansão capitalista da qual essas trajetórias dependiam. A tendência foi uma transição fiscal em que impostos como o dízimo, o tributo indígena e a alcabala, taxas sobre o abate de gado, sobre as bebidas alcoólicas ou sobre a extração de minério em espécie (quintos), taxas sobre a venda de cargos públicos ou sobre a impressão de dinheiro tivessem sua força diminuída ao longo do século99. O ocaso desses impostos é também a história da derrota política dos setores sociais que deles dependiam, fossem governos provinciais, encomendeiros, guildas mercantis, cobradores venais de impostos ou a corporação eclesiástica. Essa transição Trata-se de uma generalização grosseira, mas não equivocada (para detalhes, ver nota anterior). Conforme Garavaglia (2010), os tributos indígenas tiveram vida mais longa nos Andes (Bolívia, Peru e Equador), na Guatemala e em províncias do sul mexicano e da Argentina (Jujuy). O mesmo se pode dizer dos dízimos e da cobrança pelo abate animal, ainda importante na segunda metade do século na Colômbia (ver DEAS, 1982). Os estancos, renda de monopólio ligada à exploração de um setor, eram fortemente sensíveis ao empuxo exportador, então o mais prudente seria englobá-los aos impostos aduaneiros na análise da transição fiscal. Empiricamente, seu papel foi longevo na Colômbia e na Guatemala, onde o empuxo exportador foi tardio, mas também no Chile e na Costa Rica, onde as rendas alfandegárias eram volumosas desde a década de 1820. 99 191 tampouco obedeceu rigorosamente aos desígnios das elites liberais100. Mesmo que muitos reformadores se inclinassem por princípio à tributação direta e progressiva, ela se revelara praticamente impossível no período, ora pelas exigências administrativas, ora pela indisposição dos possíveis tributados (PINTO BERNAL, 2012). Partindo então de um circuito que conecta a solvência governamental com o fluxo aduaneiro, por uma parte, e a capacidade de importar com o vigor do setor primário-exportador, por outra, podemos fazer algumas observações. A primeira é que havia uma tendência nitidamente pró-cíclica na margem de ação dos governos: sua capacidade de arrecadar e contrair empréstimos se alargava no momento de prosperidade, ao passo que, no revés do mercado mundial, não havia alternativas à mão para contrarrestar seus déficits. O diagnóstico se reforça na dinâmica do mercado internacional de crédito, cujos momentos de desorganização (1825-1827, 1873-1878, 1890-1891, 1929-1933) coincidem com o travamento generalizado do comércio101. Como veremos no capítulo 7, esse caráter pró-cíclico é importante para entender o caos sistêmico dos anos 1920 e 1930, quando o gasto público contracíclico entra na ordem do dia por força das circunstâncias. A segunda observação é que, ao pesar especialmente sobre as importações de consumo popular, tratava-se de uma arquitetura fiscal nitidamente regressiva. Os produtos consumidos pela população urbana (têxteis, alimentos, utensílios metálicos, etc.) eram desproporcionalmente tributados, o que era feito sem o ônus político da extração direta. Como constatara o ministro da fazenda uruguaio em 1858, “o caráter particular dos impostos indiretos é que sua captação é fácil e oportuna, confundindo-se quase sempre com o valor dos objetos que os pagam” (apud Em muitos casos, a convicção no liberalismo econômico esbarrou em realidades fiscais difíceis de contornar. Na Colômbia recém independente, a pressão política pela extinção do monopólio do tabaco, fortemente identificado com o governo colonial, esbarrava na dependência do governo com as rendas obtidas com sua exploração. Um comerciante britânico com destaque na Colômbia, William Willis, registrou essa contradição de forma clara em 1831: “ainda que a aplicação geral dos princípios da economia política deva ser colocada em prática sempre que possível, o fim do monopólio do tabaco não deve ser precipitado, porque, sob as circunstâncias presentes, em vez de obter resultados positivos, essa medida poderia produzir um desastre” (apud JARAMILLO; MAISEL & URRUTIA, 2001: 436). 100 101 O tratamento pró-cíclico das finanças internacionais no período é o tema central do meticuloso estudo de Marichal (1989). Haveria para o autor uma inconstância nesse padrão dada pelo Primeira Guerra Mundial, que contorna a crise da dívida que se delineava após a expansão financeira dos primeiros anos do século XX. A possibilidade de exportar no esforço de guerra e a excepcionalidade no mercado financeiro interditaram a detonação da crise, que, no entanto, ocorreria de forma trágica após 1929. 192 GARAVAGLIA, 2010: 163). A nova massa urbana, resultado sedimentar de múltiplos desencaixes promovidos no longo século XIX, acaba pagando com impostos indiretos pelo aparato estatal que basicamente lhe vigia e reprime. Esse é outro aspecto desse ciclo fiscal que seria posto em xeque na primeira metade do século XX. Àquela altura, a crise fiscal e a contestação social abririam então uma janela de oportunidade na qual se experimentaram diversas iniciativas de reforma do sistema tributário (BULMER-THOMAS, 2003, cap. 6). Uma terceira observação é que a estabilidade da solvência governamental foi condição para a rotinização da dívida pública e para o controle unificado sobre os meios de pagamento. Após as independências, a tendência predominante foi cada uma dessas condições repelirem-se entre si, especialmente na América Espanhola. Foi prática corrente das facções beligerantes fundir moeda de baixo valor e emitir dinheiro ou promissórias pelas requisições de guerra, o que estimulava a concorrência entre diversos meios de pagamento, incluindo moedas de prata, ouro e cobre, além de falsificações e moedas estrangeiras obtidas pelo comércio exterior. Após a euforia e colapso do ciclo de crédito externo entre 1825 e 1828, o mais comum expediente da dívida pública era emitir mais títulos de baixo valor, aumentando os compromissos futuros com a elite local em uma espiral de juros altos e amortizações. Tanto a rolagem administrada da dívida pública como a garantia do valor da moeda oficial dependiam de uma base fiscal regular e de algum equilíbrio no comércio exterior, condições que, naquele contexto, estavam intimamente ligadas. A transição fiscal encetada pelo empuxo exportador-importador resultou, no longo prazo, em uma pressão de centralização monetária. As economias latino-americanas com inserção mais dinâmica na economia mundial, a começar pelo Brasil em 1846, fariam incursões ao regime de câmbio fixo, aderindo parcial ou temporariamente ao padrão libra-ouro até seu colapso em 1931 (CORTÉS-CONDE, 2008). Em suma, para compreender as linhas mestras da construção da ordem na América Latina independente, há que se firmar inicialmente esse elo sistêmico entre o desenvolvimento do capitalismo industrial como nova divisão internacional do trabalho e as oportunidades fiscais descortinadas com essa expansão. Isso permite entender o crescimento material dos estados pós-coloniais como parte de uma expansão, mais ampla e desigual, em curso no sistema interestatal capitalista. Ao propor um mecanismo interdependente entre exportações e tributação regular, esse elo 193 coloca em cena um terreno de benefício recíproco entre, grosso modo, quem exporta e quem governa. Em outros termos, a associação fiscal ao segmento de lucros extraordinários permitia desequilibrar os meios pelos quais se disputavam concepções discrepantes de uma sociedade bem ordenada. Dessa forma, a solda dessa reciprocidade entre capital e coerção foi crucial para a conformação de uma ordem política hegemônica nos estados latino-americanos do longo século XIX. 5.3. A utopia de mercado na periferia Uma das salutares constatações de Giovanni Arrighi sobre a formação da hegemonia britânica é que ela inaugura um apelo normativo à precedência dos direitos de propriedade dos governados sobre as prerrogativas soberanas de governantes (ARRIGHI, 2009: 48-59). A riqueza privada dos súditos seria o esteio da “riqueza das nações” em lugar do engrandecimento do tesouro do monarca. Tratava-se de um princípio atraente não só para os súditos da Coroa britânica, mas aos proprietários de forma geral – munidos com ele para denunciar o que lhes parecia tirania ou despotismo. Ao fundir propriedade e liberdade, o apelo permitia segmentar a contestação social em uma Europa convulsionada, ou seja, oferecia um horizonte de ordem pós-revolucionária. O manuseio do idioma constitucional fora parte essencial da polarização política na Era das Revoluções, mas há uma tendência ao estreitamento de seus potenciais significados políticos. O constitucionalismo liberal, no rescaldo da disputa, prova-se capaz de capturar a ideia de soberania popular sem endossar suas acepções radicais, normalizando o léxico político aos seus termos. Como vimos no capítulo anterior, o apaziguamento sistêmico articulado pela hegemonia ascendente teria uma pedra fundamental na promoção do princípio das nacionalidades sobre o ímpeto de reconquista colonial, do comércio livre nas periferias americanas. No centro do espectro ético-político dos processos de independência se consolida justamente a precedência dos direitos de propriedade dos governados sobre as prerrogativas soberanas dos governantes. Em seu cerne, esse apelo modelava a sociedade como um conjunto de indivíduos, iguais porque proprietários e livres enquanto privados. Após a desarticulação das hierarquias sociais resultantes da crise dos impérios ibéricos, o constitucionalismo liberal adquire 194 progressivamente condição de centro sobre o qual a luta política se organiza, isto é, o terreno privilegiado para sustentar a autoridade ou formular a oposição. O objetivo dessa seção é analisar a utopia de modelar a sociedade ao funcionamento espontâneo do mercado como horizonte de harmonia social e progresso material. A ideia não é que havia uma defesa uníssona nem uniforme dessa utopia por dirigentes e publicistas; pelo contrário, sua consecução foi atravessada por inúmeros conflitos. Antes, o que acontece é que esses conflitos vão mudando de perfil. Enquanto a fabricação estatal de uma sociedade de mercado se afirma como imaginário hegemônico de futuro, a oposição social aos efeitos da mercantilização se torna cada vez mais uma reação prática, concreta e provisória. No arco do longo século XIX, o constitucionalismo liberal opera as alavancas do desenraizamento da vida econômica. A partir dos conflitos e mediações decorrentes, é possível estabelecer um gabarito de inteligibilidade para a construção da ordem, isto é, descritores para o processo pelo qual um determinado sentido de ordem política é imposto e barganhado sobre suas alternativas. Ou, também, seguindo ainda os passos de Polanyi, pode-se perceber como as reações à mercantilização da vida e da natureza, movidas por sensos de justiça contrários à utopia de mercado, interferem efetivamente no curso e no ritmo com que essa utopia é convertida em práticas e instituições. Uma das vantagens de aproximar o problema através de Polanyi é dissolver de saída a falsa polêmica sobre a preferência do pensamento liberal latino-americano por um estado “forte” ou “fraco”, interventor ativo ou simples “guarda-noturno” (JAKSIC & POSADA-CARBÓ, 2011). Ora, a propulsão de uma sociedade de mercado era intrinsecamente uma agenda de reforma social: uma plataforma legislativa e executiva destinada a titular direitos de propriedade e formalizar sua troca, extinguir privilégios corporativos, construir vias de circulação, uniformizar a moeda, regulamentar o crédito, mensurar o território, criar instâncias judiciárias ou subordiná-las ao saber jurídico oficial, abolir a servidão e fomentar um mercado de trabalho livre, frequentemente pela atração subsidiada de imigrantes. Não havia propriamente uma contradição entre esse ativismo estatal e a crença no liberalismo. Melhor dizendo, o próprio liberalismo colocava a exigência de mobilizar meios crescentes para que o estado executasse a reordenação da vida social aos parâmetros de mercado. Esse apetite por recursos passava pela ampliação do ciclo extrativo-coercitivo, ao que voltaremos adiante. 195 No plano legislativo, uma série de constituições e códigos civis, criminais e comerciais pretenderam desenraizar as práticas legais ancoradas no pluralismo jurídico colonial, ou ainda na chamada “constituição material” do reino, de inspiração pactista (DYE, 2008; URIBE-URÁN, 2006). Na nova cultura jurídica, a imposição de uma pessoa jurídica individual e independente, ancoragem primeira do constitucionalismo liberal, seria geminada ao reconhecimento da propriedade exclusivamente nesses termos. Em outras palavras, firma-se como tarefa pública extinguir as formas de apropriação e usufruto baseadas em figuras jurídicas coletivas, corporativas ou hereditárias, como meio para desobstruir a circulação de mercado. O emblema legal disso era a separação rigorosa entre uma “esfera pública” e uma “esfera privada”, o que Victor Uribe-Urán (2006) chamou, em alusão direta a Polanyi, da “grande transformação” operada na prática jurídica na América Latina dos oitocentos (Tabela 5.2). Assim, como observou Norbert Lechner em outro contexto, “o constitucionalismo, que inicialmente defende o comércio contra a coroa, logo defende o mercado contra a sociedade” (LECHNER, 2013: 116) O desenraizamento da economia de mercado passa, em Polanyi (2012), pela produção política de três mercadorias fictícias: a terra, o trabalho e o dinheiro, resultado da conversão mercantil da natureza, da vida humana e dos meios de pagamento, respectivamente. Grosso modo, ele identificava esse processo na destruição das propriedades feudais, na formação do proletariado e na autorregulação da moeda pelo padrão ouro. Com isso, renda da terra, salário e juros constituiriam o preço, a ser regulado pela oferta e demanda, dessas mercadorias. Seu caráter “fictício”, é importante lembrar, se justifica pelo fato de que não se aplica a elas a condição fundamental da produção orientada para o mercado, a de que tudo é produzido para ser comprado e vendido. A ficção envolvida é a de supor que a força de trabalho é separada da vida humana, que as propriedades econômicas da terra são separadas da natureza, e que a rentabilidade do capital é separada da rede social de trocas materiais. Para institucionalizar a regulação de mercado, seria preciso supor que essas separações são possíveis. Como utopia, que não deixa de ter um papel organizador no ciclo expansivo do capitalismo industrial, o credo liberal ambicionava substituir o poder pessoal pelo espontâneo movimento de preços relativos (POLANYI, 2012). Há boas razões para pensar que esse desígnio utópico não se limitou à Inglaterra, de cuja história o autor extraiu o cerne de seu argumento. Sua repercussão 196 ético-política está associada, como já antecipamos, ao ciclo sistêmico de acumulação do século XIX, tal qual a indústria florescente nos distritos de Manchester na década de 1770. Por si só, isso não significa que as ideias de Polanyi possam ser “facilmente extrapoladas para encaixar as realidades latino-americanas” (TOPIK, 2000: 87)102. O desenvolvimento de uma utopia de mercado na América Latina como horizonte de progresso social não é indiferente à sua condição periférica, o que à primeira vista parece uma frase feita. Para dar-lhe conteúdo, o melhor caminho não é assinalar reiterações e diferenças entre o “estado liberal” inglês e os casos periféricos, mas antes de repensar a própria teoria a partir de conexões mundiais relevantes, na linha do que já fez Holmwood (2016). Segundo esse autor, a negligência com a categoria de “raça” faz com que Polanyi não perceba como, na gênese do capitalismo, a escravidão atlântica contradiz precisamente o caráter fictício da mercadoria “trabalho”, uma vez que o trabalho humano não é separado da vida para ser livremente comprado e vendido (HOLMWOOD, 2016). Com efeito, o raciocínio de Polanyi é insensível à estratificação internacional da força de trabalho subjacente à proletarização na Inglaterra, e depois na Europa Ocidental como um todo. A sobrevivência da escravidão em Cuba ou no Brasil não se explica pela difusão precária do liberalismo vitoriano nos trópicos. Como vimos acima, essa sobrevivência se ampara nas conexões comerciais entre as plantations escravocratas e o desenvolvimento do operariado fabril que Polanyi estava observando. Desde as periferias, os proprietários dessas plantations inclusive reposicionaram sua defesa da escravidão por meio de noções individualistas de interesse e propriedade, assentando um “liberalismo escravista” impensável na Inglaterra (BERBEL & MARQUESE, 2010; MARQUESE, 2003). Eles não eram avessos à síntese entre mercado, razão e progresso que inspirava o estado liberal, mas a interpretavam contra o trabalho livre. Na América Espanhola, a produção primário-exportadora recorreu a inúmeros arranjos informais de trabalho coagido no período republicano, como os colonos, concertados e huasipungueros nos Andes, os peones acasillados nas fazendas no México, os inquilinos no Chile (BAUER, 1995; 2009; BULMER-THOMAS, 2003: 102 Embora Steven Topik apresente inicialmente a ideia de que há uma transição imediata a fazer, algumas páginas mais tarde ele mesmo aponta que “a Grande Transformação é um documento fundamentalmente eurocêntrico que toca apenas lateralmente no colonialismo e nos povos “primitivos”, assim como nos camponeses da Europa Ocidental. Somente no fim da vida Polanyi se ocupou da questão do subdesenvolvimento (...)” (TOPIK, 2000: 95). 197 86-91; KATZ, 1974). Eram trabalhadores que viviam em sistemas de barracão ou em servidão agregada nas terras dos senhores, ou ainda sob uma escravidão por dívidas. O grau de coação extraeconômica sobre o trabalho variava conforme a situação, mas definitivamente não eram relações assalariadas de produção. Por um lado, esses arranjos podem ser vistos como estratégias por parte dos proprietários de antecipar e proteger suas empresas das possíveis consequências negativas de um mercado de trabalho livre, como o encarecimento, a indisciplina e a escassez de trabalhadores. Por outro, em maior ou menor grau, esse controle sobre os trabalhadores dependia da cumplicidade das autoridades, de ilegalismos práticos operando sob o constitucionalismo liberal. Há algo importante sobre essas franjas da mercantilização do trabalho na periferia. As elites proprietárias dessas fazendas e minas não reivindicaram ter descoberto um sistema de trabalho superior ao assalariamento vigente na Europa. Nos debates públicos, constitucionais inclusive, sobre o trabalho compulsório, havia um apelo recorrente à importância econômica dele para o país, que se completava dizendo ser impossível obter o mesmo resultado com o trabalho livre (BERBEL & MARQUESE, 2010). A seu modo, parece que essas elites percebiam justamente o que de alguma forma escapara a Polanyi: que o trabalho coagido em periferias agrícolas era então um expediente prático para girar o mercado mundial do qual o assalariamento era apenas uma parte. É como se percebessem que, dentre as circunstâncias do assalariamento irrestrito na Inglaterra estava um “subsídio” externo com que elas próprias não poderiam contar. Ou ainda, que o caráter utópico do reformismo liberal britânico presumia implicitamente sua posição privilegiada na divisão internacional do trabalho. Há uma situação desigual também com relação à mercantilização da moeda, que atinge forma definitiva na década de 1870 através do padrão ouro. A libra esterlina já era conversível em ouro desde a primeira metade do século, mas a partir da década de 1870 se estabelece um circuito de paridade em ouro entre Grã-Bretanha, EUA, Alemanha e França. Do ponto de vista da doutrina, o padrão-ouro previa que o volume de moeda circulando em cada país se autorregularia na medida em que todos os governos se mantivessem comprometidos com o câmbio fixo. A credibilidade do sistema dependia da confiança de que a paridade seria mantida mesmo que com 198 sacrifícios no nível de atividade econômica doméstica103 (EICHENGREEN, 2000). A solidez do regime internacional dependia da coesão entre as moedas fortes do centro do sistema, que funcionavam como reservas internacionais104. Ao redor desse núcleo, as demais moedas estabeleciam relações de associação, como satélites mais ou menos próximos das exigências de conversibilidade (ver EICHENGREEN, 2000: 46). A conversibilidade das moedas periféricas era menos crível aos financistas internacionais, o que significava que o padrão-ouro era mais complicado, mais exigente, mais árduo para aqueles com menos capacidade de sustentá-lo. Os abalos de confiança prontamente impeliam a uma fuga de capitais que obrigava o governo a suspender a conversão. Em geral, havia ampla adesão doutrinária das elites latino-americanas pós-1870 ao padrão ouro, o qual, além de facilitar as negociações internacionais, era uma espécie de ícone de pertencimento ao seleto clube de nações civilizadas. O fato de ser considerado desejável não significava que fosse factível. Os problemas financeiros da ordem do dia exigiam decisões para as quais não servia comungar da simples convicção teórica na superioridade do padrão ouro. Assim, ao longo do século, os estados pós-coloniais latino-americanos foram concentrando controle político sobre os meios de pagamento, mas isso não significava necessariamente conseguir fazer parte do circuito internacional de autorregulação da moeda. Ao observarmos desde a periferia a ambição utópica de transformar os meios de pagamento em uma simples mercadoria, como propôs Polanyi, encontramos um fenômeno diferente, qual seja, a assimetria existente do sistema financeiro internacional. Resta observar, ainda de forma panorâmica, a produção da terceira mercadoria fictícia, a terra. Como veremos na terceira parte da tese, o horizonte liberal de formalizar um mercado de terras perpassa iniciativas cruciais como a Lei de Terras no Brasil (1850), a Lei Lerdo (1856) e a Constituição de 1857 no México, as leis sobre 103 Para Barry Eichengreen (2000), o padrão-ouro entre 1870-1914 não funcionava pelo automatismo da teoria quantitativa da moeda; havia, para seu sucesso, movimentos coordenados e preemptivos dos bancos centrais através de suas taxas de redesconto, antecipando e compensando déficits e superávits externos sem a saída física de ouro (EICHENGREEN, 2000). O esteio desse funcionamento era, de um lado, a ausência de pressões políticas sobre os objetivos da política monetária e, de outro, a credibilidade de que os demais bancos centrais fariam valer seu compromisso com o câmbio fixo. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial 40% das reservas internacionais eram mantidas em libras esterlinas, outros 40% em marcos e francos e os 20% restantes em metal ou moedas secundárias (EICHENGREEN, 2000: 48). 104 199 arrendamento de terras públicas (1822/1857) e sobre hipotecas fundiárias (1864) na Argentina, para não falar do radicalismo liberal e das expropriações do governo Mosquera em 1861 na Colômbia. Como disse o próprio general Mosquera, “um dos maiores obstáculos para prosperidade e crescimento da nação é a falta de movimento e circulação livre de grande parte dos imóveis, que são uma base fundamental da riqueza pública” (apud KNOWLTON, 1969: 389). É seguramente a partir da metade do século que esse processo de mercantilização adquire maior escopo e estridência social, em certos casos no limiar da guerra civil. Observando com maior distanciamento histórico, é no arco temporal do “longo século XIX” que se firma como horizonte hegemônico que a regulação do usufruto da terra, salvo quando se justifique o contrário, haveria de ser organizado pelo direito individual de comprá-la e vendê-la. No primeiro liberalismo espanhol já se entrevê a ideia norteadora de que a natureza deveria ser convertida em direitos exclusivos de propriedade sobre uma mercadoria uniforme e mensurada. Em janeiro de 1813, as Cortes de Cádiz haviam expedido uma decisão bastante radical sobre o tema, estipulando que todas as terras consideradas “baldias” em todos os reinos espanhóis seriam privatizadas e repartidas entre os habitantes da região, excluindo-se os ejidos de uso comunitário. A decisão, que proibia a transferência dessas terras à Igreja pela extinção legal dos bens inalienáveis, seria revertida um ano depois com a restauração de Fernando VII (BERNAND, 2016: 44). Naquele contexto, a iniciativa respondia aos anseios doutrinários do liberalismo anticlerical, sem muita ressonância fora dos recintos legislativos. A balança começa a se inverter com a expansão exportadora nas décadas seguintes. Por exemplo, Acuña e Molina (1991), ao agregar as transações de compra e venda de terras no Vale Central da Costa Rica, mostram uma impressionante aceleração em número e valor provocada pela expansão da cafeicultura na região. Enquanto o número de transações anuais vai da casa de 10 em 1800 a cerca de 140 em 1850, o valor delas é quase mil vezes maior no mesmo intervalo de tempo (ACUÑA & MOLINA, 1991: 117). Os estudos liderados por Garavaglia e Gautreau (2011) mostram outras faces da mercantilização da terra após a independência. Observando as planícies pecuaristas do Rio da Prata na primeira metade do século, eles mostram como a titulação e regulamentação das propriedades rurais exigiam métodos mais rigorosos de 200 mensuração e cartografia da região. Os diversos melhoramentos adotados para delimitar o espaço (varas, grafômetro, teodolito, corrente metálica, fita metálica) respondiam aos incentivos dados pelo aumento da renda da terra, isto é, à valorização da terra como mercadoria entre 1820 e 1850 (GARAVAGLIA, 2011). Sem isso, esses avanços de agrimensura seriam implausíveis, já que “durante quase dois séculos, os preços da terra estiveram ‘achatados’, as estâncias e fazendas valiam o que albergavam: gado, escravos e pouco mais” (GARAVAGLIA & GAUTREAU, 2011: 54). Os avanços cartográficos, por sua vez, envolviam agências especializadas e um novo corpo de funcionários com conhecimento técnico. O conhecimento oficial do espaço, que permitia delimitar e titular propriedades fundiárias, também abria oportunidades fiscais até então exíguas, como o aluguel e venda de terras públicas, ou o imposto direto sobre a propriedade rural. Controle político, empuxo exportador e regulação de mercado se respaldavam. À primeira vista, do ativismo legislativo à violência sistemática para reordenar o espaço, o processo de privatização da terra não parece apresentar contraste substantivo como descreve Polanyi para o campo inglês. Ressalvas empíricas feitas, a imposição da condição de mercadoria ao ambiente natural é uma tendência ampla o suficiente para englobar a subordinação das formas políticas nativas pelos estados do sistema mundial. Como dito antes, o ciclo industrial de acumulação do “longo século XIX” tem um de seus apelos hegemônicos em oferecer condições de fortalecimento material do sistema como um todo. Esse fortalecimento coletivo significava a capacidade de quebrar resistências sociais nas margens do sistema, subjugando povos até então autônomos. A essa altura, percebemos que não é coincidência que, enquanto os argentinos moviam práticas genocidas na Patagônia, os britânicos venciam a guerra contra a confederação guerreira dos zulus no sul da África. Ou ainda, que enquanto os chilenos reiniciavam sua conquista militar do sul indígena, os russos derrubassem o último imanato independente do Cáucaso sob a liderança de Shamil (1839-1859). A segunda metade do século XIX assistiu demonstrações da superioridade militar ocidental em toda parte, da América do Norte à Australásia, da Indochina ao Egito. Sucumbem as últimas resistências dos Santals de Bengala, dos Maoris na Polinésia, dos Sioux no alto Mississippi e dos Ndebele na África Austral (BAYLY, 2004: cap. 12). Tratava-se de um desmoronamento em dominó das formas nativas de vida política simultâneo ao 201 saque desenfreado de terras e riquezas. Por trás do alargamento do perímetro da divisão internacional do trabalho, o liberalismo vitoriano liderava uma ofensiva imperial contra o mundo não-europeu, possibilitado particularmente pela industrialização da guerra, pelo transporte a vapor e pela profilaxia de doenças tropicais (HEADRICK, 2011: cap. 5 a 7). O estudo sobre a mercantilização da terra na América Latina, dessa forma, obriga a lidar com o colonialismo interno das elites eurodescendentes. Originalmente, o conceito se prestava a demarcar, nos debates sobre a descolonização dos anos 1960, que o colonialismo não era um fenômeno unicamente “internacional”, e que portanto não se esgotava com a independência política (CASANOVA, 2006: 185-206). Aqui é possível enquadrar uma acepção específica do colonialismo interno. Do outro lado da ligação dinâmica entre empuxo exportador, regulação de mercado e controle político do espaço, estava uma multiplicidade de povos americanos sofrendo uma desintegração de seu ambiente cultural. Como observou Salvatore (1999: 33), “em nada é mais evidente a continuidade entre os reformadores Bourbon e os liberais oitocentistas do que no tratamento dos americanos nativos”. Como processo sistêmico, a mercantilização da natureza no arco do ciclo industrial de acumulação tinha íntimas relações com a expansão colonial sobre o espaço. Cabe resumir o que foi dito acima. O que se pretendeu nessa seção foi, em poucas linhas, demonstrar a potência da produção estatal de mercados como eixo ao redor do qual se sedimenta a ordem política pós-colonial. De um lado, demonstramos a vitalidade do argumento de Polanyi para lidar com o sentido de progresso hegemônico na América Latina oitocentista, traduzido pelas inúmeras tarefas subsidiárias ao alargamento da vida social regulada pela lógica de mercado. A utopia de mercado perseguida na periferia, ao mesmo tempo que embebida nas referências ético-políticas do século, não é por isso uma replicação mais ou menos perfeita do reformismo vitoriano. A rigor, o estudo de seu desenvolvimento periférico revela dimensões novas, que obrigam a situar o reformismo britânico em uma posição relativa. Por exemplo, a adesão doutrinária ao livre comércio após 1846 não pode ser separada da singular força econômica da Inglaterra naquele contexto, que ensejava vantagens competitivas com a perspectiva de liberalização do comércio internacional. As elites latino-americanas, mesmo quando genuinamente convencidas dos benefícios da 202 liberalização, precisavam dar conta de desequilíbrios fiscais e cambiais que obrigavam a refratar ou modular sua doutrina. A rigor, eram instâncias desiguais de um mesmo regime internacional de liberalização, que atingiu seu ápice em meados dos oitocentos pelo aríete do “imperialismo de livre comércio”. Nesse espírito, apontamos como a discussão sobre as mercadorias fictícias em Polanyi acaba naturalizando os privilégios implícitos da Inglaterra na economia mundial. Ao observar a proletarização desde a periferia, encontramos determinados arranjos de trabalho não-livre que não são anomalias arcaicas, mas polos subordinados inseridos no mercado mundial, cuja divisão de trabalho permitia baratear o trabalho livre nos centros industriais. Por trás da utopia de autorregulação do mercado de trabalho estava a estratificação internacional da exploração do trabalho. Ao observar a mercantilização do dinheiro desde a periferia, percebemos como a autorregulação da oferta de moeda era um horizonte também restrito pela assimetria do sistema financeiro internacional, independente de quão veemente fosse a preferência das elites latino-americanas pelo câmbio fixo. Por fim, a análise da mercantilização da terra na periferia esbarra em um fenômeno qualitativamente novo, qual seja, o liberalismo como colonialismo interno protagonizado por uma elite eurodescendente. 5.4. As escalas da violência e seu controle Essa seção completa o quadro anterior ao discutir uma mudança relativa na topografia da disputa política ao longo do século, dada pela concentração relativa do controle sobre a violência. Por esse ponto de vista, retoma a discussão do capítulo anterior sobre a tendência à localização da vida política durante as crises imperiais (seção 4.4). No fim do período colonial, as autoridades imperiais não detinham um monopólio da força, mas eram capazes de controlar razoavelmente os termos de seu emprego no perímetro que lhes era relevante. Naquele contexto, a geografia política do continente estava centrada nas três submetrópoles sediadas no México, no Peru e no Rio de Janeiro. O poder imperial irradiava por núcleos subordinados e concêntricas desses centros em direção às fronteiras, onde se estabeleciam vastas regiões de contato intercultural até espaços onde a reivindicação de autoridade dos colonizadores era inconsequente. Essa geografia, como vimos, sofreu sucessivas fissuras na Era das 203 Revoluções, gerando situações de soberania múltipla e uma pulverização dos meios de mobilização da força. Nosso tema então é a dinâmica da violência política após as crises imperiais, sinalizando a emergência processual de um desequilíbrio e buscando sistematizar suas razões. A primeira metade do século XIX é usualmente descrita como um período caótico dominado por guerras civis, desencadeadas por caudilhos ávidos por poder e glória (SAFFORD, 1992). Essa narrativa tece um contraste implícito entre o caráter dissipativo dessas guerras e o que seria a trajetória positiva de afirmação nacional da segunda metade do século. A virulência dos conflitos políticos do século XIX adquiriu, em interpretações como a de Centeno (2002) e Loveman (1999), a capacidade analítica de explicar problemas profundos na constituição das comunidades políticas latino-americanas. Cria-se um viés negativo no sentido em que a violência política no período é entendida pelo que não está presente, nomeadamente um estado nacional e suas derivações institucionais. Para ir além disso, o primeiro passo é perceber que a implosão dos espaços imperiais continentais produz uma geografia de subsistemas regionais competitivos, com reivindicações de poder sobrepostas no tempo e no espaço. Como extraímos do capítulo anterior, o conflito não advinha de litígios territoriais entre autoridades formalmente iguais. Essas reivindicações sobrepostas imbuíam apelos ético-políticos e imaginários espaciais incompatíveis, de municipalidades livres a impérios dinásticos, de repúblicas nacionais a confederações de estados independentes. Em uma palavra, havia subsistemas heterogêneos do ponto de vista de organizações políticas envolvidas, em que não são estanques nem claras as fronteiras entre repressão política, luta insurgente, guerra interestatal e banditismo social. Essas diferenças se refletiam na base de organização das forças armadas que tomavam parte na competição pelo controle político da violência em cada um desses subsistemas. Uma municipalidade podia mobilizar seus vizinhos para defender sua autonomia, mas dificilmente teria condições de contratar mercenários especializados para lutar a seu lado. Eventualmente uma liderança regional podia recrutar, a partir de seus recursos e carisma, forças suficientes para derrotar o exército regular a serviço de um governo desacreditado. Por seu turno, uma confederação de tribos indígenas podia ir à guerra sob a direção de um cacique mais para defender seu território histórico, do que para impor seu jugo formal sobre ele. Já os ricos proprietários de terra podiam 204 contar com jagunços privados para manter sob controle os camponeses e aldeões de sua região, que, por força das circunstâncias, poderiam servir também como combatentes em uma guerra regional. No desenrolar das lutas pela independência, especialmente após a restauração de Fernando VII em 1814, a escala dos exércitos aumenta. Em 1815, os comerciantes de Cádiz peticionam ao rei que restabeleça a ordem nas colônias. Com vitórias sucessivas os regalistas reconquistam o Chile, Quito e a Venezuela com brutais demonstrações de força, enquanto as tropas imperiais portuguesas invadiam a Banda Oriental artiguista. O teor absolutista da reconquista espanhola após 1814 criou um importante ponto de não-retorno na crise, criando um campo secessionista amplo na América contra a recolonização. Se até 1814 o conflito tinha um caráter mais difuso, multiforme e imprevisível, ligado às conexões revolucionárias no mundo atlântico, com a restauração monárquica na Europa a guerra civil na América adquire um caráter mais polarizado, com um campo mais nitidamente secessionista, militar e anticolonial. Fazer frente ao absolutismo e ao colonialismo se torna a senha para o ganho de escala das forças independentistas na contraofensiva crucial de 1818-1820. Na diplomacia europeia, as grandes potências decidiram abster-se da intervenção nas guerras americanas durante a Conferência de Aix-la-Chapelle (1818), para frustração espanhola (BLAUFARB, 2007: 757; BOERSNER, 1996: 73; WADELL, 2009). Enquanto isso, a sanha punitiva dos generais espanhóis havia influenciado a balança das fidelidades políticas na América. Em 1818, o novo Vice-Rei do Peru, Joaquín de la Pezuela, lamentava que “a opinião dos cholos e índios não é especialmente favorável ao Rei, e entre a multidão de escravos eles estão abertamente apoiando os rebeldes de cujas mãos esperam sua liberdade” (apud ADELMAN, 2010: 418). Enquanto as deserções aumentavam no lado regalista, os exércitos rebeldes ganhavam terreno na coluna sul-andina aberta por San Martí e na frente norte sul-americana liderada por Bolívar e Sucre. Com as vitórias em Maipú no Chile (1818) e Boyacá na Venezuela (1819), além da invasão do Peru (1820), a iniciativa da guerra havia decididamente passado ao lado dos insurgentes, instalando, por sua vez, a crise de 1820 na península. As tropas regalistas que estavam então prestes a embarcar para a América eram estimadas em 10 mil soldados (LOVEMAN, 1999: 32) 205 No desenlace da soberania múltipla em direção à independência, o crescimento da escala da guerra é inegável: na decisiva batalha de Ayacucho em 1824, cerca de 15 mil soldados se encontraram no campo de batalha, comandados por generais com formação militar. A cifra pode parecer reduzida se comparada às Guerras Napoleônicas, mas é consideravelmente superior à escala dos conflitos armados do período 1808-1815, quando o contingente raramente atingia quatro dígitos. O fortalecimento dos exércitos patrióticos insinuava pela primeira vez seu potencial como contratendência à localização da soberania descrita no capítulo anterior. A partir das guerras de independência, a competição militar tem dois efeitos distintos. O primeiro é constituir uma porta sempre aberta para a suspensão da linguagem constitucional pelo voluntarismo de chefes e generais. Como disse Simón Bolívar no Congresso de Angostura (1819), “quanto mais admiro a excelência da Constituição Federal da Venezuela, tanto mais me persuado da impossibilidade de sua aplicação a nosso estado” (apud STRAKA, 2011: 105). A concessão de faculdades extraordinárias a um poder executivo de extrato militar está por trás da discussão sobre o caudilhismo (LOVEMAN, 1999: cap. 2) ou da militarização das sociedades latino-americanas no período (HALPERÍN DONGHI, 1975). Para uma geração marcada pelo estremecimento das hierarquias sociais, econômicas e raciais, a disciplina militar sob generais vitoriosos se oferece como resposta imediata de ordem pós-revolucionária. O segundo efeito da competição militar diz respeito às bases sociais do recrutamento e manutenção das forças. Desnecessário dizer, o ganho de escala durante as guerras de independência multiplicou as exigências logísticas da guerra, bem como os custos políticos da desmobilização subsequente. Em certos casos, a janela de empréstimos internacionais nos anos 1820 foi aproveitada quase que exclusivamente para cobrir os gastos militares das repúblicas recém proclamadas. Finda a situação de emergência patriótica, não havia sustentação possível para aquela concentração conjuntural de forças. Sua desmobilização transfere a competição pelo controle da violência para os subsistemas regionais de guerra irregular, como o que se forma nas planícies do Rio da Prata, nas zonas fronteiriças da América do Norte ou na Nova Granada em desagregação. Em tal contexto, “os exércitos nacionais eram pouco mais fortes do que as forças que se podiam reunir em bases emergenciais nas províncias” (SAFFORD, 2009: 331). 206 No longo prazo, as mudanças na base de mobilização se revelaram mais potentes do que o voluntarismo dos generais. Ao longo do século XIX, a topografia desses subsistemas regionais vai cada vez mais se verticalizando e discernindo a primazia de estados centralizados e suas forças regulares. Os ganhos de escala e logística destas se revelam mais letais que o despotismo para as pretensões autonômicas de províncias, cidades, aldeias e tribos. A partir da década de 1860 até a primeira metade do século XX, a profissionalização dos militares e sua formação especializada permite distinguir as forças regulares não só pelo tamanho relativo, mas também por seus procedimentos, tecnologia e doutrina (LOVEMAN, 1999: cap. 3). Conforme uma sociedade “nacional” é envolvida em um arranjo coeso de proteção mediante extorsão, a separação prática entre a proteção e a ameaça adquire contornos mais definidos, isto é, os usos da violência são mais claramente subordinados aos termos da ordem vigente. Essa tendência à verticalização não ocorreu espontaneamente, mas tinha raízes no aparato de extração regular, que, para repetir a expressão de Gabriel Ardant, funciona como um “transformador” de infraestrutura econômica em estruturas políticas. O processo subsidiário à verticalização do controle sobre a violência é o entrelaçamento dos estados pós-coloniais com as oportunidades fiscais associadas ao ciclo sistêmico de acumulação analisado nesse capítulo. Como tendência de longo prazo, os centros políticos que conseguiram controlar e tributar os nós críticos dessa economia periférica obtiveram uma vantagem desproporcional frente a seus competidores. O desequilíbrio progressivo dos subsistemas competitivos tem, em suas condições de possibilidade, a capacidade de endividar-se e cobrar impostos pelas conexões a uma economia monetarizada em expansão. Em cada circunstância específica, esse engate expansivo entre aduanas e exércitos precisa ser analisado empiricamente, a fim de contornar o determinismo econômico que vincula genericamente o “crescimento voltado para fora” aos “estados nacionais” na segunda metade do século XIX. Nem a “guerra” nem o “desenvolvimento capitalista” são fatores explicativos abstratos para explicar a prevalência de estados centralizados na América Latina pós-colonial. Os elos decisivos da fiscalidade e do crédito dependem de trajetórias em boa medida contingentes, o que voltará à tona na terceira parte da tese. Por ora, é possível apontar 207 de forma genérica alguns exemplos do peso das commodities na balança regional de poder, ou ainda, da concorrência armada pela ampliação do metabolismo fiscal. No subsistema formado pela desagregação do vice-reinado do Peru, a primazia militar do Chile, demonstrada nas guerras de 1836-1839 e 1879-1883 contra Peru e Bolívia, tem relação clara com a superioridade de sua musculatura fiscal, organizada precocemente ao redor das exportações primárias do Vale Central. Esse desfecho favorável ao Chile acentua o desequilíbrio ao transferir, na década de 1880, as regiões de exploração salitreira no deserto para o território chileno. Já a Guerra do Chaco (1932-1935) entre Bolívia e Paraguai tem como acicate as pretensões dos dois estados de controlar a exploração de campos petrolíferos na região. Na rivalidade militarizada entre Bolívia e Brasil na Amazônia sobre o controle do Acre, o subtexto do conflito era a exploração da borracha, então muito cobiçada no mercado internacional. A Guerra do Paraguai (1864-1870) foi a culminância de uma rivalidade secular pelo controle da circulação hidrográfica entre o interior agropecuário e o Atlântico, que até então tivera a Banda Oriental como principal teatro de operações105. A ofensiva de Solano López em fins de 1864, que desata a guerra, é uma reação preventiva diante da perspectiva do Paraguai tornar-se refém de sua posição mediterrânea, em função do apaziguamento da guerra civil uruguaia e do alinhamento nacional-liberal entre Brasil e Argentina na década de 1860. A reação paraguaia congregava os brancos uruguaios, derrotados na guerra civil, e as províncias argentinas de Entre Ríos e Corrientes, cujas reações mediterrâneas já haviam derrubado governos em Buenos Aires em 1820 e 1852. No conflito de 1864-1870, as receitas alfandegárias e a elasticidade do crédito doméstico e internacional pesaram decisivamente para o lado da Tríplice Aliança. Desse ponto de vista, é possível identificar que a escalada da guerra estava associada às condições, imediatas ou no futuro esperado, de proteção e de ampliação do ciclo extrativo-coercitivo girado pelos estados pós-coloniais. É certo que inúmeros determinantes e contingências atravessam cada episódio militar, e nem todos se desenvolvem na mesma direção. Ainda assim, o vetor tendencial do controle político da violência, que acarreta uma mudança da topografia do confronto político, estabelece um estímulo recíproco com o alargamento da base fiscal, que, por seu Vale observar também o peso desproporcional do Uruguai como potência agroexportadora a meados do século, quando a guerra civil ainda estava em seu auge (ver Tabela 5.1). 105 208 turno, depende do comércio exterior e suas ramificações internas. Nesse sentido, o desenvolvimento desigual do ciclo sistêmico de acumulação incide sobre a correlação de forças nos subsistemas interestatais competitivos gerados pelo desmoronamento dos impérios ibéricos. Para usar outra expressão de Ardant, é por essa razão que a mudança na “fisiologia dos estados”106 por trás da guerra tem efeitos mais profundos e duradouros que o cesarismo dos heróis da independência e seus herdeiros. A maior escala de emprego da violência teve outra consequência fundamental ao determinar, enrijecer, afiar os termos da ordem política emergente. De um entrechoque relativamente horizontalizado entre projetos discrepantes de ordem, a disputa se torna mais assimétrica: contestações e barganhas retroagem sobre uma concepção axial e hegemônica do que a política é e deve ser. Recuperando o que foi dito neste capítulo, uma série de deslizamentos estavam implícitos: o bem comum ser traduzido como progresso; o progresso ser dimensionado em termos nacionais; o progresso nacional ser um vértice da política; e a direção da violência nessa política consistir em romper certos diques e debelar resistências sociais à mercantilização da vida material. As resistências a esse projeto axial se tornam cada vez mais reações episódicas e imediatas. O discernimento rotinizado entre o campo da proteção e o da ameaça tem como pano de fundo a canalização do uso da força contra o que é tido como entrave ao progresso nacional. É nesse contexto que coletividades tão díspares como a corporação eclesiástica, as tribos indígenas autônomas, as municipalidades e as coalizões de base provincial se situam em um heterogêneo campo das resistências à desobstrução e à formalização de uma sociedade de mercado. Em conjunturas específicas, uma aliança era forte o suficiente para tomar as rédeas do estado com um horizonte de restaurar as sociabilidades dilaceradas pelo reformismo liberal, reconstruindo diques institucionais e culturais à “avalanche de desarticulação social” descrita por Polanyi. A conversão dos imaginários alternativos de ordem em simples reações autoprotetoras os reduz ao imediato: a autonomia provincial se traduz na defesa dos impostos à circulação interior; a Igreja faz de sua política basicamente contra a desamortização de seus imóveis e terras; o autogoverno local de municipalidades e comunidades rurais fica reduzida a represar a proletarização de seus membros. A construção da ordem A ideia de fisiologia dos estados foi cunhada por Gabriel Ardant para designar “os processos pelos quais [os estados] adquirem e alocam os meios para levar a cabo suas atividades principais” (TILLY, 1990: 54). Seu emprego foi difundido por Charles Tilly (1990: 54-58) 106 209 hegemônica, ao retirar as demais alternativas do horizonte de possíveis, também subtrai delas a dimensão utópica de ordenamento social. Por consequência, o imaginário de futuro fica colonizado pelo progressismo liberal, que concebe quaisquer coletividades que não a empresa privada e o estado como um atavismo do antigo regime, um corporativismo a ser extirpado. 5.5. O desencaixe como processo autoestimulante A chamada “conquista do deserto” pelo estado argentino foi uma investida violenta contra as formas autônomas de vida na Patagônia, das quais o cacique Inacayal fora um exemplo sem dúvida notável. Ao contrário do que esperavam os cientistas da época, não se tratava de formas arcaicas congeladas no tempo. Os povos indígenas americanos eram, em maior ou menor grau, desdobramento das sociedades de conquista que se implantaram no continente, com seus intercâmbios e suas violências. Na Patagônia, os povos nativos desfrutavam de autonomia para regular tanto seus rituais políticos e suas formas de dominação, como o lugar das trocas materiais na vida coletiva. Os imensos espaços de movimento humano tinham enraizados pontos de referência para o encontro ecumênico e o intercâmbio físico, como a ilha de Choel Choele e o entorno do forte bourbônico de Carmen de Patagones. Ao se estudar a formação dos estados modernos na América Latina – ou a expansão do sistema interestatal capitalista na região – é necessário considerar o contínuo e agonístico embate contra suas alternativas. Só assim é possível substituir a imagem do “deserto” pela de uma disputa política propriamente dita, em que a expansão desses estados não se faz mediante a régua normativa do analista, mas contra os grupos sociais que efetivamente resistiram ao desenraizamento de seu ambiente cultural. O argumento desenvolvido até aqui é que, independente das ambições mais despóticas que nutriram um líder ou uma lei, a ultrapassagem efetiva das autonomias locais pelo estado pós-colonial dependia, no longo prazo, da reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo. Em outras palavras, isso significa mobilizar dinheiro, pessoas, armas e materiais para o governo, garantir com isso as condições sociais para essa extração, de forma regular. Em segundo lugar, a reprodução ampliada do ciclo 210 extrativo-coercitivo foi impulsionada pelas oportunidades fiscais do ciclo sistêmico de acumulação cujo núcleo era a Inglaterra industrial. Se bem entendida, essa proposição não se confunde com um “choque externo”. O capitalismo industrial não emanava do centro para o resto do mundo, mas era gestado pela nova divisão internacional do trabalho que organizava nessa escala mundial. Conforme esta se desenvolvia, floresciam na paisagem latino-americana segmentos de lucros extraordinários, associados às cadeias de valor da expansão industrial. É pelo estreitamento de sua relação com esses segmentos que os estados pós-coloniais conseguem, de forma geral, desatar o nó fiscal criado pelas independências, contornando a resistência social pelo caráter indireto da extração. O argumento se completa quando percebemos que esses estados não foram meros parasitas acoplados às aduanas. Eles foram ativos responsáveis pelo esgarçamento do escopo social do sistema econômico que lhe auferia as principais receitas. Enquanto o comércio exterior dependia da extensão interior dos mercados, a mercantilização como política de estado empurrava suas bordas, desarticulando mercados locais e circuitos independentes de autoabastecimento e reciprocidade. Ao revolver a vida material à condição de mercadoria desenraizada, os estados pós-coloniais desobstruíam as vias para a integração com o mercado mundial. Quanto mais intensa ela fosse, em tese, maiores seriam as oportunidades fiscais para quem controla seus gargalos de circulação. Forma-se, nesse sentido, um terreno possível de ganho recíproco entre elites econômicas ligadas à especialização produtiva e elites políticas ligadas ao controle dos meios de violência (ver Gráfico 5.1). O crescimento material do aparato e o reformismo liberal não são percebidos como concomitantes e independentes, mas como dois processos encadeados, cuja dinâmica tende a reforçar-se mutuamente. De certa forma, a armadilha do argumento do estado como o deus ex machina do mercado autorregulado no século XIX é tomar como dada a própria existência desse estado como um aparato administrativo capaz de reordenar a sociedade com sucesso. De fato, as capacidades para fazê-lo, do conhecimento especializado ao controle sobre a violência, estavam sendo acumuladas em movimento, legitimadas pelo horizonte de progresso social dado pelo desenvolvimento da economia de mercado. A utopia liberal só é bem compreendida quando se tem em conta a ambiguidade entre seu apelo universalista e o interesse imediato de quem a promove. Uma economia monetarizada é uma economia 211 tributável, e uma economia tributável é um espaço politicamente controlado; ora, um espaço politicamente controlado é onde prevalece os códigos mínimos do constitucionalismo liberal; logo, nesse espaço a vida material é regida pelo intercurso entre indivíduos e mercadorias, o que significa uma economia monetarizada e tributável. O arranque desse mecanismo explica o estreitamento do horizonte de possibilidades após a conjunção crítica das crises imperiais. Na periferia do ciclo hegemônico britânico, as fronteiras e linguagens da ordem e seu contrário vão se sedimentando ao redor da alimentação recíproca entre estado liberal e economia de mercado. O constitucionalismo, outrora emblema da soberania popular, foi desbotando como normas de civilidade em uma sociedade de contratos. O federalismo perdeu após a década de 1850 a polissemia com que abrigara as reivindicações autônomicas de pueblos e províncias. Neutralizado seu potencial de ativação popular, o reformismo liberal se convertia na possibilidade de fabricar mercadorias fictícias pela lei e pela força, bem como nas condições para aplainar sua livre circulação no mercado por códigos civis e comerciais, ferrovias, unificação tributária, tribunais e polícias, etc. A expansão do mercado retroalimentava a base fiscal sobre a qual esses estados se sustentavam. Gráfico 5.1. Reciprocidade causal na expansão de estados e mercados Fonte: elaboração própria. 212 Podemos entender o desencaixe da política de seus contextos locais como um subproduto tendencial da operação continuada do mecanismo descrito no Gráfico 5.1. Ali observamos que o fortalecimento do aparato de estado é um desdobramento das oportunidades de extração resultantes do fluxo de comércio exterior e de sua contrapartida financeira. Esse fortalecimento, por sua vez, potencializa as políticas de mercantilização social, que fabricam a terra, o trabalho e o dinheiro como insumos da produção orientada para o mercado. Agora, no Gráfico 5.2, o fortalecimento do aparato de estado é colocado no contexto do conflito com soberanias e rotinas políticas territorializadas. Podemos refinar a ideia do desencaixe da política do seus contextos locais a partir de uma espiral entre (1) o estado adquirir maiores capacidades materiais, (2) o aumento do escopo de interferência da ação estatal na vida dos governados, ou das mediações estatais no cotidiano, (3) a disrupção, mais ou menos violenta, nas autonomias locais, provinciais ou corporativas pela autoridade central, e (4) o direcionamento das pressões sociais e da ação coletiva ao aparato de estado, o qual cria (5) os pretextos e contextos para o aumento de suas capacidades materiais, para barganhar e reprimir o dissenso. Esse circuito está representado no Gráfico 5.2. O motor dessa espiral de desencaixe é a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, e seu combustível, as oportunidades fiscais do ciclo sistêmico de acumulação. Ao longo do tempo, o resultado do processo é uma tendência à nacionalização da disputa política, com consequências imprevisíveis. Gráfico 5.2. Desencaixe da vida política como resultado tendencial Fonte: elaboração própria. 213 6. OS SINAIS DO OUTONO: PROGRESSO E DESDEMOCRATIZAÇÃO NA FINANCEIRIZAÇÃO DA HEGEMONIA BRITÂNICA (1873-1931) “Já nos últimos anos liquidamos muitas ilusões sobre nossa aparente prosperidade e os pretensos elementos dela: vimos ao que serve e ao que pode servir o guano, o salitre, as ferrovias, os bancos, a imigração, as grandes fazendas e as empresas, e estamos vendo que, apesar de tantos telégrafos e barcos a vapor, e um movimento comercial imenso, um mal-estar novo, profundo, inexplicável nos devora, nos desconcerta, nos desanima e nos ameaça de um porvir ainda mais triste; e esta situação nenhuma revolta faria mais do que agravá-la e piorá-la, porque ela não vem da natureza dos homens, mas das coisas, não deriva dos homens do presente, mas dos homens do passado, ou seja, de todo o ocorrido nos últimos trinta anos, e dos erros econômicos que formaram nosso modo de ser e de viver” Juan Copello e Luis Petriconi107 Juan Copello e Luis Petriconi, médicos italianos que fizeram do Peru sua “pátria adotiva”, produziram em 1876 uma série de artigos polêmicos em El Nacional sobre a crise vivida no país. Defendiam que a independência econômica do país, “seguramente tão importante e tão difícil como sua independência política”, não seria atingida enquanto não se rompesse a “prosperidade fictícia artificial” oriunda das exportações de guano, fertilizante natural sedimentado na costa sudoeste da América do Sul pela corrente de Humboldt. Por ser leve e solúvel, o guano se tornou um fertilizante muito cobiçado na agricultura europeia e estadunidense, então pressionada pelo aumento demográfico e pela urbanização. Copello chegou ao Peru em 1846, mesmo ano da extinção das Leis do Trigo inglesas, que protegiam a agricultura britânica do mercado mundial; em sua estadia, portanto, o médico da Ligúria fora testemunha ocular da decolagem, apogeu e colapso desse ciclo exportador. Desde 1841, quando o primeiro carregamento atravessara o atlântico, o estado peruano já impusera seu monopólio sobre os depósitos, distribuindo vultosos contratos de exploração comissionados a grandes comerciantes locais (Domingo Elías, irmãos Barreda, Andrés Alvarez), que por sua vez se associavam a casa mercantis Extraído de Copello e Petriconi (1971: 08). Cheguei aos “Estudios sobre la independencia económica de Peru” através da obra de Gregorio Weinberg (1988), que os menciona especificamente na página 62. A reedição de 1971 da Biblioteca Peruana de História Econômica conta com um precioso prefácio do ilustre historiador Jorge Basadre (1971), que ajuda a contextualizar a obra na “literatura de crise” do Peru pré-Guerra do Pacífico. Os autores dos Estudios reivindicam o estudo da “Economia Política no sentido do imortal Sismondi”, sinalizando de saída “o fomento da indústria nacional como o único meio de salvar pouco a pouco a crise comercial que atravessamos, de resolver o problema de sua independência econômica” (COPELLO & PETRICONI, 1971: 03). 107 214 internacionais (Anthony Gibbs & Sons)108. Enquanto isso, o mercado financeiro peruano desabrocha com os títulos secundários do guano e com a dívida pública, consolidada na década de 1850 graças às novas receitas fiscais. A dependência do orçamento peruano às rendas de monopólio se tornou tão marcante que, em 1855, quando as exportações peruanas superaram 500 mil toneladas, um informe ministerial admoestava: “desgraçada a República se, chegado o momento de sua desaparição [do guano], não encontra já arraigado nos costumes o meio de fazer frente aos gastos nacionais”109. A crise financeira mundial de 1873 foi devastadora para a economia peruana. O centro inicial de irradiação dos maus tempos foram os bancos alemães, fragilizados pela incerteza da indenização de guerra francesa e pela ressaca do boom das ferrovias110. Como se tratava à época de um sistema bancário bastante descentralizado, o contágio da crise foi rápido na Alemanha e na Áustria, e as falências dos bancos independentes logo criaram uma crise de solvência internacional. Para o Peru, a rolagem da dívida externa já era um problema antes de 1873, em função dos gastos com a guerra de 1864-1866 contra a Espanha. Em 1869 assinou-se o chamado Contrato Dreyfus, pelo qual o governo de José Balta entregava uma cota de exportação de guano à empresa francesa de Auguste Dreyfus em troca do pagamento do serviço da dívida externa e de adiantamentos. Até o cumprimento dessa cota, o governo ficava impedido de consignar novas exportações ao mercado europeu e de suas colônias. Graças à cobertura de sua dívida, o governo de Balta contraiu novos empréstimos para um ambicioso plano ferroviário, além de sediar uma suntuosa exposição internacional em 1872. Quando a crise de 1873 abalou o sistema financeiro internacional, o Peru não só tinha a maior dívida externa da 108 Rory Miller e Robert Glenhill (2006) aplicaram a abordagem das cadeias de produção (commodity chains) à indústria dos nitratos (guano e salitre), o que é de grande valia para discernir as diferentes conformações entre estado, capital estrangeiro e firmas locais em cada situação. Há inclusive um esquema ilustrativo para a conformação da indústria do guano no Peru c.1855 e a centralidade da Anthony Gibbs & Sons para a propulsão desse mercado (MILLER & GLENHILL, 2006: 232) 109 O relatório é citado no prefácio de Jorge Basadre aos Estudios (BASADRE, 1971: ii). O longo momento de deflação da economia europeia entre 1873 e 1896 já foi objeto de inúmeras análises, embora em geral debruçadas unicamente sobre o centro do sistema. Há controvérsia a respeito da designação de “Longa Depressão” em função do enorme desenvolvimento industrial do período. Arrighi (1997: cap. 1) ajuda a colocar o período em perspectiva, na fase B do segundo ciclo de Kondratieff. Hirst e Thompson (2001: especialmente cap. 2 e 3), além de boa história econômica, usam o período 1870-1914 para escrutinar o debate sobre globalização. Para um esclarecimento geral sobre a “longa depressão”, são recomendáveis os trabalhos de Michel Beaud (1994), Eric Hobsbawm (1989; 2003) e, de forma mais geral, Giovanni Arrighi (2009: cap. 3). 110 215 América Latina e outros compromissos futuro empenhados, mas também uma saturação de seu principal trunfo exportador. Após décadas de exploração intensiva, a disponibilidade e a qualidade do produto caíam enquanto novos concorrentes, o salitre e os fertilizantes sintéticos, lhe roubavam compradores. O ápice da crise internacional correspondeu às moratórias consecutivas do Império Otomano (1875), Egito (1875) e Peru (1876), afora outros quinze países periféricos que foram levados a suspender os pagamentos (MARICHAL, 1989: 110). Observemos rapidamente a situação do Egito, antes de voltar ao desenlace da crise peruana. Desde o longo governo de Mehmet Ali, de 1805 a 1849, a província usufruía uma independência de facto com relação à Sublime Porta, lançando-se em um audacioso projeto de obras públicas, reorganização da propriedade agrária e modernização militar que o tornaria modelo de reforma para seus vizinhos, do Reino da Abissínia a outros vassalos otomanos no Magreb (BAYLY, 2004: 261). Com a drenagem das planícies do baixo Nilo e um sistema de canais e represas para irrigação, a área cultivável aumentou 60% entre 1813 e 1877 (DARWIN, 2015: 333). A produção de grãos para o Império e para o sul da Europa foi suplantada pela exportação intensiva de algodão para a industrialização de Inglaterra e França. Em meados do século, a prosperidade egípcia passou a se projetar sobre a construção do Canal de Suez, que poria o país no controle da principal rota comercial do mundo e selaria sua independência com relação ao Império. A abertura do canal em 1869 chegou tarde demais para que seus benefícios pudessem compensar seus custos, e a dívida contraída para sua construção foi envolta pelo redemoinho financeiro de 1873-1876. O que fora desenhado como um consórcio com participação de capital britânico se tornou, com a venda emergencial da participação egípcia no Canal em 1875, um empreendimento ultramarino controlado em Londres. Na década de 1870, o governo do Egito dependia tanto ou mais das exportações de algodão quanto o do Peru, dos fertilizantes; a retomada da produção algodoeira no Sul dos EUA, em “reconstrução” após a Guerra Civil, comprometeu as receitas egípcias. Nesse contexto, a garantia do pagamento das dívidas se tornou uma porta aberta à ingerência externa: os credores constituíram em 1876 um órgão colegiado dentro do governo egípcio com poderes extraordinários para supervisionar as finanças, enquanto cresciam na população local apelos nacionalistas de um “Egito 216 para os egípcios!” (BAYLY, 2004: 207). A pressão de ambos os lados acabou depondo em 1879 o último dos herdeiros do projeto de Mehmet Ali, Ismail Paxa. Em um momento de fragilidade do Império Otomano e ingerência massiva de funcionários e capitalistas europeus no Egito, a deposição de Ismail gestou entre os militares um movimento nacionalista liderado pelo coronel Ahmed Urabi, que abriu confrontação com o novo quediva (vice-rei) em 1881. O fortalecimento dos nacionalistas egípcios, por sua vez, espalhou pânico no Império Britânico: só o The Times publica mais de 700 reportagens sobre a crise egípcia entre 1881-1882 (DARWIN, 2015: 353). Na geopolítica imperial britânica, o controle do Canal de Suez era o controle da Índia, cuja imensa revolta anticolonial de 1855-1857 ainda estava na memória. Em setembro de 1882, o governo de Gladstone procede a invasão total do Egito, que resulta em um protetorado que duraria mais de setenta anos. A iniciativa britânica de converter a crise egípcia em ocupação efetiva causará comoção internacional e será um dos precedentes decisivos para a convocação, pela Alemanha de Bismarck, da Conferência de Berlim (1884-1885), responsável pela “partilha da África”111. Em agosto de 1875, o Banco Nacional do Peru, entidade privada mas com fortes conexões governamentais, declara-se insolvente. Com a maior dívida externa da região, o Peru fora definitivamente arrastado para o centro da crise: os pagamentos foram suspensos pelo governo em janeiro de 1876, quando os papéis dos empréstimos de 1870 e 1872 já eram negociadas a menos de 20% de seu valor de face112. Para fazer frente à constrição fiscal, o governo peruano tenta nacionalizar o emergente setor de nitratos em 1876, além de firmar outro acordo (Pardo-Raphael) de concessão de monopólio do guano em troca do pagamento da dívida externa. O regime de exploração dos nitratos, em que o monopólio estatal no Peru se opunha ao regime de propriedade privada impulsionado no Chile, esteve na raiz das escaramuças que terminaram na Guerra do Pacífico (1879-1883). Com sólidas relações com o capital Segundo Godfrey Uzoigwe (2010), os antecedentes imediatos da convocação da Conferência de Berlim teriam sido, em sequência, o interesse pelo Congo do rei Leopoldo I da Bélgica, coroado em 1865, expresso pela conferência geográfica de Bruxelas (1876) e a criação do chamado Estado Livre do Congo no ano seguinte; as expedições coloniais portuguesas na África Austral; e, finalmente, o expansionismo imperial francês no Magreb e inglês no Egito na década de 1880. 111 112 Marichal (1989: tabela 6) tabulou a série histórica das cotações dos títulos peruanos, o que ajuda a visualizar a quebra abrupta de seu valor na crise. Para se ter um parâmetro de comparação, na crise financeira grega pós-2010 o valor de transação dos títulos da dívida pública grega se manteve ao redor de 70% do valor de face, graças à intervenção do Banco Central Europeu e do FMI para salvar os bancos europeus. Ver Toussaint, Eric. El BCE, como fondo buitre. Público (Espanha), 18/10/2017. 217 estrangeiro, a elite chilena tinha especial receio com relação às “reivindicações dos credores do governo peruano, incluindo os detentores de certificados de nitratos, onde um mercado secundário se desenvolveu, e a ameaça de intervenção estrangeira para respaldá-los” (MILLER & GREENHILL, 2006: 245; grifo adicionado). O dramático enredo egípcio ecoava no Pacífico sul. Tendo vencido a guerra e se assenhorado das províncias salitreiras, o governo chileno permite que os detentores dos títulos assumam a propriedade dos campos de produção, abrindo um novo campo ao capital estrangeiro e fechando outro às marinhas de guerra. Por volta de 1900, aproximadamente metade da arrecadação chilena era oriunda de impostos sobre os nitratos (CENTENO, 2002: 135). Sem sua receita de monopólio, o Peru retoma o pagamento da dívida externa somente em 1886, por meio de um arranjo com um consórcio de capitalistas britânicos, em contrapartida do qual se transferia os direitos de exploração do guano, dos depósitos minerais e das ferrovias Sul e Central do país (CORTES-CONDE, 2008: 213). Não há dúvida que os contextos e as trajetórias históricas do Peru e do Egito são diversos em inúmeros aspectos. O propósito dessa excursão inicial é trazer à luz, justamente pela aproximação dessas experiências tão distantes, uma transformação mais ampla em curso no sistema mundial a partir dos anos 1870, pela qual se opera uma transferência relativa das pressões competitivas do centro para a periferia. Sem dúvida, os exemplos acima mostraram um ponto extremo da vulnerabilidade causada pela conjugação entre desequilíbrio comercial, endividamento externo e ausência de dissuasão militar. Com o desenvolvimento das finanças mundiais – com sede em Londres e unidade do padrão-ouro –, o endividamento acumulado na periferia durante o boom econômico de 1846-1873 criou uma delicada situação em que solvência e soberania se tornaram virtualmente sinônimos. A soberania como “hipocrisia organizada” foi sendo esgarçada para acomodar interesses imperiais concorrentes – cada intervenção reduzia os custos políticos da seguinte, fazendo da exceção regra. Como mostrou a ocupação britânica no Egito, a iniciativa colonial era recompensada enquanto que o respeito à soberania se revelava inócuo. Dessa forma, a rivalidade interestatal no centro do sistema foi novamente extrapolada como competição colonial no resto do mundo. O desfecho imperialista do “longo século XIX” é a face mais visível de um novo momento na periferia do sistema mundial, em que a janela de oportunidade do 218 “liberalismo mundial” vai se estreitando a cada nova crise113 (1873, 1896, 1919, 1929). Isso se realiza na América Latina de forma certamente heterogênea, e não se pode generalizar a partir do caso da estrondosa quebra do Peru em 1876; no Chile, Brasil ou na Argentina, os pagamentos da dívida foram mantidos ao preço de austeridade e recessão (FILOMENO, 2006). Ainda assim, olhando o período 1873-1930 como um todo, o enxugamento pró-cíclico das oportunidades fiscais ligadas às exportações primárias foi um combustível de instabilidade política. O argumento central dessa seção é que, pelas pressões verticais do sistema e por novas formas de contestação social vindas de baixo, há uma tendência de enrijecimento das linhas de exclusão política, com o adensamento dos pactos entre elites forjado pelo empuxo exportador. Conceitualmente, defende-se que o desenvolvimento dessa coesão elites não decorre de uma identidade de classe pré-formada, como é comum nas alusões à “oligarquia”, mas que ela se forma por acordos contingentes, amparados no acesso das elites regionais ao aparato de estado e no desencaixe de autonomias locais. Em termos do cálculo do dissenso, a distribuição de benefícios através do aparato de estado foi um cimento para a coesão das camadas dirigentes, enquanto o efeito regressivo da tributação indireta continuaria dissipando socialmente o ônus da manutenção desse aparato. Desse argumento geral derivam três processos correlatos para a construção da ordem política, mas que apontam em direções diferentes: primeiro, como sobrevivência entrincheirada do passado, as elites políticas abraçam-se como um “anel burocrático” aos setores exportadores e às suas ramificações urbanas, suportando-os e suportando-se neles para manter uma reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo. Segundo, como indicação incipiente do futuro, ocorre a germinação de novas subjetividades políticas por fora dessa ordem entrincheirada, o que é visível sobretudo pela ativação de operários sindicalizados, de depauperados urbanos, de organizações de mulheres e mesmo de um corpo de intelectuais críticos, muitos com formação universitária. Terceiro, como uma estratégia política realizada no presente, há uma intensificação de mecanismos ideológicos e institucionais de restrição da comunidade política, endurecendo exclusões com base na raça, na Victor Bulmer-Thomas (2003: cap. 3-6) desenvolve precisamente o argumento de que o crescimento econômico por especialização em exportações primárias teria uma espécie de janela histórica de sucesso, que não fora igualmente aproveitada pelas economias latino-americanas, por diversos fatores, inclusive de caráter aleatório (“loteria de commodities”). 113 219 afiliação política, no gênero, na classe, no letramento formal, na língua falada. As elites cercam uma arena política para elas próprias, escudando-se em teorias sociais demofóbicas então correntes e dominantes, como o positivismo, o racismo, a eugenia, o darwinismo social e suas sinergias com o pensamento liberal. O resultado desses três processos é uma tendência à desdemocratização da ordem como forma de autodefesa dos estados pós-coloniais latino-americanos, fragilizados por uma turbulência mundial que não podiam controlar. O meio século que segue a crise de 1873 compreende o desgaste e colapso do ciclo hegemônico britânico, enquanto que, em suas fissuras, despontam alternativas de governabilidade para o que virá a ser um novo ciclo sistêmico no “longo século XX”. Sabidamente, o terremoto político generalizado na América Latina entre 1910 e 1945 será uma espécie de ebulição das referências, utopias e atores que permaneceram represados sob o liberalismo de elites proprietárias do século XIX. A partir da década de 1910, a contraposição aos efeitos sociais da regulação de mercado se tornaria enfim mais plural e poderosa que os apóstolos em sua defesa. 6.1. A crise de 1873 como inflexão mundial Da teoria das transições hegemônicas, sabemos que a janela histórica de ganhos generalizados é uma situação instável, uma vez que produz as contratendências para sua própria erosão. Essas contratendências têm duas formas principais: novos concorrentes e contestação social (ver Gráfico 2.1). Os novos concorrentes se inserem no padrão de acumulação do centro, aproveitando-se dos “bens públicos internacionais” da ordem liberal ancorada na liderança britânica, mas replicando internamente a industrialização que é vista como sustentáculo de seu poder hegemônico. Assim, em ondas sucessivas a partir de 1870114, Estados Unidos, Alemanha, Japão e, em menor escala, Itália e Rússia, acirram a concorrência interestatal e intercapitalista no “núcleo orgânico” do sistema. O acesso a crédito barato em Londres, o regime livre-cambista pós-1846, a libra como moeda internacional e a transferência de tecnologia, por meio das exportações britânicas de bens de capital, criariam um ambiente favorável para No caso de Estados Unidos e Prússia, o deslanchar da industrialização é seguramente anterior à década de 1870, mas seus efeitos sobre a economia internacional, pelo acirramento da competição intercapitalista, são sentidos especialmente após a crise de 1873. 114 220 estratégias territorializadas de industrialização fora da Inglaterra. Em poucas palavras, as condições de governabilidade hegemônica são aproveitadas contra a própria potência hegemônica, minando assim a ordem cosmopolita nela centrada. Em termos de geografia econômica, os novos centros industriais insinuam linhas de regionalização comercial, como a que se delineia ao redor dos EUA (na América do Norte e orla do Caribe), do Japão (na chamada zona de co-prosperidade) ou da Alemanha (na Europa continental)115. Quando enfim o ciclo hegemônico britânico colapsa, essa regionalização demarca importantes linhas de fratura da economia mundial em desintegração. Para a política internacional, a emergência de potências desafiantes à pax britannica tem um aspecto distintivo: uma espécie de “degrau estratégico” formado pela capacidade de conduzir a industrialização da guerra, em terra e mar, a partir de uma base industrial de defesa territorializada. Com a produção em escala de armamento e munição padronizados, com o advento das peças intercambiáveis do “sistema americano de manufaturas”, com a sofisticação dos navios de guerra a vapor (encouraçados) e o emprego de ferrovias para a logística militar, o estatuto de grande potência passou a exigir não simplesmente um exército numeroso e disciplinado, mas uma infraestrutura industrial e tecnológica para manter o esforço de guerra116. Historicamente, esse degrau estratégico vai se solidificando nas vitórias da aliança anglo-francesa na Criméia (1855-1856), da União nos EUA (1860-1865), da Prússia bismarckiana contra Áustria (1866) e França (1870), do Japão contra a Rússia (1904-1905). Com o desenlace desses conflitos, era nítido que novas credenciais estavam sendo exigidas para aceder ao seleto clube das grandes potências. Esse degrau estratégico tinha consequências políticas notáveis. De saída, a sustentação dessa base industrial de defesa, que englobava transporte, comunicação, produção em massa e inovação tecnológica em sigilo, foi um vetor de territorialização da competição intercapitalista, de entrelaçamento, por assim dizer, entre estadistas e capitalistas sob um imaginário nacional (MANN, 1992: cap. 4-5). A economia Como diz Platt (1972: 226), “era inescapável que as indústrias de aço da Alemanha e dos Estados Unidos, baseadas em um mercado interno forte e protegido, haveriam de tomar os mercados vizinhos assim que atingissem o nível de desenvolvimento em que seus custos de produção fossem comparáveis aos britânicos”. Antes da Primeira Guerra, a Alemanha já detinha 62,8% do mercado de importações da Europa Ocidental, restando 16,6% para o Reino Unido e 3,7% para os EUA. Na América, por outro lado, os EUA detinham 85,7% do mercado canadense e 84,5% no México, Cuba e Panamá. 115 Sobre o tema da industrialização da guerra, ver Buzan e Lawson (2013), Giddens (1989; 1991), Headrick (2011) e sobretudo McNeill (1982). 116 221 nacional integrada estava se tornando um pilar logístico da guerra de ponta. Essa territorialização produziu, nas palavras de O’Neill (1983), um “keynesianismo antes de Keynes” ao coligar o investimento militar, o estímulo econômico contracíclico e a proteção ao emprego, atraindo os sindicatos como grupo de pressão por contramercados para a industrialização da guerra. Em suma, a preparação militar rendia lucros e empregos para quem se mantivesse em ação na fronteira tecnológica. Inevitavelmente, por sua natureza, esses contramercados agravariam o “dilema de segurança” no centro do sistema, especialmente na Europa. A segunda contratendência gerada pelo próprio sucesso do ciclo de acumulação é a ativação de novas formas de contestação social, que o pressionam pela relação capital-trabalho. Seguramente, já havia luta sindical e operária em curso desde o começo do século, especialmente na Inglaterra, mas é após a década de 1870 que a organização dos trabalhadores se torna massiva no capitalismo central, interferindo diretamente no conflito distributivo (BEAUD, 1994: cap. 4; SILVER, 2005). Essa organização logra conquistas cumulativas na proteção dos trabalhadores contra as pressões competitivas do mercado de trabalho, como a regulamentação da jornada de trabalho, da exploração infantil ou do direito de greve – para usar apenas alguns exemplos que afetam diretamente a margem de extração de excedente do trabalho assalariado. O padrão de acumulação industrial encontraria progressivamente um limite político pela resistência de classe, de onde emerge uma delicada barganha por salários reais, representação política e proteção social. Frente a essas duas contratendências, que constringem a acumulação produtiva, a liderança britânica se volta às finanças, onde reina soberana: Londres e a libra esterlina passam a orquestrar o capitalismo cosmopolita via padrão-ouro, enquanto a vantagem na indústria está sendo disputada encarniçadamente por formas aspirantes de capitalismo dirigido117. Lembrando o argumento de Arrighi (2009), após desabrochar na esfera produtiva e galgar a supremacia comercial, o ciclo hegemônico se financeiriza em sua fase terminal, fazendo da própria volatilidade do capital uma condição inicial para o arranque de um novo ciclo (ver seção 2.3). Vide Hobsbawm (1989: 42): “A concorrência se dava não só entre empresas, mas também entre nações. Daqui em diante, os leitores britânicos se horrorizariam com os relatos jornalísticos da invasão econômica alemã – Made in Germany (1896), de E. E. Williams, ou American Invaders (1902), de Fred A. Mackenzie”. 117 222 A crise mundial de 1873 marca a inflexão do momento de expansão sistêmica ou governabilidade hegemônica para a tendência declinante de financeirização do “longo século XIX”. Grosso modo, se a expansão entre 1846 e 1873 se assentou na conformação de complementaridades na divisão internacional do trabalho, sua deterioração se manifesta como incremento da pressão competitiva. Nesse contexto, é fundamental perceber como os mecanismos de proteção a salários e lucros no núcleo orgânico operam uma transferência relativa dessas pressões competitivas para a periferia do sistema. A proteção do trabalho, como dito antes, é obtida sobretudo através da organização sindical, que respalda um movimento de elevação dos salários reais dos trabalhadores europeus nas décadas após 1873. A nível sistêmico, isso foi possível graças ao barateamento dos bens-salário e à transferência unilateral de força de trabalho excedente na Europa, através da migração em massa. Enquanto isso, verifica-se nos países centrais uma tendência sem precedentes de deslocamento do gasto público para fins não-militares, o que franqueava à classe trabalhadora uma interação não meramente repressiva com a autoridade instituída. Em um momento de ampliação do sufrágio no centro, adquirem relevância orçamentos vinculados à educação, aos transportes e telégrafos, às aposentadorias e pensões118 (MANN, 1993: cap. 14). Um dos agudos intérpretes da época, Vladimir Lênin ligaria em 1916 o surgimento do capital monopolista à “possibilidade econômica de subornar as camadas superiores do proletariado” a fim de induzi-los ao conformismo na luta de classes (LENIN, 2011: 238). A tendência à oligopolização do capital é, por sua vez, um mecanismo central de proteção dos lucros no centro. Através da progressiva integração vertical e/ou horizontal das firmas surge um novo ambiente empresarial, burocratizado na forma de corporações, trusts e cartéis. Ao contrário das empresas familiares que catapultaram a industrialização britânica em um ambiente concorrencial, a forma corporativa Michael Mann (1993) explorou extensivamente a estrutura orçamentária dos países centrais no período (França, Reino Unido, Estados Unidos, Prússia/Alemanha e Áustria-Hungria). A partir da comparação dos dados sugere o seguinte: “Esse aumento percentual nos gastos civis – de cerca de 25% nos anos 1760 para cerca de 75% nos 1900 – indica uma segunda mudança profunda no escopo do estado moderno, essa sem nenhum paralelo na história. Esse crescimento foi bastante consistente de meados do século XIX em diante. (...) emergiram políticas para a saúde pública, iluminação pública, saneamento, padrões mínimos de moradia, assistência médica rudimentar, uma força policial, a supervisão das prisões e das Leis dos Pobres, a regulação das horas e condições de trabalho, e a educação primária e eventualmente secundária para as crianças. Comunicações eficientes, boa saúde pública, e alfabetização em massa eram vistos como funcionais para o capitalismo, o poder nacional e o desenvolvimento humano em geral” (MANN, 1993: 482). 118 223 emergente nos Estados Unidos, na Alemanha e no Japão era talhada para aproveitar ganhos de escala, incorporar tecnologia e aproveitar-se de conexões privilegiadas com o poder político (ARRIGHI, BARR & HISAEDA, 2001). Os métodos de trabalho começam a ser repensados e adequados à produção em massa mesmo antes da publicação do manual de Taylor ou do primeiro Ford T sair da fábrica em Detroit (NORCLIFFE, 1997)119. A possibilidade de proteger os lucros através da oligopolização e da cartelização era, sem dúvida, análoga em seus efeitos à sindicalização dos trabalhadores. Para ambos, a reemergência do protecionismo aduaneiro após a crise de 1873, inicialmente na Europa Central e difundindo-se nas décadas seguintes, representava uma estratégia interclassista de contenção do excedente em chave territorial (WALLERSTEIN, 2011: cap. 3). Nesse contexto, a transferência relativa das pressões competitivas para a periferia estreita os ganhos relativos de sua especialização produtiva. Graças ao trabalho da primeira geração da CEPAL, uma forma muito conhecida dessa transferência é a reversão dos termos de troca entre produtos primários e industriais120. Até 1870, como vimos anteriormente, os termos de troca foram genericamente favoráveis aos produtos primários no mercado mundial, basicamente pelo barateamento dos maquinofaturados (Tabelas 6.1 e 6.2). Essa situação se reverte tendencialmente no período 1870-1930, como o trabalho de Prebisch (1949), não obstante suas limitações empíricas, pôs em evidência. Na formulação original de Prebisch, além da distribuição desigual do progresso técnico, são exatamente a oligopolização do capital e a sindicalização do trabalho no centro que resguardam, no conflito distributivo internacional, o poder de compra dos produtos É importante observar que a experiência de Taylor na indústria siderúrgica norte-americana na década de 1880 já apresenta diversos aspectos de sua “administração científica”, que chega na Europa na década seguinte. O desenvolvimento de um “sistema norte-americano de manufaturas” após a Guerra Civil (O’NEILL, 1982) indica componentes do que virá a ser a produção padronizada em larga escala. Como disse Hobsbawm, “Assim como a concentração econômica, a ‘administração científica’ (...) foi filha da Grande Depressão (HOBSBAWM, 1989: 44) 119 Há diversas formas de inferir os termos de troca do comércio internacional, em função de como se contabiliza o valor das importações (FOB ou CIF, preço no porto de saída ou no de entrada) ou as diferenças de poder de compra pelo câmbio. O que parece certo é que, ao contrário do que propunha Prebisch (1949), não se pode inferir um diagnóstico comum de deterioração secular dos termos de troca para o continente como um todo, ou mesmo para os produtos agrícolas em geral (BÉRTOLA & OCAMPO, 2010: cap. 3; BULMER-THOMAS, 2003: cap. 3). O que parece mais seguro afirmar é há um estancamento da tendência positiva da primeira metade do século, 120 224 maquinofaturados121. No momento de crise, essa aglutinação do capital e do trabalho acolchoaria a flutuação para baixo dos preços no centro, o que na periferia ocorreria em toda a extensão da autorregulação de mercado. Assim, as periferias primário-exportadoras compensariam essa deterioração com a elevação das quantidades exportadas, com isso saturando ainda mais a competição nos mercados que participavam (para a evolução das exportações por país, ver Tabela 6.3). Em certa medida, ocorria nas periferias uma contratendência análoga à que, no centro do sistema, as industrializações tardias produziram ao perseguir a posição inglesa de “fábrica do mundo”. Com o barateamento do transporte, o imperialismo e a maior circulação de capitais, novas províncias, regiões, países e colônias estavam sendo mobilizadas para o mercado mundial. Ao contrário dos centros industriais, pouco ou nada havia para contrarrestar os efeitos dessa oferta sobre os preços. As tendências de oscilação e deterioração dos termos de troca obrigava a uma “fuga para frente”. Enquanto a industrialização/urbanização na Europa e nos EUA mantivessem a demanda por primários em expansão122, os lucros ainda podiam crescer em termos absolutos123, e com eles se fez a belle époque dos grandes teatros, dos passeios públicos, dos cafés e dos clubes literários. Essa ampliação da oferta de bens primários, que envolvia a exploração intensiva do trabalho da costa açucareira no Peru à agropecuária nas pradeiras australianas, era a contraface sistêmica dos ganhos de salários reais no centro124. Paralelamente, a financeirização liderada pela City de Londres elevava a massa de capital flutuante e sua circulação internacional na forma de investimentos Esse argumento foi revisitado no marxismo pela discussão sobre troca desigual de Arghiri Emmanuel (1968), que substitui a ênfase nos produtos (industrias versus agrícolas) pelas condições de produção dos mesmos. 121 Ganha relevo aqui a expansão do leque de produtos primários atraídos ao mercado mundial pela industrialização, uma vez que, além dos bens-salário (sobretudo agrícolas), se despertava a necessidade de novos insumos industriais (estanho, borracha, petróleo, cobre). 122 Aqui há uma simplificação do processo cíclico pelo qual os momentos de expansão econômica puxam para cima os preços dos produtos primários, favorecendo temporariamente os termos de troca da periferia na forma de uma euforia exportadora. No reverso, contudo, os estoques sobem e os preços despencam. No saldo dessa flutuação se conforma a deterioração dos termos de troca dos produtos primários, que é uma generalização que não se aplica a todas, nem da mesma forma a, as commodities no período. 123 124 Daí nasce a célebre discussão de Ruy Mauro Marini (1991) sobre o papel da América Latina na passagem da exploração de mais-valia absoluta para relativa no centro, em função da inserção de economias dependentes para rebaixar o valor da força de trabalho industrial. O barateamento dos produtos primários, o câmbio afixado ao ouro metálico e o acirramento da concorrência industrial fez com que as últimas décadas do século XIX apresentassem uma forte tendência deflacionária, em função da qual o período 1873-1896 é frequentemente referido como a “longa depressão”. 225 diretos e em portfólio (Tabela 6.4). Embora marginal na dinâmica dos fluxos financeiros da época, a América Latina recebe um considerável influxo de capitais, concentrado sobremaneira em ferrovias, serviços urbanos e na exportação. Nesse contexto, a expansão da malha ferroviária se torna uma espécie de índice da atração de capitais e do dinamismo comercial (Tabela 6.5) O estoque acumulado desse capital estrangeiro começava então a pressionar a balança de pagamentos na forma de juros, amortizações e dividendos, engessando a conta de capital. Ocorre aqui outra “fuga para frente”: se e enquanto novos investimentos continuassem entrando, era possível manobrar as obrigações em moeda conversível; nos momentos de crise internacional, como 1873-1879, 1890-1894, 1918-1924 ou 1929-1934, a escassez de divisas era duplamente agravada. Nesse sentido, tanto a elevação de quantidade das exportações quanto a atração de novos investimentos geravam prosperidade aumentando a vulnerabilidade cíclica das economias periféricas. Quando a demanda mundial de primários e o mercado de capitais colapsasse definitivamente na década de 1930, o descarrilamento seria trágico. Como vimos, o padrão-ouro reforçou a hierarquia monetária internacional, formando também uma espécie de “degrau”, só que na pirâmide de moedas (ver seção 5.3). Os países latino-americanos orbitaram o círculo restrito do câmbio fixo, e suas tentativas de abraçar a conversibilidade foram muito vulneráveis às flutuações cíclicas (CORTES CONDE, 2008). Com a consolidação de um sistema financeiro a duas velocidades125, o esforço pela proteção do valor da moeda oficial, que percorre a história independente da região, se transforma em luta pelo acesso ao seleto clube das moedas conversíveis. Como demonstrou Eichengreen (2000), muito do sucesso do padrão-ouro como regime financeiro internacional dependia da coesão e da credibilidade entre o pequeno grupo de nações ricas, cujos capitalistas se beneficiavam com a mobilidade de capitais e a estabilidade cambial a ponto de blindar a política monetária de outras pressões sociais. Para os países latino-americanos, como já foi dito a propósito do México porfirista, fixar a conversibilidade era um símbolo do ingresso no “concerto das nações civilizadas” (MARICHAL & CARMAGNANI, 2001: 319) . A rigor não se tratam simplesmente de “duas velocidades”, mas uma gama mais ampla de associação (via diferentes arranjos de proporcionalidade das reservas, moeda fiduciária, bimetalismo, etc.) ao padrão-ouro puro que jazia no núcleo do sistema financeiro internacional. 125 226 De todas as pressões verticais para o disciplinamento da periferia, a mais explícita foi a ameaça de invasão, ocupação ou outras formas de supressão de soberania pela força das armas. Embora nunca de todo descartada, essa hipótese foi amplamente alavancada pela corrida imperialista de fins de século. Após as malfadadas tentativas espanholas entre 1861 e 1866, Robert Smith registra nas três décadas seguintes pelo menos dezesseis situações de intervenção, ou ameaça de uso da força, por potências estrangeiras na América Latina (Inglaterra, da França, da Espanha, da Alemanha, da Itália, da Dinamarca e da Rússia), envolvendo a Venezuela, a Nicarágua, a Colômbia, Santo Domingo e Haiti (SMITH, 2009: 610). Em 1898, no zênite da corrida imperial em escala mundial, os Estados Unidos debutariam como potência de ocupação fora de seu território continental, estabelecendo um perímetro geopolítico no hemisfério ocidental e uma zona de intervenção direta na orla do Caribe (Cuba: 1898-1901, 1906, 1912; no Haiti: 1914, 1915-1934; República Dominicana: 1916-1924, 1965; Nicarágua: 1912, 1927-1933; Panamá: 1908, 1912, 1918, 1925; Honduras: 1911, 1912, 1924)126. Afora os casos de efetiva intervenção, é preciso considerar a atmosfera mais geral, por eles alimentada, de desconfiança e imprevisibilidade quanto ao uso da força por parte do núcleo industrial do sistema. Na era da diplomacia das canhoneiras, dos tratados desiguais e das reivindicações extraterritoriais, a ameaça imperialista recortou, em maior ou menor medida, a margem de decisão das elites políticas na América Latina. Essa extroversão imperial da virada do século tem estreita conexão com a interdição política à guerra no próprio continente europeu após os eventos de 1870-1871. Sabidamente, o desfecho da guerra franco-prussiana deu vazão à primeira experiência radical de governo popular no coração do Ocidente, a Comuna de Paris, revivendo a “sexta potência”127 do concerto europeu que parecia hibernar desde 1848-1849. Frente aos riscos políticos de uma nova escalada de guerra na Europa, a conquista ultramarina abria terreno para a flexão da musculatura militar-industrial das grandes potências. A interdição da guerra intraeuropeia pós-1870 é um tiro de largada da corrida imperial. 126 Ver Ansaldi (2014: 68). A “sexta potência” é uma alusão de Marx à revolução social, ausente no Concerto Europeu firmado pelas cinco potências em Viena (1815), Inglaterra, França, Rússia, Prússia e Áustria. A expressão foi recuperada por Fred Halliday para uma crítica à disciplina de Relações Internacionais (HALLIDAY, 2003: cap. 6). 127 227 Além disso, a industrialização da guerra oferecia dois catalisadores para essa extroversão: de um lado, a territorialização das condições de acumulação produtiva estimulava a circunscrição de espaços econômicos imperiais. De outro, o salto qualitativo na condução da guerra industrial garantia aos invasores uma grande vantagem (ou, novamente, um degrau estratégico) sobre as resistências armadas ao colonialismo ao redor do mundo, como não se criara possivelmente desde o “longo século XVI”128. O resto do mundo ficara subitamente mais vulnerável às idiossincrasias dos que dispunham de metralhadoras, encouraçados e ferrovias. As rivalidades intraeuropeias então se projetaram mundialmente como corrida imperial e armamentista de capitalismos dirigidos. Embora o mapa político das Américas tenha sofrido poucas mudanças no período se comparado com o da África ou da Ásia129, o frenesi de partilha do mundo na virada do século se manifestou também ali como crescente desmaterialização prática do princípio de soberania, contornado não só pela ocupação militar punitiva, mas também pelos direitos de extraterritorialidade dos cidadãos europeus, pelo controle das aduanas, portos ou outros órgãos públicos pelos credores e seus representantes. Na dura renegociação da dívida externa na década de 1880, o Paraguai acordou a transferência de 2,5 milhões de acres (mais ou menos a área do Líbano atual) de terras públicas aos investidores britânicos para obter uma redução do montante principal de sua dívida. A Costa Rica, no mesmo contexto, transferiu aos credores a companhia ferroviária estatal e 600 mil acres de terra, o equivalente a 4,75% do país (MARICHAL, 1989: 123-125). Como pano de fundo dessas formas mais desmesuradas de rendição ao capital estrangeiro está o ambiente de insegurança criado pela reciprocidade entre solvência e soberania, que arrastara, como visto, o Egito ao protetorado britânico em 1882-1883. Não à toa, são dois juristas latino-americanos que desenvolvem as primeiras contraposições normativas à Existem inúmeras fontes secundárias sobre o desenvolvimento tecnológico aplicado à guerra no período: sobre as inovações em si, ver McNeill (1982); sobre do ataque sobre a defesa no final do século XIX, ver Mann (1993: cap. 12 e 21); sobre o impacto das novas tecnologias no salto vertiginoso do imperialismo europeu, ver Headrick (2011: cap. 5-7). 128 É importante a ressalva para não tomar o rumo algo superficial pelo qual Hobsbawm, ao constatar a continuidade da geografia política pós-independência, considera que as Américas permaneceram incólumes ao avanço imperial do período. “Só uma das regiões principais do planeta não foi afetada substancialmente por esse processo de divisão. As Américas eram, em 1914, o que haviam sido em 1875 ou, neste sentido, nos anos 1820” (HOBSBAWM, 1989: 58). 129 228 cobrança de dívidas com força armada (“doutrina Drago”) e à proteção extraterritorial de cidadãos e empresas estrangeiros (“doutrina Calvo”)130. A hegemonia britânica declinava e financeirizava-se. As mudanças em curso no sistema deslanchavam novas pressões de disciplinamento das periferias, da força bruta ao regime de comércio internacional. A janela de ganhos relativamente generalizados aberta na década de 1840 se fechava de modo mais ou menos dramático, fazendo das dívidas acumuladas um vetor em direção à austeridade, à ingerência e eventualmenteà ocupação imperial. Como foi anunciado ao princípio do capítulo, o movimento geral das periferias latino-americanas nesse contexto será de endurecimento da ordem pela solidificação de pactos de elites. Essas elites não temiam simplesmente as canhoneiras ou os banqueiros estrangeiros; temiam cada vez mais uma indecifrável e imprevisível entidade política: as massas. 6.2. A política dos governados131 Afeito que era às analogias militares, Antonio Gramsci certa vez comparou o efeito das crises econômicas a uma espécie de “artilharia de campanha” capaz de abrir brechas na defesa da ordem estabelecida, sem ser por si suficiente para devassá-la. Em seu longo combate contra o economicismo, Gramsci brandia, com a analogia, o papel insubstituível da ação política consciente para as rupturas revolucionárias. Da mesma forma, para nosso tema, as crescentes constrições sistêmicas às periferias após 1870 não pressionam a ordem vigente sem que para isso concorra a ativação política dos subalternos. Nessa chave, podemos sinalizar a emergência incipiente de uma nova ecologia política no período 1870-1930, simbolizada pela agitação trabalhista, pela aglutinação urbana de massas, pela formação de partidos políticos de base popular, pela pressão organizada por igualdade de gênero, pelo surgimento do movimento 130 Veja-se o comentário de David Mares (2001: 47-50) sobre o esforço da diplomacia latino-americana em deslegitimar o uso da força. Partha Chatterjee (2004) usa esse termo, “política dos governados”, para descrever a política dos subalternos frente à governamentalização do estado, ou seja, a “política emergindo das políticas desenvolvimentistas de governos em direção a grupos populacionais específicos” (CHATTERJEE, 2004: 40). Fora da sociedade civil ancorada na soberania popular e na cidadania formal e universal, grupos populacionais específicos negociariam suas condições de vida frente às agências governamentais, no que se formariam critérios e práticas avessas às que vigoram na sociedade civil das elites ocidentalizadas. 131 229 estudantil ou indígena como os conhecemos132. É evidente que as características, temporalidades e desdobramentos desses novos atores mudam muito conforme o contexto específico que estamos observando. Não obstante essas especificidades, é possível perceber como as mudanças sociais alimentadas no “longo século XIX” foram engendrando fontes de pressão desde baixo sobre o jogo político institucional. O epicentro dessas mudanças foram as cidades, cujo salto de escala e concentração no período está bem documentado (SCOOBIE, 2009). No começo dos anos 1930, havia dezenas de cidades latino-americanas com mais de 100 mil habitantes, incluindo algumas aglomerações urbanas que à época já superavam um milhão (Buenos Aires, Rio de Janeiro, Cidade do México). Essas cidades passaram a abrigar um novo ambiente associativo popular, com a emergência de associações mutualistas, clubes de bairro, organizações profissionais, centros comunitários de identidades migrantes e diaspóricas, logo acrescidos dos primeiros sindicatos de classe (Tabela 6.6). Ademais, essas cidades em expansão se tornaram núcleos de insalubridade, segregação e miséria, espaços densamente povoados com condições precárias de habitação. Para a contestação política, tornava-se um espaço mais imprevisível em termos de contágio, consequências e radicalidade da insatisfação popular. As cidades viraram então o habitat das “massas”, coletivo irracional e disforme que passou a inspirar a ojeriza dos intelectuais e a atenção das forças de ordem. Como processo, essa urbanização estava intimamente relacionada ao triunfo do liberalismo. A fabricação da terra, do trabalho e do dinheiro como mercadorias fictícias gerava como subproduto a ejeção de pessoas em larga escala, muito além do que o mercado de trabalho era capaz de transacionar. Assim, as cidades latino-americanas foram alimentadas pela proletarização em escala mundial, fosse pela migração internacional de trabalhadores expelidos da Europa e da Ásia, fosse pelo êxodo de comunidades rurais vizinhas. O resultado dessa desenfreada deposição humana nos aglomerados urbanos não tardaria a se fazer sentir nas formas de ação coletiva, como bem descreveu José Luis Romero: Uma das tentativas mais abrangentes que conheço de cobrir empiricamente a emergência de novas subjetividades políticas na América Latina nesse período foi feita por Waldo Ansaldi e Verónica Giordano (2012). 132 230 “Os comícios de milhares de pessoas reunidas em praça pública, o orador exaltado, as inflamadas palavras de ordem reformistas ou revolucionárias comoveram as cidades e retiraram a política das tertúlias e dos cenáculos onde tradicionalmente se urdia com uma prudente descrição” (ROMERO, 2009: 326) Nesse contexto, a ação sindical combativa foi seguramente a grande novidade nas décadas que seguiram a crise de 1873-1879, embora com focos de eclosão bem delimitados. No México, onde a agitação trabalhista fora bastante precoce, registraram-se doze greves entre 1865 e 1874, sendo oito na maquinofatura têxtil e quatro nas minas (COLLIER & COLLIER, 2002: 77). Na década de 1870, é criada a primeira central sindical no país, com inspiração anarquista. Na década de 1890, ocorrem confrontos trabalhistas de grandes proporções no México, na Argentina e no Chile. A primeira greve geral argentina ocorre em 1902, logo após a criação da Federação Operária Argentina (FOA) em 1901. No final da década, uma marcha em Buenos Aires mobilizou a cifra impressionante de 220 mil pessoas no Primeiro de Maio, resultando em brutal repressão e uma nova greve geral. No Chile, as associações de apoio mútuo se convertem em agremiações sindicais na década de 1890, com primazia dos enclaves exportadores do norte do país, onde a força de trabalho era numerosa e concentrada. No período 1902-1907, há uma escalada de luta trabalhista com cerca de 200 greves no país, culminando na paralisação geral de Santiago. De forma geral, a organização dos trabalhadores, seja nas cidades, seja nos enclaves exportadores, foi respondida com violência irrestrita, perseguição de lideranças, fechamento de jornais e gráficas, leis marciais, deportação e vigilância. De forma panorâmica, a crise desencadeada com a Primeira Guerra (1914-1918), quando os salários perdem poder de compra abruptamente, ensejou um impulso notável para a luta sindical. O encarecimento dos alimentos se soma às condições de trabalho e à repressão política como fermentos de indignação popular. Nesse contexto, a atividade sindical extrapola os contextos onde já estava enraizada (os antes citados, o sudeste brasileiro, Montevideo), eclodindo também nas cidades cubanas, nos enclaves colombianos, nos portos e ferrovias do Equador, na maquinofatura peruana (HALL & SPALDING JR., 2009: 316-320). Em pouco mais de três décadas, a difusão de pautas e repertórios de classe adquiria dimensões continentais, com consequências à época ainda difíceis de divisar. 231 Se observada em escala mais ampliada, a proletarização não foi um processo unívoco em direção ao trabalho assalariado, disciplinado e sindicalizado, cuja emergência atrai mais atenção por suas imediatas consequências políticas. As reclamações recorrentes à época entre os proprietários de que havia escassez de trabalhadores para as atividades exportadoras sinaliza respostas à exploração capitalista que não a organização sindical: como Langer (1997) demonstra para o caso da mineração na Bolívia, para os trabalhadores, “manter suas opções abertas retornando ao campo quando o emprego desaparecia podia manter suas famílias vivas” (LANGER, 1997: 39). Ou seja, os trabalhadores que mantinham alternativas de vida fora do mercado formal de trabalho poderiam contornar o desemprego e a inanição, tornando-se um proletariado sazonal, cíclico, modulado. Além disso, essas alternativas permitiam, conforme a injunção, evadir o cotidiano do trabalho assalariado nas minas ou nas fábricas, com a coação, a disciplina e o sobretrabalho exasperante que ele implicava. A proclamada escassez de empregados refletia que essas pessoas, embora não fossem estranhas ao trabalho assalariado, não haviam sido completamente arrancadas de seu universo cultural para se tornarem mercadorias dispostas a e repostas pela acumulação capitalista. Isso obviamente dependia da remanescência de espaços rurais independentes, desde o acesso à terra por partição em latifúndios às aldeias camponesas, territórios indígenas autônomos, fronteiras agrícolas abertas e, por vezes inseridos nas cidades, circuitos de produção simples de mercadorias. A luta sindical, por esse ponto de vista, se torna a saída dos que já não tem saída. A proletarização se move sobre um gradiente conforme, de um lado, se comprimem os espaços econômicos de sobrevivência fora do assalariamento capitalista, ou se resguarda, de outro, alguma autonomia material com relação à venda de força de trabalho. Há situações de maior ou menor exposição às pressões competitivas do mercado de força de trabalho. A resistência popular contra a proletarização que atravessou o “longo século XIX” se intersecta, em seu declínio como ciclo, com a nova agitação trabalhista e sindical, resultado do próprio sucesso acumulado da proletarização. De sua parte, a resistência à proletarização luta por preservar espaços autônomos de produção e circulação da vida material, ameaçados pela acumulação por despossessão em larga escala. A agitação sindical, por seu turno, começa a se organizar em função da autoproteção dos trabalhadores e trabalhadoras frente às inseguranças e abusos do 232 mercado de trabalho, isto é, pela oposição ao sobretrabalho ou às condições insalubres, pelo resguardo na infância, na velhice e na doença, pela proteção do poder de compra do salário. Dessa nova subjetividade política surgiriam, como projeção de futuro, utopias radicais de refundação da sociedade pelos próprios trabalhadores, que, direta ou indiretamente, destruiriam a ordem hegemônica do liberalismo oitocentista. A constituição de uma intelectualidade independente é também aspecto distintivo das cidades florescentes da virada de século, da qual são exemplo os mesmos médicos ítalo-peruanos que abriram este capítulo. A crítica social adquiria novas linguagens, novos veículos e novos horizontes. Com efeito, as cidades eram mais cosmopolitas: pessoas e publicações do mundo atlântico circulavam com mais facilidade, as universidades readquiriam peso como usinas intelectuais desvencilhadas da teologia, e os aparatos de estado, conforme seus recursos, passam a investir em espaços de pesquisa científica – como o Museu em que o cacique Inacayal fora confinado em La Plata (ver capítulo 5). Como subproduto, a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo vai elevando o peso social do funcionalismo público, o núcleo difusor de uma classe média urbana e letrada. Em particular, a profissionalização das Forças Armadas favorece uma intelectualidade militar sem ligação direta com as elites proprietárias. Em certos casos, esse segmento militar abre um novo flanco de dissenso à ordem, gestando um civismo cada vez menos liberal. Entre funcionários civis e militares, a racionalização administrativa se torna um ícone de progresso contra um passado de prebendalismo e corrupção. A proliferação de dissidências intelectuais não está distante do que se disse sobre a formação uma classe trabalhadora urbana, de modo que também ganham circulação também ideias socialistas, libertárias, anti-imperialistas e mesmo indigenistas. Com efeito, é pelo trabalho de intelectuais progressistas como González Prada, Luis Valcárcel e Manuel Gamio que novas referências vão sendo erguidas para entender a situação dos povos originários. Como subjetividade política específica, pode-se argumentar que o movimento indígena se constitui, a essa altura, pela fusão entre o próprio protagonismo político – para o qual a Revolução Mexicana de 1910 é um divisor de águas – e o pensamento indigenista de esquerda, antirracista e 233 demofílico133. Como disse González Prada em 1904, “o índio se redimirá graças ao seu esforço próprio, não pela humanização de seus opressores. Todo o branco é mais ou menos um Pizarro, um Valverde ou um Arreche” (apud FUNES, 2006: 131). A subversão da questão racial se torna, em perspectiva mais ampla, uma questão de definição nacional, desvelando um tema candente para as vanguardas modernistas a partir dos anos 1910, em um momento em que a arte, a política e a ciência não se separam nitidamente como campos de intervenção social. Na mesma conjugação entre formação de classe trabalhadora e fermentação intelectual, as reivindicações de igualdade de gênero começam a adquirir as primeiras expressões organizadas no período 1870-1930, na forma de publicações e suplementos específicos, associações de mulheres, sufragismo e sindicalismo feminino. A conformação das mulheres como movimento autônomo por pautas de gênero teve origem dupla: por um lado no movimento operário, como no caso dos sindicatos femininos da indústria do nitrato no Chile, das professoras primárias em Yucatán ou nas publicações operárias argentinas, e por outro na intelectualidade urbana de classe média, conectada ao feminismo liberal e humanista do movimento sufragista internacional. Com o risco de soar repetitivo, é bom lembrar que a emergência desses movimentos não obedece a uma estrutura temporal uniforme, a uma sincronia empírica em escala continental. Não obstante, seja agitada por publicistas liberais, por operárias organizadas, por professoras primárias ou artistas, a questão da igualdade de gênero se torna uma questão pública na primeira metade do século XX, mais propriamente no sistema mundial como um todo. Tal qual com as massas urbanas, os novos trabalhadores sindicalizados no campo e na cidade, o movimento indígena ou as agremiações partidárias de base popular, as elites políticas tinham para com as reivindicações feministas o mesmo dilema entre a repressão e a barganha, entre a imposição da ordem e as tentativas incertas de sua atualização pela cooptação dos insatisfeitos. É notório que a conformação desse encontro entre a muito longeva luta política indígena, que remonta necessariamente às resistências contra a conquista espanhola, e um polo intelectual antirracista é muito variável conforme a situação política. No caso do México pós-1910, a força do assimilacionismo étnico-cultural na antropologia oficial é inseparável da busca de legitimidade pós-revolucionária, ao passo que no Peru, por contraste, o indigenismo surge como movimento político por fora e contra da esfera estatal, adquirindo maior radicalidade (FUNES, 2006: 137-204). 133 234 Em suma, na análise do confronto político nas décadas posteriores à crise de 1873, é fundamental discernir a emergência de novas subjetividades políticas pressionando as linhas de inclusão e exclusão da ordem liberal, que triunfara hegemônica após a Era das Revoluções. Em boa medida, essas subjetividades políticas haviam sido engendradas pelo próprio sucesso do padrão de acumulação liberal, competitivo e industrial em escala mundial. Ao perseguir uma utopia de mercado na periferia, as elites latino-americanas produziram consequências sociais que seu próprio liberalismo era incapaz de administrar. A “questão social” surgia como heterogênea ameaça dos governados, daqueles que arcavam com os ônus da transição fiscal ancorada em tributos de importação, recebendo em troca repressão, vigilância e disciplina estatal. Com a proletarização acelerada das unidades familiares, o arrocho dos circuitos locais de produção e consumo e a urbanização massiva, o cobertor da ordem política ficara cada vez mais curto para os dissensos que precisava cobrir. 6.3. Intransigência e rotina: o liberalismo em desdemocratização Na história convencional da América Latina, o período do caudilhismo é frequentemente sucedido pela consolidação oligárquica, um momento de pujança restrita a poucos. Do personalismo militarista, do caos das guerras civis atinge-se uma etapa de estabilidade política ligada à modernização econômica, conduzida por oligarquias oriundas das exportações primárias. Ainda que funcione como descrição mínima para a iniciação ao tema, sua transposição à sociologia histórica põe em primeiro plano as incongruências do uso do termo “oligarquia”, ao mesmo tempo muito genérico e muito específico. Por um lado, é demasiado genérico no sentido em que subsume a política a uma unidade de classe pré-estabelecida, pressupondo uma determinação bastante imediata entre capitalismo e estado. A figura do “estado oligárquico” captura genericamente quaisquer configurações políticas do período sem explicar os mecanismos pelos quais se produziu esse resultado. Oligarquia se torna um termo literalmente auto-explicativo. Por outro lado, no plano da análise política, parece demasiado específico: tal qual caudilhismo, é um conceito referido quase que unicamente à América Latina, como se a singularidade da região encerrasse de antemão a possibilidade de comparação ou 235 abstração. A rigor, as duas fragilidades apoiam-se uma à outra, como duas cartas de baralho: é porque o termo está automaticamente conectado a uma região e um período que ele não precisa de elaboração conceitual própria, e é pela falta dessa elaboração que ele intuitivamente encaixa bem àquela realidade específica. Assim como as elites “oligárquicas” depreciaram o período que lhes antecedeu como o caos e a barbárie dos caudilhos, os movimentos nacional-populares do século XX firmariam a imagem pejorativa das oligarquias como ícones do passado: com aversão ao povo e submissas ao capital estrangeiro, elas sequestrariam o estado para seus estreitos interesses de classe. Útil como discurso de propaganda, como sociologia política rende pouco134. O objetivo dessa seção é traduzir o conceito intuitivo de “estado oligárquico” a partir de operadores conceituais mais firmes. De forma resumida, isso significa entendê-lo como tendência de desdemocratização da política institucional conforme se solidificam acordos interregionais de elites, acossadas pelas pressões verticais do sistema mundial e pelo risco emanado da “questão social”. Os períodos de estabilidade política relativa apoiados nesses pactos de elites possuem conformações específicas conforme o caso observado: o latorrismo no Uruguai (1876-1899), o autonomismo nacional argentino (1880-1916), o Porfiriato no México (1876-1910), o liberalismo amarelo (1870-1899) e a ditadura Gómez na Venezuela (1908-1935), o republicanismo civil no Brasil (1894-1930), a chamada república aristocrática no Peru (1895-1919), o parlamentarismo no Chile (1891-1925), a Regeneração conservadora na Colômbia (1886-1930) ou a geração do Olimpo na Costa Rica (1870 a 1914 ou 1940). Salvo exceções, como o Brasil ou o Chile, se tratavam de arranjos políticos de inédita longevidade na história independente desses países. Com uma enunciação conceitual em uma mão e os casos empíricos em outra, tentaremos destrinchar as razões mais amplas para essa “oligarquização” ou Alguns dos trabalhos que se apoiaram mais sistematicamente na ideia de oligarquia para pensar a formação dos estados latino-americanos são os de Enrique Gomariz-Moraga (1977), Jorge Graciarena (2014) e Marcos Kaplan (1974; 1996). Recentemente, Waldo Ansaldi (2017) buscou renovar o debate conceitual sobre a ideia de oligarquia, tendo como base seu extensivo conhecimento histórico sobre o período (ver também ANSALDI & GIORDANO, 2012: 465-480). Nesse curto artigo, ele considera que oligarquia é uma forma de dominação, e não uma classe social, que perdurou na América Latina no período 1880-1940, engendrando uma forma de estado que se contrapõe conceitualmente ao estado democrático. A meu juízo, o autor estipula demasiadas caracterizações empíricas do que seria oligarquia sem explicações substantivas para sua existência ou sua superação histórica. Embora pretenda uma categoria analítica, sua análise é antes de tudo descritiva, demarcando um período, um momento específico da história política latino-americana, e não me é muito claro como ela descola das análises anteriores em termos conceituais. 134 236 desdemocratização da política no período. O ponto de partida é a tendência de acomodação das elites regionais e dissidentes, absorvidas, cooptadas ou tuteladas pelo governo central após um longo processo de desencaixe da política de seus contextos locais. Ao final do “longo século XIX”, após trajetórias diversas de disputa política em torno das autonomias locais e regionais, o triunfo do estado centralizado se costura pela cooptação seletiva de elites a um acordo nacional, que lhes assegure acesso aos bônus do ciclo extrativo-coercitivo. A ideia comum de que as “oligarquias” se apoiavam na violência por não construir hegemonia ou consenso é algo anacrônica, pois desconsidera que, sob a estabilidade política, havia uma ativa construção de consentimento e coesão, por meio do estado, entre os que eram tidos então como politicamente relevantes. A exclusão das maiorias iletradas não era uma deficiência dessa estratégia de consenso, mas seu próprio conteúdo. Se tomamos em conta a força centrífuga que essas reivindicações autonômicas, de base local ou provincial, representaram ao ímpeto centralizador dos estados desde a independência, a consolidação desses pactos é uma saída conservadora de adesão à ordem do que antes haviam sido plataformas independentes de oposição. Se a decolagem do ciclo extrativo-coercitivo havia produzido, ao longo do século, uma assimetria fundamental em favor dos centros que afunilavam o comércio exterior, sua reprodução ampliada agora é condição de possibilidade para a reacomodação dos efeitos disruptivos dessa decolagem. Isso implicava recolocar os interesses regionais e setoriais em uma disputa política centrada no estado. Essa reacomodação é uma forma de produzir rotina institucional em torno do revezamento controlado de elites, apoiando-se na capacidade de construir consentimento com o orçamento dependente do comércio exterior. A clivagem “liberalismo versus conservadorismo tendia a se enfraquecer”, apontou Safford (1992: 97), “e dar lugar a Ordem e Progresso”. Do ponto de vista da coerção, o desenvolvimento de musculatura material pelos estados torna, a essa altura, os exércitos centrais decididamente mais poderosos que quaisquer milícias organizadas regionalmente. Mais do que isso, o crescimento e diferenciação do aparato de estado assegura uma margem maior de distribuição de posições, orçamento e prerrogativas às figuras proeminentes de localidades, províncias e setores econômicos marginais. A rigor, a expansão material desses aparatos podia se adequar a inúmeros esquemas de governo indireto, de quid pro quo 237 com autoridades locais. Assim, o corolário do desencaixe da política de seu contexto local é seu reencaixe como pacto contingente de elites, azeitado pelo controle sobre a seletividade inerente ao ciclo extrativo-coercitivo. Essa expansão acumulada do poder de estado sobre o território se combina a um processo importante: a supressão ou encurtamento de práticas, formais ou informais, de engajamento de um maior número na disputa política institucional. A forma mais inequívoca disso é a redução do sufrágio eleitoral, que é uma tendência comum na região desde a independência (POSADA-CARBÓ, 2000: 623). Em alguns casos, isso se opera pela explícita mudança das normas qualificativas ao voto, como no Brasil pela Lei Saraiva de 1881 (ver capítulo 10). Não obstante, a ideia de desdemocratização da política no período não deve se resumir às regras explícitas do jogo eleitoral. Como é sabido, e o Porfiriato mexicano seria o exemplo inequívoco, existem formas extralegais de controle sobre as eleições que neutralizar sua força. Mais do que isso, o avanço administrativo permite dissipar práticas informais, gestadas à margem ou no silêncio da lei, que ampliavam o acesso público às decisões em nível local. Recuperando os exemplos do capítulo anterior, a chamada “cidadania orgânica” no México rural (CARMAGNANI & CHÁVEZ, 1999), assim como as práticas pactistas dos municípios andinos (DEMELÁS, 2003), foram se dissolvendo na virada do século, substituídas por critérios mais formais e mais restritivos de participação. Outras formas de engajamento político para além dos “notáveis” locais – como, em diferentes contextos, haviam sido os conselhos municipais, as petições públicas ou as milícias armadas – estavam soçobrando ao peso dos exércitos profissionais, das assembleias legislativas e do poder da propriedade. De forma geral, a subordinação de vida política local às injunções da política nacional implicava que o senso comum e as regras não-escritas de convivência perdiam espaço para o conhecimento das leis, dos regramentos, dos termos em voga no debate erudito da capital. O adensamento do aparato reforçava seu poder simbólico e a capacidade dos que leem e manuseiam a lei se beneficiarem disso. O recurso à lei e à racionalidade administrativa, dessa forma, sufocava práticas menos elitistas que se valiam das margens de indefinição entre o texto legal e sua efetivação prática. É óbvio que não se deve idealizar o aspecto democrático dessas instituições em declínio. Para o raciocínio presente, o que é mais importante é o descompasso 238 relativo que se cria entre o maior peso ou presença do estado sobre a vida das pessoas comuns e o enxugamento concomitante de acesso por essas pessoas – através da lei, contra ela ou em suas margens – às disputas pelas decisões concretas desse estado. Esse descompasso tinha origem no fortalecimento da “fisiologia dos estados” pela reprodução continuada da cobrança de impostos, do recrutamento de funcionários, da interiorização da força armada ostensiva, na proliferação de novos códigos civis e de legislação ordinária. A dissolução de arranjos políticos de menor escala, por reciprocidades comunitárias, manobras extralegais de inclusão, vínculos carismáticos ou personalistas, produzia uma tendência à desdemocratização de forma menos explícita que uma lei censitária, e mais gradual que a manipulação eleitoral. O desencaixe da política de seu contexto local só comportava eventual reencaixe para as minorias privilegiadas dessas localidades, na medida em que elas lograssem adesão, desarmada, ao pacto inter-regional que amparava o poder central. O desarmamento do regionalismo, dessa forma, almejava a que os subalternos não seriam mais mobilizados em coalizões regionais contra o poder central. Desdemocratizar a política acaba por rotinizá-la normalizando seus protagonistas, seus métodos e seus objetivos, reduzindo assim a imprevisibilidade, a fricção, o potencial incendiário da disputa. O argumento para seu sucesso não se encerra na força centrípeta produzida pela distribuição seletiva do orçamento. No plano ético-político, essa coesão foi erigida a partir de linhas mais amplas de consenso em torno ao que o estado deveria fazer, de onde deveriam vir os recursos para tal, quem estava sujeito à repressão política ou que tipos de símbolos podiam ser invocados. Era um momento de crença na ciência aplicada, na hierarquia racial, na evolução pela competição, no papel civilizador do colonialismo europeu, na irreversibilidade da história humana (WEINBERG, 1988). Acima de tudo, as elites eurodescendentes comungavam o desejo de participar do que era moderno: a abertura de caminhos de ferro, de linhas telegráficas, a reforma dos portos e alfândegas, a abertura de grandes vias públicas nas cidades, o ordenamento da dívida pública e externa, a iluminação pública, os bondes, as fábricas, as universidades, o comércio, as belas artes. Havia um perturbador sentimento de que o atraso imperava, de que havia ainda muito por fazer. 239 O imperativo de progresso reforçava a solidariedade de elites na medida em que excluía como parte ativa o resto da sociedade, ou seja, na medida em que elas se percebiam como motor, consciente e único, responsável por esse progresso. Desdemocratizar a política institucional, oligarquizá-la, rotinizá-la eram formas de manter as tarefas do progresso nacional separadas das contestações sociais desde baixo, das novas ideias, organizações e lutas que mobilizavam os subalternos. A oportunidade de costurar laços de consenso entre as elites regionais e setoriais reforçava e naturalizava o fosso que separava essas elites eurodescendentes dos pobres urbanos, homens e mulheres grevistas, ex-escravos, analfabetos, indígenas, artesãos, nômades e trabalhadores rurais. Com o uso da força para assegurar essa separação, a desdemocratização enrijecia as linhas de inclusão e exclusão da comunidade política, por critérios de gênero, de classe, de etnia, de língua, de nacionalidade, de raça. Na linha de Silvia Federici (2004), intensificavam-se as formas de divisão e estratificação da classe trabalhadora. Desnecessário dizer, essas linhas não estavam sendo criadas no final do século XIX; elas estavam simplesmente se tornando tendencialmente mais intransigentes e uniformes conforme as utopias hegemônicas, oriundas do contexto revolucionário de 1770-1840, neutralizavam seu apelo popular sob a insígnia da marcha da civilização. Graças ao trabalho de Mara Loveman sobre os censos latino-americanos, sabemos até que ponto a própria noção de progresso se tornou racializada, com os órgãos técnicos oficiais recorrendo a formas mais ou menos sutis de equiparar a evolução nacional com o embranquecimentodo povo pela miscigenação ou imigração (LOVEMAN, 2014: cap. 4 e 5). A difusão institucional do racismo é parte da argamassa de um espírito de corpo entre as elites políticas, que serve de esteio ético-político para estabilidade de seu pacto. De certa forma, o europeísmo, que perpassava as reformas urbanas135, a política migratória136 ou a profissionalização das forças armadas137, obedece a uma dupla entrada: por um lado, aspirava aproximar Há muita discussão profunda sobre a relação entre o novo urbanismo inspirado em Haussman e a segregação urbana e as políticas sanitaristas contra os pobres. Para uma apresentação ao problema, vide José Luis Romero (2009: 309-317) e Scoobie (2009). Teoricamente falando, David Harvey é referência obrigatória para o aprofundamento crítico dessa problemática. 135 O preconceito racial embutido nas políticas migratórias latino-americanas, que expressamente privilegiavam a entrada de europeus, são bem documentadas por Mara Loveman (2014: sobretudo 145-153) 136 O recurso às missões estrangeiras (i.e. europeias) para a profissionalização das Forças Armadas é parte importante da história militar latino-americana, inclusive como vetor para situar os alinhamentos 137 240 simbolicamente os estados latino-americanos das nações imperialistas, em um momento em que o pertencimento à civilização europeia modulava o risco que credores, encouraçados e diplomatas estrangeiros impunham à soberania nas periferias. Por outro lado, o europeísmo permitia estratificar as sociedades pós-coloniais, circunscrevendo o domínio da política e do progresso ao perímetro das elites eurodescendentes. A afinidade das instituições ao pensamento social demofóbico no período possui diversas tonalidades. Na Colômbia, Rafael Núñez louvava o liberalismo evolucionista de Herbert Spencer sem abdicar do conservadorismo católico e patriarcal. No México sob o Porfiriato, os chamados científicos acolheram o positivismo comtiano, corrente que se difundiria também no Brasil, no Chile e na Argentina. “O progresso”, nas palavras de Comte, “constitui apenas o desenvolvimento da ordem” (apud DUPAS, 2012: 19). Aliás, o próprio termo “científicos” é eloquente da estratificação baseada no conhecimento do que se lia e escrevia nos países europeus, isto é, da interligação entre ciência e hierarquia. A criminologia positivista de Lombroso e Ferri é também emblemática desse ambiente intelectual, na medida em que oferecia terreno científico para o controle e a repressão das populações já segregadas. Por fim, observa-se essa desdemocratização desde uma perspectiva de gênero. Como mostrou Arlene Díaz (2001), o programa de “regeneração moral” da Venezuela sob Guzmán Blanco incorporava, pela primeira vez na república, uma doutrina oficial de papeis de gênero, inscrita na esfera jurídica e na imprensa oficial. Baseada na família patriarcal, ela desenhava o país em uma “cadeia de comando hierárquica que ia do poder do presidente ao pai de família” (DÍAZ, 2001: 57). O próprio liberalismo, outrora gatilho de agitação popular no continente, caminhava decididamente em direção às suas conotações mais elitistas, fosse pela economia neoclássica e pela escola austríaca, fosse pelo evolucionismo spenceriano, ou ainda pela teoria das elites de Pareto e Mosca. De outra parte, as premissas de engenharia social se imiscuíam com o desenvolvimento do conhecimento médico. A ação racional do governo permitiria, nessa chave, tanto o controle epidemiológico das doenças físicas como a profilaxia das “enfermidades morais”, expressão muito geopolíticos que polarizavam a região (LOVEMAN, 1999: cap. 3). Assim, enquanto a Argentina e Chile recorrem sobretudo aos alemães, também bastante influentes na América Central, países como Brasil, México, Bolívia e Peru, por exemplo, acordam a vinda de missões francesas. 241 difundida no período138. Nesse sentido, o cientificismo das elites políticas e a disponibilidade de excedentes fiscais são as duas balizas decisivas para contextualizar os primeiros movimentos consistentes de “governamentalização”139 dos estados pós-coloniais latino-americanos, para reaplicar a célebre expressão de Foucault (2008). Objeto central de suas preocupações, a “questão social” estava sendo criada como problema de governo das populações, como patologia do corpo social que demandava um conhecimento aplicado específico. Conectando as pontas do nosso raciocínio, o enrijecimento da ordem política não respondia unicamente à tensão social desde baixo, mas igualmente a uma conjuntura mundial em mudança durante a financeirização da hegemonia britânica. Frente ao acirramento das pressões verticais do sistema, a intransigência e a rotina representavam artifícios extrativo-coercitivo, que, para sob proteger esse a reprodução padrão de ampliada acumulação, do ciclo dependia fundamentalmente dos tributos sobre o comércio exterior. A aspiração ético-política de progresso – e de todas as suas realizações materiais – dependia dessa reprodução ampliada. Desse ponto de vista, a crise de 1873 não interrompe a sinergia entre aduanas, exércitos e constituições. Pelo contrário, a estabilidade institucional, quando ocorreu, se sustentou pela aceleração dessa sinergia. No longo prazo, os estados pós-coloniais permaneciam como deus ex machina de uma sociedade de mercado que eles equivaliam ao progresso nacional e de cuja expansão suas receitas dependiam. Como ilustração, veja-se a eloquente coletânea de títulos de livros feita por Patricia Funes (2006): “Manual de Patología Política” (Juan Álvarez, Argentina, 1909), “Continente Enfermo” (César Zumeta, Venezuela, 1899), “Enfermedades Sociales” (Manuel Ugarte, Argentina, 1905), “Pueblo Enfermo” (Alcides Arguedas, Bolívia, 1909), “La Enfermedad de Centroamérica” (Salvador Mendieta, Nicarágua, 1912), “Parasitismo Social e Evolução na América Latina” (Manuel Bonfim, Brasil, 1903), “Nuestra Inferioridad Económica: sus causas, sus consecuencias” (Francisco de Encina, Chile, 1912), “La Hampa Afrocubana: los negros brujos. Apuntes para uma etnología criminal” (Fernando Ortiz, Cuba, 1906) 138 Sobre o conceito de “governamentalidade”, Foucault define como o “conjunto constituído pelas instituições, pelos procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Por governamentalidade entendo a tendência, a linha de força que em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência deste tipo de poder que podemos chamar de governo sobre todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e (de outro lado), o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por governamentalidade, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o estado administrativo, viu-se pouco a pouco governamentalizado” (FOUCAULT, 2008: 143-144). 139 242 A nova conjuntura mundial impunha, por oposição, duas questões candentes e imbricadas: a internalização do excedente econômico e a solvência dos empréstimos internacionais. A resolução específica dessas duas questões em cada caso empírico ajuda a discernir o desenvolvimento de trajetórias semiperiféricas no período 1870-1930, como o foram os casos de Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, México e Costa Rica140. Com relação à internalização do excedente econômico, é preciso lembrar que não era um problema exclusivo das economias periféricas, do que não deixa dúvida a rivalidade então em curso a nível mundial entre capitalismos dirigidos. A luta por internalização do excedente, não obstante, colocava outras questões nas periferias exportadoras, em geral especializadas em uma ou duas commodities141 (Tabela 6.7). Observando a atuação do estado colombiano após o triunfo da Regeneração na Guerra dos Mil Dias (1899-1902), Bucheli e Sáenz (2014) defenderam o uso do termo “protecionismo de exportação” para capturar suas diferentes estratégias institucionais de alento aos setores exportadores (café, petróleo e banana). Cada setor receberia um agenciamento diferenciado de capital por parte do governo. No sudeste do Brasil, a política de valorização do café acordada em 1906 desenvolveria, nas palavras de Florestan Fernandes, os “meios estratégicos que permitiam explorar economicamente a própria dependência” (FERNANDES, 1976: 125). Ambas as formulações refletem um fenômeno comum: os estados primário-exportadores não permaneceram passivos frente ao novo ambiente internacional, de maior protecionismo e instabilidade de seus termos de troca. Surgem, com efeito, as primeiras políticas de estado arquitetadas para aliviar as pressões competitivas na periferia, pela incorporação de tecnologia, pela manipulação de mercado, pelo favorecimento fiscal. Sem dúvida, a margem com que esses estados conseguiam manobrar esses contramercados dependia de fatores que escapavam ao controle das elites políticas que os governavam. O escrutínio sistemático desses fatores tem rendido um bom O melhor tratamento que conheço para a noção de semiperiferia foi desenvolvida por Giovanni Arrighi (1997: cap. 4 e 5), na medida em que relaciona renda nacional com a capacidade de aliviar as pressões competitivas do sistema. Bringel e Domingues (2015) recentemente destacaram a urgência de resgatar o sentido substantivo da estratificação centro-periferia na discussão sociológica. 140 Uma aproximação quantitativa razoável para a internalização de excedente nas economias exportadoras latino-americanas é feita por Victor Bulmer-Thomas a partir da taxa de crescimento das exportações e da taxa de exportações per capita. Segundo o autor, encontrar-se-ia aí indicadores para o sucesso do modelo centrado nas exportações para o desenvolvimento de mercado interno, de capacidade de investimento, o que posteriormente seriam condições para a diversificação econômica (BULMER-THOMAS, 2003: cap. 3 e 5). 141 243 debate na história econômica142. Aqui podemos nos ater ao seu resultado final. A maior ou menor capacidade de aliviar as pressões competitivas do mercado mundial tinha impacto na retenção do excedente produzido, e consequentemente na margem disponível para os estadistas como gasto fiscal e para os capitalistas como capital circulante. O sucesso relativo em internalizar excedente impactava também no potencial de expansão do mercado consumidor doméstico. A partir da década de 1870, a demanda interna estimula uma industrialização contracíclica, em substituição aos bens importados. O brotamento dessas fábricas remonta à conjugação não-intencional de (1) a proletarização massiva, relacionada à urbanização e à imigração, que constituiu uma força de trabalho dependente do mercado de bens-salário para sua subsistência; (2) a reprodução de um ciclo fiscal baseado na tributação de importação sobre bens de consumo, que nas crises estrangulava a capacidade de importá-los; (3) a resposta dos capitalistas como classe às flutuações do mercado mundial, através do investimento alternativo em setores substitutivos de importação. Afloram polos fabris em Medellín, São Paulo, Monterrey e na grande Buenos Aires, responsáveis pela produção de têxteis, bebidas, papel, sabão, cigarros, e alimentos processadas como bolachas, conservas, chocolates, massas, azeites para o mercado local. O desenvolvimento dessas maquinofaturas, coligado que estava à acumulação no setor exportador, foi decisivo para fazerem divergir as trajetórias semiperiféricas na região conforme as crises se sucediam no período pós-1873. No clímax de devastação posterior à crise de 1929, seria justamente esse gume que dividiria as saídas ora pela industrialização de substituição de importações, ora pela agricultura de substituição de importações (BULMER-THOMAS, 2003: cap. 7). Na formulação clássica de Cardoso e Faletto (1970), uma distinção fundamental se estabelecia em termos do controle nacional ou estrangeiro do setor exportador, e consequentemente da capacidade de desenvolver um mercado interno. Essa divisão os levou ao termo de “economia de enclave” e da comparação entre agricultura e mineração em termos de sua potencialidade para o desenvolvimento dependente. Essa chave de leitura foi desenvolvida por Ciro Flamarion Cardoso e Héctor Brignoli (1983). Celso Furtado (1970: 61-65) atribui ênfase às mercadorias exportadas diante dos competidores em cada mercado, separando a agricultura temperada da agricultura tropical, e ambas da mineração. Mais recentemente, o tema ganhou nova injeção com a discussão de Bulmer-Thomas (2003) sobre a “loteria de commodities” e os estímulos criados por cada produto exportador em seu entorno, como indução de maior complexidade econômica. Usando o instrumental da economia neoclássica, por sua vez, Bértola e Ocampo (2010: cap. 3) deslocaram o problema para o mercado de trabalho, argumentando que as zonas especializadas em produtos temperados tendiam a nivelar salários com a agricultura dos países ricos, criando maior poder de compra do que nas regiões especializadas em produtos tropicais. 142 244 6.4. Sobre a possibilidade de oligarquias em meio à turbulência global “Enquanto o guano com seus produtos, seus empréstimos e adiantamentos”, escreviam Copello e Petriconi nas páginas de El Nacional em 1876, “sustentou esse equilíbrio de poder pagar uma enorme soma de importação (...), ninguém viu, ninguém podia ver o abismo que tínhamos aos nossos pés” (COPELLO & PETRICONI, 1971: 27). Algumas décadas depois, Carlos Calderón, figura central da Regeneração e constituinte em 1886, ainda lamentaria o grave estado das finanças colombianas lembrando “essa época de prosperidade universal, devida aos altos preços das coisas, que terminou em 1873 e nunca mais voltou” (apud DEAS, 1982: 312). Com efeito, as sucessivas crises sistêmicas que seguiriam o redemoinho de 1873-1876 poriam à prova a resiliência dos arranjos periféricos entre estados pós-coloniais e empuxo exportador. Nesse capítulo, tentamos mostrar a repercussão dessa inflexão sistêmica sobre as trajetórias de construção da ordem política na América Latina. Através da formação de pactos contingentes e inter-regionais de elites, os estados latino-americanos tentaram fortalecer suas muralhas contra a artilharia de campanha das crises fiscais e do risco de insolvência. Favores, segurança e progresso funcionariam como moedas de troca para solidificar esses pactos, repelindo o temor maior da ingerência externa e da guerra civil interna. A essa altura, é conveniente perguntar: se há certos interesses e mesmo linguagens em comum entre essas elites eurodescendentes, em que medida faz sentido dizer que se tratam de acordos contingentes? Começando a resposta pelo empírico, os episódios de dilaceramento desses acordos, inclusive com violência, são recorrentes. Observemos dois exemplos contemporâneos. A queda dos preços do café cortou em 40% as receitas do estado colombiano em 1899, ao ponto de Carlos Calderón, já Ministro do Tesouro, constatar “a impossibilidade absoluta de seguir governando com as obrigações que gravam o tesouro nacional, sem mais rendas que as que hoje se tem” (apud DEAS, 1982: 313). Com efeito, naquele mesmo ano, eclodiria uma sangrenta guerra civil instigada pela insurgência liberal, que denunciava o centralismo, a corrupção e o reacionarismo do governo da Regeneração. Após três anos de confrontos faccionais, a vulnerabilidade do estado colombiano abriu a brecha na qual os Estados Unidos urdiriam a independência do Panamá (1902), iniciativa de consequências maiúsculas não só para a história colombiana. 245 Na vizinha Venezuela, a mesma baixa de preços pôs abaixo o “liberalismo amarelo” dos herdeiros de Guzmán Blanco, derrotados em 1899 pela insurreição andina liderada por Cipriano Castro. Com o estado afundado em dívidas, o novo governo propôs-se a enfrentar os credores internacionais e suspender pagamentos. O voluntarismo de Castro resultou em uma escalada de ameaças na primeira década do século XX, tendo como clímax o bloqueio da costa venezuelana pelas marinhas de guerra europeias em 1902. Esse movimento seria, a propósito, fonte imediata de inspiração para a elaboração por Luis María Drago da doutrina que leva seu nome. A derrocada do governo de Castro abriria espaço para uma das mais longas ditaduras da América Latina. Assumindo em 1908, o general Juan Vicente Gómez apaziguaria as relações com o capital estrangeiro, franqueando acesso às recém-descobertas jazidas de petróleo. Apoiado nas receitas desse florescente setor, o regime autoritário de Gómez seria uma relevante exceção na vaga de quedas de governos e regimes após 1929: governaria até sua morte em 1935. À primeira vista, esses casos ilustram como os acordos de elites estavam sujeitos à fratura, e outros exemplos poderiam ser perfilados para reforçar o ponto. A ideia mais importante, contudo, não é matizar o retrato de estabilidade institucional ou separar as exceções que destoam do padrão. Para perceber o significado da contingência no raciocínio, precisamos observar a estabilidade política pelo prisma de sua fratura, da mesma forma que observamos a fratura em relação às condições de estabilidade. Assim, em ambos os casos, o recesso do empuxo exportador induz à crise fiscal e à insolvência; as elites políticas perdem margem de manobra para acomodar interesses por meio do aparato de estado, e o caráter pró-cíclico do gasto público aprofunda a crise econômica para a população. No extremo, a força centrífuga dos interesses insatisfeitos, interna e externamente, conduz à guerra civil e à violação externa de soberania. O desfecho da crise, nos dois contextos, esteve amparado na retomada do ciclo extrativo-coercitivo pela fiscalidade do comércio exterior, que permitiria distribuir novamente favores, segurança e progresso. Em última instância, o argumento é que não há razão intrínseca ou estrutural para a estabilidade política durante o período 1870-1930, mas que ela foi possível a partir da reprodução continuada de mecanismos contingentes. Em 1890 na Argentina, a crise do Banco Baring disparou enormes greves e protestos populares contra o presidente Juan Celman até conquistarem sua renúncia. Embora fosse uma conjuntura 246 de fortalecimento do radicalismo argentino, a crise não interrompeu o domínio institucional do Partido Autonomista Nacional. Não há causa necessária para que o desfecho da crise de 1890 fosse diferente na Argentina do que fora na Colômbia ou Venezuela. A rigor, a possibilidade de rotinizar a política pelo controle e acomodação de elites setoriais e regionais era só isso: uma possibilidade, que estava constantemente à prova e cujo sucesso dependia decisivamente dos meios materiais disponíveis. A discussão sobre oligarquias, em geral, tende a suprimir esse hiato de indefinição ao acoplar elites, interesse de classe e estado em um todo compacto. Dispensa com isso a preocupação sobre como foram “condensados”, para usar a expressão de Nicos Poulantzas, os diferentes interesses particulares em um bloco de poder no estado. Diante do desafio empírico em lidar eventualmente com a fricção e a fratura dessas oligarquias, tem à disposição somente a explicação que essas próprias oligarquias ofereciam: a guerra civil é o retorno do passado, a irrupção de um caudilhismo atávico. O problema não é o uso ou não da palavra “oligarquia”, o que é de menor importância. A questão de fundo é conseguir recuperar uma explicação que comporte processos e contingências, na qual os acordos oligárquicos estão suscetíveis às injunções da disputa política, e, no limite, à sua própria derrocada. Desse ponto de vista, é possível observar os estados ditos oligárquicos não como unidades espontâneas e auto-explicativas, mas como uma gama de arranjos políticos inseridos diante de pressões sistêmicas e sociais nitidamente definidas, mas com duração, abrangência e resiliência variáveis conforme o caso em observação. Suprimir a indeterminação da negociação política desses arranjos seria conceder aos objetivos de exclusão e rotinização que eles próprios almejaram impor. 247 7. AS GUERRAS EUROASIÁTICAS E O COLAPSO DA CIVILIZAÇÃO DO SÉCULO XIX (1910-1945) “Fora para nós um magnífico dia, aquele 8 de setembro de 1943, quando lançamos as nossas armas e as nossas bandeiras não só aos pés dos vencedores, mas também aos pés dos vencidos. Não só aos pés dos ingleses, dos americanos, dos franceses, dos russos, dos poloneses, e de todos os outros, mas também aos pés do rei, de Badoglio, de Mussolini, de Hitler. Aos pés de todos, vencedores e vencidos. Mesmo aos pés daqueles que nada tinham que ver com isso, que estavam ali sentados, a gozar o espetáculo. Mesmo aos pés dos que passavam, e de todos aqueles que tinham o capricho de assistir ao insólito, divertido espetáculo de um exército que lançava as próprias armas e as próprias bandeiras aos pés do primeiro que chegasse. Não que o nosso exército fosse pior ou melhor do que tantos outros. (...) Não havia um exército no mundo que, naquela esplêndida guerra, não tivesse tido o gosto de lançar as próprias armas e as próprias bandeiras na lama”. Curzio Malaparte143 Na primeira metade do século XX, o sistema mundial moderno entrou em uma espiral autodestrutiva, que arrasou definitivamente os pilares do ciclo de acumulação que rastreamos desde a Era das Revoluções. Junto com as cidades, as indústrias e as pessoas, as guerras exterminaram também certas convicções que haviam organizado a política internacional até então. O funcionamento do capitalismo foi acidentado a tal ponto de que seu relançamento exigia novas ferramentas. Algo do espírito do século XIX parecia ter ficado nos escombros da guerra e da crise. Com efeito, a partir da década de 1910, descortina-se a nível mundial uma situação em que a obsolescência do ciclo anterior convive com a encarniçada disputa pelos rumos do futuro. Um dos primeiros epicentros onde essa conjunção crítica ribomba é o México em 1910. Não é demais lembrar: a Revolução Mexicana eclode a partir de um processo eleitoral, mecanismo que por décadas havia sido símbolo da rotinização política do Porfiriato. A partir do lançamento da candidatura oposicionista de Francisco Madero, em si moderada, constitucionalista e liberal, as linhas de fissura do regime vão se expondo. Contra o que parecia um exemplar pacto de elites, são atiçadas expectativas de mudança sob o amplo rechaço à reeleição presidencial. Com um senso de injustiça que ultrapassava o programa maderista, a indignação popular se alimentava pela galopante concentração fundiária e pelas perdas acumuladas dos salários reais, além 143 Extraído de Malaparte (1972: 68-69) 248 de uma estrutura política autoritária mais permeável ao capital estrangeiro que à oposição interna. A renúncia de Porfirio Díaz em maio de 1911 é mais que a queda de seu longo governo; é o desmoronamento da marcha em direção ao progresso por ele representada. Na década que se segue, um duplo movimento reabriria radicalmente o espectro de possibilidades da história mexicana: de um lado, o arrombamento da arena política por grupos subalternos, o que irremediavelmente leva a crise para fora das cumplicidades palacianas; de outro, a proliferação de demandas, imaginários e novos projetos políticos para a disputa pela ordem. Do universo tutelado e centrípeto do regime porfirista eclodem, no intervalo de uma geração, o agrarismo radical do Plan de Ayala zapatista, o reacionarismo militar do Plan de la Soledad, a experiência socialista yucateca, o movimento magonista, o novo constitucionalismo social da Convenção de Aguascalientes, o corporativismo pós-revolucionário da tríade sonorense, a contrarrevolução cristera, o projeto nacional-popular de Cárdenas e seus opositores. Estes são mais do que episódios ou momentos da história da revolução mexicana, são tentativas práticas de disputar seu significado, são alternativas em conflito a um passado já proscrito. Dessa forma, não estava em questão apenas quem governaria, mas em que bases governar era possível: o que significava ser mexicano? Quem tem direito à terra, à propriedade, aos meios de produção? Como se distribuiria a carga fiscal? Ao que deve apelar simbolicamente o estado mexicano? Quais movimentos políticos merecem interlocução e contrapartidas e quais devem ser unicamente reprimidos? De certa forma, o desenrolar da revolução evidenciava a obsolescência das respostas referenciadas no século XIX, no constitucionalismo liberal, no mercado autorregulado, no europeísmo cientificista, na tributação alfandegária sobre os bens de consumo, no racismo institucional. Por ora, o tema não é a revolução mexicana em si, mas um processo em maior escala do qual ela é um elo decisivo. Com diferentes epicentros em diferentes momentos ao redor do mundo, com acelerações e reações, o período c.1910-1940 desagrega o que havia sido a “civilização do século XIX”, para usar novamente uma expressão de Polanyi (2012). Assim, demarca uma descontinuidade fundamental na formação do sistema interestatal moderno. Na América Latina, o mecanismo de mobilização de capital e coerção que permitira o arranque de estados pós-coloniais 249 centralizados acabara engendrando, entre seus efeitos, uma situação em que sua reprodução envolvia riscos políticos proibitivos. As fissuras nos pactos de elites repercutiam como movimentos novos na cena política, contrapostos ao que eles próprios passaram a qualificar de oligarquia. Com um olhar empírico, é possível identificar como esses movimentos produzem pontos de não-retorno na política institucional: desde o surgimento pioneiro do battlismo no Uruguai na virada do século, sucedem-se as experiências do radicalismo na Argentina, do alessandrismo no Chile, da formação da APRA no Peru, das sublevações rurais lideradas por Sandino e Farabundo Martí na América Central, da radicalização do liberalismo colombiano, da “geração de 1928” na Venezuela, do tenentismo no Brasil, do velasquismo no Equador, do peronismo na Argentina, das frentes populares em várias partes. Mesmo que sem a estridência dos eventos mexicanos da década de 1910 e 1920, havia uma pressão generalizada sobre as bases em que governar era possível. Observando a ascendente de lutas operárias no começo da décade de 1910, Astrojildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro, afirmaria que “já o movimento revolucionário popular mexicano de 1910-1912, o advento da república portuguesa de 1910 e bem assim a extraordinária revolução chinesa de 1912, repercutiam entre nós como um estímulo vivo ao espírito combativo do nosso povo” (PEREIRA, 1952: s/p). A exemplaridade da Revolução Mexicana extrapola em muito seu contexto nacional na medida em que “o agrarismo, o indigenismo e o nacionalismo de caráter revolucionário e anti-imperialista, ainda que venham de bases distintas, são então ressignificados em e desde o México para o resto da América Latina e da periferia mundial” (BRINGEL, 2017: 148). Em 1927, Luis Valcárcel, intelectual proeminente do indigenismo radical da chamada escola de Cuzco, fazia um chamado deliberadamente provocativo: “a ditadura indígena”, segundo ele, “procura o seu Lênin” (apud FUNES, 2006: 56). Germinada nos cinquenta anos anteriores, uma nova leitura da sociedade peruana advogava então uma inversão das hierarquias coloniais, enaltecendo o índigena sobre o branco, a serra sobre a costa, Cuzco sobre Lima. O indigenismo cusquenho era um plano de ação de reorientação dos propósitos e dos símbolos do estado peruano, que aspirava suplantar o servilismo das elites hispanófilas do país (FUNES, 2006: 80-85). Essas elites, que haviam capitaneado o liberalismo hegemônico, haviam encontrado inúmeras resistências indígenas contra a política de estado e a economia de mercado. 250 A conjectura de que esse substrato indígena seria a base vital e autêntica para a reorganização da sociedade peruana como um todo era algo novo que, por assim dizer, transbordava as balizas da política oitocentista. Com a efervescência da questão nacional na América Latina, o indigenismo se converte em uma massa de modelar para projetos políticos discrepantes no Peru, como o paternalismo dos primeiros anos do governo de Augusto Leguía, o humanitarismo da Associação Pró-Indígena, ou a integração entre liberação indígena e revolução socialista pelos comunistas, como Juan Carlos Mariátegui. Nos anos 1920, as lutas dos povos indígenas peruanos adquirem ressonância nacional: a contraposição à usurpação de terras e à violência paraestatal se expressam por organizações próprias, como o Comitê Pró-Direito Indígena Tawantinsuyo, fundado em 1919 (FUNES, 2006: 149). Nesse contexto, o imaginário geopolítico de uma Indoamérica para além dos estados nacionais criollos, cultivado por Mariátegui, forma parte de um revisionismo mais amplo da espacialidade das “estórias de povo” no período, em que se identificam termos como a “Nossa América” anti-imperialista de José Martí, a “Euríndia” nacionalista de Ricardo Rojas, ou o Inkario de Luis Varcárcel, para não falar do pan-americanismo propagado pelos Estados Unidos e seus simpatizantes (FUNES, 2006). Em outras partes do mundo, a espacialidade do pertencimento era também tensionada por imaginários pan-islâmicos, pan-eslavos ou pan-germânicos, bem como do internacionalismo proletário e da negritude afrocentrada inspirada por Marcus Garvey e Aimé Césaire. A efervescência cultural e política latino-americana era parte de um abertura mais ampla das possibilidades para ordenar o lugar da política, o espaço do pertencimento. É importante resgatar de nossa análise da Era das Revoluções as dinâmicas mais gerais de contágio e circulação de ideias, exemplaridade e contraexemplaridade, que aqui se reproduzem mutatis mutandi. O mesmo vale para o tema das “origens multicentradas da produção ideológica”: a decadência do determinismo racial, por exemplo, se deve rastrear tanto no México revolucionário como no Japão militarista, ao mesmo tempo em que atingia uma espécie de paroxismo na Alemanha nazista. O sequenciamento histórico também recobra importância: é traiçoeiro, por exemplo, considerar que o socialismo soviético e o fascismo italiano são simplesmente dois horizontes concorrentes de reordenamento social no pós-primeira guerra, se não situarmos o segundo como reação direta ao contágio do primeiro na Europa. Da 251 mesma forma, a estratégia de “classe contra classe” adotada Terceira Internacional é uma resposta, em seu contexto, à traição nacionalista observada na China em 1927, assim como a política de “frentes populares” adotada na década de 1930 não é uma plataforma abstrata, mas um reposicionamento estratégico diante do nazifascismo. Do ponto de vista dos processos que identificamos nos capítulos anteriores, a conjunção crítica do período c.1910-1940 na América Latina se situa na extrapolação das forças centrífugas que o ciclo anterior produzira. Em primeiro lugar, isso significou o transbordamento para fora da ordem das resistências protetivas contra a regulação de mercado, dando vazão a utopias alternativas de refundação social. Esse transbordamento implicava a conversão de resistências práticas em horizontes de superação do liberalismo hegemônico como terreno ético-político do bom, do justo e do necessário. Essa superação podia mover-se por relações ético-políticas de matriz nacionalista ou anarcossindicalista, comunista ou indigenista, fascista ou outras e híbridas. Em segundo lugar, a ignição da conjunção crítica também representava o transbordamento para fora da ordem das fissuras dos pactos políticos inter-regionais e intersetoriais tecidos nas décadas anteriores. Observamos no capítulo passado como esses pactos não eram capazes de anular a fricção política, e, nos momentos mais agudos de crise, estavam sujeitos a serem desmantelados e reconstruídos por uma facção desafiante, como vimos no caso da Venezuela sob Vicente Gómez. A situação se altera quando as elites dissidentes se aliam a grupos subalternos fora do perímetro de negociação dos pactos oitocentistas. Na Colômbia, por exemplo, o Partido Liberal recobra energia e abrangência ao acolher a agitação trabalhista e camponesa nas décadas de 1920 e 1930, reinventando-se com um cunho popular e anti-imperialista. No Brasil, as elites periféricas insatisfeitas com o controle de São Paulo sobre a política nacional aliaram-se aos militares tenentistas para mudar o regime em 1930. Assim, o capítulo completa o arco histórico que perfazemos desde a crise dos impérios ibéricos, delimitando uma nova conjunção crítica. É óbvio que não se trata de uma série de “revoluções mexicanas” se replicando pelo continente, assim como a Era das Revoluções não fora uma sequência de Haitis ou Franças. Tampouco havia, em meio à crise, um relógio mundial para sentenciar o fim do “longo século XIX”. Mais que uma coincidência empírica, o que estava em jogo era a irreversibilidade que se produziu pelo descarrilamento das bases de reprodução ampliada e recíproca de 252 estados e capitais. Havia uma ruptura em curso na governabilidade mundial, que afetava as condições de possibilidade da dominação política. Trata-se de uma conjunção crítica também no sentido em que as saídas para o impasse adquirem maior duração histórica, ao normalizar a política em um novo ciclo expansivo. 7.1. Os giros da bússola do progresso Para situar essa conjunção crítica em nível sistêmico, é preciso entender três dimensões interligadas: (1) o fim do ciclo sistêmico de acumulação liderado pelo Império Britânico, (2) a crise dos fundamentos ético-políticos que serviam de esteio para a política do século XIX, (3) o declínio do poder imperial europeu sobre o resto do mundo. Iremos examinar em seguida cada uma delas para perceber seu impacto para a imaginação política na América Latina e, mais especificamente, para reprodução dos estados pós-coloniais e periféricos na região. (1) A derrocada definitiva da governabilidade mundial sob a hegemonia britânica é provocada, de um lado, pela saturação do padrão concorrencial de acumulação capitalista, e, de outro, pela beligerância crescente do sistema interestatal. Abre-se uma espiral de conflitos mundiais (1914-1945) que Immanuel Wallerstein aglutinou como “Guerras Euroasiáticas”, análoga ao que haviam sido, do ponto de vista das transições hegemônicas, as guerras de 1791-1815 e 1618-1648 (WALLERSTEIN, 2000: 258). Em movimentos sucessivos a partir de 1914, vão se esfacelando as condições de complementaridade, estabilidade e soma-positiva herdadas do ciclo hegemônico anterior: a divisão internacional do trabalho, a estabilidade financeira internacional, o contrabalanceamento entre as grandes potências, a circulação internacional de capitais, os mecanismos gradualistas de compensação à classe trabalhadora. O acirramento do conflito sistêmico (interestatal e intercapitalista) atinge o limite crítico de emperrar a economia internacional após 1929, jogando-a em um precipício de entesouramento, desemprego, superprodução e guerra. Individualmente para os estados do sistema, ora de forma mais aguda ora mais gradual, as condições de reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo minguam em função da deriva econômica. Como tendência, a constrição fiscal produzia adversidades políticas: os estados distribuíam maiores ônus a um maior número, na 253 forma de repressão, fardo fiscal, exclusão política, em alguns casos levado ao extremo pelas exigências humanas e econômicas da mobilização militar. Embora a derrocada da governabilidade ocorra em escala sistêmica, as rupturas políticas concretas se desencadeiam e desenvolvem em escalas, direções e ritmos específicos aos contextos nacionais. Na América Latina, a sustentação material dos pactos interregionais de elites foi se comprimindo junto com as oportunidades fiscais do comércio internacional e a hostilidade do mercado mundial de capitais. Se na Era das Revoluções a região esteve entre os últimos epicentros da crise mundial nas décadas de 1810 e 1820, na conjunção crítica 1910-1945 ela figura já nos primeiros movimentos de demolição da ordem hegemônica no século XIX. (2) uma implosão do edifício ético-político que vertebrara as práticas, horizontes e agentes da ordem política hegemônica no “longo século XIX”. Diante da profundidade da crise sistêmica, vê-se contrair a capacidade de produzir consentimento e ordem a partir de um imaginário de individualismo abstrato, de parlamentarismo aristocrático e da primazia do direito positivo; de um pensamento econômico baseado na autorregulação de mercado e no livre comércio internacional; de uma geografia imaginária baseada na missão civilizadora europeia sobre o resto do mundo. Perdem produtividade como apelos ético-políticos por não atingir resultados concretos, mas também por serem ultrapassados por fundamentos novos de organização do justo e do injusto na disputa política. Por sua radicalidade e sua irradiação mundial, a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia é um ponto de inflexão incontornável. Com incrível ímpeto, o governo revolucionário move-se em direto confronto aos limites do possível na política oitocentista: extingue a propriedade privada e afirma a igualdade oficial entre homens e mulheres, promove uma reforma agrária e expropria o capital estrangeiro, compromete-se com a autodeterminação dos povos sob jugo colonial e com o internacionalismo proletário. Era uma avalanche de pautas oriundas do movimento operário e das duas Internacionais que aterrissam à prática concreta de governo, pondo na ordem do dia o que até então era marginal, interdito ou inimaginável para o jogo político institucional. O fato de a URSS empiricamente não realizar, e mesmo trair abertamente, os horizontes de futuro que descortinou não diminui a descontinuidade que essa experiência revolucionária representou, como exemplo e 254 contra-exemplo, do ponto de vista dos imaginários políticos do século XX em formação. (3) por fim, as Guerras Euroasiáticas marcam também uma crise do poder imperial europeu sobre o resto do mundo, dessacralizando hierarquias sociais por ele produzidas. Com a guerra industrial nas trincheiras da Europa ocidental entre 1914 e 1918, a mais aterradora barbárie aflorava onde se imaginava o coração da civilização. Com o desenvolvimento do conflito, não só os estados imperiais da Europa tinham estirado suas capacidades fiscais e militares à beira da exaustão, mas adernava o próprio imaginário oitocentista de que os europeus brancos constituíam a ponta de lança da civilização humana. O que era símbolo do progresso universal se convertia em instrumento da mais flagrante irracionalidade: as ferrovias e telégrafos impulsionavam a logística de uma carnificina inconclusiva, sem vitorioso nem épico, enquanto a produção em massa permitia vestir e armar soldados que seriam exterminados pelos mais novos desenvolvimentos da indústria química, mecânica e balística (ADAS, 1990: 365-380). Em tal cenário, aos olhos dos “povos sem história”, os europeus pareciam incapazes de controlar as forças que haviam liberado. Nas décadas de 1910 e 1920, o decadentismo da civilização ocidental se tornou um tema da época, da filosofia acadêmica às vanguardas artísticas, do arquiconservadorismo aos estrategistas revolucionários. É mote nos escritos de Osvald Spengler a Victor Haya de la Torre, de Aimé Césaire a Paul Valéry. As rachaduras na supremacia europeia vinham de lados distintos: artistas de vanguarda como Picasso e Matisse descobririam, no começo do século XX, a originalidade da arte africana saqueada pelo imperialismo, enquanto a ascensão japonesa despertava o espectro de uma futura superioridade industrial e militar da Ásia contra a Europa. De outra parte, uma onda de ceticismo ao materialismo ocidental encontraria abrigo na fascinação pela transcendência e pela espiritualidade das civilizações milenares da Ásia (ADAS, 1990: cap. 6). Em 1913, o dirigente bolchevique Vladimir Lênin, em um artigo no Pravda intitulado “Atrasada Europa, progressiva Ásia”, denunciaria a disposição da burguesia europeia em apoiar tudo o que fosse “retrógrado, moribundo, medieval” em defesa da escravidão assalariada, ao passo que na Ásia “um robusto movimento democrático está crescendo, espalhando-se e ganhando força” (LENIN, 1913: s/p). O nacionalismo emergente na Revolução Chinesa e na Mexicana, ou mesmo no mundo árabe dos anos 255 1910, ebule um sentimento anticolonial que é o outro lado da retração do poder europeu sobre o resto do mundo. “Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que seu funcionamento suscita”, diria Aimé Césaire na abertura de seu Discurso sobre o Colonialismo, “é uma civilização decadente” (CÉSAIRE, 1978: 13). A conjugação entre (1) o colapso da hegemonia britânica, (2) a descrença nas utopias organizadoras do “longo século XIX” e (3) o descentramento da Europa no mundo produziram um terremoto no sistema mundial análogo, então, à Era das Revoluções no ciclo anterior. Em ambas as conjunções críticas, um gatilho decisivo da crise é a implosão, mais ou menos controlada, de grandes estruturas imperiais premidas pela escalada da competição sistêmica. Em dominó a partir da década de 1910, desmantelam-se a China Qing, vulnerável e impotente à ingerência ocidental, e, sufocados pela pressão da guerra industrial, a Rússia czarista, a monarquia Habsburgo, o império Turco-Otomano e, de forma muito mais controlada, os impérios ultramarinos ocidentais. Contra a teia de partilhas coloniais, prerrogativas extraterritoriais, privilégios comerciais e arranjos de governo indireto que os europeus teceram até 1914, foram se levantando reivindicações soberanas contra o domínio estrangeiro. Em tal contexto, o princípio de autodeterminação dos povos vertebra as expectativas de autonomia e de ruptura com o passado, ao mesmo tempo em que é apropriado por diferentes projetos de futuro. A nova geração de radicais pan-islâmicos que emerge no Magreb francês olhava para a revolução turca de 1908 como modelo (BAYLY, 2004: 463). Os chineses exilados no Japão desenvolveriam um imaginário pan-asiático anticolonial, apropriando-se do significado da Restauração Meiji contra o domínio ocidental (KARL, 1998). Mais do que novos estados independentes, havia uma utopia de autogoverno pelo rompimento das amarras do passado colonial, o que teria enorme ressonância mesmo entre as sociedades já formalmente independentes na América Latina. O imperativo de levar a autonomia nacional para além dos limites das elites europeístas é ponto incontornável para entender o momento na América Latina. Como dizia um dos cânticos da resistência sandinista na Nicarágua, na década de 1930, “Somos los libertadores / que con sangre y no con flores / Venimos a 256 conquistar / la segunda independencia / Que traidores sin conciencia / han querido profanar”144. A ideia de que a luta anticolonial se enganchava com a superação dos mecanismos sistêmicos de subordinação da periferia foi base para uma nova solidariedade horizontal entre as sociedades pós-coloniais. Essa solidariedade é parte do surto de criatividade social que identificamos nesses anos conturbados. Inicialmente sob os auspícios da Comintern, cria-se em 1927 a pioneira Liga contra o Imperialismo, com delegados de 37 estados ou colônias, representando diversos movimentos e partidos de esquerda do que viria a ser chamado posteriormente de Terceiro Mundo (CABALLERO, 2002: cap. 1; PRASHAD, 2007: 16-30). Com efeito, a esquerda organizada já não era uma exclusividade ocidental nem seria naturalmente controlada por dirigentes europeus. Os participantes latino-americanos da conferência de Bruxelas, como o cubano Juan Antonio Mella, o peruano Victor Haya de la Torre e o mexicano José Vasconcelos, são figuras-chave das mudanças de horizonte em curso na região. Em 1938, o intelectual argentino Guillermo Francovich registra, em tom crítico, a devoção a “ídolos europeus que, conquistando os homens a partir de seu interior, perpetuam simbolismos intelectuais que implicam, quase sempre, imperialismos econômicos ou políticos" (apud DEVÉS-VALDEZ, 1997: 327). Moldado muito diretamente pelo intervencionismo estadunidense, o latino-americanismo adquire ímpeto como projeto político amplo de solidariedade anti-imperialista, combinado a um movimento de afirmação e criatividade cultural. A autodeterminação era um terreno ético-político que as potências europeias tinham poucas chances de disputar. Ocasionalmente, os britânicos podiam ter sucesso em acalentar a autodeterminação árabe sob o jugo otomano, como fizeram na Primeira Guerra, mas suas incongruências logo aflorariam como repressão imperial não só no Oriente Médio, mas na Irlanda e no Sul da Ásia. Com efeito, a autodeterminação operava justamente contra as potências ocidentais e elas não poderiam disputar suas consequências sem deixar de serem potências. Esse paradoxo irreconciliável comprime a história da península europeia no século XX: manter sua Há diversos registros dessa canção disponíveis na Internet. Ver por exemplo o seguinte: http://prensairreverente.cl/sandino-maestro-del-anti-imperialismo/. Último acesso em 29/01/2019. 144 257 posição geopolítica sem abdicar de seu imaginário iluminista era um esforço fadado a fracassar em ambas as frentes. Enquanto o europeísmo esvaziava-se após a Primeira Guerra Mundial, duas utopias contrapostas protagonizaram a disputa pelo horizonte de autodeterminação dos povos: o marxismo-leninismo da URSS/Comintern e o liberalismo multilateralista dos 14 Pontos de Wilson. Diante do descongelamento do poder imperial europeu, elas se alçavam como alternativas políticas concorrentes no pós-guerra, inclusive para refratar as reivindicações de soberania no mundo colonial. Por certo, não eram “alternativas” abstratas, já que ancoradas no peso geopolítico de estados concretos. Também na geopolítica do sistema interestatal as Guerras Euroasiáticas haviam soterrado o longo século XIX. 7.2. A crise do liberalismo latino-americano No capítulo 6, vimos como o mecanismo que conectava os estados pós-coloniais ao mercado mundial gerava subprodutos que se acumularam como oposição política, como novas subjetividades que se formavam à parte da rotina institucional. Vimos também que o trunfo da estabilidade passara pela capacidade de acomodar elites regionais e setoriais por meio da maquinaria estatal, com cargos, recursos e proteção. Essa concertação fora o eixo da tendência de nacionalização da disputa política. Contudo, quanto mais se reproduzisse a alimentação recíproca entre estado pós-colonial e capitalismo periférico, maior era o resíduo acumulado na forma de população humana desencaixada, sedimentada no mercado de trabalho ou em suas bordas. Com isso, o processo de desencaixe redirecionava demandas, expectativas e afiliações em direção a organizações políticas cuja estabilidade dependia justamente da exclusão das maiorias. Essa contradição explica a vulnerabilidade crescente da política institucional à “artilharia de campanha” das crises econômicas internacionais. A austeridade fiscal acarretava a distribuição social aguda e regressiva de ônus e, consequentemente, um acirramento das pressões políticas sobre a seletividade da extração e do gasto. O emprego da força e da vigilância contra a contestação social alimentava o dissenso sobre a seletividade da proteção e da ameaça. Dessa forma, a disputa ao redor da seletividade do ciclo extrativo-coercitivo era, inevitavelmente, uma controvérsia sobre 258 as fronteiras do pertencimento político, suas linguagens e suas consequências institucionais. Em casos extremos, essa disputa extrapolou para situações de soberania múltipla, como o exemplo inicial do México não deixa dúvida. De forma geral, as reivindicações alternativas de soberania não tinham o caráter autonômico e localista que prevaleceu no ciclo das independências. A verticalização do confronto político, já consumada pela concentração de capital e coerção, fazia com que os projetos alternativos de ordem fossem colocados perante o aparato de estado, isto é, referenciados nele. Isso valia tanto para os movimentos que lhe negavam qualquer forma de legitimidade, como os anarquistas, até aqueles que pretendiam salvá-lo por um regime autoritário e nacionalista. Nesse cenário, a formação de um novo arranjo hegemônico não se resolveria pela simples adesão do maior número ou pela reaglutinação do controle político sobre a violência. Seu arranque dependia de rearticular, em bases nacionalizadas, (1) um destravamento do ciclo extrativo-coercitivo, encontrando novos trilhos para sua ampliação em meio à crise; e em paralelo, (2) uma reordenação do imaginário de pertencimento político, produzindo deslocamentos consistentes de suas linhas de inclusão e exclusão política. Nessa seção, iremos observar o desenlace desses dois fatores pensados na escala de estados individuais. Em seguida, como fim do capítulo, iremos mostrar como as condições de possibilidade para essa nova ordem hegemônica transcorriam em escala sistêmica. Da sequência de guerras mundiais emergia uma reorganização expansiva da relação entre estados e capitais, assentando, sob liderança dos Estados Unidos, condições sistêmicas de complementaridade econômica e segurança internacional. (1) O reimpulso da capacidade fiscal e coercitiva dos estados, em uma conjuntura internacional adversa, era condição para sua estabilidade. Esse reimpulso não poderia apresentar as mesmas características em todas as repúblicas americanas. Por razões várias, a começar pelo desenvolvimento desigual do ciclo de acumulação anterior, as oportunidades fiscais não estavam dispostas de forma homogênea, o que definia condições iniciais distintas na crise. Diante da desintegração da divisão internacional do trabalho, as alternativas políticas disponíveis sofriam influência dessas condições iniciais. Nos casos que detalharemos nesta tese, México, Argentina e Brasil, forma-se claramente uma estratégia de transformação produtiva, na qual a 259 fiscalidade se molda às necessidades da industrialização induzida e às oportunidades fiscais do mercado interno (WHITEHEAD, 2009). Nestes casos, a trajetória semiperiférica precedente já ensejara um circuito entre consumidores locais e industrialização substitutiva antes da Primeira Guerra, capaz de responder aos estímulos de preço dados pelo colapso do comércio exterior. Como mostraram Cardoso e Brignoli (1983), Bulmer-Thomas (2003: cap. 6-7) e Furtado (1970), não se pode generalizar essa inflexão industrialista para a região como um todo. Mesmo na década de 1930, quando a crise mundial atinge sua maior estridência, há casos em que a retomada das exportações recupera o metabolismo fiscal sem encaminhar uma estratégia de transformação produtiva. Essa recuperação passa por estratégias de fomento institucional às exportações, como as que Bucheli e Sáenz (2014) detalharam para o caso colombiano. Na Costa Rica, é criado em 1933 o Instituto de Defesa do Café com o propósito de proteger e alentar a exportação-chave do país, mediando a tensão social entre produtos e beneficiadores (ACUÑA & MOLINA, 1991: cap. 5). Em paralelo, o colapso do comércio exterior também impactava positivamente a agricultura de substituição de importações, que foi capaz de drenar o mercado de trabalho ocioso onde a industrialização não ocorria. “Talvez pela última vez em sua longa história”, constatou Alan Knight em uma analogia exemplar, “o México rural serviu como uma esponja para absorver o desemprego e compensar a contração da economia urbana, industrial e exportadora” (KNIGHT, 2014: 220). De forma geral, a relação entre estado e economia estava sendo reinventada sob a pressão das circunstâncias. O peso do comércio exterior, como seria de esperar, recua em todas as economias da região, em alguns casos de forma drástica (Tabela 7.1). Mesmo os setores exportadores tradicionais passaram a ser cada vez mais envolvidos por políticas específicas de indução, proteção e planejamento estatal. O desemprego ocupou forçosamente o cerne das preocupações de qualquer governo. Com isso, a estabilidade social passou a se vincularar ao sucesso da gestão macroeconômica, mesmo que à revelia dos princípios do liberalismo vitoriano. A gestão e o planejamento econômico envolviam informações agregadas e conhecimentos de estado que ainda estavam por se desenvolver. Essa é uma face econômica da nacionalização da política: ao colocar a subsistência, o trabalho e os lucros cada vez mais em função de decisões e resultados da política econômica de quem governa, uma 260 série de pressões sociais se direcionaram para essas decisões e seus resultados. Quanto mais a flutuação da “economia nacional” afetava o cotidiano das pessoas, mais elas projetavam sobre a política nacional as saídas para seus problemas. Frente ao naufrágio da autorregulação de mercado, surgem iniciativas mais ou menos consequentes de um novo ativismo estatal: reformas fiscais com o intuito de interiorizar, redistribuir e elevar a extração regular, bem como investidas de centralização da moeda e do crédito. Surgem experimentos de estatização setorial e de controle de preços, além de órgãos especializados para o planejamento econômico, a pesquisa e o fomento econômico. Acima de tudo, há mudanças significativas na relação do estado com a força de trabalho, seja porque a crise enseja políticas emergenciais de manejo e controle dos trabalhadores, seja porque a reconstrução da ordem passa por estratégias institucionais de mediação estatal entre grandes organizações de empresários e trabalhadores. Nos anos 1920 e 1930, as chamadas missões Kemmerer (em alusão ao professor de economia que as liderava) prestaram assessoria a diversos governos latino-americanos para reorientar as práticas tributárias e financeiras, o que resultou em uma onda de criação de bancos centrais e de instituições de supervisão bancária. Com a crise de 1929, a banca livre praticamente deixou de existir na América Latina, decididamente substituída pelo monopólio legal da emissão e, logo, da decisão de política monetária (BULMER-THOMAS, 2003: 176). O enxugamento das oportunidades fiscais ligadas ao comércio exterior pressionava por novos mecanismos de extração, em geral mais sofisticados do ponto de vista administrativo (Tabela 7.2). Além da tributação sobre o mercado interno, a terra ou mesmo a renda, os estados em crise também recorriam a subterfúgios heterodoxos como o ágio cambial, isto é, imposto informal obtido sobre a diferença entre taxas oficiais de câmbio. A política fiscal contracíclica, que se tornaria emblemática da economia keynesiana, foi praticada, por assim dizer, já “antes de Keynes” por vários governos latino-americanos premidos pelas circunstâncias (DRINOT & KNIGHT, 2014). O imperativo macroeconômico do emprego e da renda abria uma imensa via adensamento e coordenação interna do aparato administrativo, de suas capacidades de governo. No pós-Segunda Guerra, essas múltiplas iniciativas ativismo estatal se galvanizariam em torno da agenda do desenvolvimento, enquanto 261 pretensão de um capitalismo estável e progressivo, dirigido pela ação racional do governo. (2) A reordenação social dependia da construção de formas de adesão política que conseguissem capturar as expectativas e subjetividades revolvidas naquela conjunção crítica. A crise de regulação do laissez-faire era também uma crise do arranjo político elitista que blindava o credo liberal de uma contraposição efetiva, mantendo esta última em um terreno amplo de criminalização política. Frente à crise social instalada no período c.1910-1940, a reconstrução de um edifício ético-político para governar não poderia ser um movimento intangível, uma manobra retórica, um jogo de novos discursos. A construção de uma ordem hegemônica dependia de remodelar as bases de sustentação do governo, o que não se faz sem política concreta para tal. Essa política pode adquirir inúmeras formas empíricas, da reforma agrária ao financiamento sindical, da educação pública ao sufrágio universal, da reorganização fiscal aos direitos trabalhistas, das associações paraoficiais de juventude à propaganda de massa. O enraizamento de um novo imaginário de pertencimento político correspondia a novas e vastas searas de política pública. Mais profundamente, a produção dessas políticas implicava um recálculo da distribuição seletiva de coerção e proteção, de extração e gasto em uma sociedade em mudança. Por conseguinte, como forma de restabelecer as hierarquias sociais em abalo, a ordem emergente movia as linhas de inclusão e exclusão política com relação ao século XIX em colapso, redefinindo na prática o apelo à nação, ao povo, à pátria. Para observar de forma menos abstrata esse movimento, tomemos o caso da formação da classe operária, de indiscutível importância para a falência da ordem oitocentista e para a eclosão de novos projetos políticos em seus escombros. É comum considerar que a primeira metade do século XX representa o processo de “incorporação” da classe trabalhadora ao jogo político institucional, sobre o qual Ruth Collier e David Collier discriminaram trajetórias comparadas (COLLIER & COLLIER, 2002). A detalhada investigação dos Colliers se pauta por um dilema posto ao estado e aos trabalhadores: para quem governa, havia a decisão entre represar o poder operário ou tentar mobilizá-lo, fantasiá-lo, evocá-lo em seu favor; para as organizações de classe, a escolha se daria entre denunciar o caráter opressor do estado, enfrentando a repressão e resguardando sua autonomia, ou negociar vantagens e 262 garantias para os trabalhadores junto à política institucional, adequando-se a suas possibilidades e limites. Não há um modelo de equilíbrio que explique os resultados ótimos dessa interação, mas se pode observar as consequências da “incorporação” quando ela ocorreu. No começo dos anos 1920, o México foi possivelmente o primeiro experimento de conformação corporativa do trabalho ao estado, com a CROM reformista e o PLM de Luis Morones sustentando o bloco de Obregón (ver capítulo 8). Segundo Morones, o estado não deveria tomar o lado nem dos empresários, nem dos trabalhadores, mas encarnar um “juiz da vida social” (apud COLLIER & COLLIER, 2002: 212). Antes disso, o battlismo uruguaio e o radicalismo argentino haviam franqueado espaço legítimo à organização sindical moderada, eventualmente arbitrando conflitos em favor dos trabalhadores. No entanto, sob efeito da pioneira constituição de 1917, o México dos anos 1920 permite ver em primeira mão “a emergência, face às induções [postas pelo estado], de um setor dominante dentro do movimento operário desejoso de colaborar com o governo” (COLLIER & COLLIER, 2002: 211). As tendências anarquistas e libertárias, que haviam sido decisivas para a organização dos trabalhadores à margem das instituições no meio século anterior, atraíam redobrada repressão a suas organizações, eventos e militantes. O estreitamento do espaço ao sindicalismo autônomo correspondia a abertura de espaços ao sindicalismo atrelado ao estado ou a um partido específico. Relativamente resguardado do aparato repressivo e dispondo de canais de interlocução, ele podia retribuir conquistas trabalhistas imediatas a seus partidários se contasse com a disposição de elites políticas em fortalecê-los. Com o fim do chamado “terceiro período” da Comintern, e a revisão da política de “classe contra classe” em 1935, mesmo os partidos comunistas latino-americanos se inclinaram a uma política de alianças mais abrangente, sustentando governos capitalistas e barganhando projetos reformistas. Nos anos 1940, os partidos comunistas compuseram a base governista em países como Equador, Cuba e Chile (CABALLERO, 2002). Ressalvadas por ora as particularidades de cada caso, essa possibilidade de que elites políticas e organizações de trabalhadores redefinissem os termos de sua interação nos ilustra bem alguns pontos do argumento anterior. Primeiro e mais evidente, ilustra um movimento de captura da oposição por um projeto de ordem 263 política em formação, através da institucionalização do conflito. Se a emergência da classe operária havia disparado utopias radicais de refundação social, essa tentativa de captura não transplanta uniformemente esse imaginário para o estado, mas sim o recorta, modula e recria para conformá-lo a uma nova rotina institucional, da qual os trabalhadores como classe são um sustentáculo. Para tal, a assimilação de suas expectativas é acompanhada de uma neutralização do potencial explosivo da ativação operária em uma sociedade capitalista. Em segundo lugar, esse exemplo permite entender a movimentação das linhas de inclusão e exclusão política como parte da circunscrição de uma nova ordem hegemônica. Se os pactos de elite colocavam toda a organização política dos trabalhadores em um terreno de criminalização política, a possibilidade de atrelamento institucional desloca a linha divisória para dentro do movimento operário, segmentando-o. Ao invés da repressão indistinta, as elites políticas interessadas em angariar apoio sindical passam a organizar uma nova seletividade prática em função desse apoio. Enquanto as correntes radicais são mantidas na zona de criminalização, tidas como elementos antinacionais, terroristas ou subversivos, cria-se um segmento de organização dos trabalhadores que pode ser trazido, grosso modo, para dentro do escopo de proteção, reconhecimento e barganha por políticas públicas. A seletividade inerente do ciclo extrativo-coercitivo é redimensionada para tornar plausível a captura dessa subjetividade política, a classe trabalhadora, ao universo ético-político da ordem em formação, enquanto expressão profunda da nacionalidade. Em terceiro lugar, essa nova seletividade da coerção e da fiscalidade altera a fisionomia do estado tanto quanto induz uma mudança nas organizações de classe. Essa transformação recíproca aparece esmaecida na ideia de “incorporação”, que à primeira vista sugere uma assimilação de um ator externo a uma arena política pré-existente. Do ponto de vista da organização operária, o atrelamento ao estado esteve ligado ao declínio das grandes federações autônomas, da organização local nos distritos operários, das associações mutuais independentes, além de ações diretas e espaços organizativos em que a identidade de classe não estava claramente discernida. Em seu lugar, ganhavam maior peso as centrais sindicais de amplitude nacional, legalizadas, mais duráveis, com maior burocratização de seu funcionamento interno, e com prerrogativas para negociar as induções estatais à adesão política dos trabalhadores. 264 A produção dessas induções, por sua vez, representava um dínamo de transformação do aparato de estado como apaziguador do conflito de classe. Para apoiar-se no trabalho organizado para governar, era necessário produzir realidades de que os estados latino-americanos até então desconheciam os meandros: legislação trabalhista, educação em massa e propaganda política, por exemplo, não ocorriam sem ministérios específicos, fiscalização, estatísticas, arquivos, órgãos judiciários especializados e orçamento disponível. A institucionalização da barganha, para atingir resultados políticos, impulsiona uma transformação recíproca nas partes envolvidas, o que exemplifica o raciocínio apresentado ainda no capítulo 1. É lógico que essa “incorporação” é apresentada aqui de forma esquemática, com o intuito de elaborar conceitualmente o processo. Empiricamente o “movimento operário” corresponde a uma miríade de insurgências, organizações e suas orientações ideológicas, assim como o estado é na prática uma constelação de agências e tomadores de decisão sem coerência monolítica. Ora, entre esses dois grupos se produz uma fricção infinitesimal de greves, arbitrariedade policial, peças legislativas, eleições para os sindicatos e para o governo, marchas, discursos públicos, decisões judiciais, intervenção sobre certos sindicatos, reuniões de líderes, Primeiros de Maio, propaganda de rádio, recrutamento para o aparato de estado, conflito entre agências, e assim indefinidamente, de eventos maiúsculos a atritos pontuais. Para cada contexto concreto que se observe, o movimento possui uma densidade que só a pesquisa empírica pode reconstituir com nitidez. Agora, a organização conceitual do processo nos mostra que há uma imbricação os dois fatores apresentados inicialmente: de um lado, a reconstrução de um edifício ético-político para governar, que implica algum movimento das linhas divisórias da proteção/repressão e do bônus/ônus fiscal diante de subjetividades políticas emergentes; e, de outro lado, o destravamento do ciclo fiscal para o estado manobrar essa sustentação política por induções materiais, o que resulta em uma ramificação do aparato de estado. Essas subjetividades políticas não se resumem certamente ao movimento operário, usado aqui como ponto de observação. A crise da ordem política oitocentista ensejou uma desnaturalização das hierarquias que ela havia consagrado, abrindo flanco a questionamentos políticos sobre o gênero, a etnia, a história, a cultura. Como quadro geral, o movimento das linhas de inclusão política acata às três características mencionadas: a mudança 265 organizativa das partes envolvidas, um impacto correspondente na seletividade do ciclo extrativo-coercitivo e uma apropriação seletiva das utopias alternativas e de seus sensos de (in)justiça, como meio de acomodá-las à ordem em formação. Em tese, quanto mais radical foram esses movimentos, mais discerníveis hão de ser essas características. Para os propósitos dessa tese, é certo que a cristalização dessas mudanças institucionais permite divisar o fim do ciclo que adotamos como recorte. 7.3. O magnetismo dos Estados Unidos Em 1900, os Estados Unidos já despontavam por qualquer indicador de desenvolvimento capitalista, com a maior produção siderúrgica mundial e novas tecnologias aplicadas à gestão corporativa. A famosa imagem acalentada por Thomas Jefferson de uma nação de pequenos proprietários rurais já havia sido ultrapassada por uma economia de mercado de proporções continentais. Pelo que se podia entrever na virada do século, é tentador afirmar que já estavam ali postas as condições para o que seria o “século americano”, isto é, os passos de sua “marcha para a hegemonia” (TEIXEIRA, 1999). Munido dessas cifras, somos tentados a sobrecarregar uma imagem de excepcionalismo estadunidense, de certa predestinação histórica de sua supremacia. A imprecisão dessa imagem advém, em primeiro lugar, do fato de que não era inequívoco em 1900 que os Estados Unidos efetivamente triunfariam sobre seus competidores; e tampouco seria sob as bases dadas em 1900, apogeu dos chamados robber barons, que eles lograriam reorganizar o sistema mundial. Para um observador sensato em meados de 1940, com a Eurásia dividida entre o nazifascismo e a URSS, a evolução dos EUA como locomotiva do século XX pareceria mais uma aposta que uma constatação. Ao invés de ser a universalização de uma situação prévia, a conformação da hegemonia estadunidense corre no eixo central da conjunção crítica que estamos observando. A formação dos pilares dessa hegemonia, pois, segue a 266 dinâmica multicêntrica de circulação de ideias e práticas, de interação recíproca e sequenciamento que mostramos anteriormente de forma mais geral145. Para manter o fio explicativo do capítulo, iremos observar esse processo a partir de (1) o papel do estado na organização do capitalismo, o que significava refundar o liberalismo, (2) a criação de novos parâmetros ético-políticos para balizar a política, erguendo a democracia e o desenvolvimento como utopia universalista contra o marxismo-leninismo, (3) a criação de mecanismos de arrefecimento da competição interestatal e intercapitalista. Em um ensaio chamado “Sou um liberal?” de 1925, John M. Keynes reclamava que os interesses empresariais eram “incapazes de distinguir novas medidas para salvaguardar o capitalismo do que eles chamam de Bolchevismo” (KEYNES, 1968: 327). Para ele, enquanto os governos, inspirados pela autorregulação de mercado, permanecessem passivos frente ao desemprego e a fome dos trabalhadores, o comunismo continuaria uma alternativa imediatamente mais atraente. Sua defesa da intervenção estatal está amparada nesse duplo apoio: a coincidência entre interesse particular e bem público não pode ser pressuposta pela teoria econômica, e a experiência de socialização total da produção, nos moldes soviéticos, era a maior ameaça posta ao liberalismo como filosofia social. O “longo século XIX” havia embalsamado uma doutrina econômica que traduzia a aspiração de liberdade e igualdade em uma microeconomia da livre concorrência, com unidades racionais produzindo involuntariamente o progresso social. Já o “longo século XX” precisava responder à aspiração de segurança material em uma sociedade de massas regulada pelo mercado. Para “salvaguardar o capitalismo”, então, ganhou forma entre intelectuais e políticos uma macroeconomia do pleno emprego, um saber econômico novo que pretendia responder às expectativas sociais relacionadas ao investimento, ao emprego e à renda que o mercado autorregulado frustrara. Em lugar de Smith e Marshall, abre-se o século de Keynes e Kalecki: o estado manipula alavancas de uma economia nacional em função de seus resultados agregados. O governo passaria a ser Em um sentido profundo, o que conhecemos como “século americano” é resultado de uma corrida fiscal-militar entre capitalismos dirigidos (Alemanha, EUA, Japão) e suas periferias regionais, atravessada pelos epicentros revolucionários do período 1910-1940 e seus movimentos de reação. Como resultado de processos e contingências nessa corrida, os Estados Unidos prevalecem como potência hegemônica, extrapolando seu interesse particular como governabilidade mundial em um novo ciclo de acumulação. Para uma análise das estratégias concorrentes de desenvolvimento, ver os estudos organizados por José Luis Fiori (1999). 145 267 responsável pelo desenvolvimento econômico, e a garantia de demanda efetiva entrava no cotidiano da disputa política. Por isso o planejamento estatal, desembaraçado de sua origem soviética, o controle do crédito, a política fiscal contracíclica e o monitoramento das contas nacionais ganham espaço dentro de um “novo liberalismo” (a expressão é usada por Keynes), premido pelas circunstâncias e pelo contrafactual comunista (ARRIGHI, 2009: cap. 4). A indústria norte-americana foi o nó principal da gênese da produção em massa, desde o armamento da Guerra Civil (1860-1865) até os automóveis da Ford. Como já foi muito investigado, essa transformação acarretou mudanças no perfil da firma que liderava o capitalismo estadunidense: emergem grandes corporações com integração vertical de sua cadeia produtiva, com novas técnicas administrativas e acesso a contramercados no estado. Em um ensaio outrora famoso, o economista keynesiano Kenneth Galbraith intuíra uma consequência disso: “o poder de um lado do mercado cria tanto a necessidade de como a prospectiva de recompensa para o exercício de um poder contrabalanceador no outro lado” (GALBRAITH, 1993: 113). No mercado de trabalho, então, os ganhos das corporações ao contratarem proletários pulverizados e desorganizados impulsionaria sua aglutinação em sindicatos e associações de classe, contrabalançando o poder de mercado das primeiras. A livre concorrência de agentes independentes fora substituída pela negociação de colossos, na qual a ação do estado seria não só benéfica, mas necessária146. Tal qual Keynes se empenhara em separar, aos olhos dos liberais, o intervencionismo estatal do Bolchevismo, o argumento de Galbraith busca desvencilhar a atuação sindical da militância revolucionária comunista. Por força de um mecanismo de mercado, os trabalhadores adquiriam espaço na arena política como classe (poder contrabalanceador), não meramente como indivíduos ou cidadãos. Disso se desmembra uma plataforma de atuação do estado sobre essa topografia de grandes aglutinações de capital e trabalho, tomadas por princípio como simétricas. Além de revogar o laissez faire abstrato em nome da gestão macroeconômica concreta, o Isso é explicitamente postulado por Galbraith (1993: cap. 10): “De fato, o apoio ao poder contrabalanceador se tornou nos tempos modernos talvez a principal função para o governo federal em tempos de paz” (GALBRAITH, 1993: 136). O trecho é seguido de diversos exemplos dessa atuação (em favor dos trabalhadores organizados, dos fazendeiros, do setor carvoeiro, etc.) situados em geral no bojo do New Deal. O autor não deixa dúvida de que pretende convencer de que a regulação econômica e a legislação social não são aberrações antiliberais, mas um funcionamento perfeitamente normal de uma economia concorrencial: “a ação do governo apoia ou suplementa um processo econômico normal” (GALBRAITH, 1993: 151). 146 268 “novo liberalismo” abandonava a suposição de uma sociedade de indivíduos para reposicionar o estado como legislador e árbitro em uma sociedade de interesses corporativos, como mediador em uma concorrência imperfeita. Separando o trabalho organizado das utopias anticapitalistas, era possível normalizá-lo na disputa política através da barganha em cima do poder de compra do salário e das garantias de reprodução da força de trabalho. Usados aqui como demonstração do ponto, Keynes e Galbraith são observadores, partícipes e ideólogos de uma reinvenção do liberalismo como utopia, com a pretensão de acomodar o sismo produzido pelo triunfo bolchevique após 1917. O sucesso de 1917 produz uma reação imediata no sistema interestatal para conter seu contágio, isto é, um realinhamento contrarrevolucionário (HALLIDAY, 2003: cap. 5). O argumento aqui é que o anticomunismo é tão importante quanto a produção em massa para entender a emergência da hegemonia estadunidense. A urgência anticomunista produziu uma refração de duas tendências precedentes: o fortalecimento político da classe trabalhadora organizada e a industrialização da guerra. Com relação à pressão do trabalho organizado, a refração contrarrevolucionária produz experiências substantivamente novas de incorporação das massas sob o desenho corporativo dos fascismos europeus. Contra o potencial revolucionário de um movimento operário independente, ganha ímpeto uma estratégia antiliberal e nacionalista de tutela estatal. Na Itália, pioneira na reação pelo vigor de sua ofensiva operária no pós-guerra, passa-se do gradualismo liberal das reformas de Giolitti, um intelectual cosmopolita, para uma política de massas militarista, efusiva e nacionalista sob Mussolini. O apelo ético-político de que os trabalhadores são protagonistas da história é refraseada por uma estrutura unitária de potência da nação, pela qual esses trabalhadores seriam incorporados politicamente. A pressão do trabalho organizado sobre o estado é, dessa forma, refratada para arranjos de enquadramento corporativo de base nacional, em que a ameaça comunista internacional funciona como chave principal de exclusão política, como semântica da exceção e da emergência. Com relação ao processo de industrialização da guerra, a existência de um estado autoproclamado socialista engendra a base sobre a qual se estabelece uma ameaça permanente. Já no fim do século XIX, forma-se um elo incipiente entre o gasto militar, a garantia de empregos e os dividendos políticos dessa promoção 269 setorial. Ao se observar o curso da industrialização da guerra em direção ao conflito europeu de 1914 e 1918, entrevê-se essencialmente uma tendência de aniquilação exaustiva dos beligerantes, uma guerra industrial autofágica. Com a refração anticomunista, foi possível incorporar o keynesianismo militar ao ciclo extrativo-coercitivo de forma continuada, promovendo uma ameaça incessante que permitia o gasto em defesa como fomento macroeconômico e tecnocientífico. O ponto de culminância disso é o complexo militar-industrial criado nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra e mantido sob a rotinização do anticomunismo. Os Estados Unidos se tornaram pivôs da reorganização do sistema mundial após c.1940 não simplesmente porque venceram a corrida militar das Guerras Euroasiáticas. Ao fazê-lo, abriram vias de expansão recíproca entre estado e capital que serviram de horizonte hegemônico em meio à crise. Essas vias de expansão implicavam um intercurso entre a acumulação de capital e a reconstrução ético-política da ordem. Com isso transferem sua vantagem produtiva, cujo símbolo era o fordismo, para uma supremacia comercial em um novo interregno de liberalização mundial (1945-1973). A posição privilegiada galgada pelos EUA após as guerras entre 1914 e 1945 perpassa fatores em certa medida contingentes, como sua insularidade geopolítica, o rompimento do pacto Ribbentrop-Molotov ou o fracasso relativo do ataque japonês à Pearl Harbor. Correndo por trás dessas condições acidentais, havia processos consistentes de mudança no sistema mundial que foram sendo enfeixados pelos Estados Unidos nessa conjunção crítica, na forma de seu “novo liberalismo” keynesiano, corporativo e anticomunista. O “século americano” é, ao mesmo tempo, o triunfo dos EUA na competição entre capitalismos dirigidos e seu protagonismo na reação sistêmica contra a URSS. Pela persuasão de sua exemplaridade, pelo magnetismo de sua economia e pela força armada organizada, esse reposicionamento dos EUA sedimentava um imaginário hegemônico para as sociedades capitalistas que esmaece os resquícios do “longo século XIX”. Em poucas palavras, esse novo imaginário combina: (1) o desenvolvimento como objetivo macroeconômico de progresso com harmonia social, (2) a democracia como gramática de atrelamento institucional de subjetividades políticas emergentes e, transversalmente, (3) o anticomunismo como argila para moldar ameaças e justificar a exceção a qualquer norma. Enquanto isso, um novo 270 ciclo de acumulação capitalista era organizado pela produção fordista, pelo mercado de massas e pelo duplo emprego (civil e militar) da pesquisa tecnológica. Dessa forma, assentam-se trilhos para uma nova divisão internacional do trabalho que superasse o protecionismo, para uma nova arquitetura financeira que superasse a volatilidade do entreguerras, para um novo setor de lucros extraordinários que atraísse o capital circulante à produção. Essa combinação entre balizas ético-políticas e decolagem econômica possui suas expressões institucionais no pós-guerra, como a Organizações das Nações Unidas (ONU), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, em inglês), além do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, originalmente desenhado como um banco de reconstrução. Essas instituições são expressões da governabilidade sistêmica reconstruída em marcos distintos do que havia sido o século do imperialismo de livre comércio e do mercado autorregulado. Na América Latina, a atração para a órbita geopolítica e geoeconômica se desenvolve já o século XIX, em parte como resultado do processo de regionalização produzido pelos desafiantes à hegemonia britânica (Tabela 7.3). Em muitos sentidos, a região sedia avanços precoces do que posteriormente adquiriu escala mundial: as Conferências Pan-Americanas realizadas a partir de 1889 prenunciam o multilateralismo das Nações Unidas; o imperialismo de T. Roosevelt sinaliza o que seria a “guerra fria” no Terceiro Mundo; o magnetismo do mercado consumidor estadunidense, que é pivô da reconstrução europeia após 1945, já atraíra a maior parte das economias do continente após a Primeira Guerra Mundial (Tabela 7.4). A crise internacional que seguiu a guerra de 1914-1918 produziu o surto de endividamento que “jogou as elites políticas latino-americanas nos braços dos banqueiros de Nova Iorque” (MARICHAL, 1989: 179). Após a crise de 1929, que derrubou definitivamente o padrão-ouro, há na região um movimento consistente em direção ao dólar como esteio cambial, que após 1945 se generalizaria com os acordos de Bretton Woods (BULMER-THOMAS, 2003: 198-199). Em suma, ao final da conjunção crítica, a América Latina se encontrava na órbita estratégica dos Estados Unidos e da constelação institucional com que se reconstruiu o sistema mundial após as Guerras Euroasiáticas. Como conjunto de processos que rastreamos desde a corrida interimperial no século XVIII, o “longo 271 século XIX” havia sido definitivamente ultrapassado. A autoconstrução dos estados latino-americanos encontrava novos trilhos de expansão, balizados pelo desenvolvimento como utopia e pelo anticomunismo como ameaça. 272 PARTE III: ESTADOS PÓS-COLONIAIS EM PERSPECTIVA COMPARADA Esta parte está composta por três capítulos que correspondem a três estudos de caso: México, Brasil e Argentina. Sua análise está justaposta transversalmente a partir das duas conjunções críticas que delimitam o chamado “longo século XIX”, o que permite contrastar a dinâmica de cada caso e seus vetores resultantes. Se a Parte I da tese adotou um sequenciamento lógico, do mais abstrato para o mais concreto, e a Parte II, uma sequência cronológica, na qual os capítulos se encadeavam no tempo, esta parte tem uma índole mais comparativa, no sentido em que é possível cotejar pontos de vista particulares dentro de tendências mais amplas que foram traçadas anteriormente. O raciocínio se inverte, portanto, com relação à Parte II, cuja ênfase estava em mostrar que era possível discernir, a despeito das especificidades empíricas, tendências mais amplas na América Latina durante o “longo século XIX”. Através dos estudos de caso, podemos observar que, a despeito dessas tendências, ligadas à retroversão da soberania aos espaços locais, ao processo de desencaixe impulsionado pelo ciclo sistêmico de acumulação, elas se efetivam e resolvem de forma heterogênea. É justamente porque cada trajetória encadeia processos e eventos de maneira particular que a análise empírica é insubstituível. Cada capítulo constitui um experimento de incrementar a densidade histórica da discussão anterior. Por fim, uma perspectiva comparada sobre as trajetórias permite historicizar as categorias com que desdobramos a hipótese de um desenvolvimento desigual da política moderna como processo macro-histórico. Nesse sentido, a repercussão para a análise política da posição periférica na economia mundial tem significados diferentes em cada contexto. Da mesma forma, a dimensão imperial da política não tem conotação homogênea no México, no Brasil e na Argentina, de modo que a situação pós-colonial de formação de estados também precisa ser elaborada historicamente, ao invés de aplicada como uma regularidade empírica. Além de concertar diferentes escalas de análise, os três capítulos da Parte III reforçam duas linhas de argumentação anteriores: de um lado, a relevância da contingência para rastrear processos de longo prazo, e, de outro, a implausibilidade de padronizar o recorte latino-americano em um todo coeso e sincrônico. 273 8. MÉXICO: CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA NO “LONGO SÉCULO XIX” “São os mesmos que se opuseram a Hidalgo e a Morelos, os que traíram Vicente Guerrero, são os mesmos que venderam mais da metade do nosso solo ao invasor estrangeiro, são os mesmos que trouxeram um príncipe europeu para governar-nos, são os mesmos que formaram a ditadura dos científicos porfiristas, são os mesmos que se opuseram à Expropriação Petroleira, são os mesmos que massacraram os trabalhadores ferroviários em 1958 e os estudantes em 1968, são os mesmos que hoje nos tiram tudo, absolutamente tudo” Declaração da Selva Lacandona/EZLN (1994) Na noite do dia 15 de setembro de 1808, um grupo de cerca de 300 soldados invadiu o Palácio Nacional na Cidade do México para destituir o então vice-rei José de Iturrigaray. Aos olhos dos conspiradores, cujo principal mandante era o abastado proprietário Gabriel de Yermo, Iturrigaray colocara o vice-reino em uma trajetória perigosamente próxima à independência. Alguns meses antes, sob a tutela das tropas invasoras francesas, as abdicações de Bayona na Espanha haviam posto o reino no limiar de seu desmoronamento. A notícia de que Murat fora imposto como governante da Espanha pelos ocupantes chegou ao México em julho daquele ano, causando furor e inquietação. Diante da formação de juntas provisórias nas províncias metropolitanas, a municipalidade do México jurou lealdade à Fernando VII em princípio de agosto e decidiu que, até a restauração da monarquia na península, as Juntas seriam depositárias legítimas da soberania. O convocação de uma assembleia geral das Juntas novo-hispanas foi o acicate para a reação. Os conspiradores temiam que ali fosse sumariamente declarada a independência por artifício do vice-rei. Com o golpe preventivo contra Iturrigaray em setembro, o poder foi entregue ao marechal espanhol Pedro Garibay e a subordinação dos americanos à Junta de Sevilha (Junta Suprema de Espanha e Índias), imposta à força. Embora dirigido pela aristocracia colonial, era um movimento fora da rotina política do vice-reino, uma vez que depunha à força uma autoridade nomeada pelo rei. As doutrinas e práticas usuais do reino seriam, então, interpeladas por uma sequência acelerada de situações que romperiam irreversivelmente os limites da ordem política colonial. 274 8.1. Conjunção crítica I (1808-1824): revolução agrária e municipalismo No rescaldo da eleição geral para a Junta Central, conduzida em toda a América Espanhola no ano de 1809, irrompe o primeiro movimento independentista, denunciado e reprimido na cidade michoacana de Valladolid (hoje Morelia). Como em outras partes da América Espanhola, onde movimentos similares afloraram naquele contexto, a afirmação da independência se justificava pela lealdade à Fernando VII e à monarquia (RODRÍGUEZ, 2008). Em Querétaro, da tertúlia literária animada pelo corregedor local, onde se debatiam ideias da Ilustração, se forma uma conspiração liderada pelo padre Miguel Hidalgo, que, na missa de 16 de setembro de 1810, convoca a paróquia a lutar contra o “mau governo”. Como um rastilho de pólvora a rebelião contagia a plebe rural e indígena do chamado Bajío no México central, região economicamente importante do vice-reino, então em grave crise agrícola147. A violência rural então escala: da rebelião contra as instituições coloniais como o tributo indígena, os insurgentes deslizam, em algumas localidades como Zapotlán em dezembro de 1810, ao extermínio sumário da população branca. Em finais de outubro, os rebeldes liderados por Hidalgo derrotam um destacamento de cerca de mil soldados realistas em Monte de las Cruces, nas imediações da capital, onde estancam seu avanço e sofrem um revés no dia seguinte. Sem condições de tomar a cidade do México, e sofrendo reveses subsequentes os insurgentes voltam ao interior onde a guerra civil transcorreria nos próximos dez anos (ZORAIDA VÁZQUEZ, 2008). Esse capítulo identifica a crise do regime colonial no México como momento decisivo para compreender a ordem política pós-colonial no “longo século XIX”, no âmbito do que anteriormente dissemos sobre a Era das Revoluções. Para compreender melhor os componentes decisivos dessa conjunção crítica, convém situar a posição singular da Nova Espanha no fim do ciclo anterior, quando a espiral ascendente da rivalidade interestatal gerou um estiramento fiscal dos impérios atlânticos (seção 4.1). Como mostrou Carlos Marichal (2007), a monarquia espanhola funcionava por um vasto sistema de transferências internas do qual o México era uma espécie de “submetrópole” na América, assegurando pagamentos regulares para regiões em Uma lista completa dos pueblos sublevados, com seus respectivos chefes e datas de revolta, foi compilada por Escamilla Ortiz com base na seção Operações de Guerra do Arquivo Geral da Nação (ESCAMILLA ORTIZ: 1997: 179-183 e 211-217). 147 275 déficit, especialmente na orla do Caribe (Cuba, Puerto Rico, Santo Domingo, Louisiana). O volume das transferências em prata mexicana para outras partes do império americano começa a subir rapidamente em meados do século XVIII em função das maiores exigências militares, passando de menos de dois milhões de pesos anuais até 1740 para mais de 6 milhões anuais na década de 1780 (Tabela 4.2). Na década de 1770, os valores enviados para a metrópole europeia já haviam dobrado com relação a meio século antes. O excedente fiscal da Nova Espanha era indispensável para azeitar o ciclo extrativo-coercitivo do império espanhol diante de seus competidores. Por trás disso, havia alguns fenômenos dignos de nota: primeiro, como resultado das reformas bourbônicas, a produção mineradora mexicana cresceu de forma espetacular nas últimas décadas do período colonial, opulência registrada, inclusive, por Alexander Humboldt em sua visita à América em 1804. Alguns melhoramentos técnicos, o monopólio sobre o mercúrio e o cerceamento ao contrabando favoreceram esse crescimento. Além disso, de forma geral, os súditos da Coroa na Nova Espanha arcavam com uma extração regular elevada: cerca de 40% mais impostos por habitante do que na metrópole, nível também muito superior ao praticado em outras colônias americanas, espanholas ou não (MARICHAL, 2007: 13-15). Essa extração dependia principalmente de impostos sobre a mineração, alcabalas, tributos indígenas e o monopólio sobre o tabaco (Tabela 8.1). Um último aspecto decisivo foi a arrecadação de sucessivos donativos e empréstimos emergenciais na sociedade mexicana em função do esforço de guerra, dentre os quais a Igreja foi o mais amplo e constante dos credores. Inicialmente, essa arrecadação se deu como donativos por decreto régio (1781, 1793, 1795 e 1798), que, a despeito do nome, eram obrigatórios a todo o domicílio do reino. Durante o mandato do vice-rei Martín de Mayorga (1779-1783), o tesouro começou a levantar recursos mediante a emissão de títulos a juros, além da obtenção de crédito em praças europeias (nomeadamente Amsterdã) lastreados na prata americana. Uma medida chave na descapitalização forçada da colônia foi decretada em 1804, a Consolidação dos Vales Reais (isto é, títulos da dívida pública), que atingiu particularmente a Igreja. A colaboração das corporações coloniais foi um sustentáculo para esse ímpeto extrativo (MARICHAL, 2007: cap. 3 e 4). 276 Durante a crise, a Nova Espanha era, ao contrário das demais colônias americanas, uma provedora do império como um todo e de sua capacidade de travar a guerra, mesmo que defensiva. Quanto mais o governo espanhol era rechaçado a sul pelo exército napoleônico, até seu desterro em Cádiz, mais a resistência dependia de suas conexões transatlânticas. Entre outubro de 1808 e fevereiro de 1811, foram oficialmente enviados uma média mensal de quase um milhão de pesos de prata mexicana à metrópole, aproximadamente metade de toda a prata amoedada no vice-reino nesse período (MARICHAL, 2007: 234). Sem esse subsídio a própria sobrevivência da Junta Central e das Cortes de Cádiz seria improvável. Nos bastidores, a prata mexicana esteve, então, nas condições de possibilidade do primeiro liberalismo espanhol. A consagração da Constituição liberal de Cádiz ocorre no México em setembro de 1812 com a expectativa de que suas provisões pudessem aplacar a força da insurgência, ao instituir legalmente a autonomia municipal e o direito às terras comunitárias. O tributo indígena fora suspenso em 1810. Em um decreto das Cortes de 9 de novembro de 1812, determinava-se a extinção de qualquer serviço pessoal devido pelos índios, como a mita ou o repartimento, além de prever “outras medidas a favor dos índios”, como a garantia de terras aos casados com mais de 25 anos, em terreno vizinho ao pueblo de residência sem prejuízo das terras comunais148. Ademais, a constituição consagrava direitos individuais inalienáveis aos cidadãos na linguagem corrente do Iluminismo, como a liberdade de expressão e reunião, a presunção de inocência e a propriedade privada. Ato contínuo à promulgação, esses direitos foram suspensos em função da necessidade de combater a insurgência, para o que se reservava o estado de exceção (URIBE-URÁN, 2006). O liberalismo gaditano não fora só sustentado em escala imperial em um momento de crise, mas também recortado nos imperativos políticos concretos dessa crise. O entrecruzamento entre constitucionalismo liberal e ativação política rural no México conferiu um dos traços centrais da conjunção crítica, nomeadamente, a apropriação pelos pueblos da figura do município constitucional como estratégia para 148 Decreto CCVII de 9 de novembro de 1812: “Abolición de las mitas. Otras medidas a favor de los indios”. O texto completo do decreto pode ser consultado na Colección de los Decretos y Órdenes que han expedido las Cortes Generales y Extraordinarias, acessado em 15/08/2018 no sítio eletrônico: http://www.cervantesvirtual.com/portales/constitucion_1812/obra/coleccion-de-los-decretos-y-ordenesque-han-expedido-las-cortes-generales-y-extraordinarias-desde-24-de-mayo-de-1812-hasta-24-de-febre ro-de-1813-tomo-iii--0/. Cheguei ao documento graças à menção de Andrés Lira (LIRA, 2003: 387). 277 assegurar sua autonomia, traduzindo a cidadania liberal em termos de vizinhança à localidade (vecindad)149. Em uma conjuntura de abalo profundo da estrutura centralizada do império, os povoados indígenas novo-hispanos lograram multiplicar-se como municípios eletivos, assegurando prerrogativas para administrar as questões concernentes à vida local (uso da terra e dos rios, festas, feiras e cerimônias, resolução de conflitos, etc.). Como disse o historiador Antonio Annino, ao fazer do município um espaço de virtual autogoverno, os pueblos novo-hispanos “forçaram as normas com suas práticas” (ANNINO: 2003: 400). A formação de um liberalismo popular no México revolucionário esteve originalmente ligada a esse sincretismo entre liberalismo e neopactismo que servia de dispositivo para repelir a pretensão de governo desde fora da localidade. Segundo Eric van Young (2008: 284), as rebeliões rurais no México entre 1810 e 1821 constituíram “esforços abreviados por parte de comunidades rurais aparentemente cortarem seus laços políticos e de outras naturezas com o mundo exterior e de governarem numa independência utópica”. No novo quadro constitucional, uma vez que todo vizinho era cidadão e eleitor, esse reconhecimento foi franqueado aos indígenas, que representavam cerca de 60% da população da Nova Espanha, enquanto o mesmo não ocorria com as castas (22%) e negros (0,5%). Diante da ativação insurgente do mundo rural da colônia, produzia-se um alargamento relativo das linhas de inclusão política no novo sistema constitucional. Esse alargamento se ligava à tendência de localização da vida política a partir da doutrina de retroversão da soberania via municípios constitucionais. Em paralelo, um sistema eleitoral indireto, estratificado em quatro níveis, interpunha sucessivas mediações entre a participação no cabildo local e a elegibilidade às legislaturas provinciais. Ao assumirem estes a posição de depositários últimos da soberania, ou de constituintes da “nação natural” na linguagem jusnaturalista, criava-se uma situação nova em termos da disputa pelo poder político. De um lado, a abolição do tributo indígena e dos serviços pessoais retirara as autoridades coloniais instaladas nos povoados; de outro, a nova constituição reforçava as autoridades eletivas a nível local. O primeiro movimento político a saber aproveitar-se dessa nova O principal proponente dessa interpretação, que ficou conhecida como a tese da “revolução territorial dos pueblos”, é o historiador Antonio Annino (1999; 2003). 149 278 topografia foi justamente o exército de Iturbide, que arbitrou a soberania múltipla vigente na colônia em direção à independência contrarrevolucionária. A migração de um general realista como Agustín de Iturbide para o campo independentista era parte de um novo alinhamento em que setores da elite econômica e das corporações coloniais passaram a ver na independência a saída mais segura para a longa crise do império. A proclamação do Plano de Iguala (1821) baseado nas três garantias (fé católica, independência e união) era uma tentativa de mediação entre insurgentes e realistas, respondendo às novas condições vigentes na metrópole após a revolução liberal de 1820. O plano original de Iturbide, segundo relata um de seus colaboradores próximos, era executar um golpe militar na cidade do México, mas foi dissuadido dessa estratégia. Em suas memórias, o general Gómez Pedraza revela ter persuadido o líder de que o caminho mais seguro seria “começar da circunferência ao centro e que a ocupação da capital seria o último passo da empresa” (apud ANNINO, 2003: 430). Esse movimento pela circunferência significava angariar respaldo formal dos pueblos ao Plano de Iguala e ao Exército Trigarante, arraigando-se nas bases políticas locais150. Se a facção pró-espanhola havia controlado a colônia em setembro de 1808 com um único golpe de força sobre a capital, a realidade era claramente outra em 1821: na guerra civil a lealdade dos pueblos fora objeto de disputa por realistas e insurgentes, e contra ambos se mobilizou a prerrogativa de autonomia local (ESCAMILLA ORTIZ, 1997). O apaziguamento da polarização política se efetiva pela tessitura de acordos com as entidades municipais e seus representantes, resultado da ativação política rural nessa conjunção crítica. Em um pacto centrípeto entre pueblos e exército, o movimento independentista de 1821 buscou reunificar monarquia e Igreja através de um novo rei europeu, e, na falta deste, coroou imperador o próprio Iturbide. Seu projeto revelou-se claramente restauracionista, fortalecendo a posição da elite capitolina, dissolvendo o Congresso e tentando sobrepor o exército regular às milícias (BAZANT, 1991). A brevidade de seu governo demonstra o reverso da trajetória neopactista que lhe constituiu: sem novas eleições para o Congresso Nacional, há um descumprimento do mandato Como chama a atenção, Antonio Annino o “pacto da independência” se baseia em uma campanha política “dos territórios periféricos ao centro capitolino, que conseguiu em poucos meses apoio dos novos municípios constitucionais”. Essa articulação deixou “à margem as câmaras de deputados das províncias” (ANNINO, 2003: 409-410). 150 279 imperativo inscrito no Plano de Iguala, o que esvazia o respaldo conferido pelo exército e pelos pueblos. Além disso, as câmaras legislativas provinciais haviam sido alijadas da coalização ao redor do Plano de Iguala, ganhando expressão como foros de oposição à solução monarquista centrada na capital. A agregação entre a insatisfação das lideranças provinciais com a oposição dos pueblos forma o quadro geral de adesão ao Plano de Casamata (1823), formulado no seio da oficialidade militar, para destituição definitiva de Iturbide e convocação de uma Constituinte. De um pacto formado entre a capital e as localidades, surgia um novo alinhando províncias e localidades, mudando o centro de gravidade da política pós-independência. Com o triunfo de Casamata desaparece a ligação entre o exército e o poder central, fazendo com que a violência organizada seja controlada fundamentalmente no nível das províncias e das municipalidades. O estabelecimento de milícias cívicas subordinadas aos ayuntamientos em 1823 seria então o pilar da pretensão autonomista dos pueblos, tornando-se presença recorrente nos levantes federalistas das décadas seguintes. No caso dos governos provinciais, sua força remetia ao momento centrífugo da crise imperial. Vale lembrar que a fiscalidade colonial se baseava em um sistema descentralizado de 24 tesouros regionais, que faziam compensações entre si similares aos situados enviados regularmente às outras regiões do império. A desarticulação desse sistema fez com que o ciclo fiscal se encerrasse nas províncias, o que se conectava com o financiamento das milícias responsáveis pela segurança no interior. Durante a guerra civil, esse circuito foi decisivo para virar a situação em desfavor dos insurgentes: o indulto a figuras de relevo que haviam simpatizado com o movimento era seguido de incentivos para organizar milícias a nível local e regional para combatê-lo. Essa era a base social por trás da primeira constituinte do México independente, assentada sobre uma federação de províncias que se percebiam na prática como estados independentes, agregada ao redor de um liberalismo termidoriano que preservava os foros privilegiados do Exército e da Igreja (AGUILAR RIVERA, 2011). Como na metrópole, o constitucionalismo liberal mexicano se constitui como programa pós-revolucionário de ordem, em oposição ao jacobinismo, à guerra de castas e à ação política popular. No primeiro levante de Hidalgo e Allende, em 1810, estava posta a urgência de expelir completamente os peninsulares do país. No Grito de 280 Dolores se alça também a necessidade de devolver as terras roubadas aos povos indígenas, o fim da escravidão e o cancelamento dos tributos indígenas. No discurso lido na abertura da Constituinte insurgente em Chipancilgo, Morelos conclamara não só à igualdade política, mas também à moderação das desigualdades materiais, como funções das boas leis151. Com efeito, a constituição de Apatzingán (1814) é a primeira a abolir os foros privilegiados no México, ainda que nunca tenha entrado em vigor. Da crise da ordem colonial revolvem-se inúmeros vetores de radicalização política que são neutralizados, apropriados e modulados no desfecho da guerra civil. O liberalismo termidoriano era compartilhado pelo que fora a facção monarquista (favorável à consagração de um rei europeu, que se tornaria nos anos 1840 o Partido Conservador) e o que era a facção republicana e federalista, que se tornaria posteriormente o Partido Liberal152. Não obstante suas diferenças, tanto José Luis Mora como Lucas Alamán depreciavam a insurgência e a violência rural dos anos 1810, acreditando no constitucionalismo como forma de pacificá-las. No entanto, o espírito pós-revolucionário do liberalismo mexicano nos anos 1820 e 1830 esbarraria na enorme dificuldade de reassentar hierarquias sociais e normalizar procedimentos políticos a nível nacional após a experiência de ativação popular por imaginários radicais. Para honrar as obrigações orçamentárias do novo governo, o México contrairia dois empréstimos em Londres antes mesmo de ter sua independência reconhecida: assumindo uma dívida externa de 32 milhões de pesos entre 1824-1825, o país receberia apenas um terço disso após as deduções bancárias. Esse dinheiro foi rapidamente absorvido pelas despesas correntes do governo, infladas pelo pagamento de soldos militares após a guerra de independência. Com a crise financeira de 1825-1827, os pagamentos da dívida seriam suspensos e novos empréstimos governamentais não seriam firmados no exterior até a década de 1840. Ainda assim, a dívida pública total, que se tornaria responsabilidade do governo federal pela nova Neste discurso, conhecido como Sentimentos da Nação, Morelos defende que boas leis, entre outras coisas, são aquelas que “moderem a opulência e a indigência, e dessa maneira se aumente o soldo do pobre, que melhore os costumes, afastando a ignorância, a rapina e o furto”. Mais adiante, retrata um horizonte em que “estando todos iguais, só distinguirá um Americano do outro o vício e a virtude” (MORELOS, 2013: 117). 151 152 Os conservadores são identificados com a tradição centralista da monarquia de Iturbide, com o Plano de Jalapa (1829) e a reforma constitucional de 1836, conhecida como Sete Leis. A facção liberal remonta à Constituição de Cádiz e à Constituição Federal de 1824, que fortalecia a autonomia dos estados. A cisão se transpôs para dentro da maçonaria, com o “rito escocês” apoiando os conservadores e o “rito yorkino”, os liberais (AGUILAR RIVERA, 2011; ZORAIDA VÁZQUEZ, 2008). 281 constituição, cresceu de 20 milhões de pesos em 1808 a 35 milhões em 1814, chegando a 45 milhões após a independência (BAZANT, 1991). Os mecanismos de extração típicos do período colonial haviam sido suprimidos durante o período revolucionário. Limitado pela nova constituição, o governo federal dependia fundamentalmente de impostos aduaneiros para financiar-se, o que contrasta com a posição relativamente secundária do México no arranque do novo ciclo sistêmico de acumulação. Para obter recursos, elevou-se a alíquota sobre as importações a ponto de criar um surto protecionista no país entre 1824 e 1827 (PLATT, 1972). Nesse contexto, não obstante a expansão exportadora da indústria têxtil britânica, a entrada de tecidos importados é marginal diante da fabricação local até finais do século XIX. Além dos impostos alfandegários, essa proteção se efetivou pelo alto custo de transporte de mercadorias dos portos aos territórios montanhosos do interior, dependendo de carretas de mulas e estradas precárias. A atração da nova economia atlântica é, pois, relativamente fraca uma vez exaurido o pico minerador no período colonial (TANDETER, 2008). Assim, as oportunidades fiscais do comércio exterior, único flanco de extração politicamente aberto naquele contexto, eram muito estreitas para reconstruir o governo central, enquanto que os estados federados e as municipalidades constitucionais saíam sobremaneira fortalecidos do processo revolucionário. Isso dito, podemos condensar agora alguns aspectos principais sobre essa conjunção crítica, reforçando suas ligações com o debate conceitual precedente. De saída, em termos do ciclo longo organizado pelas transições hegemônicas mundiais, cumpre dizer que o México colonial esteve em posição de relevo na espiral sistêmica de guerras interestatais e contestação social que caracterizou o período de financeirização da hegemonia holandesa após 1740. A mobilização de capital e coerção no período não corresponde a um “estado colonial” mexicano, mas a uma parte do movimento da engrenagem imperial espanhola, que então sofria para acompanhar a concorrência anglo-francesa. Essa competição aguça as pressões sociais sobre o ciclo extrativo-coercitivo na medida em que implica requisições forçadas e aumento de contribuições, em sua maioria enviados para atender exigências fora da colônia. “Que se acabe a infinidade de tributos, pechos e imposições que nos sufocam”, dizia o discurso constitucional de 282 Morelos em 1813, propondo uma exação limitada “que não nos oprima como a alcabala, o Estanco, o Tributo e outros” (MORELOS, 2013: 118). Esse estiramento da ordem política colonial irá extravasar em uma abertura do horizonte de possibilidades a partir da crise iniciada em 1808. Com a supressão da ancoragem ético-política na figura monárquica, o reino polariza-se em diversas linhas de fratura. Aflora, por exemplo, uma tensão sobre o tema da representação política das colônias ultramarinas na Junta Central em 1809, que pressionava a o equilíbrio entre diferenciação e integração no império. Pioneira para a época, a prerrogativa de representação para as colônias seria admitida, mas em patamar desigual com relação às províncias metropolitanas do reino. De outro lado, a convocação das Cortes do reino abre um conflito entre seu significado histórico, ligado à representação estamental das monarquias medievais (Cortes, Estados Gerais, Dietas, etc.), e seu deslizamento ao significado de uma assembleia soberana, representativa de cidadãos individuais. Inseparável desta, fica em aberto a compatibilidade ou não entre a visão iluminista de nacionalidade comungada entre elites liberais e o horizonte localista de autogoverno pelos pueblos. A tensão entre ordem legal e emergência política também aparece em primeiro plano, dado o avanço das tropas de ocupação na metrópole e a insurgência rural na colônia. Na luta contra os franceses, o Conselho de Regência comunica aos ayuntamientos do reino aludindo à “luta pela independência” e pela liberdade usurpada pelos invasores153, que no México adquire o sentido de separação definitiva da metrópole. Em cada uma dessas linhas de fratura, os escorregamentos de sentido das palavras se ligam ao conflito por parâmetros ético-políticos instáveis. A insurgência de 1810 demarca uma inflexão crucial na história mexicana, não simplesmente pela proclama independentista, mas pela ativação política do mundo rural de forma mais geral. Como mostra Coatsworth (1990), o vice-reino da Nova Espanha fora um espaço relativamente apaziguado do império, se comparado com o conflito intermitente entre colonizadores e povos indígenas nos Andes. A partir de 1810, a possibilidade de camponeses, indígenas, trabalhadores rurais e rancheiros se mobilizarem contra a autoridade instituída, e de estabelecerem recorrentes alianças com facções desafiantes, torna-se um traço indelével da construção da ordem política O documento datado de fevereiro de 1810 faz um apelo grandiloquente à resistência espanhola, dizendo que “a Providência quis que nesta crise terrível não pudessem [os espanhóis] dar um passo à independência sem dar também um à liberdade” (apud RODRÍGUEZ, 2008: 24). 153 283 no México independente. Lembrando Gómez Pedraza, o movimento “da circunferência ao centro” será a via mais assídua de alternância política até o século XX, com os levantamentos oposicionistas associados a planos de ação, que, para ganhar corpo, congregavam as atas de adesão de estados e municípios154. O entendimento desses levantes como rupturas ilegais e informais na disputa política perde de vista, como argumenta Annino (1999), o rito jusnaturalista pelo qual esses vínculos de fidelidade política se formavam da base ao centro. Por fim, é possível distinguir aspectos centrais da conjunção crítica que conferem substância histórica à condição de um “estado pós-colonial” e de um “estado na periferia” do sistema mundial. Com relação ao caráter pós-colonial, como retroação dos impérios ultramarinos europeus, há pelo menos três aspectos que merecem destaque. Em primeiro lugar, quando a independência é conquistada, ela ocorre no ápice de uma tendência à descapitalização forçada e a exaustão fiscal da sociedade mexicana pela extração colonial. Em outras palavras, o ciclo extrativo-coercitivo fora pressionado ao limite de sua ruptura, e, no período pós-revolucionário, as elites políticas não encontram oportunidades fiscais que já não tenham sido esgotadas politicamente no ciclo anterior. A insurgência rural, afinal, fora também uma rebelião fiscal, não contra o colonialismo em abstrato, mas contra a espiral extrativa ascendente que se desatou no império espanhol, e na Nova Espanha em particular, após a tomada de Havana pelos ingleses em 1763. A resistência social e o reformismo iluminista coincidiam na necessidade de abolir os impostos e tributos coloniais, mas não havia alternativa imediata. Para as elites políticas havia, nesse sentido, uma estreita margem de manobra disponível sobre a seletividade do ciclo extrativo-coercitivo. É impossível entender o travamento recorrente da fiscalidade mexicana pós-independência se essa conexão imperial não é refeita, o que vale também para a dificuldade de acesso ao crédito. A segunda dimensão importante é que o advento do constitucionalismo liberal ocorre não em oposição a uma monarquia absolutista, mas no marco de um império pactista em crise e de uma sublevação rural e indígena. O liberalismo não se posta Os exemplos desse tipo de pronunciamento público (que funciona também como ato de delegação de um mandato imperativo) seriam muitos, mas para demarcar os mais importantes teríamos: Plano de Iguala (1821), Plano de Veracruz (1822), Plano de Casamata (1823), Plano de Jalapa (1829), Plano de Coalizão (1833), Plano de Ayutla (1854), Plano de Tacubaya (1857), Plano da Noria (1871) e o Plano de Ayala (1911). 154 284 como uma ideologia anticolonial, mas é evocado no esforço desesperado de resgatar o império de seus dissensos internos e externos. O resultado é um processo particularmente intenso de arraigamento da vida política nas esferas locais em detrimento da cúpula imperial, combinado com uma flexibilidade das linhas de inclusão e exclusão pelo vínculo entre cidadania e vizinhança. Essa flexibilidade foi negociada sobretudo a nível local, enquanto, nas esferas institucionais superiores, não se abre brecha no domínio dos eurodescendentes brancos e mestiços. O liberalismo, que foi apropriado ao léxico popular para a defesa da autonomia municipal, também servia de linguagem para a exclusão da maioria indígena dos fóruns parlamentares da nação ou dos estados federados. Em tal cenário, a imposição de um projeto nacional de ordem encontraria veemente resistência local porque as instituições centrais haviam perdido o vínculo prático de governo com os pueblos autonomizados durante a crise do império. A aspiração de liberdade dessas instâncias municipais podia ser mobilizada muito mais facilmente para derrubar um governo do que para sustentar um. A estrutura ético-política do poder colonial, uma vez erodida pelo vacatio regio de 1808, serviria de referência para a inconformidade e a dissidência contra o governo pós-colonial. Por um lado, este representava uma nítida continuidade com o poder colonial, ao conservar o controle das elites brancas sob o “liberalismo termidoriano”; por outro, esse mesmo liberalismo, ao rechaçar os laços corporativos que ancoravam a estabilidade social pré-revolucionária, fazia com que o governo pós-colonial fosse incapaz reassumir o mesmo poder de convencimento e adesão que as antigas estruturas tinham na base rural da sociedade. Por fim, é no processo de luta contra a metrópole que se constitui a base do poder das províncias como ciclos independentes de extração e coerção, o que também ficou conhecido depreciativamente como caudilhismo155. A figura mais emblemática desse fenômeno, o general Sant’Anna, por três décadas usou seu controle sobre Veracruz como plataforma de projeção de seu poder nacional. O estado minerador de Zacatecas foi longevo defensor do federalismo e da descentralização política em Tal qual no caso das municipalidades, no argumento de Annino (1999; 2003), nas províncias também o poder dos caudilhos foi caricaturado pela historiografia, reforçando sua discricionariedade e personalismo. Não obstante, existem bases para pensar que a raiz de sua força “se baseava no respeito a um conjunto de regras formais e informais que lhes asseguravam não só o consentimento de suas hostes, mas também a adesão ou a tolerância das instâncias institucionais do poder local (CHIARAMONTE, 2016: 251). 155 285 estreita ligação com seus recursos fiscais e sua milícia própria. Em Yucatán as exportações de agave garantiram a pujança do erário regional na primeira metade do século, inclusive para sustentar a revolta secessionista de 1839. Em províncias de forte presença indígena, como Chiapas e Oaxaca, houve uma reintrodução, sob nova roupagem, do tributo de casta pela legislação estadual. A federalização fiscal da Constituição de 1824 coroou o processo de autonomização dos tesouros provinciais durante a crise do império e a luta contrainsurgente. Uma vez ruído o sistema piramidal que interligara as regiões à Cidade do México, elas se declaram soberanas nos termos detalhados por Chiaramonte (2016), funcionando como retaguarda do federalismo mexicano pós-independência. Em conexão com a situação pós-colonial, há que equacionar o sentido empírico do processo estar na periferia da economia mundial, mais especificamente do novo ciclo sistêmico de acumulação que arranca nessa conjunção crítica. Em contraste com sua posição de submetrópole no fim de ciclo anterior, por assim dizer uma semiperiferia, o México acaba em uma posição secundária na economia atlântica orquestrada pelos centros industriais emergentes. Os principais sinais do novo ciclo capitalista que desponta (as importações têxteis, as exportações primárias, as filiais das casas mercantis, atuariais e financeiras europeias, o crédito em Londres) aparecem muito timidamente na paisagem econômica pós-revolucionária, ainda mais em proporção à escala demográfica e urbana. Em parte, isso se explica pela própria exaustão do principal setor econômico do país, a mineração, que só recuperaria os níveis de produção colonial na segunda metade dos oitocentos. Nos antigos centros coloniais hispânicos, México e Peru, a abertura comercial se realiza só na década de 1820, muito depois de Buenos Aires (1806), Montevideo (1807), Brasil (1808), Venezuela (1810), Chile e Colômbia (1811). Além de tardia, essa liberalização não encontrou as oportunidades de complementaridade comercial encetadas com outras periferias latino-americanas no período, o que se reflete na relativa introversão da economia mexicana. Ainda assim, da independência em diante, cerca de 50% ou mais das receitas do governo federal dependiam das taxas alfandegárias (Tabela 8.2). Diante de suas duas principais obrigações constitucionais, a ordem interna e a rolagem da dívida nacional, os recursos eram cronicamente insuficientes, fazendo com o que o governo central fosse, na maior parte do século, um poder inconstante e vulnerável à 286 dissidência interna e à intervenção externa. Ademais, com a guerra civil, o contrabando se tornou prática corrente: entre 1821 e 1860, pela estimativa de Marichal e Carmagnani (2001), cerca de até 50% da prata que deixou o México o fez ilegalmente. Conforme crescia os impostos nominais sobre as importações no período republicano, a evasão foi largamente praticada para entrada de têxteis e tabaco no país. Em suma, uma vez extinta a estrutura fiscal da colônia, a transição para um novo padrão de extração foi conflitiva e vagarosa porque, por um lado, as oportunidades de tributação do comércio exterior eram relativamente pequenas e escorregadias e, de outro, porque a independência fora alimentada por uma ampla mobilização antifiscal. Diante da força com que se produziu a retroversão da soberania na crise imperial, a força de desencaixe da política foi relativamente fraca em função dessa posição secundária no ciclo de acumulação que começava. Em outros termos, a nova divisão internacional de trabalho não ofereceu empuxo de exportações que alavancasse um ciclo extrativo-coercitivo com força suficiente para desencaixar a política mexicana para a escala nacional. Esse cenário, como veremos adiante, só se altera definitivamente com a emergência econômica dos Estados Unidos nas últimas décadas do século XIX. 8.2. A formação de um liberalismo hegemônico no México (1810-1910) Na narrativa de seus eventos, a história mexicana no século XIX é repleta de descontinuidades e guinadas que demandam olhar minucioso. Nesta seção, enquadramos uma escala alargada sem o objetivo de resumir esses eventos, nem os reduzir à operação subterrânea das mesmas causas. Com esse olhar macroscópico parece possível discernir, no desenrolar irregular, contingente e contraditório desses eventos, alguns processos de mais longo prazo, cuja concatenação circunscreve progressivamente a ordem política pós-colonial. Conforme apontamos anteriormente na tese, há uma causalidade recíproca entre o fortalecimento político e administrativo do governo central, a produção estatal de mercadorias fictícias e a inserção periférica no ciclo sistêmico de acumulação capitalista. Os atores, o ritmo e as disputas que efetivam esse processo no caso mexicano tem direta relação com as circunstâncias produzidas na conjunção crítica analisada acima. 287 Escolhendo um lado para aproximar-se do problema, observemos inicialmente a questão da mercantilização da natureza sob o prisma do fortalecimento do governo central. É sabido que a privatização da terra já fora ventilada pelos regulamentos das Cortes liberais espanholas, que definiram a conversão do terreno baldio em propriedade privada, ainda que sem maiores consequências práticas em função da restauração de Felipe VII em 1814. O processo começa a adquirir forma jurídica no período republicano mesmo antes das reformas liberais de meados do século. A rigor, a Lei Lerdo (1856) é a culminância de diversas iniciativas em âmbito estadual que pressionavam pela desinstitucionalização dos pueblos indígenas e pela parcelização da terra, recorrendo para tal à mudança jurídica e à gestão de ilegalismos156. A pressão sobre as terras comunitárias é causa de uma onda de petições nas décadas de 1830 e 1840 encaminhadas pelos pueblos às autoridades estaduais/provinciais157 e nacionais, mobilizando apelos em uma linguagem política sincrética, ancorada ainda na tradição corporativa e pactista do império. Percebendo-se desamparadas na nova ordem jurídica, as comunidades rurais recorreram também à rebelião, por vezes por meio de alianças com frações da elite política. Em um levantamento feito por John Coastworth sobre as rebeliões rurais no México após 1819, das 102 ocorrências registradas constam informações sobre as causas de apenas 54. As queixas por impostos foram importantes em apenas oito casos, enquanto que, em quarenta deles, a origem da revolta estava relacionada com a invasão violenta de terras, a usurpação de espaços comunitários e uso indevido de recursos naturais158 (COATSWORTH, 1990: 50-51). O próprio autor aponta um contraste claro com relação ao período colonial, em que os protestos contra impostos sobrepujavam largamente as disputas fundiárias. Determinadas lutas rurais de maior escala ou duração conseguiram inclusive pôr em xeque a autoridade do governo nesses espaços, como se verifica na duradoura resistência dos Yaquis em Sonora, na revolução na Sierra Gorda (1847-1849), na rebelião zapoteca de Oaxaca (1847-1850) e na guerra de castas em Yucatán. Em Nayarit, o mestiço Manuel Lozada, saído do Para uma aproximação empírica a essas iniciativas, ver os comentários de Carmen Bernand sobre a Lei de Colonização em Chihuahua em 1825, bem como as decisões sobre a terra dos congressos estaduais de Jalisco em 1825 e Chiapas em 1826 (BERNAND, 2016: cap. 3). 156 A razão do duplo termo é que, em 1836, a reforma constitucional conservadora altera o estatuto dos estados novamente para províncias, em uma tentativa de centralização do desenho federativo de 1824. 157 Em outro levantamento, citado por Katz (1990: nota 12, p.255), se enumeram 55 sublevações entre 1821 e 1855, sendo 44 delas relacionadas à questão da terra. 158 288 banditismo social na década de 1850, constitui uma aliança com os indígenas com base na redistribuição e na proteção de suas terras comunais contra as intrusões dos latifundiários, tornando-se um dos mais importantes chefes regionais até seu fuzilamento em 1873 (BERNAND, 2016: cap. 3). A resistência social à mercantilização da natureza tinha, então, como atores centrais os pueblos que, dispondo de direitos pactuados no período imperial, conquistaram instrumentos de luta durante o ciclo independentista. O segundo ator importante foi a maior proprietária rural do país, a Igreja Católica. Após a decisiva participação do baixo clero na insurgência de 1810-1820, a corporação cerrou fileiras com os centralistas conservadores. Tendo sido fragilizada desde a extorsão fiscal do período bourbônico, a Igreja estava particularmente vulnerável como bastião da velha ordem. A derrota militar para os Estados Unidos em 1848 deslegitimara os conservadores, imagem agravada pela guinada autoritária do general Sant’Anna no começo dos 1850 e pelo golpe liderado por Félix Zuloaga em 1857. Por seu turno, não obstante as lutas travadas, as comunidades rurais e indígenas estavam também perdendo terreno: não havia nas elites políticas, fossem liberais ou conservadoras, qualquer respaldo doutrinário para a preservação da autonomia e das terras comunais159. A reforma constitucional encaminhada pelos conservadores em 1836 reduzia o número de municípios àquele existente em 1808, um golpe direto às pretensões autonomizantes dos pueblos. Ademais, Marino (2011) chama a atenção para a progressiva ocupação de posições de poder por brancos nas municipalidades do centro do país, ocupação que repercutia contra os reclames indígenas nas jurisdições locais. A debilitação política desses dois atores, a Igreja e os pueblos, criará o momento para a reforma liberal de 1855, a primeira transformação profunda no regime fundiário mexicano desde a conquista espanhola. Sua consecução se entrelaça É preciso fazer certas mediações para não homogeneizar exageradamente a imagem. A ausência de endosso doutrinário à autonomia territorial e à propriedade comunitária não significa que não houvessem medidas politicamente orientadas nessa direção. O próprio general Sant’Anna acenou à proteção dos “terrenos de origem comunal” por meio da participação de subintendentes e padres nas municipalidades. Contudo, a suposta afinidade dos conservadores com as comunidades indígenas não passava, nas palavras de Andrés Lira, de “intentos desesperados para atrair os pueblos revoltados que se somavam a caudilhos seguidores dos liberais nas disputas políticas. Mas o certo é que, fosse qual fosse o bando político, ninguém estava disposto a colocar um limite no processo de apropriação individual da terra a favor das comunidades. Para os homens públicos, conservadores ou liberais, a propriedade comunal dos indígenas era um obstáculo ao processo da economia política” (LIRA, 2003: 390). 159 289 com o ímpeto de liberalização mundial pós-1846, no zênite hegemônico de expansão material sob liderança britânica. A Lei Lerdo de 1856 extinguia a propriedade rural corporativa, reconhecendo legalmente somente a propriedade individual e desamortizada160. Em sua defesa, o então presidente Ignacio Comonfort partia do diagnóstico de que “um dos maiores obstáculos à prosperidade e o crescimento das nações é a falta de movimento ou livre circulação de grande parte de seus imóveis, uma base fundamental da riqueza pública” (apud KNOWLTON: 1969: 389). A interligação entre o anticorporativismo, a autorregulação de mercado e a prosperidade nacional era um apelo ético-político conformado já na Era das Revoluções, mas sua força foi por décadas refreada no México. Em 1823 o padre e publicista Severo Maldonado considerou o direito de possessão hereditário e perpétuo como causa da ruína das sociedades, defendendo a livre circulação de mercadorias e a parcelização da terra entre as famílias indígenas (BERNAND, 2016: 103). Na reforma tributária conduzida pelos conservadores em 1836, a substituição das alcabalas pela tributação direta e proporcional estava amparada nos mesmos preceitos. O então Ministro da Fazenda, Manuel Gorostiza, chegou inclusive a ligar os tributos sobre a circulação de mercadorias, como a alcabala, à conveniência das “monarquias despóticas”, em oposição às “Repúblicas, onde os vínculos que ligam o cidadão ao seu governo nascem e se sustentam no cumprimento recíproco dos deveres” (apud PINTO BERNAL, 2012: 57). Nas décadas de 1850 e 1860, as reformas liberais assentam definitivamente esse imaginário como ordem hegemônica. Como resultado da Lei Lerdo, da Constituição de 1857 e das Leis da Reforma de 1859, a Igreja Católica foi coagida a vender suas propriedades rurais e urbanas a preço de mercado, sendo estas, na ausência de compradores, leiloadas sumariamente pelo governo. Em janeiro de 1861, quando Juárez retoma a Cidade do México, a execução dos bens eclesiásticos, estimados em 150 milhões de pesos, se torna também uma fonte fundamental de arrecadação para o governo (BAZANT, 1991). Buscando conciliá-la com uma redistribuição fundiária que lhe alargasse a base social, o governo liberal flexibilizou as formas de pagamento, aceitando variados tipos de títulos públicos e promissórias. Concretamente, na lei de 1856 havia previsão legal de resguardo para os ejidos, isto é, as terras comunitárias, qualificadas como indispensáveis à sobrevivência dos povoados. Essa garantia se torna ambígua na Constituição liberal de 1857 e praticamente sem consequências legais depois dela. 160 290 Como resultado, afirma Ian Bazant, os bens confiscados em 1861 no Distrito Federal em um valor de 16 milhões de pesos geraram somente um milhão em prata aos cofres federais. A mobilização emergencial de recursos para encerrar a guerra civil, aliada ao anticlericalismo doutrinário dessa geração de liberais, fez com que a Igreja fosse o alvo principal das reformas. Com relação aos povos indígenas, deslancha um intenso processo de desinstitucionalização dos ayuntamientos, pueblos e comunidades, reforçados pelos códigos civis da década de 1870 e, em 1882, pela decisão da Suprema Corte relativa aos direitos de propriedade da terra como exclusivamente individuais (MARINO, 2011). Curiosamente, ao detalhar as corporações que deixariam de ter prerrogativas legais, a Lei Lerdo incluía os municípios constitucionais ainda que estes não fossem, a rigor, uma corporação ou estamento colonial. Isso se justifica na medida em que eles, em função da torção do liberalismo que operaram nas décadas de 1810 e 1820, funcionavam na prática como diques corporativos à economia de livre mercado. Conforme o governo faz da mercantilização social um objetivo político, a pauta da autonomia municipal tende a perder força com relação às lutas populares pela terra. Como seria de esperar, o triunfo da autorregulação de mercado nas altas esferas políticas não significou sua efetivação, nem imediata, nem uniforme, no país como um todo. Em primeiro lugar, a mercantilização da natureza esbarrava em um cenário legal complexo, com diversas formas de titulação ligadas ao usufruto não-exclusivo do espaço (caçar, coletar lenha, recolher água, atravessar a propriedade periodicamente, etc.), concedidos por instâncias políticas discrepantes, do antigo monarca ao município. Além disso, a circunscrição das propriedades era frequentemente ambígua e sujeita a contenciosos. Uniformizar a propriedade individual sobre o pluralismo jurídico colonial significava desencaixar certas práticas consuetudinárias arrazoadas a nível da comunidade, enfraquecê-la como referência de regulação da vida política e garantir a operação coerente de instituições estatísticas, judiciárias e cartoriais para impor o novo regime. Tal qual ocorrera após 1812, o novo quadro legal encetava estratégias adaptativas por parte das comunidades, nomeadamente para proteger-se dos efeitos disruptivos da mercantilização. Assim, em 1916, quando os constituintes fizeram um extensivo levantamento da situação fundiária do país, encontraram uma miríade de formas legais descoladas da propriedade privada individual, pelas quais as 291 comunidades indígenas faziam um “uso estratégico da lei” através de condueñazgos (copropriedades), repartições, ranchos e ejidos (MARINO, 2011). Essa modulação da lei nas localidades também se relaciona com mudanças na forma de contestação rural, assinaladas por Katz (1990). Desafiando a visão convencional da pax porfiriana, Katz aponta que as lutas camponesas de fato ocorreram, mas se tornaram menores e mais localizadas nas últimas décadas do século, em contraste com o acelerado e recorrente contágio regional que marcara as lutas no pós-1810 (KATZ, 1990). Voltaremos adiante ao tema da desativação política do campo, mas é importante lembrar que as múltiplas estratégias populares de resistência no transcurso do século, como as sublevações armadas, as petições ou as adaptações jurídicas, não foram inconsequentes porque derrotadas, mas, enquanto concepção alternativa de ordem, incidiram efetivamente sobre o ritmo, o modo e a intensidade do desenraizamento cultural à economia de mercado. Contrariamente às expectativas de que a desamortização se completasse pela redistribuição das terras a pequenos produtores independentes, nutrida pelo próprio ministro Miguel Lerdo de Tejada, a tendência à concentração fundiária foi notável. “O desafortunado resultado, então, foi substituir uma forma de concentração de propriedades – a eclesiástica – por outra, nova, o latifúndio” (KNOWLTON, 1969: 400). De saída, havia considerável indisposição entre a população comum à aquisição de bens confiscados da Igreja por sua conotação herética e anticlerical, o que favorecia compradores estrangeiros. Além disso, a urgência com que o processo foi conduzido após 1861 fez com que, por força da obtenção de recursos, se transferissem grandes lotes a um mesmo comprador. Aliada à entrada de capitais estrangeiros, a introdução do transporte ferroviário germinaria o mercado imobiliário no fim do século, contribuindo decisivamente para que a rota das reformas liberais se distanciasse de seus objetivos iniciais (COATSWORTH, 1974). No censo de 1910, registra-se que 57% de toda a terra do país estava titulada a apenas 11 mil proprietários, o equivalente a 0,1% da população (BULMER-THOMAS, 2003: 93). A aliança dos conservadores com os franceses em 1862 para coroar um rei austríaco foi um movimento extremo, o último recurso pelo qual a enfraquecida facção vice-reinal pretendeu controlar as reformas liberais, ainda que com recursos alheios. Em tal contexto, a negação de soberania desencadeada após a moratória declarada por Benito Juárez reabre uma situação de soberania múltipla, uma vez que, 292 diante da ocupação francesa, o presidente eleito transfere seu governo para San Luis de Potosí em abril de 1863. Com efeito, desde sua formação, a reivindicação de controle político da violência pelo governo central mexicano fora mediada e instável, e as situações de soberania múltipla, recorrentes. Isso porque o centro de gravidade da vida política fora deslocado, durante a luta insurgente, para estados e municípios dotados de considerável autonomia fiscal e militar, capazes de derrubar o governo central com movimentos orquestrados “da circunferência ao centro”. Com o federalismo fiscal de 1824, essa atrofia institucional do poder central fora constitucionalizada. Pela topografia política criada na independência, portanto, havia muita violência organizada que o governo central não controlava, na forma de milícias de pueblos livres ou sob chefes regionais, das tribos guerreiras como os comanches e apaches que resistiam no norte, de grupos bandoleiros percorriam o interior a saques. Em outras palavras, o estado federal mexicano não controlava efetivamente os termos da mobilização e da desmobilização da violência, nem os parâmetros, consequentemente, de decisão sobre a ameaça e a exceção. Comprimido pela exiguidade de sua base fiscal, havia escassos meios para a construção de consenso, de modo que a oposição, fosse ela conservadora ou liberal, encontrava recorrentemente terreno fértil. Até 1867, quando a monarquia Habsburgo é definitivamente derrocada pelas guerrilhas liberais, não é exagero dizer que “setores importantes da população mexicana se negaram a reconhecer a legitimidade de qualquer governo que ocupasse o poder na Cidade do México” (KATZ, 1990: 180). A monarquia de 1863-1867 se concretiza por meio de uma guerra interestatal, como ponto culminante da pressão militar estrangeira que o México esteve particularmente exposto desde a conjunção crítica de 1808 a 1824. Naquela ocasião ocorrera um deslizamento da situação anterior, de beligerância transatlântica e interimperial entre Inglaterra, França e Espanha, para outra, ditada pelo expansionismo dos Estados Unidos e pela diplomacia de canhoneiras. Alguns dias após o Grito de Dolores, cabe recordar, uma reunião de colonos anglo-saxões proclamou a dissolução formal de seus vínculos à monarquia espanhola na cidade de Baton Rouge, na Flórida Ocidental. De setembro a dezembro de 1810, o presidente estadunidense James Madison aproveitou-se da proclamação de independência da efêmera República da Flórida 293 Ocidental para incorporar esse território estratégico, na foz do Mississipi, aos Estados Unidos. Em 1819, os EUA obtêm da Espanha a cessão da totalidade da península da Flórida, após terem ali incursionado ilegalmente em 1812. Um roteiro parecido ocorre por ocasião da independência do Texas em 1835, único estado mexicano a preservar a escravidão, e na República da Califórnia em 1846. O militarismo não se limitava aos EUA: até 1825, os espanhóis ainda mantinham um bastião no forte de San Pedro de Ulúa, e, em 1829 investiram militarmente contra Veracruz, imbuídos da reconquista de sua mais pujante colônia americana. Os franceses já haviam bloqueado o porto de Veracruz em 1838 antes de, em 1862, usá-lo como cabeça de ponte para a invasão do país. É importante notar que essas projeções extraterritoriais se entrelaçam com a dinâmica de dissenso e oposição a um governo central vulnerável. No caso do Texas, a relação é emblemática: inconformados com as reformas centralistas, em particular a redução das milícias cívicas, sublevaram-se em 1835 os estados de Zacatecas e Texas, reclamando sua liberdade e soberania sobre o poder central. Enquanto o primeiro caso, mais próximo do centro do país, foi objeto de rápida repressão pelo exército, o segundo escalou para um conflito internacional que redundou na independência e anexação aos EUA. O pico de conflitos rurais no México independente coincide com as malogradas guerras contra os Estados Unidos de fins dos anos 1830 aos 1840 (COATSWORTH, 1990: 56). Igualmente, as duas ondas de petições de pueblos registradas por Antonio Annino (anos 1830/1840 e entre 1858-1867) ocorrem em contextos de guerra civil e internacional (ANNINO, 1999; 2003). Ora, sabemos que, do ponto de vista teórico, não há separação entre contestação social, barganha política e rivalidade interestatal do ponto de vista da agonística da ordem política. No caso da desesperada aliança dos conservadores mexicanos com os franceses para restaurar um império no México, isso se efetiva não só como uma nova situação de soberania múltipla, mas também como manobra geopolítica no contexto atlântico. O império mexicano, que recoloca os conservadores no poder, é também a aposta colonial de Napoleão III para aproveitar a janela de oportunidade oferecida pela Guerra Civil nos Estados Unidos. O próprio fato de que Maximiliano de Habsburgo, à revelia do que esperavam seus parceiros locais, tenha impresso ao seu governo uma direção mais liberal é sintomática do ambiente ideológico de meados de 294 século, quando a restauração absolutista já parecia descreditada (WALLERSTEIN, 2011). Ao fim e ao cabo, o triunfo da guerrilha liderada por Juárez entre 1863 e 1867 sela uma sinergia fundamental entre o movimento liberal e sentimento patriótico mexicano. Em seu longo périplo pelo interior do país, Juárez e seus correligionários vão construindo o imaginário de que a guerra pela reforma é a definitiva libertação nacional. Por certo, essa sinergia entre patriotismo e liberalismo remonta aos conflitos com os EUA desde os anos 1830 e, em particular, à aliança social por trás do Plano de Ayutla (1854), cujo disparador imediato foi a venda de terras aos EUA pelo governo de Sant’Anna em dezembro de 1853. Entre 1863 e 1867, contudo, ela atinge novo patamar, anulando definitivamente o projeto de restauração do vice-reinado e seu núcleo corporativo. É interessante observar que essa nacionalização do liberalismo tem estreita conexão com o controle político da violência pelo governo central, ou ainda, com o processo de desencaixe da política de seus contextos locais. Em termos militares, os liberais haviam se apoiado nas guardas nacionais populares formadas para a defesa contra a invasão estadunidense em 1846, além do apoio de certos governos estaduais e suas fontes de financiamento. Essas milícias eram compostas por pobres rurais, em sua maioria indígena, arregimentados nas municipalidades. Sua remobilização em 1854 por Juan Alvarez em apoio ao Plano de Ayutla conduziu essa aliança a um limiar crítico. Derrubado o governo de Sant’Anna, os liberais se viram diante de um dilema. De um lado, como apontou Florencia Mallon (1995), essas milícias populares constituíam os mais leais aliados com que os liberais contaram nas décadas anteriores, de predominância da facção centralista, tendo papel decisivo nas vitórias militares de 1854-1855; de outro, as pautas que mobilizavam essas milícias, como a autonomia local, o direito à terra e a justiça social, não podiam ser encampadas a sério pelas elites liberais sem comprometer seu próprio programa político. Ao transportar essas milícias à Cidade do México em 1855, os liberais precisavam encaminhar esse dilema posto entre sua agenda de reformas e a ativação política recorrente do mundo rural. A saída, como observou Mallon (1995), foi a repressão das milícias pelo exército, acenando à preocupação dos grandes proprietários rurais. A nacionalização do liberalismo como horizonte ético-político é concomitante a uma inflexão chave ao 295 autoritarismo, que se aprofundaria nas décadas posteriores. Dessa forma, há uma confluência entre o patriotismo inflamado contra as intervenções estrangeiras, a nacionalização de um programa de reformas liberais e a repressão violenta ao dissenso rural, desvencilhando-se definitivamente do “liberalismo popular” que vicejara no período revolucionário de 1808 a 1824. Essa confluência jaz sob a criação do estado federal de 1857 como pretensão de governo nacional, e não mais uma confederação constituída por províncias soberanas. A desmobilização forçada das milícias populares é parte de um esforço político mais amplo de controle sobre a violência política, esforço esse que, derrotada a monarquia em 1867, adquiriria ímpeto e potência em direção ao Porfiriato, como ficaram conhecidos os governos de Porfirio Díaz entre 1876 e 1911. Por fim, a composição desse quadro depende da obtenção de condições para a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo pelo governo central, que se discernem com regularidade empírica somente a partir de 1867. Como foi dito, a extinção das principais receitas do vice-reino não encontrou substituição efetiva após a independência, quadro cronicamente agravado pela longa depressão econômica no México dos anos 1820 aos 1850. Também observamos que, secundário nas cadeias de valor emergentes sob hegemonia britânica, a economia mexicana combinou baixo crescimento das exportações e baixa taxa de exportação per capita até os anos 1880, em comparação às demais periferias latino-americanas (Tabelas 5.1 e 6.3). Assim sendo, embora o governo federal instituído em 1824 dependesse de tarifas aduaneiras, elas não forneciam uma propulsão fiscal consistente; não é surpresa que todos os orçamentos federais até 1867 fossem deficitários (MARICHAL & CARMAGNANI, 2001). Essa situação fazia do governo refém de seus credores. Após crise financeira latino-americana de 1825-1827, o recurso aos capitalistas locais produziu um loteamento de privilégios econômicos às famílias financistas da Cidade do México (MARICHAL, 1989: 61-67). Em 1834, por exemplo, a firma de Manuel Escandón recebeu como contrapartida do governo o direito de tributar diretamente a circulação na maior artéria comercial do país, a estrada que ligava o porto de Veracruz à Cidade do México. Alguns anos depois, em troca de crédito, um consórcio de mercadores recebeu o controle majoritário da Empresa del Tabaco, a maior das fábricas fumageiras estatais. Além disso, a amortização da dívida por meio da privatização de 296 terras públicas foi prática comum. Se a primeira guerra com os EUA não houvesse se interposto, o governo mexicano havia acordado com seus credores em 1837 a conversão de metade de sua dívida externa em terras no norte do país à taxa de quatro acres por libra, o que implicaria a cessão de mais de 87 mil quilômetros quadrados, quase o equivalente ao atual estado de Oaxaca. Vulnerável pela inconstância da base fiscal, o governo central recorria à distribuição de privilégios e vantagens, não só em troca de crédito, mas da própria execução de serviços por privados. Ademais, como no caso da venda de terras públicas, obtinha recursos extraordinários para fazer a guerra. A venda da Mesilla aos Estados Unidos por Sant’Anna em 1853 rendeu-lhe 10 milhões de dólares para aparelhar a luta contra a oposição liberal nos meses seguintes. O mesmo ocorreu após a nacionalização das propriedades eclesiásticas por Juárez em 1859, que inflou os recursos com que os liberais manobravam. Não obstante esses ganhos oportunistas, a base fiscal do governo federal era inconstante para arbitrar decisivamente as situações recorrentes de soberania múltipla. Após 1824, os governos estaduais retiveram o direito aos impostos de circulação (alcabalas e peajes), o que tinha uma dupla consequência: sustentar as bases regionais de mobilização política e colocá-las na oposição à integração interregional de um mercado nacional. A reprodução contraída do ciclo extrativo-coercitivo não é somente uma espiral de endividamento e déficits fiscais, mas também uma tendência centrífuga do controle político da violência. Com efeito, há uma acelerada desintegração desse controle se comparamos a situação de 1821, quando do triunfo contrarrevolucionário garantido pelo Exército, com a proliferação subsequente de vetores alternativos de ordenamento da violência, fosse pela contestação rural, pelo separatismo, pela pressão militar das grandes potências, intensificada como guerra de fronteira pelos EUA. O ponto mais emblemático dessa tendência centrífuga talvez seja o hasteamento da bandeira estadunidense no Palácio Nacional em setembro de 1847. O imperativo de reversão dessa tendência produz uma gradual aproximação entre liberais federalistas e conservadores centralistas após a humilhação militar de 1846-1848, comungando a necessidade de um estado suficientemente forte para controlar a violência, enfrentar a resistência das “corporações” e integrar um mercado em escala nacional (AGUILAR RIVERA, 2011). Essa síntese entre federalistas e 297 centralistas corresponde à inflexão autoritária do liberalismo ao nacionalizar-se na segunda metade do século. A partir de 1867, esse projeto de ordem começa a girar uma reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo e desencadeia um movimento centrípeto na política mexicana. Ao passar em revista os orçamentos do período 1867-1911, Marichal e Carmagnani encontraram quase a metade deles sem déficits (19 dos 44). Entre 1867/8 e 1881/2, as despesas correntes caíram de 80% para 42%, o que provia ao governo um excedente anual de cerca de 2 milhões de pesos para manobrar sua política. De 1895 a 1911, ainda seguindo os cálculos de Marichal e Carmagnani (2001), o gasto federal per capita passa de 2 a 4 dólares sem alteração da relação gasto/PIB. Dessa forma, o apaziguamento autoritário das décadas do Porfiriato tem como pano de fundo uma expansão capitalista que provê excedentes fiscais ao governo, que consegue controlar pela primeira vez sua dívida externa com a renegociação feita em 1888. O fortalecimento extrativo durante o Porfiriato tem duas fontes principais: o crescimento dos impostos indiretos e um gigantesco programa de venda de terras públicas. Embora os impostos aduaneiros tenham caído em proporção (de 58% da receita em 1872 para 46% em 1910), eles dobram em valor e são acompanhados de um crescimento notável dos impostos internos sobre o consumo, que chegam a 31% da receita total (LÓPEZ, 2005: 08-12). A receita total sextuplica de 1872-1873 a 1905-1905 (Tabela 8.3). No montante de impostos aduaneiros, a carga sobre as importações correspondia a mais de 95%, onerando sobretudo a população urbana e a indústria nascente dependente da importação de bens de capital. Como já se disse na segunda parte da tese, a tributação indireta sobre o consumo teve um resultado socialmente regressivo, mas relativamente fácil de contornar politicamente. Ao longo do Porfiriato, os salários rurais permaneceram nominalmente constantes, mas os preços, sobre os quais incidia a tributação indireta, subiram cerca de 30%, tendência que se acentua na crise de 1907-1910. A inflexão para os tributos de importação se ressalta porque o desenvolvimento capitalista associado decolou após 1870. Após uma tendência à queda no poder de compra das exportações entre 1850-1870, firmara-se um crescimento anual médio de 5,9% (1870-1890) e 3,9% (1890-1912) (Tabela 6.3). Os Estados Unidos se tornaram o principal parceiro comercial, absorvendo mais de 75% das exportações mexicanas em 298 1911/1912 (Tabela 7.3). Enquanto isso, o Império Britânico consolidava sua posição como maior credor do setor público (92%) e origem de investimentos diretos (56%). Essa triangulação econômica representa a transição hegemônica desde o contexto mexicano, onde a ascensão estadunidense se sobressai precocemente (Tabela 7.4). O estado mexicano conseguia ampliar sua base fiscal e usar os excedentes para barganhar a lealdade de elites regionais, empresariais, intelectuais e eclesiásticas. Por seu turno, a privatização das terras públicas gerava receita estatal mas também dinamizava a acumulação por despossessão, expandindo a fronteira agrícola e a mercantilização social. Alargava, com isso, a base sobre a qual o governo central extraía tributos regularmente. A arrecadação com vendas de terras e serviços públicos é em média quatro vezes maior que o crescimento geral da receita do governo no período 1867-1912 (Tabela 8.5). A malha ferroviária mexicana passa de praticamente zero a 25,6 mil quilômetros de 1850 a 1913, tornando-se a mais extensa no continente depois de EUA e Argentina (Tabela 6.5). Com o transporte ferroviário, supera-se abruptamente os obstáculos naturais que haviam parcialmente resguardado o mundo rural mexicano do efeito disruptivo da sociedade de mercado. Como as municipalidades e pueblos haviam perdido muita alavancagem política a partir das reformas liberais, a mercantilização encontrava comparativamente pouca resistência camponesa. Com o Porfiriato, que selou um bloco inter-regional de elites, essa resistência encontrava outra estrutura de oportunidades políticas; as ferrovias eram, no México como no resto do mundo, artérias não só para mercadorias e força de trabalho, mas também para tropas e burocratas. A reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, pois, produziu uma acelerada tendência centrípeta no controle político da violência. Um ícone da ligação entre ferrovias e repressão foi o Corpo de Polícia Rural, os chamados rurales nacionales, instituídos por Juárez e impulsionados por Porfírio Díaz. Esse grupo paramilitar executava tarefas de escolta a diligências, ação antigrevista, policiamento, proteção a investidores estrangeiros e mesmo espionagem e vigilância sobre lideranças locais. Através desse corpo policial, o governo federal havia conseguido cooptar bandoleiros, jagunços e ex-milicianos para combater a seu lado, valendo-se de seu conhecimento e seus métodos (BAZANT, 1991). 299 Não à toa, os rurales federales e estatales (em nível estadual) ficaram célebres por operar como força repressiva à margem da lei, deslocando-se rapidamente no país graças às ferrovias e impondo o terror no mundo rural. Essa é, aliás, a contraface da mudança no perfil das revoltas camponesas durante o Porfiriato, já apontada acima, que, diante da maior prontidão repressiva, tornaram-se menos numerosas, menos duradouras e mais localizadas. Mais do que um monopólio da violência legítima, as polícias rurais mexicanas e seus ilegalismos representavam a capacidade de controlar e direcionar a violência aos termos da ordem vigente (ver seção 1.3). Um dos vetores decisivos dessa ordem era o emprego da força para sustentar sistemas de trabalho coagido e servidão por dívidas, que foi predominante no sudeste exportador. Diante da escassez de trabalhadores, os fazendeiros conseguiam burlar os efeitos de um mercado livre de trabalho por meio da força pública e privada, mantendo sua força de trabalho aparte das vicissitudes da economia monetária. Desde a década de 1870, o exército tomou parte na deportação de yaquis derrotados para fazendas de agave em Yucatán, para onde também se enviavam condenados judiciais do centro do país e trabalhadores emigrados da Ásia. Arranjos de controle pessoal sobre o trabalho continuaram vigentes no centro do país e em algumas regiões do norte onde os fazendeiros dispunham de maior poder político, fosse pela ausência de setores não-agrícolas que competissem pela força de trabalho, fosse pela distância relativa da fronteira com os EUA. O controle político da violência assegurava uma ampla franja de ilegalismos locais, que atrelavam a insegurança camponesa ao disciplinamento do trabalho rural. A sobrevivência do trabalho coagido não reflete uma suposta incompletude da crença liberal pelas elites mexicanas, mas o poder com que os latifundiários lograram modular, em determinados contextos, os efeitos previstos da autorregulação de mercado aos seus interesses imediatos. Ao contrário do clero ou dos povos indígenas, essas elites agrárias tinham como trunfo a inserção periférica no mercado mundial para conseguir controlar o desenraizamento do trabalho. É interessante observar como a centralização política incide também sobre as municipalidades, crescentemente subjugadas por nomeações, intervenções e compromissos com os poderes superiores. A própria imposição de ritos legais e eleitorais por funcionários provinciais vai minguando o horizonte do município livre, que fora reinventado sob o constitucionalismo liberal, reduzindo-o a uma instância 300 administrativa integrada ao aparato maior. Essa mudança de panorama se reflete nas petições encaminhadas pelos pueblos, que são cada vez menos assinadas pelas autoridades eleitas da municipalidade e mais por indivíduos isolados, isto é, sem respaldo institucional do município (KATZ, 1990: 190-191). Há uma estreita conexão entre a desativação política do mundo rural e o processo de desencaixe da vida política de seus contextos locais, que ocorre de forma brusca a partir de 1884, quando inicia o segundo mandato oficial de Porfirio Diaz. Com efeito, a fidelidade das instituições locais fora forçosamente desvencilhada dos rumos da política nacional, e os canais de associação entre elites de oposição e movimentos camponeses, cortados. Essa foi a mecânica de apaziguamento do liberalismo autoritário, que conseguia, assim, um alargamento sem precedentes de seu controle sobre a violência e sobre os meios de pagamento. 8.3. Conjunção crítica II (1910-1940): a via revolucionária para outra nação O tema dessa seção é o desmoronamento da ordem política liberal na conjunção crítica que se precipita no México com a campanha antireeleição de 1910 e se fecha com a consolidação de um bloco partidário interclassista por Lázaro Cárdenas nos anos 1930. Interessa observar, para fins analíticos e comparativos, os seguintes aspectos: de um lado, o precoce e radical desfecho do “longo século XIX” por uma revolução social, que revolve de forma particularmente ampla o horizonte de possibilidades na conjunção crítica de 1910 a 1940. De outro lado, é preciso notar como a prevalência de uma nova ordem política passa por uma reorganização significativa da seletividade inerente ao ciclo extrativo-coercitivo, de modo a acomodar forças políticas de extração popular, do campo e da cidade, em um partido unificado. Após um estiramento crítico da disputa, a desmobilização política e a convergência a uma nova rotina institucional seriam particularmente exigentes, envolvendo o aparato de estado em diversas frentes de reforma social. A primeira dimensão a sublinhar é a relação entre a eclosão revolucionária e o rastro de desarticulação social e compressão política produzido nas últimas décadas do Porfiriato. O primeiro epicentro da sublevação foi justamente a região onde a agricultura capitalista mais se desenvolvera: os estados do norte interligados à economia estadunidense. Nas décadas anteriores, fora uma zona de migração interna 301 para aproximadamente 300 mil mexicanos, além de fronteira de expansão para as ferrovias e o investimento estrangeiro (KATZ, 1992). A exposição às flutuações econômicas nos Estados Unidos fez com que se sentissem efeitos da recessão já a partir de 1907, resultando no fechamento de minas, indústrias e madeireiras, no retorno de trabalhadores das fazendas nos EUA e no rebaixamento recorde de salários pela abundância de força de trabalho. Como mostrou Katz (1974), o norte estabelecera uma trajetória econômica diferente do resto do país, na medida em que o assalariamento foi mais disseminado e os arranjos de partição agrícola, mais favoráveis aos camponeses. Com a crise de 1907-1910, produz-se uma inédita unificação política do mundo rural nortenho no movimento maderista. A proclamação do Plano de San Luis de Potosí em finais de 1910, com as subsequentes rebeliões no resto do país, configura um ponto de não-retorno na história do país. O segundo epicentro revolucionário foi o centro-sul indígena, onde fora mais violento o processo de expropriação de terras comunitárias e eclesiásticas. Com efeito, o plano zapatista proclamado em Ayala em 1911 representa uma radicalização agrária do que se propusera Francisco I. Madero. Não obstante, seu significado adquire maior magnitude no contexto da disputa pela ordem política: como mostrou Warman (1990) a partir da análise dos despachos, manifestos e circulares do Exército do Sul, o zapatismo encarnava um horizonte de reorganização da sociedade tendo como base a comunidade rural livre e o município autônomo, atribuindo um papel residual e acessório aos órgãos políticos estaduais e nacionais. Essa visão de mundo subentendia um gabarito alternativo para a seletividade do uso da força, ao advogar, por exemplo, a restituição das terras mediante a ocupação imediata e violenta, com indenizações financiadas pela expropriação dos inimigos da revolução. Esse reposicionamento do uso da força era lastreado em balizas ético-políticas avessas às reformas liberais, de modo que o movimento zapatista resgatou e organizou uma série de documentos de origem colonial que reconheciam o direito originário às terras comunitárias (BERNAND, 2016: 217). Para além de um movimento social popular, indígena e agrarista originado em Morelos, convém reconhecer que ele carrega uma seletividade alternativa em termos de proteção e ameaça, ou de como organizar socialmente a fiscalidade. A sustentação do Exército do Sul recai prioritariamente na forma de requisições sobre os latifundiários, e Warman (1990) registra, nos despachos de Zapata, seu zelo em 302 controlar os abusos contra a população civil. Os termos do emprego da força, da extração, da redistribuição fundiária e da autoridade política concatenam-se em um horizonte do que seria uma sociedade bem ordenada. Extrapolando o campo da oposição liberal antiporfirista, constituía-se como um projeto alternativo de ordem no próprio transcorrer da luta política, alargando seu espectro de possibilidades. Ainda que o zapatismo tenha sido usado para ilustrar o argumento, ele é parte de uma conjuntura mais ampla de acirramento da agonística da ordem política pela implosão dos procedimentos institucionais de mediação política. Em geral, a polarização da Revolução Mexicana é segmentada pelas grandes facções que vertebraram a política nacional, como o exército do sul liderado por Zapata, o do norte liderado por Villa, e o movimento constitucionalista de Carranza. Ainda assim, a dinâmica de disputa sobre o desmoronamento da ordem vigente adquiriu traços próprios nos diversos teatros locais e regionais, como ilustra, entre outros, o estudo de Buve (1990) sobre o Movimento Revolucionário de Tlaxcala. O segundo pilar decisivo que baliza a conjunção crítica pós-1910 é a progressiva incorporação do trabalho organizado à disputa política institucional. Durante o Porfiriato, o acelerado desenvolvimento industrial e ferroviário incubou associações de ajuda mútua, jornais operários e as primeiras confederações laborais mexicanas, com destaque para a Casa del Obrero Mundial (COM), de inspiração anarcossindicalista e internacionalista. Esse associativismo popular ganha peso no transcorrer do processo revolucionário. Com a derrubada do intento reacionário do general Huerta (1913-1914), Venustiano Carranza se alia à COM e forma os chamados “batalhões vermelhos”, no que um trabalho clássico sobre o tema identificou o “primeiro grande episódio de mobilização pelo alto do trabalho organizado no México” (COLLIER & COLLIER, 2002: 205). Pelo artigo 123 da constituição de 1917 se oficializam direitos trabalhistas (jornada de oito horas, descanso semanal, salário mínimo, greve), se regulamentam a atividade sindical e a negociação institucional entre patrões e empregados. O México se torna ponta de lança da transformação mundial da “questão social” nessa conjunção crítica. O segundo episódio relevante de mobilização trabalhista pelo alto ocorreria justamente na oposição a Carranza, após sua inflexão autoritária nos anos 1916-1920. Criada em 1918 como primeira associação trabalhista de âmbito nacional, a Confederação Regional dos Trabalhadores do México (CROM) funcionaria como 303 pilar sindical da oposição encabeçada pelos sonorenses Álvaro Obregón e Plutarco Elías Calles. Durante o governo de Obregón, essa nova relação entre estado e sindicatos adquire contornos mais nítidos: a CROM passa a ocupar postos no governo, é favorecida em disputas industriais, obtém ganhos relativos no conflito distributivo e é preservada da repressão política, enquanto vão minguando – isoladas, perseguidas e sem conquistas concretas – as forças sindicais anarquistas e comunistas. Já na década de 1920, os principais dirigentes políticos contam com algum apoio assentado no mundo sindical, enquanto as taxas de sindicalização tendem a crescer (COLLIER & COLLIER, 2002). No movimento pelo qual as elites políticas estabelecem bases sindicais às suas aspirações de governo, elas também interferem, discriminam e moldam, pelas induções governamentais, a fisionomia organizativa da classe trabalhadora, privilegiando os adeptos de um sindicalismo regulamentado, negociador e eficaz. Como projetos radicais de refundação social, tanto o radicalismo agrário zapatista como o sindicalismo autônomo foram, à primeira vista, sufocados no processo de construção da ordem política pós-revolucionária. Na sombra dessa derrota aparente, desses e de outros movimentos populares do período, há uma transformação mais profunda nos termos da disputa, no cálculo do dissenso posto pela ativação política dos camponeses e dos assalariados urbanos. Com as derrotas infligidas pelos constitucionalistas sobre a aliança Zapata-Villa entre 1915 e 1916, a espinha dorsal do novo Exército Nacional se forma ao redor das tropas obregonistas vindas do noroeste (TOBLER, 1990: 151-156). Ao contrário do modelo de exército popular zapatista, estes eram geralmente mobilizados pelo alto, acomodando mais naturalmente as hierarquias sociais à hierarquia militar, com um perfil também mais profissionalizado, incluindo ex-federales convertidos em combatentes revolucionários. Com isso, de 1920 até meados dos anos 1930, o Exército Nacional se converteu em um instrumento fundamental de repressão agrária, alinhado aos interesses dos grandes proprietários, que não raro chefiavam uma divisão em sua localidade, ou eram ex-generais revolucionários recompensados com latifúndios. Não obstante, essa manobra de neutralização do agrarismo radical não seria exequível pela dissuasão violenta. Em paralelo à centralização do controle político da violência pelos constitucionalistas, abrem-se dois flancos decisivos de ação governamental entre os governos Carranza (1917-1920) e Obregón (1920-1924). De 304 um lado, há o primeiro movimento oficial consistente em direção à reforma agrária, amparado na limitação da propriedade rural – ainda que em limites muito aquém daqueles praticados pelos zapatistas – inserida no artigo 27 da Constituição de 1917. A distribuição geográfica dessa primeira reforma agrária coincide com os espaços de maior ativação política camponesa e indígena, deslanchando sobretudo em Morelos, berço do Exército do Sul. Ali, a organização ejidal passa efetivamente a predominar no mundo rural pelo efeito combinado das ocupações e titulações revolucionárias e da reforma agrária nos anos 1920-1922. O segundo flanco de ação governamental é o investimento em uma pioneira política cultural e educacional no sentido de refundar o imaginário de pertencimento à nação mexicana, resgatando sua etnicidade, seu nacionalismo popular e suas origens pré-colombianas. O ícone maior dessa política é a Secretaria de Educação Pública, instituída em 1921 e confiada a José Vasconcelos, que vinha então de uma experiência reformista na reitoria da UNAM. O rechaço ao racismo e ao culturalismo permitia manobrar as linhas de inclusão e exclusão política que o positivismo porfirista havia engessado, abrindo um amplo terreno de política pública, de iconografia nacional, de uma nova “estória de povo” que valorava aqueles que, no desfecho da guerra civil, estavam sendo marginalizados politicamente. É incontornável notar como um intercurso entre coerção e consenso, ou entre imaginários e políticas públicas, se desenvolvia na reacomodação contingente das subjetividades políticas camponesas, cujos projetos de sociedade, mesmo quando derrotados, acabaram por alterar as condições pelas quais os vencedores poderiam vir a sê-lo. Outra forma de glosar o ponto seria identificar nisso uma série de ajustes na seletividade do ciclo extrativo-coercitivo como pano de fundo das mudanças na relação entre estado e classes trabalhadoras rurais e urbanas. Além de maior generalização, esse ponto de observação permite iluminar uma mudança menos imediata do que a reforma agrária, o loteamento de cargos públicos ou a mediação de conflitos industriais. Durante a conjunção crítica de 1910 a 1940, há uma alteração do padrão de extração do estado mexicano. Como vimos, o Porfiriato conseguira firmar uma reprodução ampliada do ciclo fiscal através da substituição dos impostos de circulação interna, que serviam de esteio para os governos estaduais, por impostos sobre as importações e sobre o consumo (impuestos de timbre), além da venda direta 305 de patrimônio público. Essa modalidade de extração indireta incidia diretamente sobre o custo de vida, um dos gatilhos da insatisfação popular durante a crise econômica de 1907-1910. A mudança na distribuição relativa do fardo fiscal adquire ímpeto com a Primeira Guerra Mundial em 1914, que, por um lado, trava o influxo de importações dos centros, e, por outro, abre inéditas oportunidades aduaneiras sobre as exportações primárias (LÓPEZ, 2005: 20-29). Essa nova conjuntura internacional coincidia com momentos críticos da guerra civil revolucionária no México. Com efeito, as forças constitucionalistas contaram, entre 1914 e 1916, com uma vantagem decisiva ao controlar as principais zonas exportadoras e as aduanas atlânticas, enquanto que as forças da Convenção (Zapata/Villa) precisavam angariar recursos de uma economia doméstica paralisada pela guerra. A produção têxtil, de longe o principal setor industrial, caiu 38% de 1913 e 1918, e mesmo em 1921 a produção industrial total ainda era inferior à de 1910 (BULMER-THOMAS, 2003: 182). Com a demanda externa crescente por produtos agropecuários, minerais e petróleo, e a melhora conjuntural dos termos de troca, a arrecadação aduaneira sobre as exportações, antes ínfima, chegou a equiparar-se aquela oriunda das importações. Nos meses entre outubro de 1914 e junho de 1915, decisivos para o destino do embate revolucionário, 91% da arrecadação com importações e 87% da arrecadação com exportações foram obtidas nas aduanas do Golfo do México, controladas pelos constitucionalistas (Tabela 8.5). No fim da guerra em 1920, pela primeira vez na história independente do México, a tributação aduaneira representava menos de um terço da arrecadação federal. A reforma fiscal promovida pelo bloco triunfante em 1916 teve como objetivo emergencial aliviar as tarifas aduaneiras sobre bens de primeira necessidade, buscando suavizar a carestia em um momento de crise econômica, greves e marchas públicas nas cidades. Após um inchaço conjuntural da arrecadação com exportações, cuja carga era diluída entre os consumidores estrangeiros, a restituição da estrutura extrativa sobre o consumo popular se tornava politicamente proibitiva. Há uma tendência que se põe em movimento de diversificação e interiorização da fiscalidade como forma de reencontrar um esteio exequível para sua reprodução ampliada. Como se vê na tabela 7.2, às vésperas da crise de 1929, o imposto de renda atinge a 6,7% do orçamento federal, maior porcentagem à época na América Latina depois do Chile (12,6%). Embora os impostos sobre as importações continuem relevantes, eles 306 perdem peso proporcional e subordinam-se cada vez mais à estratégia de industrialização substitutiva, induzindo um contramercado pela taxação da concorrência estrangeira. Destarte, os ajustes na seletividade do ciclo extrativo-coercitivo são perceptíveis também do ponto de vista da extração regular, refletindo os efeitos encadeados da fricção política nessa conjunção crítica. A extensão dos efeitos da derrubada revolucionária da ordem liberal oitocentista no México se revelaria, contudo, no caráter de sua resposta à crise de 1929 (KNIGHT, 2014). Em boa medida, o choque externo em princípios dos anos 1930 interrompeu uma trajetória de centralização conservadora dos anos 1920, quando a recuperação econômica se alinhara às tendências pró-capital, pró-latifúndio e pró-EUA dentro do governo. Uma vez deflagrada a crise, a resposta imediata do governo mexicano seguiu a ortodoxia econômica inspirada pela autorregulação de mercado, praticando uma contração fiscal e monetária que tornou ainda mais devastador o efeito do choque externo. De 1930 a 1932, as exportações caíram 60%, as receitas do governo despencaram 34% e o PIB do país, reduziu-se 18% (KNIGHT, 2014: 221). Diante do colapso, há uma reorientação heterodoxa liderada por Alberto Pani, que volta ao Ministério da Fazenda em 1932. A retomada do gasto público é sustentada então pelo retorno à emissão de moeda fiduciária, produzindo uma política de estímulos contracíclicos. Até aí, não há nada de distintivo com relação a outras experiências de keynesianismo prático que irromperam naquele contexto. É com a emergência da dissidência à esquerda do Partido Nacional Revolucionário (PNR), liderada pelo general Lázaro Cárdenas, que uma espécie de segunda revolução toma forma, dessa vez agenciada pelo alto. A ativação popular e a institucionalização de bases camponesas e sindicais a um partido nacional, estratégia que torna viável a presidência de Cárdenas entre 1934 e 1940, acaba por sedimentar os termos da disputa política posterior, sepultando definitivamente o ciclo do “longo século XIX”. No mundo sindical, a hegemonia da CROM estava bastante combalida. Embora Cárdenas não tivesse alianças formais no mundo sindical durante sua campanha eleitoral, o teor da oposição callista faz com que essa aproximação aconteça por atração recíproca. A ênfase trabalhista do cardenismo já era notória desde o Plano Sexenal adotado pela Convenção do PNR em 1933, que lançara sua candidatura. Nesse sentido, Cárdenas opera uma reaglutinação sindical ao redor de uma nova e 307 mais abrangente confederação nacional, a Confederação de Trabalhadores do México (CTM). Ademais, a Comintern lança sua política de frentes populares em 1935, atraindo a base sindical comunista ao bloco nacional-popular organizado pela CTM. Após um interregno de afastamento relativo entre 1928 e 1934, o estado mexicano estava imerso, de maneira irreversível, na mediação institucional da relação entre capital e trabalho em escala nacional. Além de ganhos salariais e respaldo político aos sindicatos da CTM, é instaurada uma reforma trabalhista das mais avançadas para a época, prevendo inclusive a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. Em termos de respostas político-institucionais à crise de 1929, tratava-se de uma trajetória radical. No campo, a política cardenista é igualmente prenhe de consequências. Em primeiro lugar, o reparto de terras atinge proporções insondáveis até então: entre 1934 a 1940, foram distribuídos cerca de 18 milhões de acres de terra, o número de ejidatários cresceu de 940 mil para mais de 1,7 milhão, e a fatia das terras cultivadas reconhecidas como ejidos passa de 15% a 47% no país (TOBLER, 1990). Além disso, é criado um banco ejidal para solucionar o gargalo de crédito, e milícias rurais camponesas como contrapeso ao Exército Nacional, que era até certo ponto oposicionista. A institucionalização do apoio camponês ao governo ganha expressão, em 1938, pela criação da Confederação Nacional Camponesa, que agrupava então cerca de 3 milhões de trabalhadores rurais (COLLIERS & COLLIER, 2002). Após uma tendência de dispersão das realidades agrárias regionais, criava um vetor poderoso de nacionalização da disputa política no campo, de alinhamento da situação local às estruturas nacionais de mobilização e formulação de política. Em uma conjuntura internacional que permitia maior autonomia política, como os anos 1930, a presidência de Cárdenas constitui uma espécie de segunda revolução porque recorre às bases populares da revolução para conseguir atingir e manobrar o poder de estado. Ao contrário dos movimentos anteriores, estabelece um aparato institucional forte para incorporar as classes trabalhadoras ao estado, assentando o legado revolucionário em uma estrutura corporativa e unitária encarnada no partido da revolução. Aglutina o empresariado aos termos de um capitalismo dirigido, nacionalista e industrializante. A extensão do reordenamento social durante a conjunção crítica 1910-1940 é inseparável da radicalidade com que a revolução 308 demoliu a velha ordem, da intensidade com que utopias alternativas emergiram e movimentaram a base da pirâmide social. Como projeto triunfante, o modelo nacional-popular de Cárdenas culmina uma série de ajustes na seletividade prática do ciclo extrativo-coercitivo, que conferem novos significados ao pertencimento, à cidadania, à nacionalidade. Sua conformação não é o somatório das utopias revolucionárias, mas um resultado contingente de seu confronto em circunstâncias particulares. 309 9. ARGENTINA: CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA NO “LONGO SÉCULO XIX” “Rivadavia proclamou a ideia de unidade; Rosas a realizou. Entre os federais e os unitários, a República foi centralizada; o que quer dizer que a questão é de vozes que encobrem uma fogosidade dos povos jovens, e que no fundo, tanto um como outro serviram sua pátria, promovendo a unidade nacional. Os unitários perderam, mas triunfou a unidade. Venceram os federais, mas a federação sucumbiu”161 Juan Bautista Alberdi (1847) O comandante britânico Home R. Pope não tinha sequer anuência do primeiro-ministro quando desembarcou mil e seiscentos soldados no mal guarnecido porto de Buenos Aires no inverno de 1806. Liderada pelo recém promovido general William Beresford, a investida sobre a cidade encontrou mínima resistência armada e o vice-rei retirou-se para o interior, instalando uma capital provisória em Córdoba. Diante do aparente sucesso da empreitada, o governo britânico passou a endossar a iniciativa, que, ato contínuo, promoveu a primeira abertura oficial de portos latino-americanos às mercadorias inglesas. Desde 1804, Espanha e Inglaterra estavam em guerra, mas o império espanhol sofria grande desvantagem no Atlântico após a Batalha de Trafalgar (1805). A incapacidade de resposta das marinhas inimigas fora o acicate para a iniciativa de Pope e Beresford, que meses antes participaram na ocupação britânica da colônia holandesa no Cabo da Boa Esperança. No entanto, essa resposta partiria da margem oposta do Prata, das praças fortificadas de Montevidéu, que desde 1797 se constituíra como o centro defensivo do vice-reino. Com menos de dois meses de duração, a primeira ocupação britânica seria derrotada pelos milicianos chefiados pelo general franco-espanhol Santiago de Liniers, prontamente alçado a herói pela população da cidade (TERNAVASIO, 2009: cap. 1). A despeito de sua rápida reversão, a invasão britânica catalisa duas tendências cruciais: a militarização da sociedade portenha e sua extroversão comercial através das fissuras do monopólio colonial. Com efeito, durante os anos 1800, a guerra e o bloqueio continental haviam secado o fluxo de manufaturas francesas e alemãs que 161 Extraído de transcrição em Botana (2003: 665). 310 eram contrabandeadas pelo porto de Cádiz, deixando um mercado que seria crescentemente ocupado por firmas britânicas. Quando Napoleão invade a Espanha em 1808, o realinhamento na Europa aproxima os britânicos da resistência juntista metropolitana e, consequentemente, das colônias americanas leais a Fernando VII. É nesse contexto que o vice-rei Cysneros decide, em 1809, autorizar pela primeira vez a importação legal de mercadorias britânicas ao vice-reino espanhol. Os impostos oriundos dessas importações eram uma forma de fazer frente à penúria fiscal da Caixa de Buenos Aires, agravada no triênio 1807-1809. Elevados os custos de proteção da cidade após as incursões britânicas (1806 e 1807), a administração vice-reinal ainda sofria com a escassez de remessas de prata do Alto Peru (Potosí). Abrir o porto era sem dúvida uma medida desesperada para salvaguardar a autoridade do império, mesmo que pelo sacrifício das bases históricas de seu funcionamento. Uma vez disponíveis essas receitas aduaneiras, era cada vez mais impraticável restaurar o status quo ante em que elas não existiam. O apetite pelos recursos se explicava pela necessidade de manter os novos corpos milicianos instituídos na luta contra os ingleses. Desta feita, foram criados dois regimentos de patrícios (brancos nativos de Buenos Aires) e outros três de diferentes proveniências: um composto pelos chamados arribeños (do Alto Peru), um integrado por negros livres e um por peninsulares, especialmente bascos, andaluzes e catalães (BERNAND, 2016: 47). Mesmo com a redução da ameaça britânica e portuguesa em 1809, as tropas milicianas não são desmobilizadas pela imprevisibilidade social de fazê-lo. São mantidos cerca de quatro mil soldados regulares após 1806, o que corresponderia a aproximadamente 30% da população masculina, adulta e livre da cidade de Buenos Aires (HALPERÍN DONGHI, 2005: 78-81). Como notou Tulio Halperín Donghi, a militarização acarretava uma transferência relativa de recursos fiscais para a plebe multirracial urbana na forma de soldos, vestimentas e suprimentos. Sua presença armada na cidade perturbava as hierarquias arraigadas da sociedade colonial. Assim, a desmoralização da autoridade espanhola, incapaz de proteger a cidade, foi correspondida pelo fortalecimento dos milicianos locais e do ayuntamento, que, em sessão deliberativa após a reconquista, havia decidido a destituição do vice-rei e a nomeação imediata de Liniers para o cargo. 311 No contexto de acirramento da rivalidade interestatal das últimas décadas do século XVIII, a defesa no Atlântico Sul fora sabidamente o principal mote da constituição do Vice-Reino do Rio da Prata em 1776. Relativamente marginal em termos da sustentação extrativo-coercitiva do império, a foz do Prata não fora particularmente afetada por rebeliões fiscais de caráter popular nas décadas seguintes. Sua posição eminentemente defensiva era amparada pelos situados oriundos do Alto Peru, que garantiam quase a metade das receitas do vice-reino (Tabela 9.1). Ademais, o comércio entre as colônias espanholas foi liberalizado a partir de 1778 no bojo das reformas bourbônicas, reforçando os circuitos econômicos interiores que ligavam as províncias do Litoral, Mendoza, Tucumán e o Alto Peru. A interiorização administrativa era acompanhada de um adensamento das ligações comerciais sob a pirâmide corporativa que tinha seu topo em Cádiz. À imagem da guilda central, foi criado em 1794 o Consulado Comercial de Buenos Aires, que agremiava a comunidade mercante da capital sob a tutela da Coroa (ADELMAN, 2006: 39-40). Na década de 1790, a corrida interimperial no Atlântico já produzia efeitos contraditórios sobre o governo das províncias do Prata. Com a guerra de 1793-1795, a metrópole passa a sugar a prata de Potosí que permitia sustentar os gastos administrativos do vice-reino, situação que se agravaria a partir de 1802. Por seu turno, os mercadores portenhos ambicionavam liberalizar a entrada de mercadorias estrangeiras no porto sem abdicar do arranjo corporativo que lhes conferia controle sobre o comércio. No entanto, o efeito dessas importações se fazia sentir no interior do país, especialmente após o decreto de Cysneros em 1809. Incubadas pelos controles coloniais, as pequenas manufaturas nas províncias (licores, têxteis, aguardente, vinho, calçados) viam estreitar-se os mercados do Litoral e de Buenos Aires conforme eles acediam a bens importados. Não à toa, quando o livre comércio se torna doutrina oficial da Revolução de Maio de 1810, e o mercado peruano é engolfado pelas guerras de independência, as províncias do interior adotarão uma postura fortemente protecionista. A raiz dessa divergência entre portenhos e províncias remete necessariamente às injunções da crise imperial espanhola e da decolagem industrial inglesa no Atlântico. A convocação de nova sessão deliberativa (cabildo aberto) pelos criollos de Buenos Aires em maio de 1810 respondia ao virtual colapso da resistência juntista na 312 península e, por consequência, da autoridade metropolitana. A destituição do vice-rei Cysneros por decisão do cabildo foi a culminância na rivalidade entre o poder imperial e as instituições municipais nos quatro anos anteriores, em que a colônia vivera inédita confusão com relação à estrutura de autoridade. Ao contrário de outras cidades hispano-americanas entre 1808 e 1809, inclusive no próprio vice-reino, como Montevidéu, Chuquisaca e La Paz, a formação de uma junta autônoma de governo leal a Fernando VII havia sido interdita em Buenos Aires pela ação de Liniers, quando este ainda controlava a maior parte dos milicianos. 9.1. Conjunção crítica I (1810-1827): das margens do império ao impasse federal O triunfo do cabildo em 1810 seguramente respondia às novas condições vigentes na península. Ao instalar um governo soberano em Buenos Aires com base na doutrina de retroversão da soberania, a indefinição política dava lugar a uma nova situação de soberania múltipla: por um lado, a Junta da capital encaminhava prerrogativas de representação das demais províncias no novo governo, despachando suas milícias para impor-se aos cabildos recalcitrantes. Por outro, formava-se a partir de Montevidéu e do Peru uma robusta resposta militar para destituí-lo. A erosão da autoridade piramidal do império criaria um conflito profundo sobre os termos da jurisdição, representação e autonomia política, revolvendo horizontes incompatíveis sobre a dimensão territorial da soberania. No movimento de maio percebe-se com nitidez a circulação de novas ideias daquele ciclo revolucionário, como a ligação da monarquia ao despotismo, o igualitarismo, a unidade soberana da nação e o estado de exceção como emergência revolucionária. Esse republicanismo radical e centralista foi marca da chamada ala jacobina da Junta, liderada por Moreno e Castelli. Ambos, assim como Bernardo de Monteagudo, haviam adquirido formação em Charcas na época em que Victorián de Villalba, da Real Audiência, recorrera às doutrinas da Ilustração para opor-se à mita. A educação desses personagens em instituições coloniais não os manteve alheios às controvérsias doutrinárias da época. Em 1810, o projeto jacobino implicava instituir um Congresso Constituinte com a chegada dos representantes da província, oficializando uma ordem política independente da Espanha. Conforme o Plano de Operações elaborado por Moreno em 313 julho, e aprovado em sessão secreta da Junta, sua plataforma mobilizava temas polêmicos como a reforma agrária, a expropriação dos espanholistas, o fim da escravidão e da servidão, a repressão exemplar dos opositores e o controle do comércio exterior sob uma estrita economia de guerra (MORENO, 2007; ver também ANSALDI, 2010; PRIETO, 2009: 60). No transcorrer de 1810, essa ala foi derrotada pela posição mais conservadora, que, sem dissolver de todo os laços com o império, apregoava a criação de uma liga de cidades rio-platenses, colegiada, autônoma e leal ao monarca espanhol deposto. O triunfo da Revolução de Maio tem duas consequências importantes. A primeira é que a Caixa de Buenos Aires se descola definitivamente da estrutura fiscal e militar do império, passando a ser a tesouraria de um governo independente. Com isso, as compensações alto-peruanas precisam ser definitivamente substituídas por formas de arrecadação local, que se mostram então cronicamente insuficientes. Por sua importância no novo cenário, a aduana se converte em um centro independente de pagamentos de novo governo, servindo inclusive como moeda de troca, na forma de concessões, privilégios e isenções particularistas, para obtenção de crédito emergencial (HALPERIN DONGHI, 2005: 88). No quinquênio 1811-1815, os impostos sobre importação e exportação garantem, respectivamente, 41% e 5,6% da arrecadação total, e o déficit comercial faz com que haja um escoamento sistemático de prata para o exterior. Em um contexto de expansão da presença britânica em Buenos Aires, a decisão do novo governo pela abertura comercial em 1810 demarca suas novas bases de extração regular como estado independente. Ao invés de canalizar recursos do interior para sustentar uma estratégia defensiva no Atlântico, passava-se a amealhar recursos no porto atlântico para amparar uma guerra revolucionária ofensiva no interior. O segundo desdobramento da revolução de 1810 foi a formação de entidades representativas nas províncias, que deveriam deliberar sobre a adesão ao novo governo. Com efeito, o regulamento expedido por Buenos Aires em 10 de fevereiro de 1811 estipulava instruções para a formação das juntas provinciais e subordinadas, o que produziu uma profusão de reivindicações autonômicas (Jujuy, Mendoza, Tarija, etc.). Em tal contexto, a junta reunida em Assunção proclamaria em 1811 sua lealdade ao Conselho de Regência na metrópole após repelir as tropas bonaerenses, criando um governo no Paraguai integralmente separado do antigo vice-reino. Os cabildos, 314 antigas repartições administrativas das localidades, “passam de imediato a converter-se em órgãos representativos do novo soberano, transformação preparada pela figura do Cabildo Aberto surgida nos últimos anos do regime colonial” (CHIARAMONTE, 2016: 110). A geografia política de províncias autônomas no Rio da Prata remete às previsões da Ordenanza de Intendentes de 1782, que definia a província como o território governado por uma intendência. Essa medida se justapunha à tradição hispânica de ampla jurisdição das cidades organizadas por seu cabildo. Em seu contexto, a instituição de intendências no interior pretendia não descentralizar a autoridade, mas sim o contrário, interiorizar o poder político imperial. A circunstância criada pelas abdicações reais de 1808 e pela formação das juntas metropolitanas, com base na reassunção da soberania pelos pueblos, servirá de gatilho para o movimento centrífugo e autonomizante das partes do antigo vice-reino. A partir de 1811, o movimento artiguista na Banda Oriental culmina e congrega esse imaginário confederal de unificação política pela vontade soberana de províncias livres. Como notou Chiaramonte (2016: 195), na linguagem política da década de 1810 há relativa sinonímia entre as palavras “estado” e “província”. A filosofia política das Instruções do Ano XIII (1813) de Artigas reaparecem nos textos constitucionais promulgados nas províncias a partir de 1819 (CHIARAMONTE, 2016: 131). Alinhadas aos interesses aristocráticos após a marginalização dos jacobinos, as forças de Buenos Aires conseguem destruir o levante artiguista, e, com ele, a utopia de inclusão rural de mestiços, guaranis, negros e pobres que integravam suas colunas. Por outro lado, o governo portenho fracassaria repetidamente em reconectar-se às receitas de Potosí nas expedições de Castelli (1811), Belgrano (1813) e Rondeau (1815). Mais do que isso, o expansionismo de Buenos Aires criaria animosidades também a sul, na fronteira delimitada pelo Rio Salado (hoje Salado do sul) com as tribos independentes da planície pampeana. Em abril de 1815, as tropas bonaerenses fazem uma incursão em território indígena para controlar o roubo de gado e as deserções. A imprevisibilidade da fronteira sul de Buenos Aires fez com que fossem numerosos os indígenas que não só resistiram ao assimilacionismo republicano, mas eventualmente se alinharam às forças realistas, como o célebre bando dos irmãos Pincheira (BERNAND, 2016: 64-67). Quando a decisiva expedição de San Martín parte para libertar o Chile dos espanhóis, 315 embora sem aprovação de Buenos Aires, sua passagem pelos Andes é avalada por uma assembleia de caciques pehuenques em 1816. Só em 1820 a província de Buenos Aires firmou um convênio com as tribos limítrofes para normalizar a fronteira no rio Salado, proibindo a transposição por fazendeiros e militares. A projeto constitucional de 1819 previa a igualdade jurídica entre indígenas e não-indígenas, o que por certo não se aplicava àqueles situados além dessa fronteira (BERNAND, 2016: 67-70; LOVEMAN: 2014: 79-80). De fato, a escalada militar havia destruído os estamentos coloniais e suas camadas subalternas haviam se descolado parcialmente em uma margem móvel e multiétnica da sociedade. Ora peões, ora soldados, ora contrabandistas, eram pessoas sem vínculos comunitários fortes e sem um estilo de vida camponês arraigado à terra. Após a derrota da Liga dos Povos Livres de Artigas em 1820, por ação combinada de portugueses, argentinos e desertores artiguistas, não havia espaço para sua desmobilização e reassentamento rural, mantendo-os à mercê de estancieiros e generais. Para além da indefinição ético-política da ordem pós-colonial, a conjunção crítica envolvia um estremecimento geral de hierarquias sociais sem oferecer alternativa imediata e efetiva. Gradualmente, a linha de pertencimento que se firma no contexto militarizado argentino será, pelo menos até a década de 1870, o serviço nas milícias e na Guarda Nacional (1853) como recíproca da cidadania política, em uma chave de disciplina social e pedagogia patriótica (MACÍAS & SÁBATO, 2013). Na segunda metade da década de 1810, a situação de soberania múltipla continental seria revertida em favor das independências. Embora a Espanha já não dispusesse de meios para reagrupar à força os retalhos de seu império, isso não levou, no outro extremo, à supremacia portenha no Rio da Prata. Em 1820, a tributação sobre o crescente influxo de importações já correspondia a 86% da arrecadação, o que já pesava desproporcionalmente sobre os bens de consumo popular (HALPERÍN DONGHI, 2005: 168-191). No entanto, o ciclo extrativo-coercitivo do Diretório sediado em Buenos Aires desmoronaria pela desproporção de seus compromissos militares: “é, então, o crescimento desmesurado dos gastos, antes que a fraqueza dos ingressos, o que empurra o Estado revolucionário ao colapso fiscal” (HALPERÍN DONGHI, 2005: 109). Nesse sentido, a queda da Liga artiguista e do Diretório revolucionário em 1820 pelas milícias do Litoral não só se encadeiam no tempo, mas conjuntamente estreitam 316 o horizonte de possibilidades aberto em 1810. Diminuído o risco da reconquista espanhola, o poder de Buenos Aires, em estiramento fiscal crônico, perde centralidade para as províncias, que o derrubam sob a bandeira federalista de sua autonomia natural na batalha de Cepeda (1820). Iniciar-se-ia então um ciclo de constitucionalização desses estados provinciais em repúblicas representativas, reconhecendo ou não, conforme o caso, a legitimidade futura de um poder federal superior (CHIARAMONTE, 2016: parte 2; TERNAVASIO, 2009: cap. 5). De 1819 em diante, diversas províncias promulgariam cartas magnas que regulariam sua reivindicação de autogoverno, assimilando balizas institucionais distintas do momento pactista liderado pelos cabildos na década de 1810. Até 1819, quando começa o ciclo constitucional, as províncias eram representadas por seu cabildo na forma tradicional de mandato imperativo empregado pelas cidades castelhanas nas Cortes de Castela (CHIARAMONTE, 2016: 260). Em geral, as constituições provinciais se pautaram por executivos unipessoais, legislativos unicamerais e uma base eleitoral relativamente ampla, calcada no sufrágio dos vizinhos (ALONSO & TERNAVASIO, 2011: 292). A começar por Buenos Aires em 1821, os cabildos rio-platenses seriam progressivamente extintos na década seguinte, sendo o último extinto em Jujuy em 1834, subsumidas às novas legislaturas provinciais. Em tal cenário, a encarniçada polêmica sobre a unificação dessas repúblicas, que dividiria unitários e federais no novo intento constitucionalista de 1824-1826, era sobretudo “um problema derivado da dimensão territorial da soberania, e não do questionamento do novo idioma constitucional” (ALONSO & TERNAVASIO, 2011: 290). Incapaz de impor a centralização política ao antigo vice-reino, o governo portenho volta-se ao hinterland da província, onde viceja a pecuária extensiva. Com efeito, por trás da turbulência da guerra, a pampa úmida passava por um processo de inserção acelerada na nova economia atlântica, de que o porto era o gargalo decisivo. Graças às exportações agropecuárias, o déficit comercial de Buenos Aires com o Reino Unido era menos acentuado que em outras repúblicas latino-americanas do período (PLATT, 1972: 33). A grande propriedade rural se convertia em um segmento de lucros extraordinários na economia local. 317 Essa condição econômica se associava a uma nova forma de encarar o governo da província. A partir do governo de Martín Rodríguez (1820-1824), delineia-se uma estratégia para reverter as medidas emergenciais do período de guerra, reduzindo o peso do gasto militar, controlando as emissões monetárias e abrindo novas frentes de ação governamental. Nesse período são criadas a universidade, a biblioteca e o museu de história natural, além de um programa de obras viárias. Antes usadas como garantia dos empréstimos emergenciais, as terras pertencentes ao governo deixaram de ser alienadas a particulares em 1822, sendo então cedidas somente por contratos de enfiteuses, com duração de 20 anos e aluguel de 8% de seu valor (GARAVAGLIA & GAUTREAU, 2011). Também em 1822, o sistema de crédito é reorganizado com a criação do Banco da Província. Com a criação dos primeiros órgãos especializados em agrimensura e cartografia, inicia-se o esforço cartográfico das terras da pampa através da composição dos informes submetidos pelos proprietários. Nessa conjuntura, a expansão fiscal do governo portenho está largamente ancorada no crescimento das importações: mesmo coletando 83,5% das receitas regulares do triênio 1822-1824, essa tributação não chegou a inibir o influxo de produtos importados, especialmente têxteis e cutelaria (PLATT, 1972: 17). A demanda por esses produtos era inflada pela expansão da comunidade britânica residente na capital, que salta de cerca de 120 indivíduos em 1810 para mais de 3 mil em 1824, número muito superior ao de outros portos latino-americanos como Valparaíso, Callao e Rio. O lastro aduaneiro permitia, por sua vez, a alavancagem de crédito, interna e externamente. Ao valer-se do controle sobre o gargalo aduaneiro, a província de Buenos Aires precipitava sua transição fiscal pós-independência, sustentando o projeto reformista pela distribuição do ônus fiscal entre as demais repúblicas provinciais (HALPERÍN DONGHI, 2005). A tensão política decorrente jaz no cerne da Era das Revoluções no Rio da Prata. O unitarismo portenho era informado por ideais de vanguarda ligados ao cultivo da ciência, ao cosmopolitismo letrado e à liberdade econômica, o que subsidiava um excepcionalismo civilizador com relação ao interior do país. A articulação de um horizonte de progresso econômico com a autorregulação de mercado e com o constitucionalismo liberal aparece nas páginas de periódicos emblemáticos do período, como La Abeja Argentina ou El Argos de Buenos Aires (ADELMAN, 2006: 368-372). Mais do que veículos de instrução pública, essas 318 publicações animavam um emergente debate intelectual e político que distinguia uma elite dirigente pós-revolucionária. A redução do gasto militar no triênio 1822-1824, auge das chamadas reformas rivadavianas, corroborava a expectativa pacificadora do comércio. A paz constitucional, a alta cultura e a ciência eram chaves de pertencimento da província ao círculo das nações ocidentais enquanto o charque e as peles asseguravam sua inserção nas novas cadeias de valor. Mais do que isso, encadeava-se pela primeira vez a expansão fiscal e o reformismo liberal imbuído de aplainar o terreno de expansão do segmento econômico internacionalizado, através de obras públicas, de mudanças legais e do uso da força. Não obstante, esse projeto de ordem é esgarçado ao limite de seu colapso entre 1825 e 1828. A guerra com o Brasil iniciada em 1825 pelo controle da Banda Oriental faz disparar novamente os gastos militares, o que se agrava pelo bloqueio dos portos de Buenos Aires e Montevidéu pela marinha brasileira. No Bacia do Prata, era a primeira vez que o estrangulamento armado do comércio portuário revelava seu extraordinário potencial de pressionar os governos dependentes das aduanas. Nos anos de guerra, as receitas aduaneiras sobre as importações despencaram para apenas 20% da arrecadação (HALPERIN DONGHI, 2005: 140-141). Em paralelo, a polarização entre unitários e federais no congresso constituinte de 1824 faz com que as províncias do Litoral e do interior se abstenham dos custos do esforço de guerra; pelo contrário, aproveitam-se da conjuntura para multiplicar as sublevações armadas e isolar o governo unitário de Buenos Aires. Privado de suas principais receitas e comprometido com gastos galopantes, o estado portenho lança mão da emissão de papel não-conversível. A inflação decorrente se manifesta pela dissociação entre o valor nominal e o valor real do papel-moeda em peso de prata: $1,69 em 1826, $3,32 em 1827 e $2,92 em 1828 (HALPERIN DONGHI, 2005: 143). O descontrole das emissões também compromete a rolagem da dívida externa contraída em Londres em 1824, que colapsa definitivamente com o terremoto financeiro mundial de 1826/1827. O Império Britânico realiza uma mediação do conflito em curso na Banda Oriental tendo em vista a urgência de reabrir os portos à navegação comercial e tentar normalizar o pagamento da dívida. A posição privilegiada de Buenos Aires para controlar e tributar a entrada de mercadorias pela Bacia do Prata acarretava, inegavelmente, uma pressão geopolítica. 319 A pressão vinda do Atlântico se entrelaçou com a oposição das províncias ao usufruto que a capital fazia de sua posição estratégica. A sobreposição entre guerra interestatal, disputa faccional e conflito social já havia aparecido muito claramente na crise de 1816, quando as forças luso-brasileiras invadiram o Uruguai para debelar a guerrilha artiguista. Em 1827, o projeto unitário portenho sucumbe sob a pressão da guerra, a despeito de sua associação com uma economia pampeana em expansão. A conjunção crítica de 1806-1827 certamente não determina o curso da história posterior. Permite discernir um ponto de não-retorno conforme as instituições precedentes já não podem ser recosturadas, e, ao mesmo tempo, armar o conjunto de vetores que balizam, por seu conflito ou sua afinidade, o processo de construção da ordem sobre os escombros das instituições precedentes. Nesse sentido, (1) a retroversão da soberania a repúblicas provinciais que tendem a constitucionalizar-se, (2) a abertura comercial controlada desde a capital, (3) a mobilidade da fronteira com as tribos indígenas autônomas, (4) a transição fiscal acelerada, (5) a militarização da vida política, (6) a reivindicação opaca de poder de Buenos Aires sobre o conjunto das Províncias Unidas e (7) a guerra interestatal como latência das reivindicações políticas concorrentes no Prata, para agrupar as balizas mais significativas, não podem ser literalmente somadas para decifrar a trajetória posterior. Uma vez em movimento, essas tendências interagem como em um campo de forças. Nesse sentido, a resultante desses vetores é empiricamente muito mais irregular do que uma acumulação progressiva de capacidades estatais ou organização política. Sem dúvida, a disrupção do reformismo centralista de Buenos Aires marca uma descontinuidade, mas não o retrocesso ou a barbárie. Mais do que isso, essa disrupção só ocorre porque geografias políticas alternativas existiam e inspiravam efetivamente práticas opostas ao que a elite bonaerense tinha como progresso. Antes de observar como esse campo de forças se desenvolve concretamente no tempo, convém deter-se no significado da posição periférica e pós-colonial durante essa conjunção crítica. Em termos da situação pós-colonial, a característica mais decisiva é que, ao contrário do que vimos no caso mexicano, o vice-reino do Prata constituía uma periferia no espaço imperial espanhol, uma região subsidiária à submetrópole instalada no Peru. É somente a partir das reformas bourbônicas que o poder político imperial vertebra uma cadeia de comando capaz de vincular as regiões interioranas. 320 Por essa menor densidade político-administrativa, a repercussão prática da retroversão da soberania após 1808 tendeu a engolfar as instituições municipais e provinciais em um mesmo movimento, combinando a constitucionalização de repúblicas provinciais com a supressão dos ayuntamientos. De forma geral, isso permitiu maior controle da atividade política e da representação por elites locais, que chefiavam as milícias. A evolução das províncias rio-platenses a um imaginário confederal, tributário dos EUA e de Artigas, ocorreu de forma gradual e experimental, adquirindo nitidez institucional só na década de 1820, quando a geografia política piramidal do império definitivamente desaparece. Em segundo lugar, essa posição relativamente periférica no espaço imperial espanhol esteve diretamente associada à menor intensidade dos embates corporativos na ordem política pós-colonial. A ofensiva revolucionária logra, entre 1810 e 1813, decretar o fim dos tribunais indígenas e do tributo de castas, o fim da importação de escravos e o “ventre livre”, a extinção dos títulos de nobreza, a abertura comercial, o rechaço aos símbolos imperiais (escudo do rei, efígie nas moedas, etc.), além de criar uma iconografia nacional (bandeira, hino) mesmo antes de oficializada a independência (1816). No momento posterior, a oposição ao projeto reformista liderado por Buenos Aires não adquire um perfil claramente corporativo nem reacionário, no sentido de restaurar o ordenamento estamental, ainda que as referências pactistas sejam correntes. Em certo sentido, a sociedade colonial pesava menos sobre a margem de manobra dos dirigentes revolucionários, para o que contribuiu, sem dúvida, os triunfos dos colonos portenhos contra as invasões inglesas. Por outro lado, é interessante observar que, mesmo em se tratando de sua ala radicalizada ou jacobina, esses dirigentes tiveram sua formação iluminista no âmbito do debate do mundo hispânico de finais do século XVIII, que interligava a metrópole aos centros de cultura letrada na América. Sem anular a repercussão de França e Inglaterra para a linguagem política rio-platense, é insofismável que a circulação de ideias era mais delicada que a importação de uma “Europa” indistinta para uma América modernizante, ou de uma Europa progressista contra um iberismo medievalista e impermeável à mudança. Ligada ao menor enraizamento das hierarquias coloniais, a preocupação da cúpula imperial em controlar a produção econômica era secundária, uma vez que o 321 Rio da Prata era uma região em geral deficitária. Em termos fiscais, portanto, a escalada militar atlântica não se expressa como crescente pressão extrativa ou exaustão política da arrecadação, como observamos no México, mas pela traumática interrupção dos situados oriundos de Potosí, que impele uma reorientação emergencial para fora da governança imperial. Uma das razões para a acelerada transição fiscal no Rio da Prata é sua desconexão dos circuitos imperiais que lhe sustentavam. Assim, as iniciativas de abertura comercial (1806, 1809 e 1810), a conversão da Caixa de Buenos Aires em tesouro independente (1810), o fracasso das expedições militares para reconquistar o Alto Peru (1811-1815) e, por fim, a substituição da Caixa pela Contadoria da Província (1820) se encadeiam para demarcar uma guinada crucial na base social do ciclo extrativo-coercitivo. Essa guinada foi magneticamente atraída pelas oportunidades de associação ao novo ciclo sistêmico de acumulação, que é a segunda parte da explicação para a acelerada transição fiscal pós-independência nas Províncias Unidas e no Uruguai. O significado da posição periférica tem como eixo fundamental a associação intensiva à hegemonia britânica. A força desse empuxo comercial não se explica unicamente pelo desígnio estratégico de elites políticas, mas incorpora certas variáveis circunstanciais que lhe escapam à alçada, como a chamada “loteria das commodities” (BULMER-THOMAS, 2003) e a conveniência logística dada pela geografia da região (PLATT, 1972). Nas primeiras décadas do século XIX, a entrada da pampa úmida nos circuitos mundiais de valor liderados pela industrialização britânica é um fator decisivo para a rápida transição para tributos aduaneiros uma vez abertos os portos do Prata. Como demonstrou a experiência bonaerense de 1820-1824, essa ancoragem fiscal permitia uma reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, com o governo canalizando recursos, ainda de forma incipiente, para impulsionar a constelação econômica ao redor do comércio exterior. Embora efêmero, o reformismo portenho regulamenta o mercado fundiário e favorece sua concentração, organiza um sistema de crédito, centraliza as instituições policial-judiciárias, cria a primeira instituição topográfica e pacifica momentaneamente as fronteiras agrícolas. Ao distribuir terras entre seus ilustres aliados, o ministro Rivadavia não se aliava à elite agroexportadora pampeana, mas fundamentalmente concorria a formá-la. 322 Não obstante, o triênio 1825-1827 permite observar que a própria continuidade dessa reprodução ampliada se apoiava sobre condições móveis, voláteis, contingentes. Em primeiro lugar, obviamente, porque dependia de represar o descontentamento das províncias extorquidas pelo controle portuário da capital. Em segundo, porque era uma expansão fiscal ainda frágil perante as exigências militares de seu contexto regional. Em outras palavras, era uma mobilização de capital e coerção eventualmente curta demais para os dissensos potenciais de sua projeção no tempo e no espaço. Embora houvesse condições para a reprodução ampliada do ciclo fiscal, não era claro que havia meios para proteger essas condições de sua disrupção violenta. Nas décadas seguintes, como veremos adiante, a tendência de vinculação intensiva à nova divisão internacional do trabalho, conforme se fortalece, incidiria sobre essa correlação de forças. Além da contraposição capital-províncias, o precoce e acelerado empuxo comercial tem duas consequências de maior duração para a construção da ordem pós-colonial nas Províncias Unidas. Em primeiro lugar, o caráter marcadamente pró-cíclico das finanças públicas. Assim como sinalizado na crise de 1825-1827, há uma exposição às flutuações da economia mundial que se intensifica na segunda metade do século XIX na mesma medida em que cresce o empuxo comercial externo e a circulação de capitais estrangeiros. Em particular, o emergente capitalismo agrário pampeano estabelece conexões privilegiadas com a economia britânica, cujos momentos de expansão são intercalados com breves recessões periódicas (1837, 1847, 1857 e 1866), seguidas de duas crises profundas (1873 e 1890) – sendo a últimas delas desencadeada na própria Argentina. Na primeira metade do século, a arrecadação aduaneira é também fortemente exposta ao bloqueio militar do porto por forças hostis, que, além de 1825-1827, se repetiria em 1838-1840 e em 1845-1848. A vulnerabilidade à flutuação econômica e ao sufocamento militar são contrafaces das extraordinárias oportunidades fiscais resultantes da inserção periférica pós-1806. A segunda consequência de maior duração do empuxo comercial é a produção de uma tendência forte de desencaixe social a partir da conjunção crítica 1806-1827. De um lado, essa pressão se manifesta na drástica desarticulação dos circuitos econômicos talhados no espaço imperial, expostos abruptamente à concorrência do capitalismo industrial. Com efeito, as importações atuam como vetores da mercantilização da vida econômica: testemunhos de época registram que os têxteis 323 ingleses, já em princípios do século, eram utilizados mesmo por pobres rurais da pampa úmida (PLATT, 1972: cap. 1). Essa permeabilidade às cadeias capitalistas de valor não era um fenômeno puramente econômico, já que produzia uma intrusão sobre a autossuficiência e a autonomia das províncias que se pretendiam soberanas. Na primeira metade do século, o recurso à impostos provinciais de circulação foi uma tentativa de represar esse efeito, contrapondo ao livre-cambismo portenho uma inclinação protecionista do interior. Essa circunstância fazia com que a vida política das localidades estivesse precocemente atrelada aos rumos da política bonaerense. É impossível entender a emergência de Juan Manuel de Rosas, de quem trataremos na seção seguinte, sem ter em mente esse anseio de autoproteção social, de um controle conservador sobre os efeitos disruptivos do livre comércio afunilado pelo porto de Buenos Aires. Ainda sobre a pressão de desencaixe exercida pela inserção intensiva na economia mundial, convém observar que o mundo rural não tinha um enraizamento forte. Diferentemente de outras regiões latino-americanas, “na pampa o avanço da economia de mercado não trouxe a destruição de antigas comunidades camponesas” (HORA, 2014: 35). A ausência dessas comunidades territorializadas alteraria a dinâmica de resistência social à proletarização após o turbilhão das independências. Ao invés de barganhar a autonomia de povoados, os trabalhadores rurais, relativamente móveis e escassos, manobravam a partir da abundância de terras de fronteira e da alternância com a atividade militar. A resistência territorializada foi imposta somente pelas tribos autônomas no sul, em sua maioria nômades. As estâncias pecuárias, que foram a ponta de lança da expansão agrícola exportadora, recorriam a esses trabalhadores semiflutuantes. Essa expansão, contudo, também encurtava a margem de manobra dos gaúchos da pampa frente à disciplina do mercado de trabalho. Com a indústria da lã na década de 1850, institui-se o primeiro setor baseado claramente no assalariamento, que a partir dali decolaria com a imigração europeia. A menor rigidez das hierarquias coloniais, além de reduzir os embates corporativos com a Igreja, fez com que o avanço da proletarização fosse relativamente menos conflitivo. Como dito, a conjunção crítica 1806-1827 não determina a direção da história política posterior, mas posiciona os vetores decisivos que interatuariam na agonística de construção da ordem pós-colonial. A transição de uma periferia defensiva do 324 império no Atlântico Sul para uma fronteira expansiva da nova divisão internacional do trabalho coloca no centro da disputa o controle fiscal sobre o comércio exterior. A retroversão da soberania na forma de repúblicas provinciais no Rio da Prata estabelece os termos do conflito sobre o desencaixe da política de seus contextos locais. E a militarização da sociedade sob a linguagem constitucional do liberalismo permite situar o movimento das linhas de inclusão e exclusão política, movimentos em que a cidadania e a nacionalidade são refratadas pelos imperativos de ordem. 9.2. A formação de um liberalismo hegemônico na Argentina (1810-1916) A supremacia de Juan Manuel de Rosas se afirma sobre os escombros do projeto centralista de Buenos Aires, engolfado pela polarização violenta que seguiu a convenção constitucional de 1824-1826 e as eleições de 1826-1827. Rejeitando a nomeação quatro vezes, obtém a concessão de poderes extraordinários pela legislatura de Buenos Aires em 1829. Sua ascendência sobre a política argentina representa um afunilamento da construção da ordem pós-colonial, encaixando a disputa política a mecanismos muito mais estritos de negociação e repressão. O trunfo de sua estabilidade foi justamente a ambiguidade com que transitava entre práticas confederais e centralistas, confeccionando progressivamente um regime de unanimidade política respaldado nas urnas e nas armas. O fio condutor de nossa análise será como o governo de Rosas, embora apelando ao imaginário federal de autonomia das províncias e a uma “estória de povo” criolla, pactista e interiorana, põe em movimento, para preservar sua supremacia política, engrenagens institucionais que minam as condições de possibilidade dessa mesma concepção de sociedade. Essas engrenagens têm relação direta com o comércio exterior, com o crédito e com a competição interestatal como pressão de centralização política nos bastidores do unanimismo rosista. Em primeiro lugar, Rosas representa um dique relativo à intrusão do comércio estrangeiro, com o código protecionista de 1835 e a interdição de navegação a embarcações estrangeiras nos rios interiores (PLATT, 1972: 76). Capitalizando sobre a oposição das províncias ao unitarismo portenho, esse protecionismo se prestava a controlar os efeitos sociais das sucessivas aberturas comerciais, modular a desorganização social que o mundo rural e manufatureiro sofria com a exposição à 325 economia atlântica através de Buenos Aires. “Homem do campo”, descreve um comissário francês em viagem pelo Rio da Prata, “Rosas foi de fato o chefe da reação do homem do campo contra a influência da cidade” (apud ANSALDI, 1984: 20). Sua antipatia com os estrangeiros, com os financistas e com a intelectualidade europeizada se encarna em uma espécie de patriotismo algo nostálgico da sociedade colonial. As altas tarifas e rigores aduaneiros substituíam a “proteção natural” conferida pelos custos de transporte físico em outras regiões latino-americanas, buscando resgatar os circuitos comerciais interiores do antigo vice-reino do Prata. O que demandava proteção, desse ponto de vista, era o modo de vida provinciano, rural e católico que a revolução chacoalhara. O método dessa proteção, ao reter impostos em Buenos Aires, fortalecia sua primazia na Confederação Argentina (Tabela 9.2.) Como seus antecessores, o governo de Rosas permaneceu amplamente dependente de receitas aduaneiras. No primeiro momento, seu governo manobra uma inflexão semelhante à do triênio 1822-1824, com um esforço de austeridade fiscal e controle sobre as emissões de papel-moeda, descritas pelo próprio Rosas como um “crime de lesa-pátria”. Por outro lado, verificam-se mudanças interessantes na seletividade política do gasto: primeiro, a elevação do orçamento dedicado à campanha (interior da província) por meio da compra de produtos locais e de salários; segundo, a manutenção, em período de paz, da estrutura miliciana que arregimentava a plebe rural ao estado rosista, contornando em parte o exército regular. No quinquênio 1830-1835, os gastos com soldos, instalações e manutenção militares mais que dobram os gastos não-militares, enquanto que, no último interregno de paz, entre 1822 e 1824, a diferença havia sido de apenas 17%. Já os salários não-militares destinados ao interior da província passam de 21% em 1822-1824 para 85% em 1835-1836, enquanto que as compras diretas, embora pequenas no orçamento geral, crescem, entre 1830 e 1835, quatro vezes no total e nove vezes no caso específico dos produtos vindos da campanha (HALPERÍN DONGHI, 2005). O deslocamento do centro de gravidade da capital para a província se expressava, assim, na fiscalidade. O governo rosista passa a bombear recursos da aduana para o interior. Mas o aceno ao latifúndio pecuário não se limitava ao orçamento regular, pois sua principal demanda, o avanço da fronteira agrícola na pampa, passava pelo emprego da força. Abandonando as referências assimilacionistas 326 por trás da igualdade jurídica oficializada em 1819, Rosas cinde a relação com os indígenas em termos políticos, organizando o “negócio pacífico dos índios” com as tribos amigas e a “guerra do deserto” (1832-1833) contra as inimigas, tratadas como bárbaras, selvagens e criminosas. O chamado “negócio pacífico” foi a aliança estabelecida com os pampas, os tehuelches e a maioria dos chefes ranqueles em que estes, instalando-se no interior da província, se comprometiam a enviar um contingente periódico para servir nas milícias em troca de doações de animais e rações, obtidos com os latifundiários da região (BERNAND, 2016: 149-151). Essa barganha interétnica tinha o efeito de fortalecer o papel dos caciques, colaborando para a verticalização da organização dessas tribos. Não obstante a aparente reciprocidade, a relação com as autoridades provinciais era claramente assimétrica, funcionando como uma forma menos violenta de subordinação às autoridades locais da província e, em última instância, ao governador. Por trás dessa conciliação fronteiriça, a estância agropecuária vai adentrando a sul e oeste no território de Buenos Aires. A prova mais clara desse caráter assimétrico foi a investida punitiva liderada por Rosas em 1833, conhecida inadequadamente como “guerra do deserto”. Incursionando a sul do Rio Salado até Bahía Blanca e Patagones, e dali para o interior, as tropas lideradas por Rosas obtiveram vitórias militares sucessivas do litoral atlântico à cordilheira. Além de fortalecer-se perante os constitucionalistas de Buenos Aires, que lhe pretendiam limitar os poderes extraordinários, a campanha permitiu agregar a base de apoio rural com uma vasta distribuição de terras entre os aliados do general. Como apontado por Roy Hora (2014), a ligação de Rosas com o latifúndio pampeano não pode ser tomada em abstrato, apagando a seletividade política com que discriminava entre os proprietários aliados e os dissidentes, estes últimos, em sua maioria, antigos liberais unitários. Valendo-se de uma retórica antielitista, instrumentalizada como perseguição à oposição, Rosas conduziu espionagem, expropriações e exílio contra determinados estancieiros bonaerenses. Ao destruir fortunas e incubar outras à sombra do estado, “o rosismo promoveu a renovação da elite proprietária, não a sua destruição” (HORA, 2014: 36). Por fim, o sustentáculo mais importante da ordem rosista nas décadas de 1830 e 1840 foi a tessitura de uma “política negociadora com os governadores baseada em redes epistolares, dádivas materiais e concertação de pactos” (ALONSO & 327 TERNAVASIO, 2011: 297). Esse sistema informal de atrelamento das lideranças regionais era inseparável da liderança pessoal de Rosas, da fiscalidade aduaneira e do controle direto sobre o rito eleitoral. Através dele, o privilégio portuário de Buenos Aires podia ser pontualmente redistribuído às províncias por estratégias compensatórias orientadas à unanimidade política. Ainda que sob a bandeira das autonomias provinciais, esse é o primeiro movimento consistente de englobar as Províncias Unidas em um mesmo ciclo extrativo-coercitivo tendo Buenos Aires no centro. Há uma ascendência política e fiscal sem correspondência formal imediata; ou ainda, sob a aparente isonomia de repúblicas soberanas se descola uma situação irremediavelmente assimétrica entre elas (Tabela 9.2). Na ausência de aparato de governo, esse controle informal sobre as bases regionais de dissidência depende da afiliação dos governadores, daí o zelo rosista com os procedimentos eleitorais. A farta troca de correspondências de Rosas com seus aliados e subordinados permite rastrear as meticulosas recomendações para as diferentes etapas das eleições, a fim de assegurar os resultados esperados (TERNAVASIO, 1999; POSADA-CARBÓ, 2000). O controle autoritário sobre o processo eleitoral e seus resultados não invalida que “o sufrágio segue sendo o principal elemento de legitimação do poder político” (TERNAVASIO, 1999: 140). A neutralização da dissidência se apropria, de forma conservadora, do imaginário pactista das eleições como ritual de expressão do consenso na comunidade, e não de litígio faccional propriamente dito. No referendo convocado pelo próprio Rosas em 1835, que o reempossa com poderes extraordinários, os votos favoráveis somam 9316 e os contrários, apenas quatro. A exclusão política e o estado de exceção, e sua linguagem correspondente, são recortadas mais pela divisão prática entre amigos e inimigos do que por uma estratificação passível de se traduzir legal ou sociologicamente. Observando retrospectivamente a mecânica das crises da Confederação, é possível notar situações análogas às que encilharam a crise de 1825-1827. Novamente interatuam bloqueio externo do porto, a paralisia fiscal, o descontrole sobre as emissões de papel-moeda, a rebelião armada de base provincial e a competição militar regional. A contrariedade das grandes potências à guinada protecionista de 1835 extrapolou-se como violação de soberania no outono de 1838, quando a marinha 328 francesa, por ocasião de uma série de pequenas rixas com o governo portenho, fecha os portos de Buenos Aires e Montevidéu. O efeito sobre as finanças públicas argentinas é devastador. A rigor, o governo já havia abandonado a austeridade monetária por força de seus gastos correntes, mas o litígio internacional e o bloqueio subsequente criaram uma circunstância propícia para descarrilhar completamente as emissões. Entre 1837 e 1840, são impressos 36 milhões de pesos, quase três vezes a base monetária existente até então (HALPERÍN DONGHI, 2005: 196). Durante o bloqueio, a proporção da arrecadação obtida com as aduanas chega a um mínimo histórico de apenas 26%. Diretamente afetados pela paralisia do comércio exterior, os estancieiros no sul da província de Buenos Aires se sublevam contra Rosas durante o bloqueio, em um movimento conhecido como os Libres del sur (1837-1840). Nas províncias do Litoral, o desenvolvimento de uma economia agropecuária extensiva, similar à de Buenos Aires, fermentou outro movimento armado contra Rosas em 1838, lançado pelo governador de Corrientes. A expansão da fronteira agrícola na pampa úmida atraía essas províncias para o empuxo comercial atlântico e, consequentemente, à oposição ao controle sobre a circulação exercido pela aduana de Buenos Aires. Em tal contexto adverso, o estado bonaerense mobilizaria uma economia de guerra sob a retórica de emergência patriótica. Com a reversão do bloqueio em 1840, salvo no limiar do colapso, Rosas acumula vitórias militares internas e um poder pessoal sem precedentes. A partir de 1840, cria-se uma economia de guerra permanente, conforme o clássico estudo de Tulio Halperín Donghi (2005). Com a abundância de meio circulante, os exportadores são beneficiados pela desvalorização cambial em um contexto internacional já favorável. Enquanto isso, a inflação afeta sobretudo os setores com renda nominal fixa, como os funcionários públicos, e aqueles cuja pauta de consumo era mais dependente das importações, como as classes médias urbanas. Historicamente sem projeção política, esses setores passariam a vocalizar oposição ao militarismo de Rosas. A oposição decisiva, contudo, viria do federalismo do Litoral, sublevado em 1851 sob liderança de Urquiza. Mesmo com a agropecuária comercial em expansão na pampa, o ciclo extrativo-coercitivo de Buenos Aires é novamente travado diante das diversas frentes de dissenso: para além dos federais de Entre Ríos e Corrientes, a 329 aliança anti-Rosas agrega os unitários portenhos, as forças armadas brasileiras e os colorados uruguaios, já vencedores na guerra civil. O porto havia sido novamente bloqueado em abril de 1845 pelas marinhas de Inglaterra e França, com consequências para a fiscalidade da província semelhantes às de 1838-1840, ainda que menos acentuadas162. O bloqueio novamente afetava a economia do Litoral, refém das vicissitudes do governo portenho. A competição militar regional desferiria o golpe último no domínio rosista, deslocando o eixo do conflito para o heterogêneo grupo de seus opositores. O projeto de Rosas não sucumbiu às exigências funcionais do processo de modernização, da acumulação capitalista ou a uma teleologia democrática. De certa forma, sua fraqueza era compatibilizar ambições políticas muito discrepantes, o que fora justamente sua força em meio à guerra civil dos anos 1820. Seus excedentes fiscais dependiam do controle do trânsito portuário, o que o envolvia nos rumos da política da Banda Oriental. A prerrogativa de preservar os circuitos econômicos do interior implicava um protecionismo que não só conflitava com marinhas de guerra mais poderosas no Atlântico, mas foi também aglutinando a oposição por parte dos estancieiros do Litoral e da província. A mobilização militar exigia uma centralização política que, na falta de respaldo constitucional ou monárquico, precisava ser tecida informalmente pela força e pela fraude, pela rotinização de práticas autoritárias sob a insígnia da emergência. Essa centralização informal do poder decisório no governo portenho, alimentada, por sua vez, pela desproporção fiscal, corroía subterraneamente o imaginário geopolítico por trás do federalismo rio-platense, que projetava um conjunto de repúblicas provinciais soberanas, livres e unidas por tênues obrigações de defesa comum. Esses impasses não foram subitamente dissolvidos com a deposição de Rosas; pelo contrário, tornaram-se mais evidentes na ausência da polarização personalista que marcara a política em seu regime. Sabidamente, a província de Buenos Aires se afasta da confederação pela outorga, no acordo de San Nicolás (1852), de poderes discricionários temporários a Urquiza e de representação paritária das províncias, independente de população e renda, na constituinte (OSZLAK, 2015: cap. 2). O As consequências foram menos acentuadas porque, no bloqueio anglo-francês de 1840, o porto de Montevidéu não foi afetado, de modo que o contrabando entre as duas margens do Prata aliviava o que, entre 1838 e 1840, fora uma interdição quase total. 162 330 Partido Liberal (ex-Unitário) de Buenos Aires se divide pela aparição de setores radicalizados opostos a qualquer forma de integração nacional. A autoexclusão de Buenos Aires da nova constituição em 1853, que previa a nacionalização da aduana, torna o impasse fiscal e militar ainda mais pulsante: enquanto as receitas de Buenos Aires superam o conjunto das demais províncias, a confederação se mostra cronicamente deficitária; com as províncias em crise, a força militar da União federal permanece vulnerável, largamente dependente das tropas de Entre Ríos sob Urquiza. Os intentos de centralizar a arrecadação e de estabelecer um novo sistema bancário na Confederação não seriam bem-sucedidos. Tendo conseguido liberalizar o comércio interprovincial, o novo governo acaba por retirar as receitas aduaneiras dos entes federados sem ter meios de compensá-los, enquanto a principal aduana permanecesse separada do país (Tabela 9.4). Sem condições para apoiar seu projeto de “organização nacional” em uma reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, que permitisse distribuir bônus em escala federal, Urquiza precisa se apoiar na aliança direta com os governadores e no respeito às autonomias provinciais – o que, dado o estado de coisas, significava deixá-las à míngua. Era evidente que havia uma rota de colisão nítida no impasse institucional de 1853 (GARAVAGLIA, 2014). O desenho das reformas liberais condensadas na Constituição demandava considerável densidade administrativa para serem levadas a cabo. A navegação dos rios interiores, a unificação monetária, a garantia processual de direitos, o sistema de correios, um sistema educacional laico, a titulação e adjudicação da propriedade privada e mesmo o alento à imigração europeia, impensável no cenário pré-1852, exigiam uma considerável margem de manobra fiscal e política, então inexistente. Por outro lado, o crescimento das exportações primárias, a partir da década de 1850, adquire nova escala (Tabela 6.3). Em 1857, o governo portenho assume e renegocia a moratória da dívida de julho de 1827 com o Baring Brothers de Londres, o que reabre o influxo de capital estrangeiro. Concomitantemente, há uma reorganização do mercado de terras da província através da Lei de Arrendamento de Terras Públicas (1857), imbuída do duplo propósito de povoar e medir o interior da província (GARAVAGLIA & GAUTREAU, 2011). Ainda em 1857, é feita a primeira concessão de linha ferroviária em Buenos Aires. Como estado independente, o novo governo portenho enganchava-se no empuxo comercial para adentrar seu controle 331 sobre o território e alavancar seu ciclo fiscal, deslanchando as forças de desenraizamento social que haviam sido politicamente represadas nas décadas rosistas. Com a crescente pressão federal sobre o secessionismo bonaerense, a saída para o impasse institucional atinge a via militar entre 1859 e 1861, ainda que sem uma vitória acachapante para nenhum dos lados. Do impasse atinge-se um compromisso de reintegração de Buenos Aires à federação: mantendo controle sobre a aduana e sobre seu exército, a província irredenta seria então obrigada a subsidiar a federação com 1,5 milhão de pesos anualmente, conforme o convênio complementar assinado em junho de 1860. Ao assegurar assim a viabilidade financeira das províncias, inverte-se o cenário que falira a Confederação, quando se esperava que as províncias aportassem regularmente ao Tesouro Nacional, compromisso que em geral se evadiam de honrar. Com Mitre como primeiro governante constitucional da federação unificada, de 1862 a 1868, lança-se uma ofensiva política em Buenos Aires contra os setores que, desde 1853, rejeitavam arcar com qualquer custo compensatório da unificação política (posteriormente identificados como “autonomistas” portenhos). O triunfo de um liberalismo em âmbito nacional estava lastreado na premissa de que o papel do artifício político não seria modular as consequências da abertura econômica para a sociedade, mas sim reorganizar a sociedade para desobstruir essa abertura, para potencializar a inserção periférica na economia mundial. Resumindo algo do consenso reinante, dizia Sarmiento que “nós não somos nem industriais nem navegadores, então, nos séculos por vir, a Europa vai continuar nos provendo com manufaturas em troca de nossos produtos primários; e ambos iremos lucrar com essa troca” (apud SALVATORE, 1999: 34). Assim, o sistema bancário, a dívida pública e a moeda corrente de Buenos Aires seriam nacionalizados na década de 1860 (OSZLAK, 2015: cap. 3). Durante a primeira metade do século, prevaleceu nas Províncias Unidas duas zonas monetárias relativamente independentes: uma com papel moeda não-conversível, somente em Buenos Aires, e outra, o restante do país, em que o meio circulante se limitava aos pesos de prata metálica, oriundos sobretudo dos Andes (MARICHAL, 2008). Como vimos, a circulação de moeda não-lastreada conferiu margem de manobra decisiva ao governo de Rosas, especialmente durante os bloqueios marítimos. 332 A unificação do sistema monetário no conjunto da república tem efeito direto sobre a elasticidade da dívida pública. Ainda que a arrecadação fiscal estivesse crescendo pelo empuxo comercial, ela ainda estava muito aquém das exigências abruptamente elevadas pela eclosão de dezenas de revoltas provinciais e, em 1864, da Guerra do Paraguai. O ímpeto centralizador da década de 1860 não seria rompido pela oposição armada graças às novas fronteiras abertas ao endividamento público. Ao contrário, por trás dos déficits fiscais nominais ocorre uma expansão do peso social do estado. Como mostra a tabela 9.4, a dívida pública de longo prazo dispara, fazendo com que, em 1871, a dívida total seja 6,5 vezes a arrecadação regular. Com efeito, durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), os gastos militares e o pagamento do serviço da dívida flutuam entre 71% e 87% de todo o gasto do governo. Ora, lembrando uma máxima de Charles Tilly, “se o governo e seus agentes podem pegar empréstimos, eles podem separar o ritmo de seus gastos do de suas receitas, e gastar em antecipação à receita” (TILLY, 1990: 85). Essa elasticidade permite que a pressão competitiva do subsistema interestatal do Prata produza uma expansão e não um colapso; desse ponto de vista, a guerra tem um papel decisivo na propulsão do ciclo extrativo-coercitivo na Argentina unificada. Mas isso não equivale à “guerra” abstrata, modelada como um fator causal uniforme. A guerra, nessa conjuntura particular, faz pressão sobre uma base expansível e elástica: há crédito disponível e sua rolagem pode ser controlada a baixo custo, há uma base produtiva local que pode responder ao estímulo logístico da guerra, bem como aproveitar-se dos mercados abertos com a reconstrução paraguaia; e há, por fim, uma arrecadação regular confiável, que pode ser elevada sem graves dissensos. O comércio exterior argentino crescia no empuxo da conjuntura liberalização mundial. Não menos importante, trata-se de uma vitória militar indiscutível, o que, como ressalvou Sabine Kurtenbach (2011), não pode ser menosprezado na avaliação das consequências institucionais da guerra. A arrecadação total do estado argentino dá um salto, entre 1864 e 1867, de 71% chegando ao patamar de 12 milhões de pesos, continuando a crescer mesmo com o fim da guerra (Tabela 9.5). Enquanto isso, os gastos totais do estado passam de cerca de 7 milhões em 1864 para 14 milhões em 1867, chegando mesmo a 21 milhões de 333 pesos em 1871163 (Tabela 9.5). As forças armadas regulares, cujo contingente vinha sendo enxugado desde a independência, arranca de aproximadamente 6 mil antes da guerra para 25 mil soldados em 1866. Explicando essa mobilização ao Congresso da Nação em 1866, o vice-presidente Marcos Paz argumentou que “armar e equipar um exército de 25 mil homens, prover sua subsistência e comodidades (...) era uma obra que além de ser sobremaneira custosa para o Tesouro, requeria toda a atividade, a energia e o zelo da administração” (apud OSZLAK, 2015: 107). Com o esforço de guerra, ao mesmo tempo contra as províncias insurretas e contra o Paraguai, consolida-se irreversivelmente a transição para um perfil de confrontação “vertical” com o governo federal sobreposto às províncias, em contraste com a situação de beligerância “horizontal” conformada na década de 1820 (OSZLAK, 2015: cap. 3 e 4). Entre 1862 e 1868, ocorrem 107 revoluções e 90 combates em nome da autonomia provincial, no qual sobressai a superioridade técnica e numérica do exército nacional. Após a Guerra do Paraguai, a disputa faccional argentina se desconecta definitivamente da geopolítica do Prata, isto é, perde seu potencial de internacionalização. É somente nas décadas de 1860 e 1870, aliás, que “argentino”164 adquire uso corrente como designação do conjunto dos habitantes da república em lugar dos gentílicos regionais (MYERS, 2008: 181-182). Mas o acesso ao crédito nessa situação decisiva não se explica unicamente pela expansão capitalista na pampa úmida ou pela unificação financeira da República. Pelo lado da oferta, havia uma abundância de liquidez nos anos 1860, resultado da acumulação sistêmica deslanchada a partir de 1846 sob liderança britânica; essa abundância faria com que mesmo mercados não-convencionais para a época, como a Embora usando as mesmas fontes primárias, as Memórias do Ministério da Fazenda, Juan Carlos Garavaglia (2016) apresenta dados ligeiramente diferentes de Oscar Oszlak (2015) para o gasto público total em todos os anos depois de 1864. O mesmo não ocorre para os dados apresentados sobre a receita nos mesmo anos. Não pude averiguar a razão da discrepância, talvez causada pela correção monetária, mas optei por usar os dados de Oszlak, que detalha minuciosamente a composição desses gastos em seus anexos (OSZLAK, 2015: 280-318). Além disso, mesmo sistematicamente mais baixos que o apresentado por Garavaglia (2016), eles não deixam dúvida da abrupta distensão do orçamento durante a guerra do Paraguai. A título de comparação, para o ano de 1871, Garavaglia (2016) registra um gasto total de aproximadamente 40 milhões de pesos fortes, quase o dobro dos 21 milhões citados por Oszlak. 163 Jorge Myers (2008) alerta para a importância do sistema educacional na consolidação dessa mudança. É interessante constatar, em seu respaldo, a interiorização do Ministério de Justiça, Culto e Instrução Pública. Usando os dados de 1876 fornecidos por Oszlak (2015: 127), verifica-se que de 12,8 mil funcionários públicos federais, 1.454 servem a esse ministério, dos quais 1.329 estão alocados fora da cidade de Buenos Aires. Ou seja, mais de 90% dos funcionários atuavam fora da capital. 164 334 América Latina de forma geral, tivesse acesso a capital relativamente barato. Findas as exigências da guerra em 1870, esse influxo de capital não cessaria. No governo de Sarmiento (1868-1874), seria agenciada pelo estado a imbricação entre capital estrangeiro e ferrovias: dois empréstimos (1870, 1873) seriam contraídos em Londres pela Província de Buenos Aires; um, de grande valor, pelo governo federal (1871), e outros dois, de menor monta, por províncias do litoral (Entre Ríos, 1872; Santa Fe, 1874)165. Comandada pela geografia das exportações, a malha ferroviária argentina passa da virtual inexistência nos anos 1860 para mais de 700km em 1870, saltando daí para 9.254 km (1890) e 31.859 km de extensão em 1910 (Tabela 6.5). O endividamento externo que permitira essa alavancagem extrativo-coercitiva no período 1857-1873 seria um flanco vulnerável com a crise financeira internacional de 1873-1876. Desde a conjunção crítica de 1810-1827, observamos como a associação intensiva com o novo ciclo de acumulação produzia um forte empuxo fiscal por meio das aduanas, mas que esse empuxo era vulnerável à disrupção forçada (pelo bloqueio do porto) e à oscilação econômica mundial. O gasto público se torna pró-cíclico não só porque as receitas acompanham a expansão do comércio internacional, mas também a euforia de crédito para a periferia segue os passos dessa expansão (MARICHAL, 1989). Em 1873, a Argentina é uma das periferias mais severamente atingidas pela crise financeira internacional: de um lado, há uma quebra da ascendente de arrecadação já que cerca de 95% dos recursos provinham de tributos sobre importações e exportações. Reduzidas à metade, as receitas governamentais tomariam seis anos só para retomar o patamar de 1873. De outro, o súbito ressecamento do mercado internacional de capitais colocou enormes dificuldades para a rolagem da dívida acumulada nos anos anteriores; para evitar a moratória, os governos argentinos na década de 1870 optam por árduos sacrifícios orçamentários, girando ainda mais sua seletividade fiscal para atender o capital estrangeiro (FILOMENO, 2006: 69-74). Nas assiduamente lembradas palavras do presidente Avellaneda, discursando no Congresso da Nação em 1876, a austeridade para honrar a dívida seria tal que se pouparia mesmo sobre “a fome e a sede dos argentinos” (apud FILOMENO, 2006: Para um panorama da expansão do crédito na América Latina no período 1850-1873, ver Marichal (1989: cap. 3), que discrimina, em seus anexos, todos os empréstimos internacionais por data, credor, devedor, valor do principal e juros acordados. 165 335 73). Com o enxugamento do comércio exterior e do gasto público, havia uma irradiação social da crise, com desemprego, impostos sobre o consumo e redução salarial em todos os setores. A sociedade argentina, fortemente desenraizada nas décadas anteriores pelo roldão do mercado e da guerra, estava notavelmente exposta na crise aos efeitos pró-cíclicos da intervenção de estado, o que se tornaria ainda mais agudo na crise de 1890-1891. Atravessada pela crise econômica e por suspeitas de fraude, as eleições de 1874 revelam uma derrota do centralismo liderado por Mitre, que inicia uma sublevação armada contra o presidente eleito Nicolás Avellaneda. Alguns meses depois de iniciada, a rebelião seria debelada pelo Exército Nacional com apoio de 60 mil milicianos da Guarda Nacional recrutados em diversas partes do país (OSZLAK, 2015: 108). Com as derrotas militares de 1874 e 1880, a corrente nacional-liberal de Mitre é decididamente deslocada pelo Partido Autonomista Nacional (PAN). Por decisão de Avellaneda, a cidade de Buenos Aires é finalmente federalizada em 1880 como previa a constituição de 1853. O levante de 1880 contra a federalização é o último episódio marcante de rebelião armada em nome da autonomia provincial do “longo século XIX” argentino. O movimento é amassado por um exército nacional profissionalizado e com larga superioridade técnica, organizado com uma logística moderna de ferrovias e telégrafos. Mais do que a derrota da província de Buenos Aires, os eventos de 1880 representaram um duro golpe à tradição cívica da “cidadania em armas”, que remonta pelo menos à expulsão dos ingleses em 1806 e 1807 (SÁBATO, 1999). Do ponto de vista legal, a exigência de participar nas milícias como contrapartida dos direitos políticos foi suprimida na reforma eleitoral de 1877. Nesse sentido, estava em curso um deslizamento das linhas de inclusão e exclusão política. Induzida pela própria militarização da sociedade desde 1776, a reciprocidade entre a cidadania e a milícia atingia, em princípio, a todos os homens em idade apta. A isonomia era refratada pela hierarquia militar: os chefes dos corpos milicianos correspondiam geralmente às elites políticas locais, que, controlando o recrutamento e alistamento de soldados, controlavam indiretamente as eleições. Após o terremoto social da Era das Revoluções, a mobilização política dos subalternos foi canalizada majoritariamente para milícias forte cultura cívica e republicana, mas que 336 eles próprios não controlavam diretamente. Ainda assim, estabelecia-se um contato imediato dos chefes locais com os anseios de seus subordinados. Com a dissolução desse vínculo nos anos 1870, o movimento de coligação interprovincial de elites, como a Liga dos Governadores (1870) que respalda a candidatura de Avellaneda, tem como contrapartida o desligamento dos setores plebeus da vida política nacional, um movimento prático nas linhas de pertencimento que ficou identificado pela expressão “oligarquia” (ANSALDI, 2017). Sem depender da mobilização regional para decidir suas querelas, os líderes abandonam os arranjos de compensação, carisma e convencimento por trás milícias voluntárias, priorizando uma barganha de outra natureza, que transcorre entre “notáveis” no plano nacional (CATERINA, 2011). “Ausentes os mecanismos de alternância, raquíticos os espaços de discussão pública mais ampla”, resume Romero sobre as décadas do PAN no poder, “os conflitos se negociavam em círculos reduzidos, entre a Casa Rosada e o Círculo de Armas, a redação de um jornal e os corredores do Congresso” (ROMERO, 2016: 30). Embebido nas ideias dominantes de seu tempo, esse enrijecimento das linhas de pertencimento político carrega forte componente racial, cujo ponto extremo foi a solução militar e genocida contra os povos patagônicos a partir de 1879. Caduco o republicanismo revolucionário da Junta de 1810 e rechaçada a negociação armada dos tempos de Rosas, a campanha de extermínio colocava então praticamente toda a população nativa no campo do estado de exceção, de suspensão das referências liberais da constituição vigente. Os interesses do latifúndio exportador, aglutinados em 1866 na Sociedade Rural Argentina, respaldavam a guerra como expansão da fronteira agrícola, já que no rastro dos exércitos restava a propriedade privada. Um neoinstitucionalista como Dye (2008) prefere concluir que, graças ao ingrediente militar, a expansão territorial argentina foi comparativamente “mais efetiva por uma definição inicial unívoca dos direitos formais de propriedade” (DYE, 2008: 204). O que dissemos até aqui na tese nos permite olhar por um outro prisma: a conversão da natureza em mercadoria “terra” – mensurada uniformemente e titulada conforme a lei – significa a instituição de direitos por meio do não-direito, do estado de exceção, da decisão política que circunscreve os limites sociais da proteção e da ameaça. Pela Lei Orgânica de Territórios Nacionais (1884), a maior parte dos territórios indígenas ocupados são postos sob a autoridade do governo federal, e 337 medidas de exceção são previstas para disciplinar os nativos sobreviventes e regrar a colonização166 (BERNAND, 2016). No censo de 1914, optou-se por omitir qualquer classificação racial sob a alegação de que “felizmente na Argentina não há razão para preocupação; aqui a raça é completamente branca” (apud LOVEMAN, 2014: 193). Assim, forma-se uma convergência entre o controle político da violência e o dinamismo da inserção periférica na acumulação capitalista, por meio do aplainamento das condições de expansão do setor internacionalizado da economia. Esse é o encaixe decisivo por trás da reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo que vai se firmando, com oscilações conjunturas, nas décadas de 1860 e 1870. Essa ampliação não depende simplesmente do estímulo externo, do crescimento do volume ou do preço das exportações; ela se converte em um programa de reforma social, em que a seletividade fiscal e coercitiva se presta a fabricar as condições da acumulação capitalista. A rede ferroviária, o mercado de terras, a imigração estrangeira, o código civil de Veléz Sarsfield (1869), o sistema nacional correios e telégrafos são nós de uma malha infinitesimal de ativismo estatal que alimenta, dilata, alarga os segmentos capitalistas da vida econômica e, com eles, a base fiscal do estado. Antes circunscrita à província portuária, a inserção intensiva na divisão internacional do trabalho agora dita o ritmo do ciclo extrativo-coercitivo em escala nacional, uma vez removidas as barreiras internas à circulação e esconjurado o fantasma do bloqueio militar do porto. Com a economia aberta em um momento de expansão sistêmica do comércio mundial, a tributação sobre as importações é o diapasão das receitas regulares, enquanto que as exportações primárias regulam a capacidade de importar; como liga elástica entre extração e gasto, o endividamento público depende, em última instância, da robustez do comércio internacional. O gasto público, por sua vez, propulsiona as condições de acumulação capitalista ao alavancar a mercantilização social, capilarizando a presença de estado no interior (OSZLAK, 2015: cap. 4). Como foi bem observado por Oszlak (2015), tratava-se de um mecanismo com efeitos claramente regressivos, na medida em que onerava desproporcionalmente as pessoas que dependiam de bens de consumo importados. Essas concentravam-se A lei estabelecia a administração federal direta nas seguintes zonas: Terra do Fogo, Chaco, Patagônia, Pampa e Misiones, com o intuito de aumentar o controle e a colonização. Só em 1950 essa situação é revista e esses “territórios nacionais” adquirem a condição de província. 166 338 acima de tudo nas cidades e dispunham de escassas ferramentas associativas para contestar politicamente o fardo fiscal, que ademais era cobrado de forma indireta. Em seu levantamento, a tributação sobre itens de consumo popular oscilou em torno de 30% de todas as receitas ordinárias do governo federal nas últimas três décadas do século XIX (OSZLAK, 2015: 246). A queda dessa proporção no começo do século XX reflete a redução do peso desses itens na pauta de importação conforme uma base produtiva nacional passa a atender o mercado de bens de consumo. Ainda assim, o valor absoluto de impostos de importação por habitante, já elevado para os parâmetros internacionais da época, cresce consistentemente nos anos pré-Primeira Guerra (OSZLAK, 2015: 245). Nesse sentido, além de pró-cíclico, o ciclo fiscal tinha um viés elitista em sua seletividade prática. Na outra ponta, os excedentes fiscais permitiram ao Partido Autonomista Nacional reconstituir uma rede de transferências, prebendas e prêmios que lhe granjeava sustentação política junto às elites regionais. Ao contrário da imagem convencional de um estado controlado pelo latifúndio pampeano em seu benefício, a agregação de apoio dos governadores do interior funcionava, antes de tudo, como contrapeso ao domínio econômico dos grandes proprietários rurais de Buenos Aires167 (HORA, 2014). Por trás do apaziguamento dos conflitos inter-regionais não está simplesmente o fortalecimento do exército nacional, mas uma política de interiorização de bônus pelo governo federal na forma de salários, subvenções, obras públicas e política educacional: “o gasto estatal nunca beneficiou tanto às regiões do interior atrasado como na etapa 1880-1916, particularmente na primeira metade desse período” (HORA, 2014: 39). Após décadas de litígio sobre a posição privilegiada de Buenos Aires, a federalização da capital institucionaliza o manuseio dos excedentes fiscais aduaneiros para lastrear uma aliança inter-regional de elites, que consolidam a nacionalização da política institucional sob a hegemonia de um só partido. Em termos de processos mais amplos, portanto, a estabilidade sob o Partido Autonomista Nacional (1880-1916) estava apoiada na aceleração da inserção Como pontuou Roy Hora, “o crescimento econômico contribuiu a atenuar as dissidências políticas e os questionamentos à elite governante, que desde 1880 encontrou muito mais espaço para promover seus projetos de desenvolvimentismo autoritário. Do ponto de vista político, no entanto, o núcleo fundamental, o núcleo fundamental dos apoios à coalizão governante não foi recrutado entre a elite econômica pampeana, mas provinham das mais pobres oligarquias do interior. A partir da presidência de Roca (1880-1886), esses grupos passaram a integrar o núcleo dos quadros estatais. Ao expandir seus apoios, o Estado se tornava mais nacional, e desse modo atenuava sua dependência da base política portenha que o havia constrito no passado” (HORA, 2014: 38-39). 167 339 periférica na economia mundial, na expansão fiscal e militar do estado central e no estreitamento dos atores e práticas admitidos na arena política. Reduzindo a escala, essa estabilidade foi tecida por inúmeros artifícios de repressão social, controle judiciário e eleitoral, além de laços familiares, culturais, partidários e clientelistas que afiliavam as elites dirigentes da capital e do interior. O gasto com a própria máquina administrativa (especialmente salários e aposentadorias) crescem consistentemente no período 1880-1916 não só em termos absolutos mas também proporcionais. Há, ao fim e ao cabo, uma acomodação conservadora do processo de desencaixe da vida política de seus contextos locais, processo esse que se acelerara em meados do século e minara a geografia política confederal forjada na Era das Revoluções. Em certo sentido, os elementos de conflito por trás da construção da ordem “longo século XIX” perdem dinamismo pela fusão gradual entre liberalismo e conservadorismo, pela neutralização da fricção entre imaginários centralistas e confederais. Os motores de disputa política vão se engessando em uma concepção cada vez mais homogênea e rotinizada de ordem vigente. No limite, a oposição que o PAN tem dificuldade crescente de administrar não tem plataforma regional de mobilização, mas se organiza sobretudo nas cidades entre as camadas médias e populares contra as quais o partido dirigente blindara o sistema político. Esses novos horizontes de engajamento político acumulariam força nas frestas do domínio autonomista-nacional para eclodir no centro da cena no século XX. 9.3. Conjunção crítica II (1912-1946): os descamisados na política nacional Ao colocar as engrenagens legislativas e administrativas para propulsionar uma sociedade de mercado, o estado federal concorre a um movimento de desenraizamento social que foi particularmente intenso na Argentina por dois motivos: de um lado, a força de desencaixe era grande pela associação especial à hegemonia britânica, cuja força dinâmica era o empuxo comercial; de outro, a destruição prematura das resistências populares e territorializadas à proletarização. Sem laços corporativos nem comunidades camponesas fortes, e frequentemente deslocada pelo vai-e-vem da atividade militar, a população era ali particularmente exposta à mercantilização de sua vida econômica. 340 Esse quadro se reforça pela injeção demográfica extraordinária resultante da imigração europeia, inicialmente subvencionada e apoiada pelo estado, depois com dinâmica própria. Entre 1870 e 1915, a Argentina recebeu 7 milhões de imigrantes, a maior cifra do mundo em termos proporcionais, ainda que com uma alta taxa de saída (58%). Mesmo com essa enxurrada de recém-chegados no porto, a fatia de imigrantes internos na região de Buenos Aires também cresceu proporcionalmente, indo de 8,3% (1869) a 11.1% (1914) e aumentando constantemente desde então168. De resto, a disponibilidade mesma desses dados é sintomática da diversificação e interiorização das engrenagens administrativas do estado federal, que realiza três censos nacionais nesse intervalo de tempo, em 1869, 1895 e 1914 (OTERO, 2007: cap. 2). Isso dito, não é surpresa que Buenos Aires, principal acolhedouro da força de trabalho vinda do interior e do exterior, cresça rapidamente e comece a vicejar novas formas de ação política, fora do escopo de negociação do partido oficial. Com fortes conexões transatlânticas, o movimento operário argentino emerge nos anos 1860 e 1870 com associações de auxílio mútuo e periódicos operários, inicialmente com mais força em setores de maior qualificação, como os trabalhadores das ferrovias e da tipografia. A imigração estrangeira também favorece o surgimento de clubes populares de recorte étnico-cultural, que sustentam uma rede básica de proteção social entre os membros da comunidade. Entre fins dos oitocentos e início dos novecentos, a primeira onda de atividade feminista no país se distingue por publicações voltadas às trabalhadoras, como La Voz de la Mujer publicado entre 1896-1899. Havia uma caixa de ressonância social para a reivindicação de direitos trabalhistas e políticos, que, para as mulheres, reverberava também pela negação de seus direitos civis. Havia, com essa emergente vida associativa popular e urbana, uma pressão social sobre as linhas de inclusão política da ordem vigente. A crise financeira e a falência do Banco Bahring em 1890169 catalisaram essas novas frentes de oposição ao regime panista. Do ponto de vista dos trabalhadores, uma ampla jornada de protestos operários e greves se inicia em 1889 em várias partes De acordo com Otero (2007), as províncias que perderam sistematicamente população foram Catamarca, Corrientes, Entre Ríos, La Rioja, Santiago del Estero, San Juan, San Luis, La Pampa, Santa Fe y Tucumán, enquanto que Buenos Aires e Mendoza estiveram na situação contrária, como polos de absorção migrante (OTERO, 2007: 151). Proporção de migrantes internos na população da província de Buenos Aires passa de 8,3% (1869), 9,3% (1895) a 11,1% (1914), e segue crescendo: 14,3% em 1947, 16,6% em 1960, 22,9% em 1970. 168 169 Para um balanço da crise e seu contágio social, ver Marichal (1989: cap.6). 341 do país. Em junho de 1890, é instituída a primeira federação operária. Em paralelo, como desdobramento de um levante de elites dissidentes em 1890, aglutina-se um novo bloco de oposição por meio da União Cívica Radical (UCR) em 1891. Reunida sob um programa de moralização da vida pública e do respeito à Constituição, a UCR tentaria sem sucesso chegar ao poder por uma nova insurreição em 1905. Seu crescimento e nacionalização ocorrem justamente após esse fracasso, congregando às suas fileiras setores novos sem grande experiência política prévia (juventude universitária, funcionários públicos, profissionais liberais e os arrendatários, chacareros, no campo). Em 1894, o Partido Socialista é criado por reformistas letrados e assalariados de alta qualificação, estabelecendo uma relação mais íntima com as doutrinas social-evolucionistas e cientificistas da época do que com o movimento operário propriamente dito, no qual o anarcossindicalismo predominava. A reforma eleitoral de Sáenz Peña (1912) é um marco indiscutível para o começo da abertura do horizonte de possibilidades ao se desintegrarem os mecanismos da estabilidade institucional precedente. Promulgados o sufrágio universal masculino e o voto secreto, o PAN abandonava o controle sobre o processo eleitoral, soltando as rédeas da arena política. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914) e a vitória de Hipólito Yrigoyen (UCR) em 1916, definia-se um ponto de não-retorno: a política argentina se encadeia ao processo sistêmico de esfacelamento do “longo século XIX”. Durante a conjunção crítica que vai do primeiro mandato Yrigoyen (1916) até a eleição de Perón em 1946, o conflito de novas bússolas ético-políticas acarreta maior indeterminação da disputa sobre a seletividade do ciclo extrativo-coercitivo. Enquanto isso, as condições de expansão desse ciclo se tornam intermitentes e incertas pelo terremoto na economia mundial, especialmente grave na órbita econômica de uma Grã-Bretanha em declínio. Em um primeiro momento, o governo Yrigoyen promove um alargamento relativo da arena política que pretende contrapesar a oposição formada nos circuitos tradicionais, especialmente no Senado e entre os governadores. O presidente reconhece um interlocutor legítimo no movimento dos universitários de Córdoba em 1918, que teve extensa repercussão pela América Latina. Em confronto à hierarquia e o tradicionalismo reinantes nos estatutos da instituição, os estudantes ocuparam a reitoria da universidade e declararam greve. Diante da crise instaurada após a 342 repressão policial, a mediação presidencial mostrou simpatia com o ativismo estudantil e suas entidades representativas, determinando uma intervenção na universidade para a reforma dos estatutos e a realização de novas eleições, com representação discente nos órgãos diretores. Esse novo ativismo presidencial se apresenta também na mediação entre capital e trabalho em um contexto de acirramento do conflito distributivo. O radicalismo argentino buscou constituir uma base de apoio sindical ao apoiar o sindicalismo moderado, negociador e constitucionalista, alterando o teor do discurso oficial sobre o trabalho organizado. Os governos autonomistas haviam calcado essa relação na chave da exceção e da ameaça, valendo-se também da xenofobia para classificar a luta operária como exótica, estrangeira, antipatriótica. Essa discricionaridade havia sido instituída por dois regramentos principais: a Lei de Residência (1902), que permitia encarcerar e deportar imigrantes envolvidos em atividades políticas, e a Lei de Defesa Social (1910), que instituía uma ampla margem de medidas repressivas também para os militantes nativos. Ao longo das décadas de domínio do PAN, a declaração recorrente de estado de sítio servira de preâmbulo para uma violência institucional sem peias. Em seus primeiros anos, o radicalismo buscou distanciar-se da securitização da questão social. O aceno de Yrigoyen a uma base popular significava o reconhecimento dos primeiros direitos políticos para os sindicatos, a primeira proteção trabalhista e certas vitórias pontuais. O presidente se envolve pessoalmente em algumas negociações grevistas, promovendo-se publicamente a partir dessa posição conciliatória e arbitral (COLLIER & COLLIER, 2002: 145-149). Além desse alargamento estratégico da disputa política, o primeiro radicalismo valeu-se do poder do governo federal para enfraquecer a oposição dos governadores: em seu primeiro mandato, Yrigoyen utiliza 19 vezes o dispositivo constitucional de intervenção federal nas províncias, sendo 15 deles por decreto presidencial (ROMERO, 2016: 67-68). Nas eleições de 1922, o panorama já é outro: o oficialismo ganha em todas menos duas províncias, atingindo o ápice de seu poder nacional. Com efeito, o desencaixe dos contextos políticos locais acumulado no “longo século XIX” permite que o radicalismo, atingindo a presidência, tenha recursos para controlar a política nacional desde o centro. Certamente, não o faz sem contemporizar com os poderes estabelecidos e modular sua retórica. A escolha de Marcelo T. Alvear para a 343 sucessão de Yrigoyen em 1922 torna a UCR mais palatável entre os circuitos políticos e econômicos tradicionais, resfriando seu receio com as consequências da democracia política. Pertencendo a uma família tradicional e com circulação nos espaços da elite bonaerense, Alvear se afasta do apoio popular granjeado por seu antecessor. Fora da esfera institucional, a ação política popular radicalizou-se para além do perímetro político de Yrigoyen durante o ciclo de protestos e greves entre 1918 e 1922, tendo como episódio mais traumático o massacre operário durante a “Semana Trágica” de fevereiro de 1919. Na Patagônia, a repressão policial e militar contra os trabalhadores paralisados em 1921-1922 adquiriu também contornos de extermínio (COLLIER & COLLIER, 2002: 147-148). O contágio internacional da revolução soviética de 1917 em um cenário de crise econômica no pós-guerra produziu uma ofensiva operária, não só na Argentina. Visto em perspectiva, assim, o trabalho organizado se fortalece politicamente durante as décadas de 1900 e 1910, valendo-se de diversos repertórios de ação direta e da relativa abertura institucional pós-1916. Nas grandes jornadas operárias do pós-Primeira Guerra, a violência institucional se tornou novamente a regra, preparando a guinada conservadora do radicalismo por trás da candidatura de Marcelo T. Alvear. É nesse contexto que as classes proprietárias se reorganizam como polo reacionário para além do aparato de estado. A criação da Liga Patriótica Argentina tinha como pressuposto o recurso a ilegalismos repressivos para conter o ativismo sindical e os partidos de esquerda. Agentes provocadores, grupos armados para-institucionais, técnicas de intimidação e divisão dos trabalhadores em luta foram amplamente utilizados, com financiamento empresarial e a conivência das autoridades policiais. Em paralelo, é criada em 1919 a União Popular Católica Argentina, que passa a disputar espaço nas fidelidades populares com uma versão conservadora do Evangelho. Enquanto a Liga Patriótica apelava a um nacionalismo integrista e voluntarista, aparentado com o fascismo italiano, os eclesiásticos agrupados sob a União Popular Católica mobilizavam a doutrina social da Igreja formada ao redor da encíclica Rerum Novarum (1891). A disputa não se fazia simplesmente nos enfrentamentos de rua, mas em diversos espaços de sociabilidade popular, como as escolas, bibliotecas populares e na atenção primária aos necessitados. A criminalização da esquerda, obviamente, desequilibrava as condições em que tal 344 disputa era travada. Sem vinculação histórica ao mundo sindical, o radicalismo argentino se alinharia à reação proprietária conforme se encurtava o espaço hábil para a concertação do conflito de classe. O golpe de setembro de 1930 acabaria por remover manu militari a União Cívica Radical do jogo político, com uma sequência de intervenções arbitrárias nas eleições. O choque da crise de 1929 desencadeara um cenário já conhecido de queda das exportações, déficit governamental, desvalorização cambial e elevação dos impostos, sobretudo de importação. Ainda, agrava-se a assimetria entre as províncias do Litoral e as do interior, mudando também o padrão migratório do país (HORA, 2014b). Estanca a entrada de migrantes estrangeiros e diminui o poder de atração de grandes cidades do interior, como Mendoza e Tucumán, acentuando a corrente demográfica do mundo rural provinciano ao Litoral e à capital. Nos anos 1930, é registrada a primeira redução absoluta da população rural na Argentina. Como conclui Roy Hora (2014b), as cidades passaram a refletir a proeminência de uma Argentina criolla, menos branca e cosmopolita, mais interiorana e nacionalista. Os governos conservadores que seguem o golpe de 1930 se valem da força e da fraude para neutralizar a polarização política, controlando pelo alto uma alteração gradual na regulação econômica. Essa alteração tem três facetas principais: em primeiro lugar, o maior nacionalismo acompanhado de ferramentas de gestão macroeconômica, como o controle de câmbio e a criação do Banco Central (1935). O governo estipula preços mínimos para proteger os exportadores agropecuários da flutuação de mercado. A alta do fisco aduaneiro, com razões fiscais, acaba impulsionando a base industrial pré-existente de bens de consumo, especialmente nos têxteis, alimentos, químicos e metais. Um intento pioneiro de planejamento estratégico da economia, abrangendo os diferentes ramos e suas necessidades específicas, Em 1940 é lançado o Plano de Reativação Econômica para lidar com a conjuntura de guerra no exterior, lançando mão de um planejamento estratégico abrangente dos diferentes ramos da economia, articulados à viga-mestra do comércio internacional. As exportações passam de quase 30% do PIB em 1928 para apenas 15,7% em 1938 (Tabela 7.1). A preocupação em recuperar a arrecadação logo após o choque da crise é substituída por uma agenda de obras públicas que negligencia as pressões redistributivas. Na virada dos anos 1930 para os 1940, o maior dirigismo 345 estatal da economia se respalda em um novo nacionalismo, militarista, industrializante e corporativo, com afinidade aos nazifascismos europeus. Criada em 1941, a Direção Geral de Fabricações Militares é um segmento burocrático que se torna ponta de lança do projeto de síntese entre nacionalismo econômico, industrialização dirigida e militarização da administração pública (ROMERO, 2016: 100-107). Em segundo lugar, com a crise de 1929 há uma aproximação ainda mais acentuada com o Império Britânico. Ao contrário das demais repúblicas latino-americanas, a Argentina mantém os pagamentos de sua dívida externa durante os anos 1930, embora tenha se desvinculado do padrão-ouro já em dezembro de 1929 (CORTÉS-CONDE, 2008). Durante os anos 1920, a presença econômica dos EUA havia aumentado consideravelmente na Argentina, mas isso não correspondia a uma abertura recíproca do mercado estadunidense para produtos argentinos, concorrentes com a produção doméstica. A triangulação de superávits com a Inglaterra e déficits crônicos com os Estados Unidos está por trás da campanha “comprar a quem nos compra”, lançada pelo embaixador britânico e adotada pela elite agrária argentina. Quando é estabelecido o sistema de preferências comerciais do Império Britânico em 1932, no bojo da espiral protecionista do entreguerras, a Argentina firma um pacto bilateral de cotas de comércio, o Acordo Roca-Runciman (1933). Nesse sentido, enquanto a América Latina está migrando para a órbita econômica dos EUA, a Argentina tenta preservar sua relação especial com os britânicos, apostando em uma imagem de país moldada por sua “vocação agrícola”. A terceira resposta à crise uma inflexão para formas não-convencionais de extração. De fato, desde a Primeira Guerra os governos radicais haviam tentado contornar os déficits com um arrocho fiscal, mas seus intentos de reorientar a estrutura tributária haviam esbarrado nos interesses estabelecidos. Em 1931-1932, o governo de Uriburu institui pela primeira vez um imposto direto sobre a renda em caráter emergencial, uma ideia que havia sido levantada por Yrigoyen desde 1918. De temporário a permanente, esse imposto seria desenvolvido posteriormente nos governos peronistas. Além disso, a regulamentação de diferentes taxas de câmbio permitia cobrar um ágio, que incidia sobretudo nos ganhos dos exportadores sem o ônus de um imposto oficial (CORTÉS-CONDE, 2008). Com efeito, o estado argentino estava 346 longe de conseguir prescindir dos tributos aduaneiros, mas há uma tendência clara à diversificação e à interiorização na conjunção crítica 1912-1946. A turbulência econômica mundial pressionava novas agendas de ação estatal, e essas novas atividades não poderiam ser custeadas pela estrutura oitocentista de arrecadação. Excluídos da disputa política institucional, os trabalhadores sofreram uma perda significativa no conflito distributivo durante a chamada Concertação (1932-1943), que foi impermeável às suas reivindicações (HORA, 2014b). Com a substituição de importações, a indústria emprega muito, mas em más condições de trabalho e a baixos salários; a sindicalização aumenta principalmente entre esses trabalhadores precarizados. Seguindo uma tendência mundial dos anos 1930, especialmente após 1935, os comunistas ganham mais espaço nas organizações sindicais, com destaque para a criação de uma federação única reunindo os trabalhadores da construção civil (FONC na sigla original) em 1936. Diante das promessas de abertura política do presidente eleito Roberto Ortiz, os comunistas formam uma “frente popular” com radicais, socialistas e sindicalistas em 1939; o intento é prematuramente abortado em 1940 e dissolvido com forte repressão, simultaneamente ao fracasso das frentes antifascistas na França e na Espanha. Como observam Collier e Collier (2002: 156) o grande hiato temporal da incorporação política do trabalho organizado na Argentina, e o desenvolvimento econômico que ocorre nesse ínterim, fazem com que a classe operária não só adquira escala e densidade organizativa, mas também passe pela “acumulação de frustrações políticas” pela demora em encontrar ressonância institucional às suas demandas. Em outros termos, a Concertação (1932-1943) foi se fechando em sua direção militar, tentando reverter as consequências da espiral de lutas populares de 1907 a 1923. Com a urbanização, a industrialização e a alfabetização aumentando nos anos 1930, há maior pressão desde baixo sobre essa saída autoritária para a questão social, isto é, sobre sua tentativa de recuar as linhas de exclusão política à situação prévia à conjunção crítica. No começo dos anos 1940, 20% da força de trabalho não-agrícola na Argentina está sindicalizada, a maior taxa na América Latina do período (HORA, 2014b). O golpe de 1943 é crucial em tal contexto não porque lançou nova ofensiva repressiva, proscrevendo os comunistas e intervindo nos sindicatos e universidades, mas porque abriu, institucionalmente, uma válvula de escape para administração 347 desses conflitos com a nomeação do Gen. Juan Domingo Perón na Secretaria do Trabalho (1943-1946). Nessa posição, “Perón buscou refazer a imagem do trabalho como fonte de conflito e ideologias estrangeiras para a de um respeitado ator político estimado por sua contribuição para a vida política, econômica e social do país” (COLLIER & COLLIER, 2002: 338). Através desse movimento, com sua seletividade própria, suas cristalizações institucionais e seu apelo ético-político, conformam-se bases para a construção da ordem que estão definitivamente além do que fora o “longo século XIX” argentino. Não é o caso de tentar um balanço extensivo sobre a experiência peronista, mas somente apontar as razões pelas quais ela delimita os vetores resultantes da conjunção crítica. Em primeiro lugar, e mais importante, há um atrelamento intensivo do estado com o mundo do trabalho organizado nas cidades. De um lado, isso significava o uso do poder de estado para hegemonizar o sindicalismo: o reconhecimento dos sindicatos legalizados era controlado pela Secretaria do Trabalho, o que indiretamente regulava os direitos de associação, greve e proteção, permitindo-lhe apoiar o sindicalismo enquanto isolava e perseguia os comunistas. A elevação da taxa de sindicalização após 1943 fortalece o peso político dos trabalhadores enquanto consolida o oficialismo entre eles, tendo como pivô uma CGT reorganizada. Essa aliança é suportada pela intermediação do conflito industrial e por uma agenda ampla de gasto social, lastreada inicialmente nas divisas acumuladas durante a guerra. O peronismo não recorre a uma base política sindical, mas ativamente a impulsiona, molda e legitima, marcando os termos da incorporação histórica – retardada, voluntarista e confrontacional – da classe trabalhadora à política institucional. Em segundo lugar, o peronismo sepulta o “longo século XIX” porque dá forma institucional à política de massas que irrompeu por inúmeras frestas da ordem política oitocentista. Em lugar do movimento regressivo dos anos 1930, em que se pretendeu desativar à força a participação política popular, Perón consegue fazer dessa participação, e do controle partidário sobre ela, sua grande alavancagem política. A população que havia sido proletarizada durante o “longo século XIX” desaguava em um movimento amplo, voluntarista e nacionalista, que ressignificava a nação a partir de novas linguagens e práticas associativas. Com a ampla vitória eleitoral de 1946, amparada pelo Partido Laborista, criado após a vigília pela libertação de Perón em outubro de 1945, esse movimento reorganiza ao seu redor de si a política argentina, 348 conquistando a presidência, a maioria nas duas casas parlamentares e quase todos os governos provinciais. Todas as forças políticas se reposicionam no tabuleiro: o radicalismo e a CGT se dividem no respaldo ao bloco peronista; os comunistas se diluem e se enfraquecem; a Igreja e o Exército inicialmente apoiam o general, enquanto que o latifúndio pampeano pela primeira vez se coloca na oposição ao governo argentino170. Em terceiro lugar, fecha-se a conjunção crítica porque, nos anos 1940, vão se recolocando as condições de governabilidade e expansão do sistema mundial sob hegemonia estadunidense. Nesse contexto, as utopias oitocentistas de mercado autorregulado são suplantadas por uma macroeconomia do pleno emprego, com industrialização substitutiva, mediação política entre capital e trabalho e uma economia mista pela nacionalização de serviços públicos. As condição de reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo já não adaptam ou retornam aos trilhos da expansão precedente, mas estipulam uma orientação fora dos marcos saturados durante aquela conjunção crítica. A arrecadação desloca-se de seu eixo aduaneiro e o gasto adquire um perfil mais redistributivo. Com a criação do IAPI em 1946, o governo consegue canalizar rendas do setor primário-exportador para sua agenda social. É óbvio que um movimento como foi o peronismo formaria dissidências e novas coalizões reativas. Em certa medida, como notam Collier e Collier (2002: 350) formam-se gradualmente duas culturas políticas irreconciliáveis na vida política do país, com reconstruções históricas opostas: o ruralismo argentino cultua uma era de ouro liberal e cosmopolita anterior a 1930, enquanto que o peronismo cliva um passado indistintamente oligárquico contra o qual se insurge o povo nos anos 1940, liderado por Perón. A incompatibilidade desses dos campos aponta as linhas de força do período posterior, embora sua origem possa ser rastreada às crises de 1873 e 1890, que disparam o “longo século XX” como arco histórico. A sobreposição desses arcos, no período decisivo de indeterminação entre 1912 e 1946, forma uma espécie de esquina na trajetória de formação do estado argentino. O trabalho rural foi regulamentado em 1944 à revelia dos interesses do latifúndio, mas a reforma agrária foi completamente interdita: um campesinato de pequenos produtores decididamente não compunha o imaginário sindical, nacional e popular que o peronismo organiza. 170 349 10. BRASIL: CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA NO “LONGO SÉCULO XIX” “Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato Brasil, o teu nome é Dandara E a tua cara é de cariri Não veio do céu Nem das mãos de Isabel A liberdade é um dragão no mar de Aracati” “História para ninar gente grande”, Samba-enredo da G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira (2019) No inverno de 1807, a monarquia portuguesa estava no centro do cabo de guerra entre franceses e ingleses. Em novembro, as tropas do general Junot marchavam sobre o vale do Tejo quando a Corte portuguesa foi transportada em naus para o Brasil, então maior possessão ultramarina portuguesa. A manobra, sustentada pelo chamado “partido inglês” do Conselho de Estado, com destaque para Dom Rodrigo Sousa Coutinho, teria implicações maiúsculas para a trajetória do império luso-brasileiro na Era das Revoluções. No momento mais crítico para a legitimidade monárquica no continente europeu, a transferência preservava a integridade do reino de Dom João VI, agora sediado no Rio de Janeiro com proteção britânica. O resultado mais saliente desse artifício foi descompassar os efeitos da transição hegemônica mundial do momento crítico de fratura da ordem no espaço imperial português. Em outras palavras, a crise política decisiva para a monarquia é conflagrada nos anos 1820 e atinge seu ápice nos anos 1830, em uma circunstância em que as conexões do litoral brasileiro com o novo ciclo de acumulação, calcadas na chamada “segunda escravidão” atlântica, já eram relativamente fortes e acumuladas em seus efeitos. Por mais extraordinário que o episódio da transferência intercontinental da Corte possa ser em si, ele não abre a janela de possibilidades históricas, mas suspende ou retarda, por um artifício político contingente, essa abertura. 350 Essa chave de leitura não corrobora o mero continuísmo na interpretação da independência brasileira, argumento que se apoia no contraste com as experiências hispano-americanas ou mesmo com a Revolução Francesa. Em certo sentido, a comparação focada unicamente no evento da independência induz a essa visão continuísta por arrancar o evento do feixe de processos do qual ele é um momento. Em seu centro e em suas periferias, o império português não foi imune, no caos sistêmico da Era das Revoluções, à fratura das relações ético-políticas baseadas na integridade monárquica, à reconfiguração da economia atlântica e ao acirramento do conflito por projetos alternativos de ordem. Contudo, essas faces da crise não se produziram de forma simultânea como reproduções automáticas de uma determinação internacional. O vetor resultante da ordem política pós-colonial precisa ser compreendido à luz do encaixe particular em que a crise da autoridade política se situa; no contexto brasileiro, o gatilho fundamental para tal seria a abdicação de Pedro de Alcântara em 1831, e não a declaração de independência propriamente dita, ou a fuga da Corte em 1808. Como nos capítulos anteriores, nosso ponto de partida será localizar a colônia brasileira na corrida interimperial da segunda metade do século XVIII, para o que são centrais as reformas pombalinas. Em primeiro lugar, a transferência do governo geral de Salvador para o Rio de Janeiro (1763) e a extinção do governo independente no norte, o Grão-Pará e Maranhão (1774), unificam o espaço luso-brasileiro na América. Com essa reorganização, o poder metropolitano se apoiava em dois centros coloniais, o Estado do Brasil e o Estado da Índia sediado em Goa, o primeiro em expansão fiscal e administrativa, o segundo minguando em declínio. Servindo como elo entre o tráfico de escravos e ciclo minerador em curso no interior, o poder sediado no Rio de Janeiro funcionava como uma submetrópole atlântica do império. Entre 1735 e 1765, as exportações de metais preciosos do Brasil atingiram a média anual de 750 mil libras esterlinas, puxando uma duplicação do comércio exterior total entre 1710 e 1760 (BLACKBURN, 1998: 487-488). O ouro brasileiro não simplesmente alavancava o ciclo extrativo-coercitivo do império português, mas também subsidiava o emergente sistema financeiro inglês como corolário do alinhamento político estabelecido após a Restauração (1668). Por sua abundância e pureza, a moeda de ouro de quatro escudos, emitida de 1727 a 1822 em Portugal e no Brasil, chegou mesmo a funcionar como uma “moeda universal do mundo atlântico” 351 (ABREU & LAGO, 2001: 335). Como dito na Parte II da tese, a adoção precoce do padrão-ouro e o barateamento do capital circulante no alvorecer da industrialização britânica são contrafaces da reorganização por que passava então o império português. Sob controle do governo do Rio de Janeiro, o imposto sobre o ouro (quinto) substitui então os dízimos, tributos indiretos sobre instalações e bens de consumo, como maior fonte de arrecadação do governo colonial no Brasil. Mas a estrutura fiscal era bastante compósita e dispersa em suas rubricas, com poucos impostos levantados em todo o território brasileiro (COSTA, 2003). A marca mais importante do período foi menos a proliferação de novas tributações do que o esforço tenaz da autoridade colonial de restringir o contrabando e os ilegalismos fiscais cotidianos. Uma das mudanças decisivas do período pombalino, com efeito, foi transformar as capitanias hereditárias em repartições a cargo de funcionários régios, ligados diretamente à metrópole. Em termos fiscais, essas capitanias transformadas em províncias deveriam sustentar-se com os recursos que angariassem localmente, remetendo os excedentes diretamente ao recém-criado Erário Régio em Lisboa. Instituídas para tal em diversas províncias brasileiras, as Juntas de Fazenda não só estabeleciam essa rede administrativa, mas também incorporavam métodos mais rigorosos de controle e contabilidade. Com isso, a fisiologia do estado colonial se traduz em relatórios periódicos provenientes das províncias, forjando uma rede documental subsidiária aos movimentos financeiros do tesouro. Nesse sentido, por trás da aparente centralização pombalina, “tais reformas consagravam a capitania como uma jurisdição fiscal dotada de autonomia em relação a outras esferas da administração colonial e fora dela” (COSTA, 2003: 161). Premido pela competição geopolítica, o reformismo pombalino pode ser resumido como um desígnio racionalista de expansão do ciclo extrativo-coercitivo: obter mais recursos, ter mais soldados de prontidão e mais funcionários comissionados, aumentar o controle administrativo do império para obter mais recursos, soldados e funcionários. Seu principal herdeiro político foi Sousa Coutinho (Conde Linhares, 1808) ministro de Marinha e Ultramar (1795) e ministro e secretário de Estado dos Negócios da Guerra e Estrangeiros (1812). Face ao desmoronamento do sistema dinástico europeu, Coutinho estava ciente de que a sobrevivência de Portugal dependia de seu espaço imperial ultramarino, especialmente o Brasil. Em um frequentemente citado memorando de 1797, o então 352 ministro alertava ao rei que Portugal sem suas colônias se tornaria, mais cedo ou mais tarde, uma província espanhola (ADELMAN, 2006: 244-245). A transferência apressada da Corte em 1808 representava, nesse sentido, a culminância da política de “transferência do controle para a periferia” que Coutinho pautava como desdobramento do reformismo ilustrado em meio à guerra revolucionária na Europa (ADELMAN, 2006: cap. 3). Em uma palavra, a instalação da monarquia no Rio de Janeiro oferecia uma solução prática para o problema da soberania no Brasil, constituído agora como um “centro no novo mundo para um império do velho” (ADELMAN, 2006: 228). Ao estabelecer esse improvável ponto de repouso, alimentava-se uma sobrevida para a tendência anterior de intensificação competitiva do apetite fiscal e da militarização dos impérios atlânticos. Ao invés de sua ruptura, com consequências imprevisíveis, a transferência afastava momentaneamente o império português do redemoinho da Era das Revoluções e prolongava sua trajetória de autoconstrução pela reforma. Isso se vislumbra inicialmente em três vias: o surto tributário no período joanino, o aprofundamento da militarização no Prata e a agitação social antifiscal. Vamos observar cada uma delas para em seguida inserir a abertura comercial de 1808-1810 como evento pivô no reencaixe na transformação da economia atlântica. A estrutura fiscal que perduraria na maior parte do século foi estabelecida após a chegada da família real, com a adaptação de cobranças existentes e a instituição de novos impostos internos (ABREU & LAGO, 2001; COSTA, 2003). Além dos impostos sobre o comércio exterior e os dízimos, havia coletas no trânsito interprovincial, o quinto sobre o ouro, o subsídio à Corte cobrado sobre a carne, a cana, os destilados e os tecidos de lã, o subsídio literário cobrado sobre os abatedouros, uma cobrança instituída para capitalizar o Banco do Brasil, a sisa (10%) sobre a transferência de propriedade urbana, a meia-sisa (5%) sobre a venda de escravos ladinos, o imposto sobre o selo, a décima sobre os imóveis e sobre a herança, entre outros impostos de menor expressão. O aumento da carga tributária não significava exatamente uma ruptura com o perfil fiscal da colônia, mas antes uma oxigenação do mercantilismo. A descontinuidade mais saliente, como apontou a professora Wilma Costa (2003), é que os tributos instituídos por Sousa Coutinho durante o período joanino alcançaram abrangência territorial, válidos de forma relativamente uniforme nas diferentes províncias. 353 A transferência em 1808 também cria condições para que o império português, agora sediado na América, tome a ofensiva na disputa geopolítica no Prata, herdada da corrida interimperial de fins do século XVIII. Ademais, frente à situação de soberania múltipla aberta no império espanhol após 1808, ele se reposiciona como bastião da reação. No segundo semestre de 1811, as forças imperiais invadiram pela primeira vez a Província Cisplatina, em socorro ao governo realista que beirava o colapso em Montevidéu. No ano de 1816, auge do movimento federalista gaucho de Artigas, o império luso-brasileiro novamente exerceria uma espécie de veto militar ao radicalismo agrário, dessa vez com a cumplicidade do Diretório recém instituído em Buenos Aires. Prorrogada, dessa maneira, a disputa luso-espanhola sobre o estuário do Prata, agora as incursões joaninas adquiriam novo aspecto: a cisão simbólica entre o rumo indesejável das ex-colônias espanholas, engolfadas pela guerra civil e pela revolução, e a presumida estabilidade monárquica ao império luso-brasileiro, capaz de conservar a ordem interna. Prontamente absorvida pelas elites políticas do Rio de Janeiro, essa leitura concluía que “o sistema democrático adotado pela América espanhola”, como dizia o Correio Braziliense em 1809, “[possa] ser-nos tão incômodo como a dominação francesa” (apud PIMENTA, 2003: 126). Separar-se da situação hispano-americana nos turbulentos anos após 1808 era mais que uma convicção conservadora ou uma estratégia retórica: era um código para renovar a relação especial da monarquia bragantina com a Grã-Bretanha. Como aponta Adelman (2006: 253), a decisão de Sousa Coutinho de despachar as tropas para o sul em 1811 tinha como pano de fundo a negociação em curso para levantar novos empréstimos em Londres, uma demonstração de força diante da incerteza, elevada pelos levantes recém ocorridos em Buenos Aires e Caracas. A imagem de solidez e segurança da monarquia servia a lastrear-lhe a penúria fiscal, que por sua vez se agravava a cada novo empreendimento militar. A pressão fiscal do período joanino encontrava alguma razão nas extravagâncias da Corte recém transplantada, mas tinha raízes mais profundas no endividamento progressivo da monarquia lusitana ao longo do meio século precedente, no esforço de acompanhar (ou pelo menos sobreviver em meio a) a corrida 354 interimperial171. Uma vez que a ruptura política fora represada, a deterioração fiscal seguia seu curso, transferindo maior ônus para a sociedade colonial brasileira. A insurgência republicana no Recife em 1817, principal episódio de confronto político do período joanino, tem estreita relação com o fardo dos “novos impostos” instituídos após a chegada da família real. A incidência de inúmeros tributos sobre as transações cotidianas fazia com que seu ônus fosse imediatamente sentido pela população urbana. A leitura então corrente de que a província subsidiava sem contrapartida a Corte no Rio de Janeiro se verifica e exprime na revogação sumária, nos dois meses de vigência do governo provisório, de todos os impostos criados após 1808 (BERNARDES, 2003: 237-238). Essa oposição antifiscal não esgota, por suposto, os horizontes ético-políticos revolvidos no movimento nordestino, que agregou as províncias vizinhas em uma república federal e aboliu o tráfico de escravos. Embora frequentemente retratado como um antecedente da independência, o levante na verdade dá prolongamento às dissidências na colônia, de curto fôlego e grande ambição, como foram a Inconfidência Mineira (1789) e a Revolta dos Alfaiates em Salvador (1798). A prontidão repressiva do estado imperial interceptou suas possibilidades, mas não suas origens. Embora reduzir esses movimentos à questão fiscal seja pobre, é forçoso notar que cada movimento de constrição fiscal da colônia pela Coroa encontra alguma espécie de contestação localizada, mais ou menos radical, mais ou menos bem-sucedida. Como dito antes, o ponto de apoio da relativa estabilidade monárquica portuguesa entre 1807 e 1820 foi a proteção britânica. Em certo sentido, falar na aliança entre os dois estados acaba encobrindo a assimetria subjacente a cada movimento de aproximação. A vinda da família real com escolta britânica foi consumada após a ameaça de destruição de toda a frota portuguesa em caso de recalcitrância; para evitar sua utilização pelos invasores franceses, os britânicos já haviam feito o mesmo com a frota estacionada em Copenhagen alguns meses antes. A abertura dos portos em 1808 e a negociação do acordo de preferência comercial de 1810 também foram respaldados pela coação diplomática e pela pressão direta da comunidade mercantil inglesa (ADELMAN, 2006: 232). E mesmo na década de 1810 Em 1798, a dívida pública atingia quase 80% da receita anual, o que contrasta fortemente com os anos entre 1762 a 1776, quando ela era inexistente. 171 355 os navios negreiros eram abordados e confiscados na costa brasileira por patrulhas navais britânicas, seguindo o compromisso bilateral de erradicação do tráfico. O fato é que, não obstante a coerção e a assimetria envolvida, o império português estava fincado na órbita geoeconômica britânica durante a transição hegemônica. Em tal contexto, a erosão dos monopólios e controles coloniais teve, como efeito imediato, encaixar precocemente o mercado brasileiro à industrialização britânica. Enquanto a América hispânica praticava impostos na faixa de 20 a 30% sobre as importações, o acordo de tratamento preferencial de 1810 fazia com que os produtos britânicos pagassem no máximo 15%, em um mercado consumidor que não fora atingido por maiores abalos políticos. Aliás, pelas aproximações disponíveis, o Brasil é um dos raros lugares com crescimento demográfico expressivo no continente, atingindo a casa de quatro milhões de habitantes em 1823 (BULMER-THOMAS, 2003: 21). Diante do bloqueio continental (1806-1814) e da guerra anglo-americana de 1811-1812, o Brasil se torna o principal receptor dos têxteis ingleses, posição que manteria até meados do século (PLATT, 1972: 25-28; TOMICH, 2004: 60-61). Enquanto importantes complexos exportadores regionais periclitavam no novo século, como era o caso da mineração, do algodão e do cacau, as importações baratearam-se. Esse desequilíbrio incidia diretamente sobre a economia regional e sobre as finanças provinciais; na Amazônia, durante a vigência dos acordos com a Inglaterra, Mark Harris (2017) descreve um quadro de fuga de moeda, com desvalorização e uso frequente de falsificações. “De uma economia que fornecia à metrópole cacau, arroz e café, e trazia poucas mercadorias, o Pará tornou-se um importador substancial nas décadas de 1820 e 1830” (HARRIS, 2017: 160). Nova sede da monarquia, o Rio de Janeiro tinha condições especiais para reposicionar-se na economia atlântica. Em uma palavra, a escravidão negra fora o alicerce de toda a operação de deslocamento do centro de gravidade do império para sua submetrópole brasileira. Ao contrário da América Espanhola, onde o tráfico fora delegado a estrangeiros pelo sistema de asientos, no Brasil ele fora majoritariamente controlado pela comunidade mercantil local. Nesse sentido, a flexibilização das restrições corporativas tendia a favorecer a posição de elite luso-brasileira, especialmente fluminense. O Rio de Janeiro se torna o principal porto escravocrata do 356 Atlântico quando a escravidão parecia irreversivelmente refutada pelas convicções morais do novo século. Se o abolicionismo do Império Britânico impunha certos riscos ao negócio, a proletarização em suas cidades industriais oferecia uma nova seara de expansão para os produtos tropicais, já não mais satisfeitos pelas plantations dos domínios imperiais franceses ou ingleses. Essa seria a janela de oportunidade da “segunda escravidão” no Brasil, nos Estados Unidos e em Cuba (TOMICH, 2004: cap. 3). Como golpe de misericórdia contra o exclusivo colonial, a abertura dos portos após 1808 propulsiona a demanda por escravos no Brasil, inflando a cafeicultura no cinturão agrícola adjunto ao porto do Rio de Janeiro (MARQUESE, 2013). Como aponta Tomich (2004: 63), o capital britânico ergueria uma chamada “ponte de crédito” para expansão das plantações e da infraestrutura subsidiária no Vale do Paraíba, logo convertido no epicentro da produção mundial de café. Ao contrário da instabilidade das demais atividades exportadoras, o café apoiado na “segunda escravidão” se torna uma periferia dinâmica do novo ciclo de acumulação. O nó geográfico dessa associação era o porto do Rio do Janeiro, onde o contingente de escravos africanos desembarcados dobra de 1810 a 1820 e continuaria a crescer sistematicamente até fins da década de 1830. Em paralelo, o controle sobre o porto significava impostos sobre o comércio exterior, em um momento em que o furor tributário joanino não deixava “escaparem nem os pecados dos fiéis já que se taxavam até mesmo os bilhetes de confissão” (COSTA, 2003: 171). Enquanto o engenho mercantilista incidia sobre a miríade de impostos internos, cuja exigência administrativa e a resistência social eram grandes, o empuxo do mercado mundial alavancava a captação de impostos aduaneiros, mesmo sob o regime livre-cambista imposto pelo Império Britânico de 1810 a 1844. Em outras palavras, as linhas da transição fiscal se desenhavam mesmo antes que o império português expusesse com nitidez suas linhas de fratura política, ou ainda, sem que o Brasil fosse sequer imaginado como um estado ou uma nação independente. Como corolário da situação atípica em vigor desde 1808, o gatilho da crise imperial tem origem na metrópole europeia, conjunturalmente associado ao movimento liberal na Espanha. Segundo o argumento a seguir, o movimento liberal do Porto insere uma cunha na estrutura de dominação política do império português que evoluiria para sucessivas situações de soberania múltipla, inclusive no Brasil 357 independente. Nessas balizas, a independência propriamente dita, proclamada em 1822, precisa ser situada mais como um artifício protelatório, uma manobra dinástica para represar os riscos da fricção política. A separação do Brasil cria um repouso constitucional provisório, que seria engolfado definitivamente na crise que leva à abdicação de Pedro I no Brasil em meio à guerra civil portuguesa, a qual ele pretendia arbitrar. Para assentar as bases sociais da construção do estado pós-colonial brasileiro no “longo século XIX”, portanto, é preciso olhar menos para o evento formal da independência e mais para sua problemática de fundo: a convergência de um projeto hegemônico de ordem com a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo. Isso dito, o cenário em que os termos da ordem pós-colonial estiveram em real disputa foi, salvo melhor juízo, os anos da Regência (1831-1840). Em última instância, o alargamento do horizonte de possibilidades históricas não depende simplesmente da eclosão ou radicalidade dos movimentos de oposição, mas das oportunidades políticas postas pela fissura da institucionalidade vigente. 10.1. Conjunção crítica I (1820-1840): a antecipação monárquica e a “segunda escravidão” De saída, cumpre reconhecer que a eclosão da revolta no Porto é também parte das reações à drenagem fiscal do período joanino. Como vimos, a pirâmide fiscal do império previa que as administrações provinciais remeteriam seus excedentes ao Erário Régio; de fato, as receitas oriundas do ultramar cresceram de modo extraordinário nos primeiros anos do século, de cerca de 750 contos de réis anuais (entre 1801 e 1803) para mais de 3.100 contos de réis anuais entre 1813 e 1814 (Tabela 10.1). Por força das circunstâncias, esses recursos permaneciam no Rio de Janeiro ao invés de serem remetidos a Portugal, onde o esforço de guerra era custeado por impopulares coletas extraordinárias172. Além disso, as concessões corporativas usufruídas pelas câmaras de comércio metropolitanas foram virtualmente anuladas pela abertura dos portos brasileiros. Por fim, a ingerência britânica sobre as forças 172 A ausência do rei e dos rendimentos “do domínio” forçava Portugal a intensificar o esforço arrecadador empurrando “para baixo” o peso da tributação. Perdidas as oportunidades da burguesia mercantil com o fim do “exclusivo”, reduzidas as receitas alfandegárias, retidos na América os rendimentos da coroa, a metrópole sem rei precisava arcava com todo o ônus da crise militar no continente. 358 armadas de Portugal após a Guerra Peninsular era atribuída à ausência do monarca, o que acarretava dissenso em torno do controle político da violência. Embora com sinais invertidos, ambos os movimentos em Portugal (1820) e no nordeste brasileiro (1817) fundamentalmente contestavam a seletividade extrativo-coercitiva vigente no império após a transferência da Coroa. O primeiro liberalismo português tem, pois, um subtexto claramente colonialista: reunificar a monarquia com a metrópole, usando o constitucionalismo liberal para reinstituir a hierarquia do império. A aparência de restauração encobre o deslizamento prático que divide dois lócus de autoridade, duas reivindicações de soberania: as Cortes em Lisboa e a Corte no Rio de Janeiro (SLEMIAN, 2006: 63-80). Ao contrário do que ocorrera em Salvador em 1798 ou no Recife em 1817, o polo emergente não podia ser prontamente anulado pela força, cujo uso estava inibido politicamente (ver seção 1.3). Mais do que isso, o processo constituinte então desencadeado gerou efeitos concêntricos pela eleição dos deputados constituintes pelas províncias brasileiras, com liberdade de expressão e imprensa. Em suma, havia um estremecimento irreversível da ordem imperial, mas ele não era oriundo de um nacionalismo anticolonial brasileiro, sequer discernido nitidamente na ocasião. Mesmo a província irredenta de Pernambuco, onde a devassa aos envolvidos com a república de 1817 ainda prosseguia em 1821, elegeu regularmente seus representantes para a constituinte de Lisboa, beneficiando-se de uma súbita anistia que converteu os prisioneiros em heróis locais. Seguindo o roteiro do que ocorrera meses antes no Maranhão, no Pará, no Piauí e na Bahia173, a tensão principal da junta diretora formada no Recife em 1821 foi com o gabinete regencial sediado no Rio de Janeiro. A razão principal do conflito foi a criação do Conselho dos Procuradores das Províncias, por obra do ministro José Bonifácio de Andrada, em fevereiro de 1822. Tido como instrumento de controle oficial das províncias, o Conselho era deslegitimado pelos diretores pernambucanos como uma “desnecessária Como resume Andrea Slemian: “Em 10 de junho de 1822, a Junta instalada no Maranhão escrevia ao ministro Bonifácio afirmando não poder cumprir o decreto de 16 de fevereiro para eleição de um procurador na Província ‘sem ordens das Cortes, a cujas Soberanas Autoridades’ ela havia jurado ‘fidelidade e obediência’112. No dia seguinte, era a vez do Governo do Pará fazer o mesmo, sob justificativa de que não reconhecia ‘outro centro de Poder Legislativo, e Executivo que não seja o residente no Soberano Congresso Nacional em Portugal’113. Ambas as Juntas mantinham solidariedade também com a do Piauí, como ficou documentado na correspondência que trocaram entre si em que reiteravam a fidelidade a um único centro comum: Lisboa. A da Bahia, em agosto, também negava obediência aos decretos vindos do Rio, mesmo sem contato direto com as Juntas do Norte” (SLEMIAN, 2006: 67-68). 173 359 e ilegítima duplicação da representação da Nação”, então já reunida nas cortes de Lisboa (BERNARDES, 2003: 242). De fato, para a conjunção crítica de 1820 a 1840, uma das balizas fundamentais seria a reforma do estatuto legal das províncias após a Revolução do Porto (GOUVEA, 2008). Embora Pombal tivesse acabado com as capitanias hereditárias em 1759, permanecera até 1821 certa ambiguidade entre os termos província e capitania como unidades do império português no Brasil. Em outubro de 1821, instituem-se as juntas provisórias eleitas na própria província e, alguns meses depois, o movimento é contrapesado pela criação do Conselho de Procuradores antes mencionado. Com a independência em 1822, ambas as instituições são revogadas, mas seu conteúdo é mantido com outra forma: o cargo de presidente de província é atrelado ao poder central, enquanto que os representantes nos conselhos gerais de província são eleitos localmente. Não é verdade que “com a independência a classe dominante local se nacionaliza alegremente”, como disse o sempre mordaz Darcy Ribeiro (RIBEIRO, 1995: 252). As autoridades provinciais estavam divididas em suas lealdades políticas e isso enveredou, inclusive, para o uso da força contra aquelas, especialmente no norte, fiéis às Cortes lisboetas. Ainda assim, a cisão em duas assembleias constitucionais (a brasileira foi instalada em março de 1823) foi uma segunda manobra de desescalar o conflito aberto em 1820, sendo a primeira delas o retorno de Dom João VI a Portugal para aplacar o movimento vintista. Ainda uma terceira se daria com a dissolução da constituinte por decisão do imperador, neutralizando as clivagens ascendentes na assembleia174. O último dos artifícios se daria em terras portuguesas, com a imposição da constituição de 1826 sobre o texto votado pelos constituintes. Em suma, a Independência do Brasil se situa em um encadeamento de movimentos de controle sobre a imprevisibilidade da disputa política, cujo sucesso foi temporário tanto no Brasil como em Portugal. Mesmo que não tenham sido definitivos, esses movimentos moldaram os resultados finais. De 1808 a 1824, essas manobras foram possíveis por meio de modulações da continuidade monárquica. A crise do Primeiro Reinado solapou esse esteio ético-político, fazendo com que a disputa pela ordem descarrilhasse dos trilhos Sintoma da polarização dos debates constitucionais do período, um deputado da Bahia chegou a propor que na Constituição ficasse estipulado que se “uniriam confederalmente” as províncias, o que gerou reação tremenda especialmente dos parlamentares fluminenses (ver SLEMIAN, 2010: 122). 174 360 institucionais175. Nos anos 1830, abrir-se-ia efetivamente uma situação de soberania múltipla no Brasil independente, em que as reivindicações alternativas de governo nas periferias do império pressionavam suas linhas de inclusão e exclusão política. Por certo não há homogeneidade nas causas nem nos horizontes revolvidos pelos movimentos insurgentes do período, mas há uma confluência prática que rompe o controle político da violência pelo governo central. As oportunidades políticas advinham então, de um lado, da vulnerabilidade da monarquia em seu interregno dinástico e, de outro, de um desenvolvimento da institucionalização das províncias desde o primeiro liberalismo português, ou mais remotamente, das reformas fazendárias de Pombal. No que tange a institucionalização das províncias, o Ato Adicional de 1834 é o marco decisivo. De um lado, os conselhos foram promovidos a Assembleias Legislativas provinciais, contando com maior número de representantes. Havia uma contrapartida fiscal imediata, embora juridicamente ambígua: essas assembleias foram autorizadas a criar impostos que não estivessem na jurisdição central, a qual manteve o monopólio sobre os impostos de importação (ABREU & LAGO, 2001: 345-346). Ademais, as principais taxas criadas após 1808 foram progressivamente transferidas para o âmbito provincial, ao qual foi reservada também a prerrogativa de organizar força armada por meio da Guarda Nacional (DOLHNIKOFF, 2003). Havia uma base de poder em escala regional, que, em circunstâncias extremas, serviu de plataforma para organizar reivindicações alternativas de soberania. Ausente o continuísmo dinástico, a questão da subordinação das províncias ao poder central atingiria então sua prova de fogo. Resultado de debates parlamentares polarizados desde 1831, o Ato Adicional precisaria ser capaz de capturar o sentido dos pleitos de autonomia regional aos limites do quadro constitucional recém reformado, e não além dele. A emergência de projetos alternativos de ordem, nessa conjunção crítica, encontraria seu combustível nas divisões sociorraciais formadas pelo colonialismo, A descontinuidade representada pela abdicação em 1831 foi bem capturada por Andrea Slemian, que instrumentaliza a discussão de Koselleck sobre o tempo histórico em termos muito próximos aos que viemos trabalhando: “não há dúvida que a saída de Dom Pedro I aprofundou, no plano imediato, uma instabilidade política em diversas partes do Brasil, materializada tanto pelas desordens, insubordinações e tentativas de rebeliões, como pela abertura de novo campo de expectativa com relação ao futuro, que ia da projeção de possibilidades mais radicais de transformação completa do regime à manutenção da legitimidade monárquica do Império” (SLEMIAN, 2010: 142; grifo adicionado). 175 361 especialmente na escravidão negra. No Brasil do século XIX, Lynch sugeriu que a ausência relativa de radicalismos socialistas e filojacobinos, simétrico à fraqueza de posições flagrantemente reacionárias, teria constituído um espectro ideológico centrista, se comparado com a Europa Ocidental, então mais polarizada (LYNCH, 2011). Sendo de fato nítido que um liberalismo centrista estava emergindo hegemônico no mundo atlântico após a Era das Revoluções (WALLERSTEIN, 2011), o diagnóstico do “império da moderação” perde de vista que sua mais candente questão social, que servia de baliza para a radicalidade das utopias políticas, era o horizonte de emancipação racial interdito pela monarquia. Do compromisso programático com a abolição, presente desde a Conjuração Baiana (1798), até a promessa instrumental de alforria aos que aderissem à luta, como na Revolução Farroupilha (1835-1845), alguma forma de desestabilização das hierarquias raciais era necessária para a ativação política popular. Ou melhor, a própria ativação política popular, dada a estratificação da sociedade brasileira, implicava certa desestabilização de hierarquias raciais. Nesse sentido, o extremo progressista do espectro político imperial se identifica não no socialismo sindical europeu, mas em movimentos com base popular e perfil anticolonial, como a Revolta dos Malês, a Cabanagem ou a Balaiada. O fato de que eles não tenham institucionalizado uma facção estável no Império é, antes de tudo, um sintoma do triunfo do liberalismo escravista ou, como define Lynch (2011), de uma “democracia para o povo dos senhores”. A Cabanagem no Pará adquiriu um perfil popular e interracial desde seu primeiro levante em janeiro de 1835. A coincidência dos movimentos insurgentes com o calendário de festejos populares, sua sinergia com os rios como artérias de contágio regional, o predomínio da língua geral sobre o português e a evocação simbólica às lideranças indígenas caídas na resistência aos portugueses construíram uma peculiar “ponte entre o liberalismo radical e a cultura amazônica colonial” (HARRIS, 2017: 181). Com efeito, o imaginário revolucionário já circulava no Pará desde a invasão luso-brasileira de Caiena em 1808, cujo intuito fora precisamente contê-lo. Sem resposta militar possível, estando a França bloqueada pela marinha britânica, a ocupação da Guiana manteve, por nove anos contínuos, centenas de tropas paraenses no que era uma colônia de degredo de agitadores radicais franceses (HARRIS, 2017: cap. 1). 362 A veiculação de ideias liberais, contudo, não explica por si só a disrupção do tecido social amazônico nos anos 1820 e 1830. Como mencionamos, uma parte dessa explicação se encontra na desorganização da economia regional após a liberalização comercial, em um contexto em que o cacau, principal produto local, teve seu valor de mercado reduzido a um décimo de 1821 a 1830 (HARRIS, 2017: 169). No entanto, o elemento central para a sublevação de camponeses e indígenas foram as mudanças institucionais nas primeiras décadas do século XIX, que impulsionavam uma nova intrusão do poder central e um processo desencaixe da política de sua rotina regional. O marco inicial desse processo é a extinção em 1798 do Diretório dos Indígenas, um regramento corporativo do período pombalino. Ainda que abrigasse abusos, o Diretório permitia considerável autonomia aos índios aldeados através de seus caciques. No século XVIII, posições de prestígio nas maiores cidades amazônicas foram eventualmente ocupadas também por lideranças indígenas, fosse no judiciário, no exército e mesmo nas assembleias municipais (HARRIS, 2017: cap. 4). No século XIX, sob a aparência de liberalização, acabou-se por enrijecer as hierarquias sociorraciais e o controle lusobrasileiro sobre as terras e sobre o poder local, pano de fundo da revolta que eclodiu em 1835. A abertura comercial também afetara a economia pampeana do Rio Grande do Sul, que sofria concorrência do charque do Rio da Prata no centro do país. A insubordinação dos estancieiros gaúchos tinha estreita relação com a seletividade do ciclo extrativo-coercitivo: o elevado imposto de importação sobre o sal pressionava as charqueadas gaúchas, enquanto que o charque platino era desonerado para alimentar a expansão da fronteira agrícola do café. O fardo do recrutamento militar pesava desproporcionalmente sobre aquela região fronteiriça, em contato imediato com o republicanismo provincial que, à época, se constitucionalizava no Prata. A decisão de guerra contra o poder central em 1835, nesse sentido, enlaça a situação de soberania múltipla do Império com a geopolítica do Prata, em particular pelas conexões dos Farrapos com os blancos uruguaios. Por outro lado, em sua base social, a rebelião mobilizava peões negros e indígenas para lutar ao lado dos estancieiros contra o poder imperial escravocrata – um movimento cujas consequências podiam extrapolar as intenções de seus iniciadores. Como o movimento gaúcho de 1835-1845 serviu de matéria-prima para uma mitologia histórica conservadora, as vozes críticas têm repetidamente apontado para a 363 hipocrisia e a instrumentalidade dos compromissos sociais estabelecidos pelos dirigentes farrapos, em sua maioria eles mesmos proprietários de escravos. A verdadeira alma da revolta teria sido desvelada na infame traição dos Lanceiros Negros em Porongos (1844). Embora necessário, esse contraponto presume que uma convicção abolicionista é condição para desestruturar a escravidão, concluindo de saída que a revolta não produz, nem poderia produzir, nenhuma abertura real de possibilidades. No entanto, as consequências da mobilização militar de escravos e gaúchos, por mais pragmática que tenha sido, e certamente não o foi para a cúpula farroupilha como um todo, estavam também em jogo na guerra. A traição de Porongos é parte da acomodação dos líderes do movimento já derrotado, mas essa trajetória não estava inscrita em sua eclosão. Em caso de triunfo, isto é, de inibição política da resposta militar do Império, essas mesmas elites agrárias teriam outro cálculo do dissenso a fazer: governar uma república lavrada por um exército multiétnico, cuja alforria fora conquistada pelas armas176. A traição de Porongos representa não só a acomodação cúmplice dos estancieiros derrotados à ordem imperial, mas também o sucesso desta em racializar a repressão aos movimentos de resistência naquela conjunção crítica. Ao manipular a ameaça de uma guerra de raças, nos diferentes quadrantes do império, a Corte conseguia romper certas solidariedades de classe operadas regionalmente para desescalar a contestação à sua autoridade. Que se tenha lançado mão dessa racialização – da Amazônia à Bahia, do Maranhão ao pampa – não é suficiente para explicar seu sucesso. O problema explicativo da Era das Revoluções brasileira no longo século XIX é, então, a resolução conservadora da situação de soberania múltipla instituída após o Ato Adicional. Medindo forças com múltiplos projetos alternativos de ordem, mais ou menos radicais perante a existente, a monarquia sediada no Rio de Janeiro consegue neutralizá-los, reaglutinar o controle político da violência e constituir-se como vetor de nacionalização da política. Um projeto hegemônico de ordem pós-colonial passa a Como lembra Izecksohn (2015), a mobilização de escravos já ocorria em determinadas circunstâncias desde o período colonial, e foi regulamentada após a independência no sentido de ressarcir os proprietários que cedessem seus escravos à tropa. Ainda assim, o expediente não abria maiores brechas no regime escravocrata. No caso do Rio Grande do Sul, a mobilização sob a bandeira republicana criou essa brecha de indefinição. No norte da América do Sul, por exemplo, ela gerou fissuras políticas sucessivas das quais o regime de trabalho escravo nunca se recuperaria. 176 364 ser articulado pelo “liberalismo escravocrata” dos saquaremas fluminenses, associados ao comércio portuário e à classe senhorial do café (SALLES, 2012). Para entender como foi possível essa resolução conservadora, enquanto fechamento progressivo do horizonte de possibilidades na virada para os anos 1840, vamos resgatar alguns aspectos que mostram como a resposta foi sendo sinalizada até aqui, na conjugação da situação periférica com a trajetória pós-colonial de formação de estado. Pudemos perceber anteriormente que as manobras protelatórias da monarquia bragantina durante a Era das Revoluções colocaram-na em uma posição particular na geografia econômica do ciclo de acumulação emergente. O substrato dessa posição era a “segunda escravidão” como polo periférico da industrialização britânica, o qual se solidificara no Brasil por meio da prioridade comercial entre 1810 e 1844. Com isso, no momento de decolagem hegemônica, o litoral brasileiro se torna uma cabeça de ponte para o capital britânico na América do Sul: à época da independência, 60 casas comerciais britânicas já operavam no Rio de Janeiro, 20 na Bahia e 16 em Pernambuco (MARICHAL, 1989: 18). No ciclo de endividamento externo dos anos 1820, os credores ingleses exigiram juros de cerca de 15% na Argentina e 30% no México, enquanto que o acerto do Brasil com o banco Rothschild & Sons em 1824-1825 previa entre 3 e 5% sobre o valor nominal dos títulos (MARICHAL, 1989: 34). Com a crise em 1826/1827, o Brasil é o único país latino-americano a manter os pagamentos da dívida externa. A contrapartida comercial disso é muito clara: enquanto os mercados latino-americanos estão desintegrados pela crise, o Brasil absorve quase 50% das exportações têxteis britânicas. Não obstante a agitação política em curso no continente, o valor das importações brasileiras provenientes do Império Britânico não cairia abaixo de 2,5 milhões de libras ao longo das décadas de 1820 e 1830. Isso ocorre precisamente porque não há interrupção dos circuitos exportadores de produtos tropicais dependentes da escravidão negra, renovada sob os auspícios do estado. Mais especificamente, como dito antes, o dinamismo extraordinário do café no Vale do Paraíba estava reorganizando não só o mercado internacional dessa commodity177, mas também as oportunidades fiscais disponíveis no Brasil. Sem que a Marquese (2013) sinaliza que a produção mundial de café decuplica desde o triunfo da revolução negra do Haiti, então principal polo exportador, até o fim da escravidão no Brasil em 1888. Além disso, recorrendo a estimativas de época, demonstra como a produtividade dos cafezais no Vale do Paraíba 177 365 estrutura fiscal brasileira tenha passado por grandes controvérsias normativas, que desmantelassem por convicção seu perfil mercantilista, o centro de gravidade da arrecadação se deslocava silenciosamente para as aduanas, desproporcionalmente para a aduana do Rio de Janeiro (Tabela 10.2), que puxavam o crescimento do orçamento imperial, correspondendo a mais da metade de seus ingressos. Dessa forma, a musculatura fiscal, creditícia e militar do centro do império está muito mais desenvolvida quando, nos anos 1830, a ordem política é posta em xeque. Em múltiplos cenários simultâneos, esse centro é capaz de impor o processo de desencaixe da política de seus contextos locais, submetendo a “autonomia” das províncias aos termos do Ato Adicional, ou seja, à ordem constitucional vigente. Com isso, se reverte a abertura do horizonte de possibilidades que vinha ocorrendo no espaço imperial português desde a crise de 1820. Na década de 1830, há efetivamente uma conjugação entre o confronto de marcos ético-políticos incompatíveis, fissuras no controle político da violência e a mobilização política de subalternos. A força centrípeta do império para contrarrestar esses movimentos jaz, por tudo que se disse, na propulsão precoce do ciclo extrativo-coercitivo por sua inserção na geoeconomia da “segunda escravidão”. Em outras palavras, a abertura retardada da conjunção crítica faz com que ela ocorra sobre efeitos já acumulados da transição hegemônica em nível sistêmico. De submetrópole do império português o Brasil se reposiciona como periferia associada o novo ciclo de acumulação, o que só foi possível pelo controle do potencial disruptivo local da Era das Revoluções, protegendo-se as hierarquias sociorraciais mesmo que sob ilegalismos práticos. 10.2. A formação de um liberalismo hegemônico no Brasil (1838-1930) Na passagem para o Segundo Reinado, há um encadeamento de eventos que vão circunscrevendo os limites da política por diversas frentes, sem que sejam eles manifestações das mesmas causas ou passos de um plano arquitetado de antemão. O era consideravelmente superior ao que se obtinha no Caribe: enquanto no Haiti pré-revolucionário se produzia aproximadamente 0,22 toneladas métricas/ano por cada escravo, essa taxa chegava a 1,23 no Brasil pré-Abolição. Com o crescimento da importação de escravos africanos após a abertura dos portos, o Brasil já atinge predominância indisputável no mercado mundial de café nos anos 1830. 366 chamado “regresso” conservador de 1838, o enfraquecimento das revoltas armadas a finais da década de trinta, a revisão centralista do Ato Adicional em 1840, o golpe da maioridade de Pedro II e a derrota dos liberais em 1842 compõem o núcleo da inflexão. Se ampliarmos um pouco o escopo, seria possível identificar sua gestação já no Código Penal de 1835, que remetia a escravidão à esfera privada pela doutrina liberal da propriedade, e sua cristalização definitiva em 1847, quando a criação do cargo do presidente do gabinete de ministro normaliza a rotina parlamentarista do sistema político monárquico. O episódio mais saliente desse encadeamento possivelmente é a antecipação da maioridade do imperador em 1840, inicialmente conchavada pelos liberais alijados do poder. Uma vez consumado, no entanto, o restabelecimento da figura imperial concorreu à normalização política sob hegemonia dos conservadores e seus intelectuais públicos. Essa hegemonia não significava o controle total ou ininterrupto sobre o aparato de estado, mas a direção política mais ampla capaz de definir a ordem política e seu contrário (SALLES, 2012). Como também mostrou Ricardo Salles (2012), o principal eixo desse projeto conservador, i.e. a plataforma que congregou seus atores e suas agendas, foi a defesa política da escravidão. De fato já não havia condições para sua sobrevivência espontânea, inercial. Em 1831 o tráfico internacional de escravos fora oficialmente abolido por coação britânica e inúmeras fissuras pareciam se abrir no regime durante o período regencial. Sob pressão, o resgate do trabalho escravo dependia não só de sua defesa ideológica, mas de uma ampla franja de ilegalismos e omissões que dependiam da direção de estado. Para contornar a ilegalidade do tráfico após 1831, a tolerância com o contrabando de cativos se completava com a ausência de censos nacionais até 1872, quando entra em vigor a lei do ventre livre (COSTA, 2005). Dessa forma, os escravos contrabandeados eram, para todos os efeitos, registrados como ladinos178. A Com a proibição do tráfico intercontinental, os únicos escravos oficialmente aceitos seriam ladinos, ou seja, nascidos no Brasil. Como a importação seguia ocorrendo ilegalmente, grande número de escravos no Brasil eram falsamente apresentados como ladinos. A iniciativa estatal de catalogação demográfica poderia revelar essas fraudes, o que prejudicaria os grandes proprietários e, no limite, geraria incerteza e crise no mercado doméstico de escravos. É interessante lembrar que, no começo da década de 1850, uma tentativa de levantamento cadastral da população gerou reações não só dos latifundiários, mas sobretudo da população liberta receosa de que o registro civil pudesse significar na prática o retorno à escravidão (a própria lei de 1851 ficou popularmente conhecida como “lei do cativeiro”). Uma vez mantido o escravismo, os ilegalismos ao seu redor não beneficiavam somente os ricos proprietários de escravos, mas uma ampla camada de pessoas livres cuja liberdade era, por diversas razões, insegura pelos critérios legais. 178 367 escravidão se equilibrava na sombra da lei por cumplicidade do poder político, que, com o Código Penal de 1835, oficializara a regulação cotidiana do trabalho escravo pelos próprios proprietários. Como doutrina dessa abstenção, recriava-se o pensamento liberal em uma chave escravocrata (MARQUESE, 2003). Essa flexão do liberalismo contra o trabalho livre não é uma anomalia arcaica, como outrora se pensava. De fato, não foram poucas as vozes ilustradas, a começar por José Bonifácio de Andrada, que advogaram ao estado o papel de ativamente promover a transição para o trabalho livre (AZEVEDO, 1987: 33-59). Tampouco esteve o país apartado do liberalismo econômico emergente na Era das Revoluções, que vinculava indivíduo, interesse e progresso ou, mais rapidamente, comércio e civilização. Como mostra Marquese (2003), é precisamente sobre esse edifício ético-político que a defesa intransigente da “segunda escravidão” vai se alojar, tal qual ocorria no sul do EUA. Ademais, a reinvenção da escravidão pelo saquaremismo fluminense extraía força das oportunidades econômicas que prometia: se nas sociedades em industrialização o estado se incumbira de assegurar a oferta e disciplina dos assalariados, o estado liberal brasileiro escudava a escravidão para garantir a força de trabalho adequada à expansão cafeicultora. A rigor, isso não ocorria enquanto na Inglaterra se produzia a proletarização estudada por Polanyi, mas justamente porque ela estava ocorrendo, na escala e no ritmo em que estava ocorrendo. A instituição de um mercado de compra e venda de terras no Brasil é discutida por iniciativa dos conservadores desde 1842, mas só é definitivamente aprovada em 1850, mesmo ano da suspensão efetiva do tráfico internacional de escravos. Em um movimento, o governo estipulava a universalização teórica da propriedade privada sobre a terra e seu próprio monopólio sobre as terras devolutas. O controle sobre os efeitos dessa reforma estava estreitamente ligado à reprodução interna da escravidão no campo e à regulação do incipiente mercado de trabalho livre. O poder dos latifundiários assegura que a mercantilização da terra no Brasil passa ao largo de qualquer radicalismo agrário, além de cumprir papel decisivo na transição para o assalariamento na cafeicultura, ao represar força de trabalho sem acesso à terra. A baixa ativação popular durante a Era das Revoluções fez com que o reformismo fundiário brasileiro fosse essencialmente maleável aos interesses estabelecidos no campo, o que não significa exatamente que ele tenha sido “letra morta” (SILVA, 368 2015). Pelo que foi dito na primeira parte da tese, há um conteúdo político inerente ao hiato entre as formas jurídicas e as práticas que as materializam. Em outros termos, o projeto saído hegemônico dos conflitos regenciais é mais denso que um conluio pela preservação da escravidão o quanto mais fosse possível. Sob a direção da classe senhorial fluminense, o reformismo incide sobre as condições de reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo que se vinculara ao comércio internacional no ápice do imperialismo de livre comércio britânico. Se a tarifa Alves Branco solidificaria a transição fiscal em 1844, ao transferir decididamente o fardo fiscal para os bens importados, essas importações se baratearam pela elevação dos preços do café: na década de 1850, os termos de troca do comércio exterior brasileiro teriam um considerável ganho conjuntural, algo acima de 50% (BULMER-THOMAS, 2003: 79). Em tal conjuntura, o agenciamento de estado a esse segmento de lucros extraordinários se torna a ponta de lança da centralização política. Em 1860, ocorre a primeira reorganização ministerial brasileira179, cuja tônica foi fortalecer um ramo burocrático de infraestrutura, ferrovias sobretudo, voltado à integração aos mercados mundiais (RODRIGUES, 2016: 40-44). Associada às oportunidades fiscais nas aduanas, a decolagem da cafeicultura também ampara o desenvolvimento de um mercado da dívida pública após 1840. De fato, o orçamento apresentou curtos interregnos de superávit no Segundo Reinado, o que inchou cumulativamente a dívida interna. Se até 1840 o governo rolava sua dívida majoritariamente com a casa de Rothschild em Londres, na década de 1850 o estoque da dívida externa já é inferior às obrigações denominadas em própria moeda (Tabela 10.3). Embora o fomento às instituições financeiras estivesse no horizonte desde o período joanino, é só em 1853 que o Banco do Brasil efetivamente entra em operação. Ao regulamentar as firmas de capital aberto, dissolvendo a estrutura corporativa precedente, o Código Comercial instituído em 1850 também facilitou a criação de bancos privados, que adquirem importância crescente na emissão de moeda, pelo menos até 1866, quando o monopólio de emissão do Tesouro foi restituído por lei (ABREU & LAGO, 2001: 367). As filiais de casas financeiras internacionais também iniciam suas atividades nesse contexto, a começar pelo London and Brazilian Bank em 1862. Como mostra o diagrama ministerial elaborado por Rodrigo Rodrigues (2016:40), essa primeira reforma cria a Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, desmembrada do Ministério do Interior. 179 369 Em termos proporcionais, ainda assim, o pagamento de juros da dívida pública perde peso com relação à arrecadação nas duas décadas entre 1845 (34%) e 1865 (15%), quando a Guerra do Paraguai desregula abruptamente o orçamento (Tabelas 10.3 e 10.4). Como no caso da Argentina, há um salto no endividamento pelas exigências de guerra; um único empréstimo contraído em Londres atinge quase 7 milhões de libras, o maior do século, mas não consegue cobrir mais de 15% dos gastos com o conflito (MARICHAL, 1989: 92-93). O grosso do esforço de guerra é sustentado pela emissão de moeda, daí sua monopolização em 1866, e pela elevação astronômica da dívida interna, que vai de 80 mil a 234 mil contos de réis apenas no quinquênio 1865-1870. A capacidade de endividamento confere, assim, a elasticidade que faz com que as exigências galopantes de uma guerra travada a longa distância não produzam uma implosão política, um travamento social do ciclo de extração e coerção. Pelo contrário, há fortes indícios de que, sob déficits assombrosos e conflitos frequentemente violentos, uma ampliação desse ciclo é catalisada pela guerra. Em primeiro lugar, estando suas fontes afastadas do teatro de guerra, e a economia mundial em franca expansão, a arrecadação total praticamente dobra de 1865/1866 a 1869/1870, patamar este que, ao contrário dos gastos, não recuaria com o fim da guerra. Em segundo lugar, produz-se uma nacionalização da mobilização militar, engolfando as Guardas Nacionais e as polícias em um contingente inédito de mais de 120 mil combatentes ao longo da guerra. Essa imensa extração humana naturalmente produziu resistência na medida em que o Exército extrapolava seu antigo perímetro de instituição penal. Se os despossuídos recorriam às fugas, deserções e mesmo às revoltas violentas, os fazendeiros se viam lesados pela drenagem de sua força de trabalho que era também sua propriedade (IZECKSOHN, 2001). Ao mesmo tempo, o recrutamento deixava uma janela aberta no sistema escravocrata, análoga, mas mais ampla, ao que havia sido a pena das galés180 desde 1857 (AZEVEDO, 1987: 180-199). Embora o número de escravos libertado para o serviço militar tenha sido oficialmente baixo, cerca de 4 mil, há forte indício de 180 O Código Criminal de 1835 previa a pena de morte para escravos que atentassem contra seus senhores, o que foi revisto em 1857, tornando o degredo nas galés a pena máxima oficial. Desde então, os escravos se valeram desse subterfúgio para escapar ao cativeiro, já que, uma vez condenados, seriam remetidos às galés imperiais, e não mais mortos. Segundo um delegado paulista da época, os escravos, quando questionados pelas razões dos crimes, frequentemente respondiam ao juiz que “matei para servir ao Rei! Matei para sair do cativeiro!” (AZEVEDO, 1987: 196). 370 subnotificação, uma vez que aqueles que conseguiam fugir do cativeiro se alistavam como libertos (IZECKSOHN, 2015). Ainda, há situações cujo impacto social não é quantificável, como a decisão do próprio Imperador de libertar centenas de escravos das fazendas imperiais para o Exército em 1866. Para impulsionar o recrutamento em escala nacional, diversas fissuras eram abertas nas hierarquias raciais e, consequentemente, no próprio regime de trabalho escravo, afetado internacionalmente pela abolição nos EUA em 1863 (IZECKSOHN, 2001; MARQUESE, 2013). No Brasil, o surgimento do movimento abolicionista (1868) e a Lei do Ventre Livre (1871), aprovada à revelia das províncias do centro-sul, descongelam o revestimento institucional da “segunda escravidão”, fragmentando o que havia sido seu núcleo de sustentação política. Essa fragilidade se avoluma por múltiplas ações rebeldes de escravos em seu próprio local de trabalho, ressucitando o velho fantasma da revolução negra: “o Brasil”, escreve Silvio Romero em 1883, “não é, não dever ser, o Haiti” (apud AZEVEDO, 1987: 70). Em outras palavras, a aceleração do ciclo extrativo-coercitivo sob a pressão da guerra estremeceria suas bases sociais, o que repercutiu igualmente sobre os arranjos de autonomia provincial conformados na conjunção crítica. Dohlnikoff (2003) se esforçou por mostrar que, por trás da aparência de centralização imperial, as principais províncias conservavam o fundamental das prerrogativas estabelecidas pelo Ato Adicional, reformado, mas não revogado, pelo regresso conservador. Não obstante, a ênfase da autora no vigor da autonomia administrativa provincial institucionalizada entre 1821 e 1840 perde de vista que mantê-la nos limites constitucionais do Ato Adicional foi precisamente um triunfo do poder central diante de possibilidades mais radicais aventadas desde 1817181. Isso dito, é claro que o poder sediado no Rio de Janeiro logrou a unificação política após 1840 franqueando ampla autonomia de gestão provincial às suas elites locais, por delegação, omissão ou acordo. Essa autonomia provincial, por sua vez, Ao comentar a cooptação dessas elites locais, Dohlnikoff diz que elas “passavam assim a se responsabilizar e a se interessar pela preservação do próprio Estado, constituindo-se como elite política, com profundos laços na organização socioeconômica regional, mas também comprometida com a unidade e o Estado nacionais. (...) O jogo político regional passava assim a vincular-se a outro mais amplo” (DOHLNIKOFF, 2003: 465). Ora, esse jogo político mais amplo, i.e. nacional, estava vertebrado por um conjunto de instituições (parlamentarismo monárquico, escravidão, religião católica, Guarda Nacional, aliança com a Inglaterra, as nomeações de presidentes, etc.) que delimitavam a política regional. A ideia de que essas elites locais passam “a se responsabilizar e a se interessar” pela preservação do estado é o testemunho efetivo de sua associação subordinada ao projeto hegemônico articulado pelos saquaremas da capital. 181 371 repercutia no controle direto sobre as instâncias municipais, politicamente esvaziadas desde o Regimento das Câmaras Municipais aprovado em 1828182. Socavados os projetos secessionistas ou confederais, o bloco saquarema assegura a Corte como epicentro político do estado, deixando que os cenários regionais lhe gravitem, com considerável autonomia prática sobre as decisões de extração e gasto, ameaça e exceção. A pressão produzida pelo esforço de guerra entre 1864 e 1870 não acirrou simplesmente as tensões sociorraciais, mas também os atritos decorrentes desse arranjo de autonomia provincial. O primeiro sinal de desajuste é o enfraquecimento legal da Guarda Nacional, cujo oficialato fora o veículo por excelência de incorporação das elites regionais à estrutura do império. Durante a Guerra do Paraguai, quase metade dos soldados foram mobilizados por meio da Guarda. Em 1873, no processo de desmobilização, são retiradas as competências policiais ostensiva da corporação e, indiretamente, seu papel no controle eleitoral. Em certa medida, há uma inversão de papeis: enquanto o Exército, até então uma instituição disciplinar, adquire maior projeção política, a Guarda Nacional, cuja origem foi fundamentalmente política, perde os instrumentos de regulação da vida civil (CARVALHO, 1999: 326-338). Na conjunção entre a mobilização militar e a Lei do Ventre Livre, é rompido em 1872 o silêncio cadastral vigente desde a independência: o primeiro censo, além da ideologia de progresso subjacente, implicava uma intrusão administrativa em escala nacional. Contudo, nos anos 1870 e 1880, o abalo no funcionamento do poder provincial tinha raiz fiscal. Como vimos, a transferência de competências tributárias para as assembleias provinciais na década de 1830 adotara um princípio quase federativo, ao implicitamente lhes conceder a prerrogativa de criar impostos desde que fora da jurisdição central, que taxava principalmente as importações. Essa vaga linha divisória foi objeto de constantes atritos legais entre o governo central e as províncias, cujos subterfúgios para elevar sua receita acabam invadindo indiretamente a competência da Corte. 182 A estrutura do Ato Adicional não interferiu na condição subordinada das câmaras municipais perante as assembleias provinciais. Como diz Dohlnikoff: “Orçamentos e posturas eram examinados [pelas assembleias provinciais] e adquiriam valor legal apenas depois de aprovados por ela. Tanto em São Paulo, como no Rio Grande do Sul e Pernambuco, os deputados não hesitavam em rejeitar orçamentos e posturas, impondo alterações e reformulações” (DOHLNIKOFF, 2003: 461). 372 Diante disso, até a explosão da dívida pública durante a Guerra do Paraguai, o governo central foi relativamente condescendente com os ilegalismos tributários praticados no resto do país, mesmo que estes implicassem uma sobrecarga fiscal adversa para uma maior circulação de mercadorias (COSTA, 1998; DOHLNIKOFF, 2003). Essa lassidão administrativa começa a se tornar insustentável com o endividamento de guerra (Tabela 10.3). É oportuno lembrar que, da mesma forma que então ocorre na Argentina, a dívida acumulada pelo império é catapultada pela crise mundial que marca o momento de financeirização da hegemonia britânica em 1873, mas que afeta também o comércio internacional do qual dependia a arrecadação imperial. Após décadas de crescimento sustentado, a receita total tem o primeiro episódio de grave oscilação, recuperando só em 1878/1879 o patamar de 1871/1872 (Tabela 10.4). Se o pagamento de juros como proporção da receita caíra até 1865, há um salto no período de guerra que não é revertido nas décadas subsequentes, mas antes o contrário: dali em diante o pagamento de juros cresce mais rapidamente que a arrecadação. Como aponta Wilma Costa (1998), o endividamento público nesse contexto fornece “a peça que falta” para dar inteligibilidade à crescente contestação, por parte das províncias, do que seria uma excessiva centralização do império: “o peso da dívida pública interna e externa funciona como uma formidável bomba de sucção que o serviço da dívida faz operar em direção à Corte e, de lá, para Londres e para a praça bancária do Rio de Janeiro” (COSTA, 1998: 149). Tal qual em 1827, Brasil não suspende os pagamentos de sua dívida externa, distribuindo socialmente seus sacrifícios. Com isso, a disciplina fiscal e administrativa exigida pelo cenário internacional adverso sufoca a relativa permissividade política que acomodara as elites regionais desde 1840. A “formidável bomba de sucção” incide sobre uma situação especialmente assimétrica no plano nacional: o desenvolvimento da cafeicultura exportadora, impulsionado pela nova malha ferroviária e pelos preços internacionais ascendentes, destoava da desarticulação generalizada dos demais complexos exportadores nas últimas décadas do século XIX, com exceção da borracha no Pará (Tabela 10.5). A sucção de recursos para o governo central, nesse contexto, pressiona setores econômicos já em crise no sul e nordeste, cuja força de trabalho escrava estava sendo exportada em grande quantidade para São Paulo. 373 Por seu turno, os governos provinciais apelavam ao poder central para obter compensações pela crise da escravidão, abrindo mais uma faceta do estiramento fiscal dos anos 1870. Sem poder cobrir as diversas demandas sobre seus recursos escassos, a elite imperial tentou aplacar a insatisfação das províncias com concessões pontuais, subsídios específicos a ferrovias, engenhos e projetos de imigração que, como um todo, deterioravam ainda mais os déficits orçamentários (COSTA, 1998: 151-153). A pressão fiscal nos anos 1870 e 1880 corre subterrânea à maior instabilidade vivida pelo sistema político imperial entre 1868-1889, interrompido pelo golpe militar de 15 de novembro. Em suma, fosse pela desestabilização das hierarquias raciais no declínio geral do liberalismo escravista, fosse pelo atrito resultante da sucção fiscal sobre as províncias, a conjugação entre desmobilização militar e a crise internacional de 1873-1879 colocou sob pressão a ordem política. O último aspecto que cabe observar nessa seção é como a resposta a essa pressão foi uma tendência de desdemocratização da política institucional que anuncia o gradual declínio do “longo século XIX”. Ainda que inconstante, essa tendência responde aos dilemas postos pela expansão notável do perímetro de influência do estado brasileiro na vida social, resultante da conexão, soldada no momento anterior, entre empuxo comercial, endividamento público e mobilização para a guerra. Como dito no capítulo 6, ainda em um escopo mais abrangente, esse fechamento institucional funciona como forma de neutralizar a imprevisibilidade política do desencaixe social acumulado nos oitocentos. No caso brasileiro, isso tinha estreita relação com o controle social face à erosão gradual da escravidão até sua completa extinção em 1888. Ao reconfigurar a fisionomia do poder central por um arranjo inter-regional de elites, a república federal consegue relançar uma “democracia para o povo dos senhores” quando já não havia mais escravos. A desdemocratização não é abstrata, mas relacional; seu transcurso no tempo só é inteligível se avaliado perante a massa de reivindicações, repertórios e subjetividades que precisam ser afastados, no extremo à força, do funcionamento ordinário do sistema político. O primeiro sinal desse processo se encontra no próprio sistema eleitoral, cuja reforma de 1881 reduziu drasticamente o número de cidadãos aptos a votar. Até então, o critério para os votantes primários havia sido unicamente a renda, com valores 374 relativamente baixos e de comprovação bastante informal. Ao instituir o voto direto para todos os cargos eletivos, a reforma tornou mais rigoroso o critério censitário e proibiu de votarem os analfabetos, então 85% da população brasileira. Enquanto nas eleições de 1872 votaram mais de um milhão de pessoas, em 1886 o eleitorado chegou a pouco mais de 100 mil, 0,8% da população brasileira (CARVALHO, 2002: 38-42). Essa abrupta contração seria lentamente relaxada durante o período republicano conforme as elites regionais passaram a exercer maior controle sobre as eleições. Embora o voto fosse direto, a participação eleitoral passou a ser filtrada, no plano nacional, pelo mecanismo de concertação entre elites que estabilizara a República. “O fato da eleição ser decidida previamente às urnas refletiu-se em baixíssimos níveis de competitividade eleitoral, resultando em desmobilização e apatia políticas” (VISCARDI, 2001: 80). O comparecimento médio às urnas na Primeira República foi de apenas 2,65%, lembrando-se que o voto era facultativo desde 1881. A força do federalismo, como demonstra Cláudia Viscardi (2001), não adveio de uma aliança rígida entre São Paulo e Minas Gerais (a conhecida política do “café com leite”), mas em alinhamentos móveis e no revezamento negociado entre os principais estados da federação. Esse arranjo só se revela maduro a partir da sucessão de Rodrigues Alves em 1906, após, portanto, os períodos de hegemonia paulista (1894-1906) e de cesarismo militar (1889-1894). Esse federalismo não era imune às crises, mas conseguiu administrá-las razoavelmente até 1930. Sua política não era necessariamente instrumental e subordinada à lavoura cafeeira, ou seja, não se pode resumi-la à regulação oficial dos preços do café acordada em 1906. Como mostrou extensivamente Sônia Mendonça, a criação do Ministério da Agricultura entre 1906 e 1909 serviu na prática para fazer política para as elites econômicas marginalizadas pelo café, no momento em que o revezamento negociado no executivo começava a se azeitar (MENDONÇA, 1997). As transações e contrabalanceamentos que estabilizaram o jogo político republicano se davam em diferentes âmbitos do aparato de estado, mas sempre no perímetro restrito dos notáveis, daqueles que se reconheciam como capazes para a tarefa da política. É óbvio que, para ser possível, essa tendência de desdemocratização delimita uma definição do que a política é e por quem deve ser feita. Novamente não há ali propriamente uma descontinuidade com a ordem liberal oitocentista mas antes um 375 enrijecimento tendencial, uma perda de maleabilidade de suas linhas de inclusão e exclusão. Em parte isso se devia à própria expansão da “fisiologia do estado”, de sua capacidade administrativa pelas razões que já tratamos. De outro lado, essa definição da política encontrava afinidade nas filosofias sociais elitistas que conquistam a minoria letrada na virada do século. A mais importante delas foi a filosofia positivista adaptada pela Escola Militar da Praia Vermelha183, que se torna a linguagem da primeira geração republicana. Como observou Moniz Bandeira (1973: 207), “os republicanos de 1889 imitaram Jefferson e Hamilton com sotaque de Auguste Comte”. No centro do pensamento elitista da época estava também o racismo darwinista difundido desde a Escola de Medicina da Bahia, bem como a nova criminologia cientificista que adentrou o protocolo das polícias, das prisões e dos manicômios184. Não obstante suas divergências, as elites republicanas comungavam referências de uma utopia aristocrática, não raro revestida de urgência, como se fosse tarefa da elite dirigente proteger o país de seus ímpetos autodestrutivos, da ociosidade, da degeneração racial, da violência ou das epidemias. Para além do revezamento eleitoral e das transações sobre o aparato, a coesão do arranjo inter-regional de elites repousava sobre essa comunhão ético-política que as distinguia do país que governavam. Por fim, havia o nó fiscal responsável pelo estiramento da monarquia, que o pacto republicano desatou pela federalização, agora oficializada. Os impostos de exportação foram legalmente transferidos para o âmbito dos estados, que podiam taxar também o trânsito interestadual. Em paralelo, os custos da transição para o trabalho livre passariam a ser administrados a nível estadual, o que também já ocorria na prática no final do Império. Com o desenho federativo, a flagrante e crescente assimetria regional passaria a moldar o poder central, ao invés de esperar-se que este pudesse contrabalançar aquela 183 Como mostra Nogueira (1977), o pensamento positivista irradiado pela Escola Militar da Praia Vermelha, criada em 1874, destoa da linha defendida pelos chamados Apostólicos, isto é, os discípulos ortodoxos de Comte cujo expoente maior era Teixeira Mendes. Enquanto os últimos seriam opostos a qualquer ato de violência, os militares positivistas estiveram profundamente identificados com o golpe militar de 1889. De forma geral, a crença dos ortodoxos na evolução gradual e pacífica da humanidade os colocava alheios à política da época, ao passo que o positivismo republicano, menos intelectualista e ascético, fez da reforma social e institucional seu objetivo prático. Sobre a influência da criminologia positivista e sua relação com o arcabouço legal da Primeira República, ver Alvarez, Sala & Souza (2003). 184 376 por seus próprios meios185. Às pressões por recursos se respondeu com concessão de autonomia, o que podia significar recursos para uns estados, para outros não. Mesmo para contrair empréstimos internacionais havia autonomia de estados e municípios fazê-lo sem autorização do governo federal, o que geraria um surto de endividamento nos anos 1920 (MARICHAL, 1989: 194-200). Sobre esse arranjo, o desenvolvimento da fiscalidade foi acentuando seus traços regressivos conforme se expandia, não só em termos regionais mas principalmente sociais. Embora o valor das importações tenha se mantido estável nos primeiros anos da República, os impostos arrecadados sobre ele cresceram 120% entre 1890 e 1898, o que resultou em uma elevação de 200% no índice de custo de vida após o encilhamento (BULMER-THOMAS, 2003: 109-112). O fundo de estabilização emergencial contraído em Londres em 1898 faz decolar o endividamento externo da nova república, que em 1913 comprometia cerca de 60% do gasto público (FILOMENO, 2006: 57). Quando a Primeira Guerra Mundial comprimiu as oportunidades fiscais aduaneiras e o mercado internacional de crédito, a União ampliou a cobrança de impostos de circulação interna sobre bens de consumo corrente nas cidades, das velas às bengalas (COSTA, 1998). A mobilização pelo custo de vida, com efeito, seria fundamental gatilho da incipiente ativação política dos pobres urbanos nos anos 1900, 1910 e 1920. O “controle conservador sobre o Estado”, conclui Wilma Costa (1998: 167), “expressava-se na transferência para os setores assalariados e para a classe média emergente, dos custos da manutenção da máquina pública”. Em suma, a tortuosa conquista da abolição da escravatura, resultado de uma longa mobilização social de âmbito nacional, constituía fatalmente uma medida axial de democratização da sociedade brasileira, dada sua história pregressa. No próprio processamento dessa medida, o sistema político respondeu com formas de fechamento institucional que permitissem controlar vetores de radicalização, que viam na emancipação chance para um reordenamento mais amplo das hierarquias sociorraciais e suas bases econômicas. A monarquia, como bem destrincha Lynch (2018), não tinha Sobre a transição para o regime republicano e federal, pode-se apontar que “muito embora não tenham se operado mudanças muito radicais, o nível de autonomia concedido aos estados, aliado às mudanças nos critérios de representação política parlamentar, erigiram um sistema federalista cuja principal marca foi a rejeição da isonomia entre as unidades federadas” (VISCARDI, 2001: 77; grifo adicionado). 185 377 razão intrínseca para sucumbir em meio ao processo. Mas sua derrubada militar fez com que o republicanismo, que afinal dera tração a movimentos democratizantes em diversos outros contextos do “longo século XIX”, funcionasse então como baliza ético-política do enrijecimento da ordem política liberal, cada vez mais entrincheirada ao redor do café, da dívida externa e da pressão extrativo-coercitiva sobre a população urbana. 10.3. Conjunção crítica II (1917-1945): as ruas, o povo e o desenvolvimento Nessa seção final, o objetivo é observar a trajetória do Brasil no colapso do ciclo sistêmico de acumulação liderado pela Grã-Bretanha, mostrando como se esgotam as vias de reprodução do modelo de formação do estado que, à marcha forçada, havia sido arrastado desde a crise dos anos 1870. Com isso, os marcos amplos com que o liberalismo oitocentista havia organizado a política começam a se desmanchar irreversivelmente, premidos entre uma conjuntura internacional adversa e uma espiral de contestação social desde baixo. Dessa indefinição da ordem política se produz uma reorientação forte nos apelos ético-políticos vigentes, na fiscalidade do estado brasileiro e nas linhas divisórias da proteção e da ameaça. Conforme se sedimenta, essa reorientação vai sepultando o “longo século XIX”, fechando o horizonte de possibilidades de sua crise. Na política brasileira, o autogolpe do Estado Novo em 1937 é possivelmente o marco mais forte para identificar essa inflexão na conjunção crítica, seu encerramento em formas institucionais resilientes, sua superação definitiva pelo ciclo sistêmico liderado pelos Estados Unidos. Em primeiro lugar, o circuito econômico do café atraiu aceleradamente a economia brasileira para a zona de influência dos Estados Unidos186, cuja organização social, de resto, havia sido exemplo para o movimento republicano brasileiro desde 1870. Em 1913, o mercado estadunidense já absorve um terço das exportações brasileiras, muito à frente do Reino Unido (13%), da Alemanha (14%) e da França (12%) (Tabela 7.3). O fluxo comercial não encontrava coincidência com o de capitais, ainda dominado pela financeirização britânica; essa triangulação perduraria até a crise de 1929, quando a referência da libra e da City londrina definitivamente desaparece. Quando Vargas anuncia a moratória unilateral da dívida externa brasileira, logo após 186 Vale lembrar que, desde 1870, o café brasileiro entrava sem impostos nos Estados Unidos. 378 o autogolpe de 1937, o governo britânico lança apenas palavras ultrajadas em defesa dos credores lesados. Já o governo dos EUA, imbuídos de sua “política de boa vizinhança”, consegue retomar os pagamentos em 1939 através de créditos do Exim Bank, ou seja, atrelando a dívida à expansão do comércio bilateral (MARICHAL, 1989: 194-200). A atração provocada pela ascensão dos Estados Unidos não se restringia, pois, ao fascínio por suas instituições ou por sua tecnologia, ou mesmo pela parceria diplomática tecida pelo Barão de Rio Branco (1902-1912), mas também pelo formato da relação econômica bilateral: enquanto a diplomacia econômica britânica, especialmente após a Primeira Guerra, se voltava mais à rolagem e a desgastantes renegociações sobre a dívida acumulada, com um comércio bilateral cronicamente desequilibrado contra o Brasil, os Estados Unidos forneciam então superávits imprescindíveis pela abertura de seu mercado ao café, além da exportação de novos capitais. Durante a Primeira Guerra, os Estados Unidos tomam espaço também na pauta de importações brasileiras, em um movimento generalizado então na América Latina (Tabela 7.4). A Primeira Guerra também teve um impacto positivo sobre a industrialização substitutiva no Brasil, o que fez com que o número de operários industriais urbanos no país chegasse a 275 mil em 1920, praticamente o dobro do começo década (CARVALHO, 2002: 58). Embora a agitação operária tenha despontado ainda nos últimos anos do século XIX, e suas primeiras organizações de grande escala surgido na primeira década do século XX, verifica-se um pico histórico de greves no país entre 1917 e 1920, cuja força põe no horizonte de possibilidades a regulação da jornada de trabalho, a segurança laboral e a indenização em caso de acidentes, o direito a férias e o reconhecimento da autonomia sindical (COLLIER & COLLIER, 2002: 68-72). Com efeito, as cidades industriais do centro-sul do país se colocavam no mapa dos movimentos anarquistas que tiveram na imigração seu principal veículo de internacionalização. Em 1922, parte desses militantes de formação anarquista forma o Partido Comunista Brasileiro, cuja influência no mundo sindical cresceria de forma expressiva até 1930. No mesmo ano, um grupo de jovens oficiais nacionalistas tentam depor o governo no fracassado levante no Forte de Copacabana no Rio de Janeiro. No segundo aniversário da revolta do Forte, militares tenentistas protagonizam uma 379 revolta de maior escala no estado de São Paulo, cuja capital sofre bombardeio aéreo pelo governo federal. Já no final dos anos 1920, esses novos movimentos políticos ecoam também no mundo rural por meio da Coluna Prestes e do Bloco Operário-Camponês, este último ligado ao PCB. Em meio à turbulência sistêmica, esse ciclo multiforme de contestação política na virada para os anos 1920 permite distinguir no Brasil a abertura da crise terminal do “longo século XIX”. Ao contrário do México e da Argentina, onde determinados eventos são fortes o suficiente para demarcar essa abertura, no caso brasileiro ela ocorre de forma menos unívoca, mais inconstante. Como notou Viscardi (2001), ao longo da década de 1920 o próprio sistema de revezamento de elites vai sofrendo avarias por intentos hegemonistas de certos estados, em uma fase de “progressivo esgotamento do modelo sucessório, estabelecido a partir da sucessão de R. Alves, em 1906” (VISCARDI, 2001: 75). As oportunidades políticas, nesse sentido, acabam alargadas em situações de maior polarização interna do pacto de elites, como foram as eleições de 1922 e 1930. De forma geral, a resposta institucional à ebulição política dos anos 1920 estava atrelada ao enrijecimento das linhas de inclusão e exclusão pelo arranjo republicano: de um lado, pela tentativa de anulá-la através de uma escalada da repressão social; de outro, porque o reformismo social até 1930 tem pouca densidade187. Seus resultados práticos são poucos à exceção da Lei Eloy Chaves de 1923, que trazia para a órbita do estado as caixas mutuais que os operários organizavam até então de forma autônoma. Com relação à escalada de repressão, a trajetória é bastante clara: à violência usada contra as greves de 1917-1920 seguiu-se um governo baseado no arbítrio da exceção (o quadriênio de Arthur Bernardes é quase todo conduzido sob estado de sítio), culminando, em 1927, com a chamada Lei Celerada, que criminalizou extensivamente os movimentos sociais operários e militares, em particular seus veículos de imprensa e agitação. Sem movimentar suas linhas de exclusão política, o governo intensificava Em 1919, o governo decidiu responsabilizar legalmente os patrões pelos acidentes de trabalho, mas a previsão dependia de tramitação na justiça comum, o que dificultava o acesso dos trabalhadores pelos recursos exigidos ou pela parcialidade indiscreta dos juízos. Em 1923 o governo criou o Conselho Nacional do Trabalho, que não adquiriu maiores funcionalidades práticas. A Lei Eloy Chaves estabeleceu pela primeira vez um sistema público de previdência social, inicialmente voltado para os trabalhadores ferroviários, mas rapidamente estendido a outras categorias. Ao contrário das caixas mutuais anteriores, as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) eram organizadas não por categorias, mas por empresas, previam a contribuição compulsória do empregador e eram fundos com representação tripartite, administrados pelo estado (SANTOS, 1979). 187 380 o policiamento contra subjetividades e práticas tidas como contrárias à ordem pública, dos operários aos capoeiras, das greves às religiões extraoficiais. A crise que derrubaria a Primeira República, contudo, adveio de um litígio no mecanismo de revezamento de elites regionais: diante da perspectiva de São Paulo hegemonizar a federação, como se percebia a eleição de Júlio Prestes em 1930, os estados secundários liderados pelo presidente do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, recorreram a um golpe de força com apoio militar. No que fora um movimento para preservar o equilíbrio da federação se deslizou para uma plataforma de reformas mais profundas, conforme se delineava um discurso negativo sobre o regime republicano, tido agora como oligárquico, corrupto e ultrapassado. Com a tomada do poder por Vargas em 1930, a reconstituição da ordem oitocentista já não era possível. Há alguns traços de aparente continuidade, como a política de estímulo aos preços do café pelo estado, agora ativada como política contracíclica e emergencial nos anos 1930 e financiada por créditos públicos188. Igualmente, a sustentação política inicial de Vargas não difere fundamentalmente dos compromissos pactados entre elites estaduais. No entanto, a meta do desenvolvimento, que emerge como novo imaginário de ordem, implica um deslocamento dessas balizas. Naquela conjuntura, o sistema mundial vivia o ápice de sua crise de governabilidade, o que oferecia considerável margem de autonomia para a hetedoxia do novo governo. Com a criação do Estado Novo, essa autonomia seria também imposta internamente. Do pacto de dirigentes estaduais que sustentou a tomada do poder em 1930, Vargas vai solidificando um tripé de âmbito nacional: os trabalhadores urbanos e o empresariado, atrelados por entidades representativas, e a corporação militar, cujo viés anti-oligárquico fora incensado pelo tenentismo. Para observar a emergência desse projeto de ordem, vamos observá-lo a partir de seus dois campos cruciais: o desenvolvimento e a nação. O desenvolvimento correspondia a um novo horizonte de regulação econômica contrário à autorregulação de mercado, posicionando o estado na articulação política entre a industrialização capitalista, a legislação social e o mundo sindical. Isso significava movimentos correspondentes nas linhas divisórias entre proteção e ameaça, entre ônus e bônus fiscais. A organização operária não poderia mais ser respondida unicamente com Essa prática é conhecida desde Celso Furtado na historiografia econômica brasileira como um “keynesianismo antes de Keynes”. 188 381 criminalização; a arrecadação não dependeria unicamente de impostos sobre o consumo popular; a evolução da indústria nacional, tema caro aos tenentistas que aderiram a Vargas, exigiria contramercados garantidos pelo estado. Uma dos primeiros sinais de descontinuidade é a criação, em 1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e do Ministério de Educação e Saúde, que colocaram a política social, pela primeira vez, no organograma ministerial brasileiro (RODRIGUES, 2016: 36-51). Logo nos primeiros meses do governo provisório de Getúlio, o interventor nomeado para São Paulo, Lins e Barros, sinalizou a favor de pautas trabalhistas no estado: a exigência do interventor de 5% de aumento salarial e jornada de 40 horas semanais – em meio à crise que desocupara quase metade da capacidade instalada na indústria paulista – radicalizou a oposição do empresariado até a revolta armada do estado contra o Catete em 1932 (WOLFE, 2014: 86). Ao longo da década de 1930, o estado brasileiro foi ocupando mais claramente um espaço intermediário nas relações entre capital e trabalho, no que, com o Estado Novo, se tornaria, de jure e de facto, uma estrutura corporativa de mediação de interesses. A sindicalização se torna uma política oficial de estado: as reuniões, instalações e princípios do sindicato eram projetadas como sociabilidade básica dos trabalhadores urbanos, bem como uma via de acesso a seus direitos políticos e sociais. Essa política teria como vetores o imposto sindical obrigatório, a Comissão de Enquadramento Sindical e a Comissão Técnica de Orientação Sindical, a CTOS (GOMES, 2005: cap. 6). Como mostra Ângela de Castro Gomes, o salto quantitativo da sindicalização ocorre só entre 1942 e 1943, quando a máxima operação da CTOS converge com a instituição da CLT, primeira legislação geral do trabalho no país. Ao cabo de uma década, forma-se um pilar de sustentação do estado brasileiro no trabalho urbano organizado, o que seria impensável e inexequível para as elites políticas do século XIX. Esse alargamento das linhas de inclusão política discriminava uma cultura do trabalhador honesto, nacional, disciplinado e organizado por sindicatos tutelados, na qual se franquearia proteção e direitos sociais, de todos os comportamentos tidos como potencialmente perigosos, como a militância comunista ou a malandragem desregrada. Não à toa, a inclusão política dos trabalhadores ocorre principalmente após 1937, quando o estado de exceção permite sufocar a influência comunista, ou 382 seja, assegurar o controle estatal sobre a sindicalização. Outra linha divisória fundamental foi a exclusão dos trabalhadores rurais. Uma vez que o sistema corporativo não vinculava o campesinato, não havia vetores de nacionalização da disputa política no campo, no qual amplas margens de arbítrio eram ainda admitidas ao poder local. Enquanto as relações industriais passaram a ser objeto de intervenção e regulamentação estatal, sendo regidas no plano nacional, o trabalho no campo permaneceu fora do perímetro da cidadania. A criação de uma legislação trabalhista foi revestida por um discurso de concessão magnânima. Ao invés de “cruentas reinvindicações populares para fazer o progredir o Estado”, dizia o ministro do trabalho em seu programa de rádio, a melhoria da condição dos trabalhadores no Brasil “provém da sabedoria do Estado e da clarividência das leis, para fazer progredir o povo” (apud GOMES, 2005). Esse imaginário de harmonia deliberadamente exclui de sua história o formidável ciclo de luta popular por direitos que arranca no período 1917-1922. A figura paternalista de Getúlio é manipulada para obliterar o vínculo entre a mobilização subalterna e a conquista de direitos. No entanto, se mantemos o olhar posto no movimento de abertura e fechamento dessa conjunção crítica, fica nítido que “foram essas lutas que geraram, sob uma ditadura implementada exatamente para contê-las, a primeira legislação geral do trabalho” (FONTES, 2010: 316). O reordenamento corporativo da questão social executa, assim, uma apropriação seletiva de aspirações, atores e utopias revolvidas na crise da ordem oitocentista. Ao fazê-lo, institucionaliza uma novo formato da arena política (representação funcional), um apelo ético-político (desenvolvimento nacional) e uma redoma de pertencimento (cidadania regulada). Um processo análogo ocorre do ponto de vista do imaginário nacional, cuja produção desde o estado se torna crucial no período varguista. Essa apropriação incide sobre uma disputa prática em curso nos anos 1920 e 1930 sobre o significado da nação, sobre o sentido de resgatá-la das amarras do passado. O declínio do positivismo e do racismo científico abriram um terreno de indefinição sobre a matriz nacional no qual incursionaram o modernismo, o comunismo e o integralismo, para ficar apenas em exemplos abrangentes. A efervescência da nacionalidade no pensamento social brasileiro do período era implicitamente uma controvérsia sobre as linhas de pertencimento político, sobre o 383 que era digno de proteção e o que era uma potencial ameaça para a cultura da nação. De um lado, os próprios termos da polêmica sinalizam a obsolescência do edifício ético-político do século XIX; de outro, o leque de perspectivas dá o tom da indefinição do presente. O que se processa sob Getúlio é a definição desse novo imaginário nacional por meio de saberes e políticas de estado, criando mecanismos de persuasão política adaptados a uma sociedade de massa. Para que haja um movimento das linhas de inclusão e exclusão política com consequências reais, produz-se determinadas especializações e ramificações do aparato de estado. Por exemplo, nos anos 1930 o governo Vargas desloca a ênfase na imigração estrangeira, já em declínio, para uma valorização da migração interna proveniente do nordeste, ressignificado como um repositório da brasilidade. Para a consecução da política foram criados o Departamento de Povoamento (1930) e o Departamento de Imigração (1938), além da promulgação da Lei dos Dois Terços em 1931 (que obrigava as empresas nacionais a contratar pelo menos 2/3 de trabalhadores brasileiros) e das quotas migratórias estipuladas pela Constituição de 1934. A questão da força de trabalho se imiscuía com a segurança e com a cultura nacional. Assim, ser um “trabalhador brasileiro” não era simplesmente uma retórica de apelo popular, mas uma condição que tinha consequências palpáveis para aqueles que nela se encaixavam, em função de políticas específicas orientadas por esses critérios. O mesmo ocorre com a promoção de cultura popular. É óbvio que a nacionalização de determinados signos culturais envolve diversas partes que não são propriamente estatais, desde os artistas até a difusão comercial do rádio nos domicílios. Mas ela passou decisivamente pela operação de órgãos especializados, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)189, o Serviço de Recreação Operária ou a burocracia do Ministério da Educação e Saúde sob Gustavo Capanema. As novas searas de atuação do estado brasileiro acarretavam tarefas de censura, educação pública, censos e fomento artístico que se cristalizavam em novos ramos de aparato governamental. Nesse contexto, de resto, é criado o Departamento Administrativo do Setor Público (DASP/1938), voltado à profissionalização dos quadros da gestão pública. Por trás da ressignificação da nação ou do povo brasileiro O Departamento de Imprensa e Propaganda foi criado em 1938, mas o primeiro órgão especializado em comunicação social foi criado já em 1931. 189 384 pelo governo Vargas estava a interiorização e adensamento do aparato governamental. O Código Nacional de Trânsito, instituído por decreto em 1941, seria uma das primeiras leis feitas no Rio de Janeiro que teve consequências reais no conjunto do território brasileiro (WOLFE, 2016: 92). Em termos políticos, uma nacionalização correspondente se efetiva na disputa partidária por meio das agremiações gestadas por Vargas (PTB e PSD) e daquela que lhe faz oposição (UDN). O PTB encarna o pilar sindical e urbano do varguismo, enquanto o PSD reúne lideranças empresariais e regionais, com força no interior. A competição eleitoral nasce então moldada pela revolução pelo alto conduzida entre 1930 e 1945, que, para reassentar bases novas de sustentação política, precisou levar a novo patamar o desencaixe da vida política de seus contextos locais e regionais. Levado a cabo esse reordenamento, o equilíbrio entre o programa nacional-desenvolvimentista e a democracia eleitoral não era impossível, mas se tornaria objeto de um jogo instável. Convêm algumas palavras de síntese. Na conjunção crítica entre 1820 e 1840, como vimos, a reinvenção liberal da escravidão permitira o rápido deslizamento de submetrópole imperial à inserção periférica no novo ciclo de acumulação. A propulsão do ciclo extrativo-coercitivo acabou por abreviar a crise política, cadenciada por modulações da legitimidade monárquica de 1808 a 1831. Esse abreviamento, por sua vez, diminuiu a extensão do abalo às hierarquias sociorraciais herdadas do colonialismo. Na gradual transição da órbita britânica para o ciclo sistêmico liderado pelos Estados Unidos, é possível distinguir uma série de deslocamentos associados na sociedade brasileira: do Rio de Janeiro a São Paulo, da monarquia à república, do trabalho escravo ao trabalho livre. O Brasil perde importância para a geoeconomia do império britânico e vice versa. Quando a crise de governabilidade mundial atinge seu pico nos anos 1930, é pelo autoritarismo de simpatias fascistas que Vargas completa a transição para os trilhos do “longo século XX”, em que a autorregulação de mercado é suplantada pela utopia do desenvolvimento como capitalismo regulado. 385 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em 5 de julho de 1969, a revista do Partido dos Panteras Negras nos Estados Unidos trazia um texto curto chamado “O fascismo é” (SAMYN, 2018: 277-278). Em uma sucessão de cenas secamente descritas, o texto por inteiro forma o quadro que completa seu título: “Porcos fardados correndo furiosamente nos guetos negros, espancando, assediando, intimidando e assassinando”. Na frase sequinte, uma torção: “Isso se torna Fascismo Constitucional quando Porcos Chefes e Comissários vão para estações de rádio e TV, dizem frases vazias sobre ‘Lei e Ordem’ (...)”. Em poucas palavras, o texto enseja o que seria a sua arrebatadora frase final: “O fascismo é a América”. Entre os anos 1950 e 1960, os Estados Unidos institucionalizaram o estudo científico da democracia, modelando-a em seu próprio regime representativo. A Ciência Política como a conhecemos foi gestada nesse ambiente. A democracia na América, idealizada pelos fundadores da República no século XVIII, era o contrário lógico dos regimes autoritários, fossem eles comunistas ou nazifascistas. Por definição, a democracia congrega a participação livre das pessoas comuns através de eleições, e as elites políticas estão controladas pelo voto popular e por freios e contrapesos institucionais. Há um senso prevalecente do que a realidade é, no qual o fascismo é a antípoda dos Estados Unidos da América. Para os Panteras Negras em 1969, o fascismo não se expressava em grandiosas marchas nacionalistas como na Alemanha ou na Itália, mas pela execução de uma política silenciosa de massacre da população negra sob uma fraseologia constitucional. Para os descendentes dos escravizados nos Estados Unidos, a política funcionava na prática não como democracia, mas como “Fascismo constitucional”, uma produção institucional de medo, racismo e segregação. O “fascismo é a América” porque ele “é o demagogo, preto ou branco, que encoraja guerras raciais para resolver problemas de classe”. Espalhando pânico e violência em “Detroit, Harlem, Watts, Vietnã e Porto Rico”, os fascistas “então fazem longos discursos sobre como eles odeiam a onda crescente de violência”. O que atravessa a denúncia é a indignação e a revolta contra a forma como a violência está organizada na prática, quem são seus alvos, quais são seus métodos e suas justificações. Por trás das incursões violentas dos “porcos fardados”, existe uma 386 construção política do que é uma ameaça que precisa ser neutralizada. Para fazê-lo as autoridades “bombardeiam o povo com estatísticas flexíveis sobre ‘áreas de alta criminalidade’ que são, na verdade, os guetos pretos”. Com isso, sem volteios retóricos ou prosa tratadística, o texto contesta radicalmente a fronteira do que precisa ser protegido, que, já o sabemos, é uma das formas mais profundas de indignação perante a autoridade. Ao falar de raça e de classe, desvela-se uma seletividade informal do uso da coerção, com o intuito de criminalizar a pobreza e a negritude. Lutar contra o comunismo no Vietnam ou contra a criminalidade nos bairros negros dos Estados Unidos é, portanto, uma linha ultrajante de separar a proteção da ameaça. Para dizê-lo, os Panteras Negras torcem e invertem o imaginário hegemônico de democracia no país. O texto não diz simplesmente que a violência policial precisa parar. Há uma disputa pelo significado ético da violência, que é inseparável da forma como se compreende a realidade em que ela ocorre. A violência usada contra os policiais, aponta o texto, é chamada “de anarquia, ou comunismo, ou fascismo”, ao mesmo tempo em que “chamam a violência contra o povo de ‘lei e ordem’”. Os signos com que a ordem política estadunidense aspira representar o mundo estão invertidos, subvertidos. Se a violência contra o povo é escamoteada como “lei e ordem”, não estamos na antípoda do fascismo. Os contrários não se excluem. Há “democracia” e “fascismo constitucional” na mesma realidade, porque há uma disputa política por seu sentido. Por assumir que não há razão necessária para que as coisas sejam como são e continuem assim, o dissenso incuba um horizonte alternativo e subalterno de ordem política. O texto resenhado até aqui não foi escrito na América Latina nem no “longo século XIX”, e tampouco a tem como tema. Ainda assim, ele consegue em poucos parágrafos ilustrar o que dissemos sobre a construção social da ordem política como um processo de conflito. Como mostramos em diversas oportunidades, a importância do conceito começa quando ele deixa de ser a mera sublimação da desordem, da violência, do caos. Assume, ao invés disso, um conflito amplo em torno dos parâmetros de ordenamento social, no qual é definida inclusive a noção mesma de desordem, de crime, de subversão, de conspiração. A vigência de uma ordem política aspira naturalizar determinados critérios de distinção para a realidade, como entre o fascismo e a democracia, interpretando o mundo de modo a que essas linhas sejam necessárias, inevitáveis, justas ou legítimas. Pensar a democracia estadunidense em 387 1969 como “Fascismo constitucional” é uma forma de observar a ordem vigente pelo prisma de sua contestação (capítulo 1). Ao pensar sobre a construção da ordem política na América Latina do século XIX, tentamos propor uma abordagem que não se limitasse a concatenar os indicadores usuais, como a captação de recursos fiscais, o ganho de escala dos exércitos, a diferenciação dos ramos burocráticos. Para não reificar a própria ideia de “estado”, consideramos que a construção da ordem engloba um confronto sobre o próprio sentido do processo. Na oratória de um padre de uma localidade do interior, na reunião dos vizinhos de uma municipalidade, no jornal operário que circula em uma grande cidade, na conspiração de um golpe de estado, na revolta de uma província que se pretende autônoma, no aparte de um parlamentar e em outros inúmeros cenários onde a disputa foi travada, a conteúdo mesmo da relação entre governantes e governados foi tensionado, refraseado, subvertido. Contudo, como disse certa vez Pierre Bourdieu (2014), a história mata os possíveis, o que vale para a construção histórica de uma ordem hegemônica sobre suas alternativas. Ao iluminar possibilidades exterminadas no percurso, estamos em melhores condições para desnaturalizar o processo tal qual ele ocorreu. Nesse quadro, buscamos definir uma tendência nos termos postos pela Pergunta 1: o que significa dizer que há uma tendência à concentração da vida política em torno a um estado moderno? Usando os termos explicados ao longo da tese, significa dizer que a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo tem como subproduto um processo de desencaixe da política de seus contextos locais e regionais (Gráfico 5.2). Como vimos, na conjunção crítica das independências, houve uma tendência de retroversão da soberania a espaços municipais e provinciais, que abria o espectro de possibilidades de realização da política nesses diferentes contextos (capítulo 4). Com o esgarçamento dos impérios ibéricos, afloraram imaginários discrepantes de como organizar, no tempo e no espaço, as relações de dominação política, que encontravam vazão pela proliferação de reivindicações de autonomia local. Ao longo do século, o espaço para essa autonomia foi sendo constrito. O desenraizamento da vida política fez com que ela ficasse mais atrelada a referências remotas oriundas do poder central, distanciada de seu entorno imediato e presencial. A resolução de conflitos, a gestão da vida coletiva e o exercício da autoridade dependem crescentemente de nomeações, regras e recursos que são processados por uma organização política de maior escala. 388 Os funcionários, a arrecadação e os ramos burocráticos operam como intrusões à autonomia local, adensando os canais de integração com as circunstâncias da disputa política nacional. A pergunta 2 se indagava pela explicação do processo na América Latina. Para tal, a tese buscou encadear dois processos em uma reação autocatalítica, isto é, uma reação cujos produtos funcionam como catalisadores dela própria. Esses dois processos são a autoconstrução dos estados pós-coloniais latino-americanos e o ciclo sistêmico de acumulação liderado pelo Império Britânico. Como foi extensivamente tratado, um terreno de benefícios recíprocos entre estadistas e capitalistas é soldado por meio das receitas aduaneiras e da produção estatal de mercadorias fictícias, a terra, o trabalho e o dinheiro (Gráfico 5.1). A rigor, não havia um deus ex machina na produção da regulação de mercado, pois não há uma exterioridade propriamente dita: a musculatura administrativa exigida pelo reformismo liberal era ela própria um resultado da inserção periférica na economia mundial. Por assim dizer, o estado fez o mercado enquanto o mercado fazia o estado. Formam-se ali as condições para a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, a qual alivia as pressões sociais sobre sua seletividade prática (Gráfico 1.2). Esse foi o caminho para a prevalência do liberalismo no século XIX. Por fim, a tese se perguntava sobre a posição das experiências latino-americanas diante da reflexão eurocêntrica estabelecida sobre o tema. O primeiro passo para tal foi a discussão do capítulo 3, que descartou uma saída pela via da substituição de importações intelectuais. Não se tratava, pois, de rechaçar a literatura unicamente por sua posição de enunciação, mas de pensar estratégias para subvertê-la desde um ponto de vista periférico. Como foi dito na introdução, a formulação da agenda de pesquisa tem origem em estudos eurocêntricos, mas não irrelevantes. Ao refazer as conexões que o eurocentrismo havia invisibilizado, pondo no centro o colonialismo e o capitalismo como fenômenos mundiais, a sociologia do estado não podia simplesmente assimilar “novos casos” sem refazer suas fundações. Assim, para superar seu viés modernizador, a sociologia histórica latino-americana se insere em um movimento mais amplo de reconstrução conceitual, “provincializando a Europa”. Nesta tese, as duas categorias fundamentais para operacionalizar esse movimento foram de estado pós-colonial e de estado na periferia (capítulo 3). A 389 primeira assimila o colonialismo moderno como vetor de extroversão do sistema mundial pela negação de soberania, engendrando espaços imperiais estratificados. A constituição de um novo estado é uma saída possível para o confronto político no interior desses espaços imperiais, movendo a linha de reconhecimento da soberania como igualdade formal. Realizada essa separação, um estado pós-colonial se constitui como retroação, ricocheteio, rebatimento do vetor de expansão imperial do sistema de estados. Na superfície, no entanto, ex-metrópoles e ex-colônias acabam indistintamente reconhecidas como “estados soberanos”, ou mesmo como novos e velhos estados. Essa equiparação resulta do apagamento de conexões históricas coloniais (capítulo 2). A ideia de estados modernos na periferia também busca contemplar um desenvolvimento desigual do sistema mundial, sublinhando que a mobilização de capital e coerção não é insensível às assimetrias existentes na economia mundial. Isso não precisa necessariamente levar a um determinismo econômico estreito, que presume uma coincidência regular entre os traços da política institucional no centro e nas periferias. Em escala sistêmica, cada ciclo de acumulação corresponde a um feixe de cadeias de valor que vinculam de forma específica cada localidade, cada região, cada estado. Isso envolve a espacialização de formas diferentes de trabalho, de apropriação do excedente, de interação com a natureza. Ao colocar em primeiro plano o desenvolvimento desigual entre centros e periferias, a categoria advoga que a formação de estados precisa ser compreendida no contexto de um sistema mundial que não é homogêneo, nem no tempo, nem no espaço (capítulo 2). Como os estudos de caso detalham (capítulos 8, 9 e 10), essas duas categorias são relacionais e históricas, portanto heterogêneas. Mais do que uma regra determinista, que permite inferir traços regulares em todos os casos, a abordagem exige uma costura empírica própria a partir das injunções da trajetória observada. Em outras palavras, a “dimensão imperial da política” e a “inserção periférica no ciclo de acumulação” não têm conteúdo dado de antemão, mas precisam ser investigados no entrelaçamento específico de eventos e processos que transcorrem sob determinadas condições iniciais. Esse parece ser o caminho mais promissor para contrapor o viés modernizador que a sociologia política normaliza a história latino-americana a modelos eurocêntricos de desenvolvimento. Não podemos retirá-la desses modelos sem 390 desintegrá-los. A tese aposta que é possível desintegrá-los sem que isso nos deixe sem qualquer teoria. Mais do que isso, a sociologia histórica, posta contra o eurocentrismo, pode contribuir para reconstruir uma teoria crítica do estado a partir de seus processos de formação. À luz do que já foi dito, cumpre reavaliar a posição desta pesquisa em seu contexto intelectual. Por um lado, é possível apontar direções pelos quais ela possa ser melhor desenvolvida para além da tese. Uma dessas direções de grande potencialidade seria sofisticar o emprego do método comparado, articulando estes ou outros estudos de casos em um desenho mais rigoroso. Por sua explícita afinidade com a análise de sistemas mundo, uma ferramenta metodológica útil seria a “comparação incorporada” (MCMICHAEL, 1990; 1992). Ademais, uma comparação potencialmente fértil ampliaria o escopo para além da América Latina, aquilatando as categorias de “estado pós-colonial” e de “estado na periferia” em outros contextos. Essa via permitia fortalecer o diálogo da sociologia histórica com as novas historiografias anti-eurocêntricas, algo que esta tese apenas arranhou a superfície. Um segundo caminho promissor parece ser a manipulação de novas escalas espaço-temporais. Por exemplo, a certa altura da tese, o vilarejo de Buriticá foi mencionado para ilustrar um fenômeno bastante amplo da crise do Império Espanhol, em que os indígenas dessa localidade manusearam diferentes linguagens políticas para resguardar-se do ativismo republicano do governo provisório criado em Antioquia. O caso foi mobilizado por essa ocasião e em nenhum momento retomado. No entanto, outro desenho de pesquisa, com uma ênfase historiográfica mais robusta, poderia tomar essa localidade como ponto de referência para observar o desencaixe da vida política e suas resistências ao longo do século XIX. Esse aprofundamento não necessariamente invalidaria o que se disse no âmbito das grandes escalas espaciais, mas demandaria uma nova tessitura de processos e eventos, com consequências potencialmente reveladoras. De forma mais geral, essa pesquisa se insere em um movimento de resgate da sociologia histórica como campo de pesquisa no Brasil. Nos anos 1970 e 1980, o influxo da literatura norte-americana recolocou em pauta a discussão sobre processos políticos em grandes escalas, distanciando-se da tradição ensaística da primeira metade do século (REIS, 2015). A paulatina rearticulação atual dessa agenda de 391 pesquisa certamente não obedece aos mesmos parâmetros daquele contexto, mas suas recomensas são também novas. Além disso, a pesquisa se afilia às tentativas de atualizar o pensamento crítico latino-americano dos anos 1960 e 1970 como plataforma para uma teoria social desde as margens (BRUCKMANN, 2001: cap. 3; DOMINGUES, 2008). Revisita o argumento do desenvolvimento desigual do ponto de vista da sociologia política, refazendo a aposta em uma ciência social integrada, híbrida e interdisciplinar. Em seu momento, tanto a sociologia histórica anglo-saxônica como o estruturalismo latino-americano foram pivôs da crítica às teorias da modernização, desidratando o que havia sido um paradigma científico dominante. Diante do que hoje desfruta de prestígio e circulação nos estudos latino-americanos, a retomada contemporânea dessas correntes oferece vitalidade criativa para enfrentar o desafio de um conhecimento social anti-eurocêntrico, seja na forma de uma “reconstrução pós-colonial de conceitos” (BHAMBRA, 2007; 2014), de uma “convergência teórica” entre a crítica pós-colonial e a teoria social clássica (KNOBL, 2016), ou de um necessário “movimento instituinte” na teoria social periférica (BRINGEL & DOMINGUES, 2015). É em tal contexto que o argumento se coloca. 392 REFERÊNCIAS ABREU, Marcelo de Paiva & LAGO, Luis Correa do. Property rights and the fiscal and financial systems in Brazil: colonial heritage and the imperial period. Em BORDO, Michael & CORTES-CONDE, Roberto (org.) Transfering wealth and power from the old to the new world: Monetary and fiscal institutions in the 17th through the 19th centuries. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, pp. 327-277. ABU LUGHOD, Janet. Before European hegemony: the world-system AD 1250-1350. Nova Iorque/Oxford: Oxford University Press, 1989. ACEMOGLU, Daron JOHNSON, Simon & ROBINSON, James. Colonial origins of comparative development: an empirical investigation. NBER Working Paper Series, n. 7771, 2000. ACEMOGLU, Daron & ROBINSON, James. Por que as nações fracassam?. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 ACUÑA, Victor Hugo & MOLINA, Iván. Historia económica y social de Costa Rica (1750-1950). San José: Editorial Porvenir, 1991. ADAS, Michael. Machines as measure of men: science, technology, and ideologies of Western dominance. Ithaca/London: Cornell University Press, 1990. ADELMAN, Jeremy. Rites of statehood: violence and sovereignty in Spanish America, 1789 – 1821. Hispanic American Historical Review, vol. 90, n. 3, 2010: pp. 391-422. ADELMAN, Jeremy. Sovereignty and revolution in the Iberian Atlantic. Princeton: Princeton University Press, 2006. ADELMAN, Jeremy. Historias latinoamericana y mundial: viejos y nuevos abordajes al pluribus y el unum. Entrepasados, n.28, 2005, pp.145-154. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. AGNEW, John. Geopolitics: re-visioning world politics. London: Routledge, 1998. AGUILAR RIVERA, José Antonio. Tres momentos liberales en México (1820-1890). Em JAKSIC, Iván & POSADA-CARBÓ, Eduardo (org.). Liberalismo y poder: Latinoamérica en el siglo XIX. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2011, pp. 119-152. ALENCASTRO, Luís Felipe de. A economia política dos descobrimentos. Em NOVAES, Adauto (org). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 193-208. 393 ALMOND, Gabriel. A functional approach to comparative politics. In ALMOND, Gabriel & COLEMAN, James (ed.) The politics of developing areas. Princeton: Princeton University Press, 1960, pp. 3-63. ALONSO, Paula & TERNAVASIO, Marcela. Liberalismo y ensayos políticos en el siglo XIX argentino. Em JAKSIC, Iván & POSADA-CARBÓ, Eduardo (org.). Liberalismo y poder: Latinoamérica en el siglo XIX. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2011, pp. 279-320. ALVAREZ, Marcos César; SALA, Fernando & SOUZA, Luís Antônio. A sociedade e a Lei: o Código Penal de 1890 e as novas tendências penais na primeira República. Justiça e História, v. 3, n. 6, 2003. AMIN, Samir. Eurocentrismo: crítica de una ideología. México: Siglo XXI, 1989. AMIN, Samir. O desenvolvimento desigual: ensaio sobre as formações sociais do capitalismo periférico. São Paulo: Editora Forente-Universitária, 1973. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre la orígen y la difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. ANDERSON, Perry. Antinomies of Gramsci. New Left Review, n. 100, vol. 1, 1976, pp. 5-78. ANDERSON, Perry. Lineages of the absolutist state. Londres: NLB, 1974. ANNINO, Antonio. Pueblos, liberalismo y nación en México. Em ANNINO, Antonio & XAVIER-GUERRA, François. Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003, pp. 309-432. ANNINO, Antonio. Ciudadanía versus gobernabilidad republicana: los orígenes de un dilema. Em SÁBATO, Hilda (org.). Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina. México: Fideicomiso de Historia de las Américas y Fondo de Cultura Económica, 1999, pp. 62-93. ANNINO, Antonio & XAVIER-GUERRA, François. Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003. ANSALDI, Waldo. ¿Clase social o categoría política? Una propuesta para conceptualizar el término oligarquía en América Latina. e-l@atina: Revista electrónica de estudios latinoamericanos, vol. 15, n. 60, 2017, pp. 41-47. ANSALDI, Waldo. ¡A galopar, a galopar, hasta enterrarlos en el mar! Introducción teórico-conceptual a la cuestión de la violencia en América Latina. Em ANSALDI, Waldo & GIORDANO, Verónica (org.). Tiempos de violencias. Buenos Aires: Ariel, 2014, pp. 47-76. ANSALDI, Waldo. La fuerza de las palabras: revolución y democracia en el Río de la Plata, 1810-1820. Estudios – Centro de Estudios Avanzados (Universidade Nacional de Córdoba), n. 24, 2010, pp. 13-28. 394 ANSALDI, Waldo (org.) Rosas y su tiempo. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1984. ANSALDI, Waldo & GIORDANO, Verónica (org.). Tiempos de violencias. Buenos Aires: Ariel, 2014, pp. 47-76.ANSALDI, Waldo & GIORDANO, Verónica. América Latina: la construcción del orden: de la colonia a la dominación oligárquica (vol. 1). Buenos Aires: Ariel, 2012. ARDANT, Gabriel. Financial policy and the economic infrastructure of modern states and nations. Em: TILLY, Charles (org.). The formation of national states in Western Europe. Princeton: Princeton University Press, 1975, pp. 164-242. ARMITAGE, David & SUBRAHMANYAM, Sanjay (org.). The age of revolutions in global context, c. 1760-1840. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2010. ARRIGHI, Giovanni. Long twentieth century: money, power and the origins of our time. Nova Iorque/Londres: Verso, 2009. ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008. ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. ARRIGHI, Giovanni; BARR, Kenneth & HISAEDA, Shuji. A transformação da empresa capitalista. Em ARRIGHI, Giovanni & SILVER, Beverly (org.) Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora UFRJ, 2001, pp. 107-160. ARRIGHI, Giovanni & SILVER, Beverly (org). Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora UFRJ, 2001. AZEVEDO, Maria Célia Marino de. Onda nega, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. São Paulo: Paz e Terra, 1987. AZELLINI, Dario. El negocio de la guerra. Tafalla: Editorial Txalaparta, 2005. BADIE, Bertrand. Le développement politique. Paris: Economica, 1984. BASADRE, Jorge. Prologo. Em COPELLO, Juan & PETRICONI, Luis. Estudios sobre la independencia económica de Peru. Lima: Biblioteca Peruana de Historia Económica, 1971, pp. i-viii. BATALAS, Achilles. Send a thief to catch a thief: state-building and the employment of irregular military formations in mid-nineteenth-century Greece. Em DAVIS, Diane & PEREIRA, Anthony (orgs). Irregular armed forces and their role in politics and state formation. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 145-177. BAUER, Arnold. A América Espanhola rural, 1870-1930. Em BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina (vol 3): da independência a 1870. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 209-246. 395 BAUER, Arnold. Landlord and campesino in the Chilean road to democracy. Em HUBER, Evelyn & SAFFORD, Frank (orgs.). Agrarian structure and political power: landlord and peasant in the making of Latin America. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1995, pp. 21-38. BAYLY, Chrisopher Allan. The birth of modern world (1780-1914): global connections and comparisons. Oxford: Blackwell Publishing, 2004. BAZANT, Ian. México. Em BETHELL, Leslie (org). Historia de América Latina (vol. 6). Barcelona: Editorial Crítica, 1991, pp. 105-143. BEAUD, Michel. A história do capitalismo de 1500 até nossos dias. Brasília: Editora Brasiliense, 1994. BEETHAM, David. Max Weber and the legitimacy of modern state. Analysis & Kritik, n.13, 1991, pp. 34-45. BENDIX, Reinhard. Kings or people: power and the mandate to rule. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1980. BERBEL, Márcia & MARQUESE, Rafael. A escravidão nas experiências constitucionais ibéricas, 1810-1824. Em OLIVEIRA, Cecília; BITTENCOURT, Vera Lúcia & COSTA, Wilma (orgs.). Soberania e conflito: configurações do Estado Nacional no Brasil do século XIX. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2010, pp. 78-120. BERNAND, Carmen. Los indígenas y la construcción del estado-nación. Argentina y México, 1810-1920: historia y antropología de un enfrentamiento. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2016. BERNARDES, Dênis Antônio. Pernambuco e o Império (1822-1824): sem constituição soberana não há união. Em JANCSÓ, István (org.) Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003, pp. 219-250. BÉRTOLA, Luis & OCAMPO, José Antonio. Desarrollo, vaivenes y desigualdad: una historia económica de América Latina desde la independencia. Madrid: Secretaría-General Interamericana, 2010. BHAMBRA, Gurminder. Comparative historical sociology and the state: problems of method. Cultural sociology, vol. 10, n. 3, 2016, pp. 335-351. BHAMBRA, Gurminder. Citizens and others: the constitution of citizenship through exclusion. Alternatives: Global, Local, Political, vol. 40, n. 2, 2015, pp. 102-114. BHAMBRA, Gurminder. Connected sociologies. London/New York: Bloomsbury Academic, 2014. BHAMBRA, Gurminder. Rethinking modernity: postcolonialism and the sociological imagination. Basingstoke/Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2007. BHASKAR, Roy. A realist theory of science. Londres: Routledge, 2008. 396 BIANCHI, Álvaro & ALIAGA, Luciana. Força e consenso como fundamentos do estado: Pareto e Gramsci. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 5, 2011, pp. 17-36. BIANCHI, Álvaro. Estratégia do contratempo: notas para uma pesquisa sobre o conceito gramsciano de hegemonia. Cadernos CEMarx, n. 9, 2007b, pp. 9-39. BLACKBURN, Robin. Haiti, Slavery, and the age of the democratic revolution. The William and Mary Quarterly, vol. 63, no. 4, 2006, pp. 643-674. BLACKBURN, Robin. The making of New World slavery: from baroque to the modern, 1492-1800. Londres: Verso, 1998. BLAUFARB, Rafe. The Western Question: the geopolitics of Latin American independence. The American Historical Review, vol. 112, n. 3, 2007, pp. 742-763. BLAUT, James. The colonizer’s model of the world: geographical diffusionism and Eurocentric history. Nova York: The Guilford Press, 1993. BLOCK, Fred. Revising state theory: essays in politics and postindustrialism. Filadélfia: Temple University Press, 1987. BOERSNER, Demetrio. Relaciones internacionales de América Latina: breve historia. Caracas: Editorial Nueva Sociedad, 1996. BOLÍVAR, Ingrid. La formación del estado y la biografía de las categorías. Nómadas, n. 33, 2010, pp. 93-107. BOLÍVAR, Ingrid. Sociedad y Estado: la configuración del monopolio de la violencia. Controversia, n. 175, 1999, pp. 11-39. BORBA, Pedro. Sociologia política e o espectro da modernização na América Latina. Cadernos de Trabalho NETSAL, vol. 3, n. 8, 2015, pp. 3-28. BORBA, Pedro. Sociologia histórica como teoria política: a formação dos estados modernos na Europa e na América Latina. Dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro: IESP, 2014. BORÓN, Atilio. Estado, capitalismo y democracia en América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2003. BOTANA, Natalio. Las transformaciones del credo constitucional. Em ANNINO, Antonio & XAVIER-GUERRA, François (org.). Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003, pp.654-682. BOURDIEU, Pierre. Sobre o estado (curso no Collège de France, 1989-1992). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 397 BRADING, David. La monarquía católica. Em ANNINO, Antonio & XAVIER-GUERRA, François (org.). Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003, pp. 15-46. BRAUDEL, Fernand. The Mediterranean and the Mediterranean world in the age of Philip II (vol. 1). Glasgow: Collins, 1972. BRAUDEL, Fernand. Dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocoo, 1987. BREÑA, Roberto. El primer liberalismo español y su proyección hispano-americana. Em JAKSIC, Iván & POSADA-CARBÓ, Eduardo (org.). Liberalismo y poder: Latinoamérica en el siglo XIX. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2011, pp. 63-88. BRINGEL, Breno. México en el espejo global: crisis múltiples y luchas contemporáneas. Em PLEYERS, Geoffrey & GARZA ZEPEDA, Manuel (orgs.) México en movimientos: resistencias y alternativas. México: Universidad Autónoma Benito Juárez de Oaxaca, 2017, pp. 147-154. BRINGEL, Breno & DOMINGUES, José Maurício. Teoria social, extroversão e autonomia: impasses e horizontes da sociologia (semi)periférica contemporânea. Cadernos CRH, vol. 28, 2015, pp. 59-76. BRINGEL, Breno. Com, contra e para além de Charles Tilly: mudanças teóricas no estudo das ações coletivas e dos movimentos sociais. Sociologia & Antropologia, vol. 2, n. 3, 2012, pp. 43-67. BRUCKMANN, Monica. Ou inventamos ou erramos: a nova conjuntura latino-americana e o pensamento crítico. Tese de Doutorado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. Niteroi: UFF, 2011. BUCHELI, Marcelo & SÁENZ, Felipe. Export protecionism and the Great Depression: multinational corporations, domestic elite, and export policies. Em DRINOT, Paulo & KNIGHT, Alan (org.). The Great Depression in Latin America. Durham: Duke University Press, 2014, pp. 129-159. BUGLIANI, Lia. La Carmañola Americana (1797) entre la Carmagnole Francesa (1792) y el Canto de las Sabanas de Barinas (1817-1818). Núcleo, n. 16, 1999, pp. 3-26. BULMER-THOMAS, Victor. Economic History of Latin America since independence. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. BUVE, Raymond. “¡Ni Carranza, ni Zapata!”: ascenso y caida de un movimiento campesino que intentó enfrentarse a ambos: Tlaxcala, 1910-1919. Em KATZ, Friedrich (org.) Revuelta, rebelión y revolución: la lucha rural en México del siglo XVI al siglo XX (vol. 2). México-DF: Era Ediciones, 1990, pp. 24-53. 398 BUZAN, Barry & LAWSON, George. The global transformation: the nineteenth century and the making of modern international relations. International Studies Quarterly, vol. 59, n. 1, 2013, pp. 620-634. CABALLERO, Manuel. Latin America and the Comintern, 1919-1943. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. CALHOUN, Craig. O nacionalismo importa. Em PAMPLONA, Marco & DOYLE, Don (orgs.). Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de estados-nação no século XIX. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008. CALHOUN, Craig. The class consciousness of frequent travelers: toward a critique of actually existing cosmopolitanism. The South Atlantic Quarterly, vol. 101, n. 4, 2002, pp. 869-897. CÁRDENAS, Mauricio. State capacity in Latin America. Economía, vol. 10, n. 2, 2010, pp. 1-45. CARDOSO, Ciro Flamarion & BRIGNOLI, Héctor. História econômica da América Latina. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. CARDOSO, Fernando Henrique & FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1970. CARDOSO, Fernando Henrique. O estado na América Latina. Em: PINHEIRO, Paulo Sérgio (org.) O estado na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 1977. CARMAGNANI, Marcello & CHÁVEZ, Alicia. La ciudadanía orgánica mexicana, 1850-1910. Em SÁBATO, Hilda (org.). Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina. México: Fideicomiso de Historia de las Américas y Fondo de Cultura Económica, 1999, pp. 371-404. CARRERAS, Albert. Continuidades y rupturas en la transicion fiscal. Revista Illes i Imperis, vol. 13, 2010, pp. 195-202. CARVALHO, José Murilo de. Dimensiones de la ciudadanía en el Brasil del siglo XIX. Em SÁBATO, Hilda (org.). Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina. México: Fideicomiso de Historia de las Américas y Fondo de Cultura Económica, 1999, pp. 321-344. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. CASANOVA, Pablo González. Sociología de la explotación. Buenos Aires: CLACSO, 2006. CASANOVA, Pablo González. La teoría del estado y la crisis mundial. Em: CASANOVA, Pablo González (org.) El estado en América Latina: teoría y práctica. Cidade do México: Siglo Veintiuno Editores, 1990, pp. 19-25. 399 CATERINA, Luís Maria. El ejercicio del poder en la “República de los notables”: notas sobre relaciones clientelares y legitimidad. Temas de historia argentina y americana, nº 18, 2011, pp. 139-163. CENTENO, Miguel Ángel. Dependency theory today. Entrevista por Frutuoso Santana. Em VÁRIOS AUTORES. Dialogues on development (vol.1): on dependency. Nova York: Institute for New Economic Thinking/Young Scholars Initiative, 2017, pp. 72-78. CENTENO, Miguel Ángel. Max Weber y el estado latinoamericano. Morcillo, Álvaro & WEISZ, Eduardo (org.). Max Weber em iberoamérica. México: FCE/CIDE, 2014, pp. 341-362. CENTENO, Miguel Ángel. El estado en América Latina. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n. 85-86, 2009, pp. 11-31. CENTENO, Miguel Ángel. Blood and debt: war and nation-state in Latin America. University Park: The Pennsylvania University Press, 2002. CENTENO, Miguel Ángel. Blood and debt: war and taxation in nineteenth century Latin America. American Journal of Sociology, vol. 102, n. 6, 1997, pp. 1565-1605. CEPIK, Marco. Estrutura e ação na sociologia das revoluções modernas: Skocpol & Tilly. Revista Anos 90, n. 04, 1995, pp. 153-178. CERVO, Amado. Conceitos em Relações Internacionais. Revista Brasileira de Política Internacional, n. 51, vol. 2, 2008, pp. 8-25. CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978. CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: post-colonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2000. CHANDRA, Uday. The case for a postcolonial approach to the study of politics. New Political Science, n. 35, vol. 3, 2013, pp. 479-491. CHASE-DUNN, Christopher. Interstate system and capitalist world-economy: one logic or two?. International Studies Quarterly, vol. 25, n. 1, 1981, pp. 19-42. CHATTERJEE, Partha. Politics of the governed: reflections on popular politics in most of the world. Nova Iorque: Columbia University Press, 2004. CHATTERJEE, Partha. The nation and its fragments: colonial and postcolonial histories. Princeton: Princeton University Press, 1993. CHAUNU, Pierre. Interpretación de la independencia de América Latina. Em MATOS MAR, José (org.). La independencia de Peru. Lima: Instituto de Estudos Peruanos / Campodonico Ediciones, 1972, pp. 123-154. CHERNILO, Daniel. A social theory of the nation-state: the political forms of modernity beyond methodological nationalism. Oxon: Routledge, 2007. 400 CHIARAMONTE, José Carlos. Raíces históricas del federalismo latinoamericano. Buenos Aires: Sudamericana, 2016. CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y Estado en Iberoamérica: El lenguaje político en tiempos de las independencias. Buenos Aires: Sudamericana, 2004. CHIARAMONTE, José Carlos. Modificaciones del pacto imperial. Em ANNINO, Antonio & XAVIER-GUERRA, François (org.). Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003, pp. 85-113. COATSWORTH, John. Patrones de rebelión rural en América Latina: México en perspectiva comparada. Em KATZ, Friedrich (org.) Revuelta, rebelión y revolución: la lucha rural en México del siglo XVI al siglo XX (vol. 1). México-DF: Era Ediciones, 1990, pp. 65-93. COATSWORTH, John. Railroads, landholding, and agrarian protest in the early Porfiriato. The Hispanic American Historical Review, n. 51, vol. 1, 1974, pp. 48-71. COLLIER, Ruth & COLLIER, David. Shaping the political arena: critical junctures, the labor movement, and regime dynamics in Latin America. Notre Dame: Notre Dame University Press, 2002. CONRAD, Sebastian. What is global history?. Princeton: Princeton University Press, 2016. COOPER, Frederick. Colonialism in question: theory, knowledge, history. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2005. COPELLO, Juan & PETRICONI, Luis. Estudios sobre la independencia económica de Peru. Lima: Biblioteca Peruana de Historia Económica, 1971. CORTES-CONDE, Roberto. Fiscal and monetary regimes. Em BULMER-THOMAS, Victor; COATSWORTH, John & CORTES-CONDE, Roberto (org.). The Cambridge Economic History of Latin America (vol. 2). Nova Iorque: Cambridge University Press, 2008, pp. 209-248. COSTA, Wilma Peres. A questão fiscal na transformação republicana – continuidade e descontinuidade. Economia e Sociedade, n. 10, 1998, pp. 141-73. COSTA, Wilma Peres. Do domínio à nação: os impasses da fiscalidade no processo de independência. Em JANCSÓ, István (org.) Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003, pp. 143-194. COSTA, Wilma Peres. O Império do Brasil: dimensões de um enigma. Almanack Braziliense, n. 1, 2005, pp. 27-43. CREVELD, Martin van. A ascensão e declínio do estado. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CROSSMAN, Richard. Biografía del estado moderno. México-DF: Fondo de Cultura Económica, 1987. 401 CUEVA, Agustín. El análisis posmarxista del estado latinoamericano. Em CUEVA, Agustín & MOREANO, Alejando (orgs.) Entre la ira y la esperanza: y otros ensayos de crítica latinoamericana. México-DF/Buenos Aires: Siglo XXI Editores/CLACSO, 2015, pp. 201-222. CUEVA, Agustín. El desarrollo capitalista en América Latina y la cuestión del Estado. Problemas del Desarrollo: Revista Latinoamericana de Economía, vol. 11, n. 42, 1980, pp. 29-42. DARWIN, John. Ascensão e queda dos impérios globais, 1400-2000. Lisboa: Edições 70, 2015. DAS, Veena & POOLE, Deborah (org.). Anthropology in the margins of the state. Santa Fe: School of American Research Press, 2004. DAVIS, Diane & PEREIRA, Anthony (orgs). Irregular armed forces and their role in politics and state formation. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. DEAS, Malcom. Fiscal problems of nineteenth-century Colombia. Journal of Latin American Studies, vol. 14, n. 02, 1982, pp. 287-328. DEMELÁS, Marie-Danielle. Estado y actores colectivos: el caso de los Andes. Em ANNINO, Antonio & XAVIER-GUERRA, François (org.). Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003, pp. 347-378. DEVÉS VALDÉS, Eduardo. O pensamento nacionalista na América Latina e a reivindicação de identidade econômica (1920-1940). Estudos Históricos, n.20, 1997, pp. 321-343. DÍAZ, Arlene. Em SALVATORE, Ricardo; AGUIRRE, Carlos & JOSEPH, Gilbert (org.) Crime and punishment in Latin America. Durham/Londres: Duke University Press, 2001, pp. 56-82. DILLON SOARES, Gláucio. O novo estado na América Latina. Novos Estudos/ CEBRAP, v. 13, 1973, pp. 55-77. DOLHNIKOFF, Míriam. Elites regionais e a construção do estado nacional. Em JANCSÓ, István (org.) Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003, pp. 431-468. DOMINGUES, José Maurício. Realismo, conceitos-tendência, Estado e modernidade. Em DOMINGUES, José Maurício. Emancipação e história. São Paulo: Civilização Brasileira, 2018. DOMINGUES, José Maurício. Historia, sociología y modernidad. Desarrollo económico, n. 55, 2015, pp. 211-225. DOMINGUES, José Maurício. Revisitando a obra Desenvolvimento e dependência na América Latina. Série Cadernos FLACSO, no.1, 2013. DOMINGUES, José Maurício. Latin American contemporary modernity: a sociological interpretation. London: Routledge, 2008. 402 DOMINGUES, José Maurício. Criatividade social, subjetividade coletiva e a modernidade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999. DRINOT, Paul & KNIGHT, Alan (orgs.). The Great Depression in Latin America. Durham: Duke University Press, 2014. DUPAS, Gilberto. O mito do progresso, ou o progresso como ideologia. São Paulo: Editora da UNESP, 2012. DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. Em LANDER, Edgardo (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, pp. 25-34. DUSSEL, Enrique. 1492, el encubrimiento del otro: hacia el mito de la modernidad. La Paz: UMSA/Plural Editores, 1992. DYE, Alan. The institutional framework. Em BULMER-THOMAS, Victor; COATSWORTH, John & CORTES-CONDE, Roberto (org.). The Cambridge Economic History of Latin America (vol. 2). Nova Iorque: Cambridge University Press, 2008, pp. 169-208. EICHENGREEN, Barry. A globalização do capital: uma história do sistema monetário internacional. São Paulo: Editora 34, 2000. EL PAIS. Greve de juízes por auxílio moradia pode ter efeito contrário no STF. El País/Brasil, 12/03/2018. ELIAS, Norbert. Society of individuals. Nova York/Londres: Continuum, 2001. EMMANUEL, Arghiri. El intercambio desigual. Cuadernos de Pasado y Presente, n. 24, 1968, pp. 5-32. ESCAMILLA ORTIZ, Juan Guerra y gobierno: los pueblos y la independencia de México, 1808-1825. México: El Colegio de México, 1997. ESCOBAR, Arturo. La invención del Tercer Mundo. Caracas: Fundación Editorial el perro y la rana, 2007. ESHERICK, Joseph; KAYALI, Hasan & YOUNG, Eric van (org.). Empire to nation: historical perspectives on the making of the modern world. Lanham/Boulder: Rowman & Littlefield Publishers, 2006 EVERS, Tilman. El estado en la periferia capitalista. Cidade do México: Siglo Veintiuno Editores, 1981. FALETTO, Enzo. La especificidad del Estado en Améri ca Latina. Estudios: Revista del Centro de Estudios Avanzados, n.31, 2014, pp. 205-236. FAIRBANK, John & GOLDMAN, Merle. China: new history. Cambridge: The Belknap Press of the Harvard University Press, 2006. 403 FEDERICI, Silvia. Revolución en punto cero: trabajo doméstico, reproducción y luchas feministas. Madri: Traficantes de Sueños, 2013. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Coletivo Sycorax, 2004. Consultado online: http://coletivosycorax.org/livros-traduzidos/. Último acesso em 06/02/2019. FERES JR, João. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos. Bauru: EDUSC, 2005. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. FICHTE, Johann Gottlieb. What is a people in the higher meaning of the word, and what is love of Fatherland?. Em: FICHTE, Johann Gottlieb. Addresses to the german nation. Chicago/Londres: The Open Court Publishing Company, 1922, pp. 130-151. FILOMENO, Felipe. Brasil e Argentina nos quadros da economia-mundo capitalista: dívida externa e política econômica (1870-1930). Dissertação defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2006. FINER, Samuel. The state- and nation-building in Europe: the role of the military. Em TILLY, Charles (org.). The formation of national states in Western Europe. Princeton: Princeton University Press, 1975, pp. 84-163. FIORI, José Luis. Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 155-190. FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora da UFRJ, 2000. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade (curso no Collège de France, 1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005. FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população (curso no Collège de France, 1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. FUNES, Patricia. Salvar la nación: intelectuales, cultura y política en los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006. FURTADO, Celso. Formação econômica da América Latina. Rio de Janeiro: Lia Editor, 1970. GALBRAITH, Kenneth. American capitalism: the concept of coutervailing power. New Brunswick: Transaction Publishers, 1993. GALLAGHER, John & ROBINSON, Robert. Imperialism of free trade. The Economic History Review, vol. 6, n. 1, 1953, pp. 1-15. 404 GARAVAGLIA, Juan Carlos. Guerra y finanzas en la Argentina unificada, 1864-1872: la guerra del Paraguay y la misión De la Riestra en Londres. Quinto Sol, n. 20, vol. 3, 2016, pp. 1-33. GARAVAGLIA, Juan Carlos. La disputa por la nación: rentas y aduanas en la construcción estatal argentina, 1850-1865. Investigaciones de Historia Económica, n. 10, 2014, pp. 34-45. GARAVAGLIA, Juan Carlos. ¿Cómo se mide la tierra? Las mensuras en el Río de la Plata, siglos XVII-XIX. Em GARAVAGLIA, Juan Carlos & GAUTREAU, Pierre (orgs.) Mensurar la tierra, controlar el territorio: América Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2011. GARAVAGLIA, Juan Carlos. Algunos aspectos preliminares acerca de la “transición fiscal” en América Latina: 1800-1850. Revista Illes i Imperis, vol. 13, 2010, pp. 159-192. GARAVAGLIA, Juan Carlos & GAUTREAU, Pierre. Inventando un nuevo saber estatal sobre el territorio: la definición de prácticas, comportamientos y agentes en las instituciones topográficas de Buenos Aires, 1824-1864. Em GARAVAGLIA, Juan Carlos & GAUTREAU, Pierre (orgs.) Mensurar la tierra, controlar el territorio: América Latina, siglos XVIII-XIX. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2011. GELMAN, Jorge. Los avatares de la transición fiscal y el ciclo económico: algunos comentarios. Revista Illes i Imperis, vol. 13, 2010, pp. 203-213. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991. GIDDENS, Anthony. A contemporary critique of historical materialism (vol. II): nation-state and violence. Londres: Polity Press, 1989. GILPIN, Robert. Political economy of International Relations. Princeton: Princeton University Press, 1987. GLADE, William. A América Latina e a economia internacional, 1870-1914. Em BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina (vol 3): da independência a 1870. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 21-82. GOLDSTONE, Jack. Initial conditions, general laws, path dependence, and explanation in Historical Sociology. American Journal of Sociology, vol. 104, n. 3, 1998a, pp. 829-845. GOLDSTONE, Jack. The problem of “early modern” world. Journal of the Economic and Social History of the Orient, vol. 41, n. 3, 1998b, pp. 249-284. GOLDSTONE, Jack. Cultural orthodoxy, risk, and innovation: the divergence of East and West in the early modern world. Sociological Theory, vol. 5, no. 2, 1987, pp. 119-135. 405 GOMARIZ MORAGA, Enrique. O estado nas sociedades dependentes: o caso da América Latina. Lisboa: Editorial Presença, 1977. GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. GÓMEZ-GALVARRIATO, Aurora. Premodern manufacturing. Em BULMER-THOMAS, Victor; COATSWORTH, John & CORTES-CONDE, Roberto (org.). The Cambridge Economic History of Latin America (vol. 1). Nova Iorque: Cambridge University Press, 2008, pp. 357-394. GOODY, Jack. The theft of history. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. GOUVEA, Maria de Fátima da Silva. Política provincial na formação da monarquia constitucional brasileira. Rio de Janeiro, 1820-1850. Almanack Braziliense, n. 7, 2008, pp. 119-131. GOUVÊA, Maria de Fátima da Silva. Revolução e independências: notas sobre o conceito e os processos revolucionários na América Espanhola. Estudos Históricos, n. 20, 1997, pp. 275-294. GRACIARENA, Jorge. El Estado latinoamericano en perspectiva: figuras, crisis, prospectiva. Entramados y perspectivas, vol. 3, n. 3, 2014 pp. 225-257. GRACIARENA. Jorge. Estado periférico y economía capitalista: transiciones y crisis. Em: CASANOVA, Pablo González (org.) El estado en América Latina: teoría y práctica. Cidade do México: Siglo Veintiuno Editores, 1990, pp. 40-70. GRAMSCI, Antonio. Americanismo y Fordismo. Em GRAMSCI, Antonio. Cuadernos de la cárcel (tomo VI). México: Editorial Era, 2000, pp. 61-95. GRAMSCI, Antonio. Notas sobre Maquiavelo, sobre la política y sobre el estado moderno. Madrid: Ediciones Nueva Visión, 1980. GREENE, Jack. Identidades dos estados e identidade nacional à época da Revolução Americana. Em PAMPLONA, Marco & DOYLE, Don (org.). Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de estados-nação no século XIX. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, pp. 99-126. GUÉRIN, Daniel (org.) O anarquismo e a democracia burguesa. São Paulo: Global, 1980. GUNDER FRANK, Andre. World accumulation, 1492-1789. Nova Iorque: Algora Publishing, 1978. HALE, Charles. The reconstruction of nineteenth-century politics in Spanish America: a case for the history of ideas. Latin American Research Review, vol. 8, N. 2, 1973, pp. 53-73. HALL, Michael & SPALDING JR., Hobart. A classe trabalhadora urbana e os primeiros movimentos trabalhistas na América Latina, 1880-1930. Em BETHELL, 406 Leslie (org.) História da América Latina (vol 4): de 1870 a 1930. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 247-282. HALL, Peter & TAYLOR, Rosemary. As três versões do neo-institucionalismo. Lua Nova, n. 58, 2003, pp. 193-223. HALL, Stuart. The West and the rest: discourse and power. Em HALL, Stuart & GIEBEN, Bram (orgs.) Formations of modernity. Cambridge: Polity Press, 1995, pp. 275-332. HALLIDAY, Fred. Repensando as relações internacionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. HALPERIN DONGHI, Tulio. A economia e a sociedade na América Espanhola do pós-independência. Em Em BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina (vol. 3): da independência a 1870, volume III. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 277-328. HALPERIN DONGHI, Tulio. Guerra y finanzas en los orígenes del Estado argentino (1791-1850). Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. HALPERÍN DONGHI, Tulio. Reforma y disolución de los imperios ibéricos, 1750-1850. Madri: Alianza Editorial, 1985. HALPERÍN DONGHI, Tulio. História da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma história da humanidade. Porto Alegre: LP&M, 2015. HARAWAY, Dona. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, vol 5, 1995, pp. 07-41. HARRIS, Mark. Rebelião na Amazônia: Cabanagem, raça e cultura popular, 1798-1840. Campinas: Editora UNICAMP, 2017. HARVEY, David. El nuevo imperialismo. Madri: Ediciones Akal, 2004. HEADRICK, Daniel. El poder y el imperio: la tecnología y el imperialismo de 1400 a la actualidad. Barcelona: Crítica, 2011. HIRST, Paul & THOMPSON, Grahame. Globalização em questão: economia internacional e as possibilidades de governabilidade. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. HOBBES, Thomas. Leviatã ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1979. HOBSBAWM, Eric. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2003. HOBSBAWM, Eric. Age of revolution. Nova Iorque: Vintage Books, 1996. HOBSBAWM, Eric. Age of empire. Nova Iorque: Vintage Books, 1989. 407 HOBSBAWM, Eric. Introdução. Em MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo: Paz e Terra, 1985, pp. 13-64. HOBSBAWM, Eric. A era do capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. HOLDEN, Robert. Armies without nations: public violence and state formation in Central America, 1821–1960. Oxford: Oxford University Press, 2004. HOLMWOOD, John. Moral economy versus political economy: provincializing Polanyi. Em KARNER, Christian & WEICH, Bernard. The commonalities of global crises: markets, communities, and nostalgia. Londres: Palgrave MacMillan, 2016, pp. 143-166. HOLSTI, Kalevi. The state, war, and the state of war. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. HORA, Roy. La elite económica argentina, 1810-1914. Revista de Sociologia e Política, vol. 22, n. 52, 2014, pp. 27-46. HORA, Roy. The impact of the depression in Argentine society. Em DRINOT, Paulo & KNIGHT, Alan (org.). The Great Depression in Latin America. Durham: Duke University Press, 2014b, pp. 22-50. HÜBINGER, Gangolf. Max Weber’s ‘sociology of the state’ and the science of politics in Germany. Max Weber Studies, Vol. 9, n. 1-2, 2009, pp. 17-32. HUNT, Lynn. The French Revolution in global context. Em ARMITAGE, David & SUBRAHMANYAM, Sanjay (org.). The age of revolutions in global context, c. 1760-1840. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2010, pp. 20-36. HUNTINGTON, Samuel. Political order in changing societies. New Haven: Yale University Press, 1968. IANNI, Octavio. A questão nacional na América Latina. Estudos Avançados, vol. 2, n. 1, 1988, pp. 5-40. INIKORI, Joseph. A África na história do mundo: o tráfico de escravos a partir da África e a emergencia de uma ordem econômica no Atlântico. Em OGOT, Bethwell Allan (org.). História geral da África: a África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010, pp. 91-134. INTERCEPT, The. O caso Marielle. Rio de Janeiro: The Intercept Brasil, 2018/2019. Disponível em https://theintercept.com/series/caso-marielle-franco/. Último acesso em 27/02/2019. ISIN, Engin & TURNER, Brian. Investigating citizenship: an agenda for citizenship studies. Citizenship Studies, vol. 11, n.1, 2007, pp. 5-17. IZECKSOHN, Vitor. O Recrutamento de libertos para a Guerra do Paraguai: considerações recentes sobre um tema complexo. Navigator: subsídios para a história marítima do Brasil. v. 11, n. 21, 2015, pp. 96-110. 408 IZECKSOHN, Vitor. Resistência ao recrutamento para o Exército durante as guerras Civil e do Paraguai: Brasil e Estados Unidos na década de 1860. Revista Estudos Históricos, vol. 1, n. 27, 2001, pp. 84-109. JAKSIC, Iván & POSADA-CARBÓ, Eduardo (org.). Liberalismo y poder: Latinoamérica en el siglo XIX. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2011. JAMES, C.R.L. Jacobinos negros. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000. JARAMILLO, Jaime; MAISEL, Adolfo & URRUTIA, Miguel. Continuities and discontinuities in the fiscal and monetary institutions of New Granada, 1783–1850. Em BORDO, Michael & CORTES-CONDE, Roberto (org.) Transfering wealth and power from the old to the new world: Monetary and fiscal institutions in the 17th through the 19th centuries. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, pp. 414-452. KAPLAN, Marcos. Estado latinoamericano. México-DF: UNAM, 1996.. KAPLAN, Marcos. Formação do estado nacional na América Latina. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. KARATANI, Kojin. Structure of world history: from modes of production to modes of exchange. Durham: Duke University Press, 2014. KARL, Rebecca. Creating Asia: China in the world at the beginning of the twentieth century. The American Historical Review, Vol. 103, No. 4, 1998, pp. 1096-1118. Katz (1990 Em KATZ, Friedrich (org.) Revuelta, rebelión y revolución: la lucha rural en México del siglo XVI al siglo XX (vol. 2). México-DF: Era Ediciones, 1990, pp. KATZ, Friedrich. Labor conditions on haciendas in Porfirian Mexico: some trends and tendencies. The Hispanic American Historical Review, vol. 54, no. 1, 1974, pp. 1-47. KATZ, Friedrich. México: la restauración de la República y el Porfiriato, 1867-1910. Em BETHELL, Leslie (org). Historia de América Latina (vol. 9). Barcelona: Editorial Crítica, 1992, pp. 13-77. KEENE, Edward. Beyond anarchical society: Grotius, colonialism, and order in world politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. São Paulo: Martins Fontes, 1989. KEYNES, John Maynard. Essays on persuasion. Nova Iorque e Londres: WW Norton Company, 1963. KNIGHT, Alan. The character and consecuences of Great Depression in Mexico. Em DRINOT, Paulo & KNIGHT, Alan (org.). The Great Depression in Latin America. Durham: Duke University Press, 2014, pp. 213-245. 409 KNÖBL, Wolfgang. Reconfigurações da teoria social após a hegemonia ocidental. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 30, n. 87, 2016, pp. 5-17. KNÖBL, Wolfgang. State-building in Western Europe and the Americas in the long nineteenth century: some preliminary considerations. In: CENTENO, Miguel Ángel & FERRARO, Agustín (ed.). State and nation-making in Latin America and Spain: republics of possible. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 56-75. KNOBL, Wolfgang. La contingencia de la independencia y de la revolución: perspectivas teóricas y comparadas sobre América Latina. América Latina Hoy, vol. 57, 2011, pp. 15-49. KNOWLTON, Robert. Expropriation of church property in nineteenth-century Mexico and Colombia: a comparison. The Americas, vol. 25, no. 4, 1969, pp. 387-401. KOSELLECK, Reinhard. Crítica e crise: contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: UERJ/Contraponto, 1999. KRASNER, Stephen. Sovereignty: organized hipocrisy. Princeton: Princeton University Press, 1999. KURTENBACH, Sabine. State-building, war and violence: evidence from Latin America. GIGA Working Papers, n. 181, 2011. KURTZ, Marcus. Latin American state-building in comparative perspective: social foundations of institutional order. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. LACLAU, Ernesto & LECHNER, Norbert (orgs). Estado y política en América Latina. México-DF: Siglo Veinteuno Editores, 1981. LACLAU, Ernesto. Politics and ideology in Marxist theory: capitalism, fascism, populism. Londres: NLB, 1977. LANE, Frederick. Profits from Power: readings in protection rent and violence-controlling enterprises. Albany: State University of New York Press, 1979. LANGER, Erick. The barriers to proletarianization: Bolivian mine labour, 1826-1918. International Review of Social History, vol. 41, 1996, pp. 27-51. LECHNER, Norbert. Obras III: Democracia y utopía: la tensión permanente. México: FCE/FLACSO, 2014. LECHNER, Norbert. Obras II: ¿Qué significa hacer política?.México: FCE/FLACSO, 2013. LENIN, Vladimir. Imperialismo: etapa superior do capitalismo. Campinas: UNICAMP, 2011. LENIN, Vladimir. Backward Europe and advanced Asia. Pravda, No. 113, 1913. Disponível em https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1913/may/18.htm. Último acesso em 06/02/2019. 410 LEPENIES, Phillip. An inquiry into the roots of the modern concept of development. Contributions to History of Concepts, vol. 4, 2008, pp. 202-225. LEVAGGI, Abelardo. República de indios y república de españoles en los reinos de Indias. Revista de Estudios Histórico-Jurídicos, n. 23, 2001, pp. 419-428. LEVI, Margaret. Of rule and revenue. Berkeley: California University Press, 1988. LIRA, Andrés. El estado liberal y las corporaciones en México, 1821-1859. Em ANNINO, Antonio & XAVIER-GUERRA, François. Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003, pp. 379-398. LÓPEZ, Luz María Uthoff. Los impuestos al comercio exterior en México en la era de las exportaciones, 1872-1930. América Latina en la História Económica, n. 24, 2005, pp. 7-36. LÓPEZ-ALVES, Fernando. Los caminos para la modernidad: comparando Europa y Estados Unidos con América Latina. América Latina Hoy, n. 57, p.51-77, 2011a. LÓPEZ-ALVES, Fernando. Modernization theory revisited: Latin America, Europe, and the U.S. in the nineteenth and early twentieth century. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, vol. 38, n. 1, 2011b, pp. 243-279. LÓPEZ-ALVES, Fernando. State formation and democracy in Latin America, 1810-1900. Durham: Duke University Press, 2000a. LÓPEZ-ALVES, Fernando. The transatlantic bridge: mirrors, Charles Tilly, and the state formation in the River Plate. Em: CENTENO, Miguel Ángel & LÓPEZ-ALVES, Fernando (org.). The other mirror: grand theory through the lens of Latin America. Princeton: Princeton University Press, 2000b, pp. 153-177. LOVEMAN, Brian. For la Patria: politics and armed forces in Latin America. Wilmington: Scholarly Resources, 1999. LOVEMAN, Mara. National colors: racial classification and the state in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2014. LYNCH, Christian. Necessidade, contingência e contrafactualidade: a queda do Império reconsiderada. Topoi, v. 19, n. 38, 2018, pp. 190-216. LYNCH, Christian. O império da moderação: agentes da recepção do pensamento político europeu e construção da hegemonia ideológica do liberalismo moderado no Brasil imperial. Revista IHGB, ano 172, n. 452, 2011, 311-340. LYNCH, Christian. O pensamento conservador ibero-americano na era das independências (1808-1850). Lua Nova, vol. 74, 2008, pp. 59-92. LYNCH, John. As origens da independência da América Espanhola. Em BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina (vol. 3): da independência a 1870, volume III. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 19-72. 411 MACÍAS, Flavia & SÁBATO, Hilda. La Guardia Nacional: Estado, política y uso de la fuerza en la Argentina de la segunda mitad del siglo XIX. PolHis, ano 6, n. 11, 2013, pp. 70-81. MAIA, João Marcelo Ehlert. Para além da pós-colonialidade: a sociologia periférica e a crítica ao eurocentrismo. Cadernos de Estudos Culturais, vol. 5, 2013, pp. 103-116. MALAPARTE, Curzio. A pele. São Paulo: Abril Cultural, 1972. MALLON, Florencia. Authoritarianism, political culture, and the formation of the state: landowners, agrarian movements, and the making of national politics in nineteenth-century Mexico and Peru. Em HUBER, Evelyn & SAFFORD, Frank (org.). Agrarian structure and political power: landlord and peasant in the making of Latin America. Pittsbourgh: Pittsbourgh University Press, 1995, pp. 67-110. MANN, Michael. A crise do estado latino-americano. Em DOMINGUES, José Maurício & MANEIRO, María (org.). América Latina hoje: conceitos e interpretações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, pp. 163-194. MANN, Michael. The sources of social power (vol. 2): the rise of classes and nation-states 1760-1914. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. MANN, Michael. States, war and capitalism: studies in political sociology. Oxford: Blackwell Publishers, 1992. MANN, Michael. Sources of social power (vol. 1): a history of power from the beginning to AD 1760. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. MANNING, Patrick. African connections with American colonization. Em BULMER-THOMAS, Victor; COATSWORTH, John & CORTES-CONDE, Roberto (org.). The Cambridge Economic History of Latin America (vol. 1). Nova Iorque: Cambridge University Press, 2008, pp. 43-72. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Porto Alegre: Editora LP&M, 2006. MARES, David. Violent Peace: militarized interstate bargaining in Latin America. Nova Iorque: Columbia University Press, 2001. MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos sobre la realidad peruana. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2007. MARICHAL, Carlos. Money, taxes, and finance. Em BULMER-THOMAS, Victor; COATSWORTH, John & CORTES-CONDE, Roberto (org.). The Cambridge Economic History of Latin America (vol. 1). Nova Iorque: Cambridge University Press, 2008, pp. 423-462. MARICHAL, Carlos. Bankruptcy of the empire: Mexican silver and the wars between Spain, Britain, and France, 1760-1810. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. MARICHAL, Carlos. The Spanish-American silver peso: export commodity and global money of the Ancient Regime, 1550-1800. Em TOPIK, Steven; MARICHAL, 412 Carlos & FRANK, Zephyr (org.). From silver to cocaine: Latin American commodity chains and the building of the world economy, 1500-2000. Durham: Duke University Press, 2006, pp. 25-52. MARICHAL, Carlos & CARMAGNANI, Marcello. Mexico: from colonial fiscal regime to liberal financial order, 1750–1912. Em BORDO, Michael & CORTES-CONDE, Roberto (org.) Transfering wealth and power from the old to the new world: Monetary and fiscal institutions in the 17th through the 19th centuries. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, pp. 284-326. MARICHAL, Carlos. A century of debt crisi in Latin America: from independence to the Great Depression, 1820-1930. Princeton: Princeton University Press, 1989. MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica de la dependencia. Cidade do México: Ediciones Era, 1991. Disponível em formato eletrônico em: http://www.marini-escritos.unam.mx/024_dialectica_dependencia.html. Último acesso em 29/01/2019. MARINO, Daniela. Fuerza de la ley: leyes, justicias y resistencias en la imposición de la propiedad privada en México, segunda mitad del siglo XIX. Em IRUROZQUI, Marta & GALANTE, Miriam (org.). Sangre de ley, siglo XIX: justicia y violencia en la institucionalización del estado en América Latina. Madri: Ediciones Polifermo, 2011, pp. 203-234. MARQUESE, Rafael. Capitalismo, escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo século XIX. Sæculum – Revista de História, n. 29, 2013, pp. 289-321. MARQUESE, Rafael. O governo dos escravos e ordem nacional: Brasil e Estados Unidos, 1820-1860. Em JANCSÓ, István (org.) Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003, pp. 251-266. MARQUESE, Rafael & PIMENTA, João Paulo. Tradições de história global na América Latina e no Caribe. História e Historiografia, n. 17, 2015, pp. 30-49. MARX, Karl. Grundrisse: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011a. MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Napoleão. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011b. MARX, Karl. O capital (Livro I). São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. MBEMBE, Achille. On the postcolony. Berkeley: University of California Press, 2001. MCMICHAEL, Philip. Repensar el análisis comparado en un context postdesarrollista. Revista Internacional de Ciencias Sociales, n. 133, 1992, pp. 375-390. MCMICHAEL, Phillip. Incorporating comparison within a world-historical perspective: an alternative comparative method. American Sociological Review, vol. 55, n. 3, 1990, pp. 385-397. 413 MCNEILL, William. The industrialization of war. Review of International Studies, vol. 8, n. 03, 1982, pp 203 – 213. MENDONÇA, Sônia. Ruralismo: agricultura, poder e Estado na Primeira República. São Paulo: Hucitec, 1997. MÉNY, Yves. Las políticas del mimetismo institucional. Em ACUÑA, Carlos (org.). Lecturas sobre el Estado y las políticas públicas: retomando el debate de ayer para fortalecer el actual. Buenos Aires: Jefatura de Gabinete de Ministros de la Nación, 2011, pp. 319-336. MIGDAL, Joel. State in society: studying how states and societies transform and constitute one another. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. Em LANDER, Edgardo (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, pp. 33-49. MILLER, Rory & GLENHILL, Robert. Em TOPIK, Steven; MARICHAL, Carlos & FRANK, Zephyr (org.). From silver to cocaine: Latin American commodity chains and the building of the world economy, 1500-2000. Durham: Duke University Press, 2006, pp. 228-270. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. MOORE JR, Barrington. Injustice: The social bases of obedience and revolt. London/Basingtoke: Palgrave Macmillan, 1979. MORELOS, José Maria. Sentimientos de la Nación. Em FERNÁNDEZ DELGADO, Miguel Ángel (org.). Los Sentimientos de la Nación de José María Morelos: antología documental. México: Instituto Nacional de Estudios Históricos de las Revoluciones Mexicanas, 2013, pp. 116-118. MORENO, Mariano. Plan de operaciones. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2007. MYERS, Jorge. Língua, história e política na identidade argentina, 1840-1880. Em PAMPLONA, Marco & DOYLE, Don (org.). Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de estados-nação no século XIX. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, pp. 179-212. NEVES, Walter Luís. O Constitucionalismo no Antigo Regime ibérico: um estudo sobre o contratualismo neoescolástico (Espanha – séculos XV-XVII). Dissertação defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ. Seropédica: UFRRJ, 2011. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Exército e estado no Brasil imperial. Perspectivas: Revista de Ciências Sociais, n. 2, 1977, pp. 75-96. 414 NORCLIFFE, Glenn. Popeism and Fordism: examining the roots of mass production. Regional Studies, vol. 31, n. 3, 1997, pp. 267-280. NORTH, Douglass; SUMMERHILL, William & WEINGAST, Barry. Order, disorder and economic change: Latin America vs North America. Em MESQUITA, Bruce Bueno & ROOT, Hilton (orgs.). Governing for prosperity. New Haven; Yale University Press, 2000, pp. 17-58. NORTH, Douglass; WALLIS, John & WEINGAST, Barry. Violence and social orders: a conceptual framework for studying recorded human history. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. São Paulo: Martins Fontes, 2011. O’DONNELL, Guillermo & LINCK, Delfina. Dependencia y autonomía. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1973. O’ROURKE, Kevin & WILLIAMSON, Jeffrey. Globalización e historia: la evolución de la economía atlántica en el siglo XIX. Zaragoza: Prensa Universitaria de Zaragoza, 2006. OSZLAK, Oscar. La formación del estado argentino: orden, progreso y organización nacional. Buenos Aires: Ariel, 2015. OTERO, Hernán. Estadística y nación: una história conceptual del pensamiento censal de la Argentina moderna (1869-1914). Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007. PADOIN, Maria Medianeira. Artigas, o federalismo e as Instruções do ano XIII. Anais do XXVII Seminário Nacional de História (ANPUH), 2013. Disponível online em http://www.snh2013.anpuh.org/site/anaiscomplementares#M. Acesso em 04/04/2017. PALONEN, Kari. The state as chance concept: Max Weber’s de-substantialisation and neutralization of the concept. Max Weber Studies, vol. 11, n. 1, 2011, pp. 99-117. PASHUKANIS, Evgene. The general theory of Law and Marxism. Em PASHUKANIS, Evgene. Selected writings on state and law. Londres: Academic Press, 1980, pp. 37-131. PATEMAN, Carole. Sexual contract. Stanford: Stanford University Press, 1988. PEREIRA, Astrogildo. Lutas operárias que antecederam a fundação do Partido Comunista do Brasil. Problemas – Revista Mensal de Cultura Política, nº 39, 1952. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/astrojildo/1952/04/lutas.htm. Último acesso em 06/02/2019. PETERS, Gabriel. Verbete: profecia autorrealizadora. Blog do Sociofilo, 18/12/2017. Disponível em https://blogdosociofilo.com/2017/12/18/verbete-profecia-autorrealizadora-por-gabriel -peters/. Último acesso em 20/02/2019. 415 PIMENTA, João Paulo. A política hispano-americana e o império português (1810-1817): vocabulário político e conjuntura.Em JANCSÓ, István (org.) Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec, 2003, pp. 123-143. PINTO BERNAL, José Joaquín. Los orígenes del impuesto directo y progresivo en América Latina. Historia y Sociedad, n. 23, 2012, pp. 53-77. PLATT, D. C. M. Latin America and British trade, 1806-1914. Londres: A&C Black, 1972. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. POMERANZ, Kenneth. Their own path to crisis? Social change, state-building and the limits of Qing expansion, c. 1770-1840. Em ARMITAGE, David & SUBRAHMANYAM, Sanjay (org.). The age of revolutions in global context, c. 1760-1840. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2010, pp. 189-208. POMERANZ, Kenneth. The great divergence: China, Europe, and the making of the modern world economy. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2000. POSADA-CARBÓ, Eduardo. Electoral juggling: a comparative history of the corruption of suffrage in Latin America, 1830-1930. Journal of Latin American Studies, n. 32, 2000, pp. 611-44. PÖSSEL, Markus. Escaping the Confucian trap. Scientific American Blog Network, 18/09/2013. Disponível em: https://blogs.scientificamerican.com/guest-blog/escaping-the-confucian-trap/. Último acesso em 20/02/2019. POULANTZAS, Nicos. Estado, poder y socialismo. Madrid: Siglo XXI, 1979. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Braziliense, 1963. PRADO, Maria Ligia. América Latina: historia comparada, historias conectadas, historia transnacional. Anuario Digital, n. 3, 2012, pp. 9-22. PRAKASH, Gyan. Subaltern Studies as Postcolonial Criticism. The American Historical Review, vol. 99, no. 5, 1994, pp. 1475-1490. PRASHAD, Vijay. Darker nations: a people’s history of the Third World. Nova York: The New Press, 2007. PREBISCH, Raul. O desenvolvimento econômico da América Latina e seus principais problemas. Revista Brasileira de Economia, vol. 3, n. 3, 1949, 47-111. PRIETO, Alberto. Procesos revolucionarios en América Latina. Havana: Ocean Sur, 2009. 416 QUIJANO, Aníbal & WALLERSTEIN, Immanuel. Americanity as concept, or the Americas in the world-system. International Social Science Journal, v. 44, n. 4, pp. 549-557. QUIJANO, Aníbal. Coloniality of power and eurocentrism in Latin America. International Sociology, vol. 15, n. 2, 2000, pp. 215-232. REIS, Elisa. Sociologia política e processos macro-históricos. Sociologias, ano 17, n. 38, 2015, p. 18-43. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: formação e sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. RODRIGUES, Rodrigo. A formação do estado brasileiro a partir da ótica do gasto público: uma análise do gasto por ministério entre 1822 e 2015. Brasília: XXI Prêmio do Tesouro Nacional, 2016. RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003. RODRÍGUEZ, Jaime. 1810: la revolución política en la Nueva España. Historia y Política, n. 19, 2008, pp. 15-37. ROMERO, Jose Luis. América Latina: as cidades e as ideias. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009. ROMERO, Alberto Luis. Breve historia contemporanea de Argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2016. ROXBOROUGH, Ian. The ghost of Vietnam: America confronts the new world disorder. Em DAVIS, Diane & PEREIRA, Anthony (orgs). Irregular armed forces and their role in politics and state formation. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 346-386. SÁ MADER, Maria Elisa de Noronha. Revoluções de independência na América Hispânica: uma reflexão historiográfica. Revista de História (USP), n. 159, 2008, 225-241. SÁBATO, Hilda. Introducción. SÁBATO, Hilda (org.). Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina. México: Fideicomiso de Historia de las Américas y Fondo de Cultura Económica, 1999, pp. 11-32. SÁBATO, Hilda (org.). Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina. México: Fideicomiso de Historia de las Américas y Fondo de Cultura Económica, 1999. SADER, Emir. Século XX: uma biografia não autorizada. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. 417 SAFFORD, Frank. Epílogo. Em JAKSIC, Iván & POSADA-CARBÓ, Eduardo (org.). Liberalismo y poder: Latinoamérica en el siglo XIX. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2011, 321-328. SAFFORD, Frank. Política, ideologia e sociedade na América Espanhola pós-independência. BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina (vol. 3):da independência a 1870. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 329-412. SAFFORD, Frank. The problem of political order in early republican Spanish America. Journal of Latin American Studies, vol. 24, suplemento 1, 1992, pp. 83-97. SALGADO HERNÁNDEZ, Elisabeth Karina. Identidade indígena e independência na província de Antioquia, Nova Granada, 1808-1830. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Porto Alegre: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UFRGS, 2015. SALIH, Tayeb. Tempo de migrar para o norte. São Paulo/Porto Alegre: Editora Planeta/TAG Livros, 2018. SALLES, Ricardo. O Império do Brasil no contexto do século XIX: escravidão nacional, classe senhorial e intelectuais na formação do Estado. Almanack, n. 5, 2012, pp. 4-45. SALVATORE, Ricardo. The strength of markets in Latin America's sociopolitical discourse, 1750-1850: some preliminary observations. Latin American Perspectives, vol. 6, no. 1, 1999, pp. 22-43. SAID, Edward. Orientalismo. Barcelona: Random House Mondatori, 2008. SAMYN, Henrique Marques (org). Por uma revolução antirracista: antologia dos textos dos Panteras Negras (1968-1971). Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2018. SÁNCHEZ, Gonzalo. Ciudadania sin democracia o con democracia virtual: a modo de conclusiones. Em SÁBATO, Hilda (org.). Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina. México: Fideicomiso de Historia de las Américas y Fondo de Cultura Económica, 1999, pp. 431-444. SANÍN, Francisco Gutiérrez. La literatura plebeya y el debate alrededor de la propiedad (Nueva Granada, 1849-1854). Em SÁBATO, Hilda (org.). Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina. México: Fideicomiso de Historia de las Américas y Fondo de Cultura Económica, 1999, pp. 181-202. SANTANA, Adalberto. La revolución mexicana y su repercusión en América Latina. Latinoamérica: Revista de Estudios Latinoamericanos, n.44, 2007, pp. 103-127. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1979. SASSEN, Saskia. Territory, authority, rights: from medieval to global assemblages. Princeton: Princeton University Press, 2006. 418 SCHMITT, Carl. Teología política. Madri: Editorial Trotta, 2009. SCOOBIE, James. O crescimento das cidades latino-americanas, 1870-1930. Em BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina (vol 4): de 1870 a 1930. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 247-282. SHILS, Edward. Political development in new states. Comparative Studies in Society and History, vol. 2, n. 3, 1960, pp. 265-292. SILVA, Márcio Antônio Both da. Lei de Terras de 1850: lições sobre os efeitos e os resultados de não se condenar “uma quinta parte da atual população agrícola”. Revista Brasileira de História, vol. 35, n. 70, 2015, pp. 87-107. SILVER, Beverly. Forças do trabalho: movimenos de trabalhadores e globalização desde 1870. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. SKOCPOL, Theda. Wallerstein's world capitalist system: a theoretical and historical critique. American Journal of Sociology, vol. 82, no. 5, pp. 1075-1090. SKOCPOL, Theda. States and social revolutions: a comparative analysis of France, Russia and China. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. SLEMIAN, Andrea. Sob o império das leis: constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). Tese defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da USP. São Paulo: USP, 2006. SLEMIAN, Andrea. Um império entre repúblicas? Independência e construção de uma legitimidade para a monarquia constitucional no Brasil, 1822-1834. Em OLIVEIRA, Cecília; BITTENCOURT, Vera Lúcia & COSTA, Wilma (orgs.). Soberania e conflito: configurações do Estado Nacional no Brasil do século XIX. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2010, 121-148. SMITH, Roger. Stores of peoplehood: the politics and morals of political membership. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. SMITH, Robert Freeman. Os Estados Unidos e a América Latina, 1830-1930. Em BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina (vol 4): de 1870 a 1930. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 609-650. STALIN, Joseph. Respuesta del mariscal Stalin. Em VÁRIOS. Clausewitz en el pensamiento marxista. México-DF: Cadernos del Pasado y Presente (n.75), 1979, pp. 103-106. STAVENHAGEN, Rodolfo. Siete tesis equivocadas sobre América Latina. In STAVENHAGEN, Rodolfo. Sociología y subdesarrollo. México: Nuestro Tiempo, 1981, pp. 15-84. STRAKA, Tomás. Los primeros liberales: el nacimiento de un proyecto nacional (Venezuela, 1810-1840). Em JAKSIC, Iván & POSADA-CARBÓ, Eduardo (org.). Liberalismo y poder: Latinoamérica en el siglo XIX. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2011, pp. 89-118. 419 STRAYER, Joseph. The medieval origins of modern state. Princeton: Princeton University Press, 1973. SUBHRAMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes towards a reconfiguration of early modern Eurasia. Modern Asian Studies, vol. 31, no. 3, 1997, pp. 735-762. TANDETER, Enrique. The mining industry. Em BULMER-THOMAS, Victor; COATSWORTH, John & CORTES-CONDE, Roberto (org.). The Cambridge Economic History of Latin America (vol. 1). Nova Iorque: Cambridge University Press, 2008, pp. 315-356. TARROW, Sidney. War, states, and contention: a comparative historical study. Ithaca: Cornell University Press, 2015. TEIXEIRA, Aloísio. Estados Unidos: a "curta marcha" para a hegemonia. Em: FIORI, José Luis. Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 155-190. TELLES, Vera. Jogos de poder nas dobras do legal e do ilegal: anotações de um percurso de pesquisa. Em AZAÏS, Christian; KESSLER, Gabriel & TELLES, Vera (org.) Ilegalismos, cidade e política. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012, 27-56. TERNAVASIO, Marcela. Historia de la Argentina: 1806-1852. Buenos Aires: Siglo Ventiuno Editores, 2009. TERNAVASIO, Marcela. Hacia un régimen de unanimidad: política y elecciones en Buenos Aires, 1828–1850. Em SÁBATO, Hilda (org.). Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina. México: Fideicomiso de Historia de las Américas y Fondo de Cultura Económica, 1999, pp. 62-93. THIBAUD, Clément. La ley y la sangre. La “guerra de razas” y la constitución en la América Bolivariana. Em IRUROZQUI, Marta & GALANTE, Miriam (org.). Sangre de ley, siglo XIX: justicia y violencia en la institucionalización del estado en América Latina. Madri: Ediciones Polifermo, 2011, pp. 65-96. THOMPSON, Edward. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. TILLY, Charles. Democracy. Cambridge/Nova Iorque: Cambridge University Press, 2007. TILLY, Charles. Armed forces, regimes, and contention in Europe since 1650. Em DAVIS, Diane & PEREIRA, Anthony (orgs). Irregular armed forces and their role in politics and state formation. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 37-81. TILLY, Charles. Prisioneros del estado. Revista Internacional de Ciencias Sociales, n. 133, 1992, pp. 351-366. 420 TILLY, Charles. Coercion, capital and European States 990-1990. Cambridge: Basil Blackwell Publishers, 1990. TILLY, Charles. War making and state making as organized crime. Em EVANS, Peter; RUESCHEMEYER, Dietrich & SKOCPOL, Theda (org.) Bringing the state back in. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, 169-191. TILLY, Charles. Big structures, large processes, huge comparisons. New York: Russell Sage, 1984. TILLY, Charles. From mobilization to revolution. Nova Iorque: Random House, 1978. TILLY, Charles (org.). The formation of national states in Western Europe. Princeton: Princeton University Press, 1975. TOBLER, 1990 Em KATZ, Friedrich (org.) Revuelta, rebelión y revolución: la lucha rural en México del siglo XVI al siglo XX (vol. 2). México-DF: Era Ediciones, 1990, pp. TOKATLIÁN, Juan Gabriel. Segurança e drogas. Contexto Internacional, nº 7, vol. 1, 1988, pp. 39-49. TOMICH, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital, and the world-economy. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2004. TOPIK, Steven; MARICHAL, Carlos & FRANK, Zephyr (org.). From silver to cocaine: Latin American commodity chains and the building of the world economy, 1500-2000. Durham: Duke University Press, 2006. TOPIK, Steven. Karl Polanyi and the creation of market society. Em CENTENO, Miguel Ángel & LÓPEZ-ALVES, Fernando (orgs.). The other mirror: grand theory through the lens of Latin America. Princeton: Princeton University Press, 2000, pp. 81-104. TORRES RIVAS, Edelberto. Sobre a formação do estado na América Central. Em PINHEIRO, Paulo Sérgio (org.) O estado na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, pp. 59-76. TRISTAN, Flora. A união operária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015. TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the past: power and the production of history. Boston: Beacon Press, 1995. URIBE-URÁN, Victor. The great transformation of law and legal culture: ‘the public’ and ‘the private’ in the transition from empire to nation in Mexico, Colombia, and Brazil, 1750-1850. Em ESHERICK, Joseph; KAYALI, Hasan & YOUNG, Eric van (org.). Empire to nation: historical perspectives on the making of the modern world. Lanham/Boulder: Rowman & Littlefield Publishers, 2006, pp. 68-105. 421 UZOIGWE, Godfrey. A partilha europeia e a conquista da África: apanhado geral. Em ADU-BOAHEN, Albert (org.). História geral da África (vol. VII): África sob dominação colonial, 1880-1935. Brasília: UNESCO, 2010, pp. 21-50. VAN DER LINDEN, Marcel. Globalizando a historiografia das classes trabalhadoras e dos movimentos operários: alguns pensamentos preliminares. Revista Trajetos, vol. 1, n. 2, 2016, pp. 1-14. VAROUFAKIS, Yanis. Conversando sobre economia com minha filha. São Paulo: Planeta, 2013. VILLAS BÔAS, Pedro Hermílio. O Estado na filosofia política de Carl Schmitt. O que nos faz pensar?, vol. 30, 2012, pp. 97-131. VISCARDI, Cláudia Ribeiro. O federalismo oligárquico brasileiro: uma revisão da “política do café-com-leite”. Anuário IEHS, n. 16, 2001, pp. 73-90. VOGEL, Hans. War, society and the state in South America, 1800–70. Em SILVA, Patricio (org.) The soldier and the state in South America: essays in civil-military relations. Houndmils: Palgrave Publishers, 2001, pp. 35-51. YOUNG, Eric Van. Revolução e comunidades imaginadas no México, 1810-1821. Em PAMPLONA, Marco & DOYLE, Don (org.). Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de estados-nação no século XIX. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, pp. 267-298. WADDELL, D. A. G. A política internacional e a independência da América Latina. Em BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina (vol. 3): da independência a 1870. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 231-260. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system (vol. IV): the centralist liberalism triumphant, 1789-1914. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2011. WALLERSTEIN, Immanuel. The essential Wallerstein. New York: The New Press, 2000. WALLERSTEIN, Immanuel. Eurocentrism and its avatars: the dilemmas of Social Science. Sociological Bulletin, vol. 46, no. 1, 1997, pp. 21-39. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system (vol. III): the second era of great expansion of the capitalist world-economy, 1730-1840. Nova Iorque: Academic Press, 1988. WALLERSTEIN, Immanuel. The politics of the world economy: the states, the movements, and the civilizations. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system (vol. I): capitalist agriculture and the origins of European world-economy in sixteenth century. New York: Academic Press, 1974. 422 WALLERSTEIN, Immanuel et al. Abrir las ciencias sociales: informe de la Comisión Gulbekian para la restructuración de las ciencias sociales. México/DF: Siglo XXI Editores, 2007. WALTZ, Kenneth. Theory of international politics. New York: New Graw Hill, 1979. Warman (1990) Em KATZ, Friedrich (org.) Revuelta, rebelión y revolución: la lucha rural en México del siglo XVI al siglo XX (vol. 2). México-DF: Era Ediciones, 1990, pp. WATSON, Adam. The evolution of international society: a comparative historical analysis. Londres/Nova Iorque: Routledge, 1992. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2013. WEIL, Simone. L’enracinement: prélude à une déclaration des dévoirs envers l’être humain. Les Classiques des Sciences Sociales (Université du Québec à Chicoutimi) Documento eletrônico [1949] disponível em http://classiques.uqac.ca/classiques/weil_simone/enracinement/enracinement.html WEINBERG, Gregorio. La ciencia y la idea de progreso en América Latina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica Argentina, 1988. WEINSTEIN, Barbara. Pensando a história fora da nação: a historiografia da América Latina e o viés transnacional. Revista eletrônica da ANPLAC, n. 14, 2013, pp. 9-36. WHITEHEAD, Laurence. A organização do estado na América Latina após 1930. Em: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: a América Latina após 1930: estado e política (vol. 7). São Paulo: EDUSP, 2009, p. 19-124. WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. WOLF, Eric. Europe and the peoples without history. Berkeley: California University Press, 1982. WOLFE, Joel. Change with continuity: Brazil from 1930 to 1945. Em DRINOT, Paulo & KNIGHT, Alan (org.). The Great Depression in Latin America. Durham: Duke University Press, 2014, pp. 81-101. XAVIER-GUERRA, François. Modernidad e independencias: ensayos sobre las revoluciones hispanoamericanas. México: Fondo de Cultura Económica, 2000. YOUNG, Eric Van. Revolução e comunidades imaginadas no México, 1810-1821. Em PAMPLONA, Marco & DOYLE, Don (org.). Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de estados-nação no século XIX. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, pp. 267-298. YUNES, Marcelo. Imperialismo y teoría marxista en América Latina. Socialismo o barbarie, n. 23/24, 2009, pp. 213-254. 423 ZAVALETA MERCADO, René. El estado en América Latina. En ZAVALETA MERCADO, René. La autodeterminación de las masas. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2009, pp. 321-335. ZORAIDA VÁZQUEZ, Josefina. De la independencia a la consolidación republicana. Em ESCALANTE GONZALBO, et al. Nueva historia minima de México. México, D.F.: El Colegio de México, 2008, pp. 137-191. ZORAIDA VÁZQUEZ, Josefina. Uma difícil inserción em el concierto de las naciones. Em ANNINO, Antonio & XAVIER-GUERRA, François. Inventando la nación: Iberoamérica siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 2003, pp. 253-284. 424 ANEXOS Tabela 4.1. Evolução comercial das grandes potências, 1720-1820 (total, em milhões de libras esterlinas) 1720 1750 1780 1800 Grã-Bretanha 13 21 23 67 França 7 13 22 31 Espanha 10 14 18 12 Portugal 2 3 4 4 Países Baixos 4 6 8 15 Alemanha 8 15 20 36 Rússia 8 14 17 30 Europa (outros países) 62 103 137 228 Fonte: BLACKBURN, 1998: 381. Notar que “comércio” é a soma de importações e exportações, incluindo re-exportações; o último composto por quase metade do comércio de alguns estados importantes nesse século, como a França. As figuras são dadas em termos de valores atuais da libra esterlina; entre 1713/16 e 1750 os preços declinaram cerca de 10% na Grã-Bretanha, enquanto que na última metade do século eles subiram mais de um terço (BLACKBURN, 1998: 381). Tabela 4.2. Transferências fiscais do Reino de Nova Espanha (1720-1799) Períodos (5 anos) Situados para o Caribe (mil pesos) Envios à Espanha (mil pesos de prata) Total Situados (%) Espanha (%) 1720-24 4.449 3.234 7.733 58,17 41,83 1725-29 3.085 3.059 6.144 50,21 49,79 1730-34 4.197 5.106 9.303 45,11 54,89 1735-39 4.656 4.373 9.029 51,57 48,43 1740-44 6.912 1.690 8.603 80,35 19,65 1745-49 8.959 4.532 13.492 66,41 33,59 1750-54 5.617 4.988 10.605 52,97 47,03 1755-59 10.287 7.186 17.474 58,87 41,13 1760-64 12.490 4.375 16.865 74,06 25,94 1765-69 12.415 1.962 14.377 86,35 13,65 425 1770-74 15.239 5.895 21.134 72,11 27,89 1775-79 19.299 8.455 27.755 69,54 30,46 1780-84 39.182 6.644 45.827 85,50 14,50 1785-89 22.466 9.911 32.378 69,39 30,61 1790-94 23.185 24.323 47.509 48,80 51,20 1795-99 24.118 18.850 42.696 56,13 43,87 Fonte: MARICHAL (2007: 269). Tabela 4.3. Revoltas Regionais, Camponesas e de Castas (1700-1899) Anos Nome atribuído Localidade 1712-1713 Revolta Tzeltal Chiapas (México) 1749-1750 - Huarochirí (Peru) 1756 Actopán (México) 1761 Revolta de Canek Yucatán (México) 1769 Seguidores do “Novo Salvador” Tulancingo (México) 1780-1784 Tupác Amaru Sul do Peru 1810-1811 Movimento de Hidalgo Bajío (México) 1812 Movimento de independência Huánuco (Peru) 1825-1833 Rebelião Yaqui (Banderas) Sonora (México) 1832-1840 Guerra dos Cabanos Noroeste (Brasil) 1833 - San Vicente (El Salvador) 1836-1838 - Papantla (México) 1837 Revolta de Rafael Carrera Guatemala 1838-1841 Balaiada Maranhão (Brasil) 1839 - Chimborazo (Equador) 1842-1843 - Guerrero (México) 1844 - Guerrero (México) 1845 - Oaxaca (México) 1845 - Puebla (México) 1847-1849 Guerra de Castas Maya Yucatán (México) 1847-1849 Revolta da Sierra Gorda Sierra Gorda (México) 1847-1848 - Veracruz (México) 426 1849-1850 - Oaxaca (México) 1849 - Guerrero 1852 Movimento dos Marimbondos Pernambuco (Brasil) 1852 Ronco de Abelha Paraíba (Brasil) 1855-1873 Lozadismo Nayarit (México) 1858 Carne sem Osso Brasil 1861 - Hidalgo (México) 1865 Morant Bay Jamaica 1866-1867 Revolta de Juan Bustamante Huancané (Peru) 1868 Revolta de Julio López México (México) 1869-1870 - Chiapas (México) 1872-1873 - Jujuy (Argentina) 1874-1875 Quebra Quilo Nordeste (Brasil) 1871 - Chimborazo (Equador) 1876 Motins da Federação Barbados 1875-1899 Rebelião Yaqui Sonora (México) 1877 - Sierra Gorda (México) 1877-1883 - Huasteca (México) 1880 Revolta do Vintém Capital (Brasil) 1883-1884 - Huancayo (Peru) 1885 Revolta de Itusparía Ancash (Peru) 1888-1889 Federação de Comas Huancayo (Peru) 1889 - Chayanta (Bolívia) 1897 Canudos Bahia (Brasil) 1899 Rebelião de Zárate Bolívia 1899 - Chayanta (Bolívia) Fonte: COATSWORTH (1990: 38-39). As informações apresentadas pelo autor sofrem inegável problema de subnotificação, mas ainda assim oferecem um panorama inicial para o período. Tabela 4.4. Guerras Cimarronas e Revoltas de Escravos (1700-1830) Anos Nome Atribuído Localidade 1726 - Rio Serámica (Suriname) 1731-1739 Primerra Guerra de Cimarrones Jamaica 427 1731 - Berbice (Guiana/HOL) 1731-1733 - Yaracuy (Venezuela) 1733-1734 - St. John 1735 - Orizalba/Córdoba 1747 - Yare (Venezuela) 1757-1758 - Suriname 1759 - St. John 1759 - St. Croix 1760 Rebelião de Tackey Jamaica 1763-1764 Rebelião de Cuffey Berbice (Guiana/HOL) 1765 - Granada 1765-1793 Guerra de Boni Suriname e Guiana Francesa 1769-1773 Primeira Guerra do Caribe St. Vincent 1771-1774 - Tuy (Venezuela) 1774-1775 - Demerara (Guiana/HOL) 1785-1790 Primeira Guerra de Cimarrones Dominica 1791-1804 Revolução Haitiana Haiti 1795 - Coro (Venezuela) 1795 - Demerara (Guiana/HOL) 1795-1796 Segunda Guerra de Cimarrones Jamaica 1795-196 Segunda Guerra do Caribe St. Vincent 1795-1797 Guerra de Eédon Granada 1796-1797 Guerra de Brigand Santa Lúcia 1809-1814 Segunda Guerra de Cimarrones Dominica 1816 Rebelião de Bussa Barbados 1816 - Bahia (Brasil) 1822 - Suriname 1823 - Guiana Britânica 1831-1832 Guerra dos Batistas Jamaica Fonte: COATSWORTH (1990: 46-47). As informações apresentadas pelo autor sofrem inegável problema de subnotificação, mas ainda assim oferecem um panorama inicial para o período. 428 Tabela 4.5. Conflitos de Escravos (1700-1889) Insurreições de Levantes em escravos plantations - - 2 1710-19 - - - 1720-29 1 1 4 1730-39 2 4 4 1740-49 - 1 5 1750-59 1 3 1 1760-69 3 3 8 1770-79 2 2 10 1780-89 1 - 1 1790-99 4 4 5 1800-09 1 - 4 1810-19 - 2 3 1820-29 2 - 14 1830-39 1 - 9 1840-49 - - 11 1850-59 - - 1 1860-69 - - 4 1870-79 - - 5 1880-89 - - 13 Anos Guerras Cimarronas 1700-09 Fonte: COATSWORTH (1990: 41). As informações apresentadas pelo autor sofrem inegável problema de subnotificação, mas ainda assim oferecem um panorama inicial para o período. Tabela 5.1. Exportações, População e Exportações per Capita (c.1850) País Exportações (mil US$) População (mil) Exportações per capita Argentina 11.310 1.100 10,3 Bolívia 7.500 1.374 5,5 Brasil 35.850 7.230 5,0 Chile 11.308 1.443 7,8 Colômbia 4.133 2.200 1,9 Costa Rica 1.150 101 11,4 Cuba 26.333 1.186 22,2 429 Equador 1.594 816 2,0 Guatemala 1.404 847 1,7 México 24.313 7.662 3,2 Paraguai 451 350 1,3 Peru 7.500 2.001 3,7 Uruguai 7.250 132 54,9 Venezuela 4.865 1.400 3,3 159.484 30.381 5,2 Améria Latina Fonte: BULMER-THOMAS (2003: 37). Tabela 5.2. Projetos e códigos civis na América Latina no século XIX Lugar México Bolívia Peru Equador Uruguai Venezuela Chile Colômbia Brasil Ano Legislação 1828-1829 Código Civil para o Estado Livre de Oaxaca 1829 Projeto de Código Civil para o Estado Livre dos Zacatecas 1854 Código de Comércio (Código Lares, Teodosio Lares) 1831 Código Civil 1835 Código Mercantil Santa Cruz 1836 Código Civil Santa Cruz do Estado Norte-Peruano 1836 Código Civil Santa Cruz do Estado Sul-Peruano 1852 Código de Comércio da República do Peru 1837 Projeto de Código Civil (José Fernández Salvador) 1859 Código Civil da República do Equador 1831 Código de Comércio 1852 Projeto de um Código Civil para o Estado Oriental do Uruguai (Eduardo Acevedo) 1868 Código Civil para o Estado Oriental do Uruguai 1865 Código de Comércio do Estado Oriental do Uruguai 1854 Projeto de Código Civil (Julián Viso) 1862 Código Civil 1844 Projeto de Código de Comércio 1862 Código de Comércio 1855 Código Civil (Andrés Bello) 1865 Código de Comércio 1859 Código Civil do Estado da Cundinamarca 1873 Código Civil para os Estados Unidos da Colômbia 1853 Código de Comércio 1860-1864 Esboço de código civil (Augusto Teixeira de Freitas) 1882 Projeto de código civil brasileiro (Felicio dos Santos) 430 Brasil Argentina Paraguai 1893 Projeto de código civil brasileiro (Cohelo Rodrigues) 1899 Projeto de código civil brasileiro (Clovis Bevilaqua) 1916 Código Civil Brasileiro 1850 Código de Comércio 1869 Código Civil (Dalmacio Vélez Sarsfield) 1860 Código Comercial de Buenos Aires 1861 Código Comercia da Argentina 1876 Código Civil (Código Argentino adaptado para o Paraguai) Fonte: URIBE-URÁN, 2006: 92. Tabela 6.1. Evolução dos Termos de Troca na América Latina, 1820-1940 (1900=100, agregado para todos os países) Fonte: BÉRTOLA & OCAMPO, 2010: 104. Tabela 6.2. Evolução dos Termos de Troca por país, 1870-1930 (1870-1874=100) Volume das exportações Termos de troca Poder de compra 1870-74 1910-14 1925-29 1870-74 1910-14 1925-29 1870-74 1910-14 1925-29 Argentina 100 1.141 1.639 100 129 115 100 1.476 1.883 Brasil 100 146 447 100 108 103 100 158 462 Chile 100 416 712 100 181 222 100 754 1.578 Colômbia 100 809 2.967 100 127 125 100 1.023 3.695 Cuba 100 928 1.847 100 84 63 100 779 1.166 México 100 460 981 100 70 75 100 321 735 Peru 100 211 1.227 100 77 72 100 163 885 Uruguai 100 287 437 100 203 171 100 582 746 Fonte: BÉRTOLA & OCAMPO, 2010: 105. 431 Tabela 6.3. Crescimento Anual Médio das Exportações (X’s) e do Poder de Compra das Exportações (PPX’s) País 1850-1870 1870-1890 1890-1912 X’s PPX’s X’s PPX’s X’s PPX’s Argentina 4,9 4,1 6,7 8,2 6,7 5,4 Bolívia 2,8 2,0 2,3 3,8 2,5 1,2 Brasil 4,3 3,5 2,5 4,0 4,3 3,0 Chile 4,6 3,8 3,3 4,8 5,0 3,7 Colômbia 7,8 7,0 0,5 2,0 2,4 1,1 Costa Rica 4,7 3,9 5,6 7,1 0,5 -0,8 Cuba 3,5 2,7 2,3 3,8 2,4 1,1 Equador 4,9 4,1 1,7 3,2 3,9 2,6 Guatemala 3,2 2,4 6,9 8,4 1,1 -0,2 México -0,7 -1,5 4,4 5,9 5,2 3,9 Paraguai 4,4 3,6 6,0 7,5 2,2 0,9 Peru 6,4 5,6 -4,9 -3,4 6,9 5,6 Uruguai 3,1 2,3 3,7 5,2 3,4 2,1 Venezuela 4,6 3,8 2,4 3,9 1,2 -0,1 4,5 3,7 2,7 4,2 4,5 3,2 América Latina Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 64. Tabela 6.4. Investimento Direto e em Portfolio na América Latina (c.1914) Dívida Externa do Setor Público Investimento Direto Estrangeiro US$ (mi) UK (%) EUA (%) US$ (mi) UK (%) EUA (%) Argentina 784 50,8 2,4 3.217 46,7 1,2 Bolívia 15 0 20 44 38,6 4,5 Brasil 717 83,4 0,7 1.196 50,9 4,2 Chile 174 73,6 0,6 494 43,1 45,5 Colômbia 23 69,6 21,7 54 57,4 38,9 Costa Rica 17 47,1 0 44 6,8 93,2 Cuba 85 58,8 41,2 386 44,0 56,0 Equador 1 100 0 40 72,5 22,5 432 Guatemala 7 100 0 92 47,8 39,1 México 152 92,1 7,9 1.177 54,0 46,0 Paraguai 4 100 0 23 78,3 21,3 Peru 17 47,1 11,8 180 67,2 32,2 Uruguai 120 75 0 355 43,4 0 Venezuela 21 47,6 0 145 20,7 26,2 2.229 67,8 13,8 7.569 47,4 18,4 América Latina Fonte: BULMER-THOMAS,2003: 102. Tabela 6.5. Ferrovias por extensão (km) País 1850 1870 1890 1910 Argentina - 732 9.254 31.859 Bolívia - - 209 1.440 Brasil - 745 9.973 24.614 Chile - 732 2.747 8.070 Colômbia - 80 282 1.061 Costa Rica - - 241 878 465 1.295 1.731 3.846 Equador - - 92 587 Guatemala - - 186 987 México 13 349 9.718 25.600 Paraguai - 91 240 373 Peru - 669 1599 3317 Uruguai - 20 983 2.576 Venezuela - 13 454 858 Cuba Fonte: BÉRTOLA & OCAMPO (2010: 106). Tabela 6.6. Emprego Fabril em 1925 Chile 82.000 % da População Economicamente Ativa 6,1 Brasil 380.000 3,7 México 160.000 3,2 Contingente Operário 433 Venezuela 12.000 1,5 Uruguai 39.000 7,0 Colômbia 47.000 1,8 Peru 21.000 1,2 Argentina 340.000 8,3 Fonte: COLLIER & COLLIER, 2002: 67. Tabela 6.7. Concentração de exportações por mercadoria exportada (c. 1913) País 1o produto % 2o produto % Total Milho 22,5 Trigo 20,7 43,2 Bolívia Estanho 72,3 Prata 4,3 76,6 Brasil Café 62,3 Borracha 15,9 78,2 Chile Nitratos 71,3 Cobre 7,0 78,3 Colômbia Café 37,2 Ouro 20,4 57,6 Costa Rica Banana 50,9 Café 35,2 86,1 Cuba Açúcar 72,0 Tabaco 19,5 91,5 Equador Cacau 39,2 Açúcar 34,8 74,0 Guatemala Café 84,8 Banana 5,7 90,5 México Prata 30,3 Cobre 10,3 40,6 Paraguai Erva-mate 32,1 Tabaco 15,8 47,9 Cobre 22,0 Açúcar 15,4 37,4 Lã 42,0 Carne 24,0 66,0 Café 52,0 Cacau 21,4 73,4 Argentina Peru Uruguai Venezuela Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 58. Tabela 7.1. Peso do Comércio Exterior sobre o PIB, 1928 e 1938 (em %) País Exportações/PIB Exportações+Importações/PIB 1928 1938 1928 1938 Argentina 29,8 15,7 59,7 35,7 Brasil 17,0 21,2 38,8 33,3 Chile 35,1 32,7 57,2 44,9 Colômbia 24,8 24,1 62,8 43,5 434 Costa Rica 56,5 47,3 109,6 80,7 Guatemala 22,7 17,5 51,2 29,5 México 31,4 13,9 47,7 25,5 Peru 33,6 28,3 53,2 42,6 Uruguai 18,0 18,2 38,0 37,1 Venezuela 37,7 29,0 120,4 55,7 Fonte: BULMER-THOMAS (2003: 190). Tabela 7.2. Receita Pública, total e composição por país (c. 1929) Quantia (US$) País Estrutura (em porcentagens) Sobre Sobre Impostos Imposto de Importação Exportação Diretos Renda 27,5 45,7 2,4 3,6 0 17,8 5,9 32,3 13,7 9,0 N/d Brasil 282,1 7,2 43,9 0 4,0 3,1 Chile 148,1 34,0 30,0 24,3 17,7 12,6 Colômbia 73,2 9,2 54,0 0,5 4,9 3,6 Costa Rica 8,9 18,0 56,8 7,9 2,8 0 Cuba 79,3 22,1 50,3 4,5 5,7 5,5 Equador 12,1 6,1 32,9 6,4 6,6 1,8 Guatemala 15,4 7,2 47,4 13,6 1,3 0 México 146 9,7 37,7 3,5 6,7 6,7 Paraguai 5,8 6,9 49,3 10 6,9 0 Peru 56,2 9,1 27,7 6,5 10,3 6,0 Uruguai 61,3 34,1 19,2 1,2 Venezuela 44,5 14,4 20,1 0 Total (mi) Per capita Argentina 308,3 Bolívia 40,8 51,1 0 Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 178. Tabela 7.3. Direção das Exportações (c. 1913) País Total (US$ mi) EUA (%) Reino Alemanha Unido (%) (%) França (%) Total (%) Argentina 510,3 4,7 24,9 12,0 7,8 49,4 Bolívia 36,5 0,6 80,8 8,5 4,9 94,8 435 Brasil 315,7 32,2 13,1 14,0 12,2 71,5 Chile 142,8 21,3 38,9 21,5 6,2 87,9 Colômbia 33,2 44,5 13,5 7,1 2,0 67,1 Costa Rica 10,5 49,5 41,3 4,8 0,9 96,1 Cuba 164,6 79,7 11,2 2,8 1,0 94,7 Equador 15,8 24,3 10,3 16,6 34,1 85,3 Guatemala 14,5 27,1 11,1 53,0 0,1 91,3 México 148,0 75,2 13,5 3,5 2,8 95,0 Paraguai 5,5 0 - 22,0 0,6 28,1 Peru 43,6 33,2 37,2 6,7 3,5 80,6 Uruguai 71,8 4,0 11,2 19,5 17,4 52,1 Venezuela 28,3 29,4 7,6 19,3 34,7 91,0 1.588,2 29,7 20,7 12,4 8,0 70,8 América Latina Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 74. Tabela 7.4. Comércio da América Latina com os EUA, 1913, 1918, 1928 Exportações para os EUA Importações dos EUA (% do total) (% do total) País/Região 1913 1918 1928 1913 1918 1928 29,7 45,4 34,0 24,5 41,8 38,6 67,2 83,5 57,4 53,5 78,1 65,7 73,9 66,1 68,9 55,2 76,8 59,6 América do Sul 16,7 34,9 25,1 16,9 25,9 31,4 Argentina 4,7 29,3 8,3 14,7 21,6 23,2 Brasil 32,2 34,0 45,5 15,7 22,7 26,7 Chile 21,3 56,8 33,1 16,7 41,5 30,8 Peru 33,2 35,1 28,8 28,8 46,8 41,4 Uruguai 4,0 25,9 10,7 12,7 13,2 30,2 Venezuela 28,3 60,0 26,5 32,8 46,7 57,5 América Latina México, América Central e Panamá Cuba, República Dominicana e Haiti Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 156. 436 Tabela 8.1. Estrutura de Arrecadação do Vice-Reino de Nova Espanha, 1795-1799 Receita Líquida (mil pesos) % do Total Impostos sobre a mineração 3.988 26 Impostos sobre o comércio 3.730 24,3 Tributo indígena 1.159 7,5 Monopólios de estado 4.819 31,45 Transferências fiscais da Igreja 658 4,3 Receitas administrativas 91 0,6 Outras receitas 224 1,47 Empréstimos forçados 652 4,2 15.324 100 Total Fonte: MARICHAL & CARMAGNANI (2001: 288). Tabela 8.2. México: receitas do governo federal, 1826-1831 (em milhares de pesos de prata) 1826-27 1827-28 1828-29 1829-30 1830-31 1826-31 % 8.474 6.074 6.516 5.502 10.367 7.386 54 924 1.008 933 964 1730 1.111 8,1 117 107 84 121 226 129 0,9 979 1.381 1.620 1.960 1.356 1.459 10,7 1.279 1.426 1.323 1.071 1.271 1.280 9,4 Outras fontes 2.411 1.611 3.334 2.573 2.317 2.249 16,5 Totais 14.191 11.642 12.814 12.200 17.275 13.624 100 Impostos sobre o comércio exterior Impostos internos Impostos sobre a prata e as moedas Transferências dos estados Monopólios de estado* Fonte: MARICHAL & CARMAGNANI (2001: 300). * Inclui monopólios sobre o tabaco, correios, sal, pólvora e loteria 437 Tabela 8.3. México: receitas federais e impostos sobre o comércio exterior, de 1872 a 1930) Receita Federal Impostos ao Comércio % Exterior Impostos às Importações % Impostos às Exportações % 1872/73 15.739 9.244 58,7 8.128 51,6 1.063 6,7 1874/75 17.266 9.177 53,1 8.393 48.6 726 4,2 1879/80 21.936 13.438 61,2 12.338 36,2 1.029 4,6 1884/85 29.869 15.705 52,5 15.229 50,9 310 1,0 1889/90 40.813 22.552 55,2 22.181 54,3 98 0,2 1894/95 44.570 19.681 44,1 18.091 40,5 1.227 2,7 1899/00 64.261 29.945 46,6 28.247 43,9 872 1,3 1904/05 92.083 41.028 44,5 38.918 42,2 917 1,0 1909/10 106.328 49.690 46,7 46.566 43,8 501 0,4 1914/15 - - - - - - - 1920 238.243 71.992 30,2 55.228 23,1 11.031 4,6 1925 336.717 94.914 28,1 76.337 22,6 18.577 5,5 1929 322.335 116.001 35,8 107.959 33,4 8.042 2,4 Fonte: LÓPEZ, 2005: 11. Tabela 8.4. México: taxa de crescimento das receitas federais, entre 1867/8 e 1881/2 Receitas Federais Totais 5,6% Receitas Patrimoniais 21,5% Receitas de Serviços Públicos 9,0% Impostos sobre Importações 10% Impostos sobre Exportações -6,1% Imposto sobre a Circulação 18% Imposto Direto 0,1% Fonte: MARICHAL & CARMAGNANI, 2001: 309. 438 Tabela 8.5. México: Impostos aduaneiros por região de outubro de 1914 a junho de 1915 (em pesos correntes) Aduanas Direitos de importação Direitos de exportação 4.745.348,18 4.264.685,15 Pacífico 198.888,50 256.065,04 Norte 263.294,10 304.219.,12 - 101.768,80 5.208.350,50 4.986.737,11 Golfo Sul Totais Fonte: LÓPEZ, 2005: 23. Tabela 9.1. Receitas do Vice-Reino do Prata, 1795-1805 (em milhares de pesos de prata) Remessas de Potosí e outras tesourarias do reino 20.077 Corporações e outros ramos (tabaco, dízimo, consulado, etc.) 2.184 Aduana 4.553 Tributos 9 Impostos à produção Impostos ao comércio 184 3.013 Cobranças às funções públicas 972 Multas e sanções 584 Monopólios de estado 374 Venda e aluguel de propriedade estatal 419 Contribuições voluntárias 327 Bens alheios 795 Devoluções 89 Total 33.788 Fonte: HALPERÍN DONGHI, 2005: 52-53. 439 Tabela 9.2. Orçamento de Províncias da Confederação Argentina e de Buenos Aires, anos selecionados (em mil pesos fortes) Ano Província Receitas Fiscais Totais 1841 Buenos Aires 1.965 1838 Entre Ríos 102 1841 Corrientes 101 1841 Santa Fe 60 1841 Córdoba 139 1838 Tucumán 25 1840 Jujuy 40 Fonte: HALPERÍN DONGHI (2005: 10). Tabela 9.3. Orçamento Comparado da Província de Buenos Aires e da Confederação Argentina, 1859 Confederação Argentina Buenos Aires Ministério do Interior 10.443 19.303 Ministério de Relações Exteriores 1.172 1.505 Ministério da Fazenda 6.786 20.304 Ministério de Justiça, Culto e Instrução Pública Câmaras e Administração do Crédito Público Totais 7.7076 - - 602 47.729 91.943 Fonte: OSZLAK (2015: 92). Tabela 9.4. Argentina: receitas gerais e dívidas do governo federal, 1864-1871 (em mil pesos fortes) 1864 7.005 Dívida de Longo Prazo 13.709 18.133 Relação Dívida/Receita 2,6 1867 12.040 29.492 36.317 2,9 1869 12.693 39.741 46.881 3,7 1871 12.682 74.164 82.984 6,5 Receitas Totais Dívida Total Fonte: GARAVAGLIA (2016: 05). 440 Tabela 9.5. Argentina: gastos e receitas do governo federal, 1863-1890 (em mil pesos fortes) Receita Total Despesa Total 1863 6.478 Impostos de Importação 4.273 Ministério da Fazenda Guerra Marinha e Marinha 1864 7.005 4.268 7.119 2.812 2.983 - 1865 8.295 5.321 12.517 4.019 7.099 - 1866 9.568 6.686 13.745 4.017 8.308 - 1867 12.040 8.713 14.110 3.412 9.292 - 1868 12.496 9.660 16.693 3.296 10.444 - 1869 12.676 9.949 14.953 4.312 8.056 - 1870 14.833 12.092 19.439 7.498 9.259 - 1871 12.682 10.176 21.166 9.784 8.033 - 1872 18.172 14.464 26.483 16.027 6.770 - 1873 20.217 16.516 31.025 14.423 11.004 - 1874 16.526 12.512 29.784 13.005 9.416 - 1875 17.206 12.893 28.567 9.413 10.181 - 1876 13.583 9.577 22.153 9.660 7.378 - 1877 14.824 10.843 19.924 9.021 7.353 - 1878 18.451 12.033 20.840 10.627 5.712 - 1879 20.961 12.844 22.523 11.066 7.622 - 1880 19.594 12.055 26.919 8.933 11.428 1.263 1881 28.381 10.292 8.055 2.079 1882 58.007 31.880 7.627 2.005 1883 44.831 13.096 8.118 2.943 1884 56.440 19.774 7.818 3.512 1885 50.505 17.744 7.734 3.985 1886 54.394 20.696 8.331 3.144 1887 64.693 29.536 8.328 3.312 1888 75.877 24.034 8.764 4.177 7.925 3.353 3.342 - 441 1889 107.251 26.754 9.478 7.301 1890 95.363 26.103 9.697 6.261 Fonte: OSZLAK, 2015: 112-117. Tabela 10.1. Rendas Internas e Externas do Reino de Portugal e Algarves, 1801-1803 e 1813-1814 (em contos de réis) Receita Alfândegas Décima * Contribuição para a defesa do país Renda anual líquida do ultramar** Fonte: COSTA (2003: 175). 1801-1803 (média) 3.941 739 1813-1814 (média) 4.601 694 0 1.498 759 ***3.134 * imposto territorial de todo o reino ** compreendidos diamantes, quinto do ouro, marfim, urzela e madeira. *** Desse total 1.604 eram arrecadados diretamente pelo tesouro real do Rio de Janeiro, 600 eram sobras das capitanias da Bahia, 480 de Pernambuco, 300 do Maranhão e 150 de Minas Gerais, Ceará e Angola. Tabela 10.2. Brasil: arrecadação das principais alfândegas, 1860, 1880, 1888 (em mil contos de réis) Províncias 1860 1880 1888 Rio de Janeiro 18,4 42,0 48,5 Pernambuco 6,5 9,5 11,1 Bahia 5,0 9,5 11,8 Pará 1,3 5,5 8,6 Santos 0,5 5,2 10,8 Rio Grande do Sul 2,0 4,6 4,5 Maranhão 1,1 2,5 2,2 Ceará 0,3 1,3 1,6 0,2 1,2 35,5 80,3 100,6 36,0 81,4 103,2 Manaus Total Total de todas as Alfândegas Fonte: COSTA (1998: 156). 442 Tabela 10. 3. Brasil: dívida acumulada e pagamento de juros por quinquênio, 1840, 1889 (em contos de reis) Ano Dívida externa Juros Dívida interna Juros 1840 44.240 2.216 30.282 1.993 1845 59.078 5.899 48.529 2.889 1850 53.782 2.757 54.312 4.026 1855 52.242 3.434 59.615 3.556 1860 45.677 4.059 63.191 3.770 1865 69.073 3.636 80.376 4.801 1870 156.771 8.039 234.312 14.525 1875 132.635 6.548 285.592 17.237 1880 177.338 7.572 363.569 23.618 1885 199.800 7.956 405.640 23.954 1889 270.395 (*)19.148 543.585 (*)25.178 Fonte: COSTA, 1998: 147. Tabela 10.4. Brasil: receitas e despesas, 1840-1889 (em contos de réis) Ano Fiscal Receita Despesa Diferença 1840/41 16.311 22.772 -6.461 1841/42 16.319 27.483 -11.164 1842/43 18.712 29.165 -10.453 1843/44 21.351 25.947 -4.596 1844/45 24.805 25.635 -830 1845/46 26.199 24.464 1.735 1846/47 27.628 26.680 948 1847/48* 24.732 26.211 -1.479 1848/49 26.163 28.289 -2.126 1849/50 28.200 28.950 -750 1850/51 32.697 33.225 -528 1851/52 37.713 42.775 -5.062 1852/53 38.103 31.654 6.449 1853/54 34.516 36.234 -1.718 443 1854/55 35.985 38.740 -2.755 1855/56 38.634 40.243 -1.609 1856/57 49.156 40.374 8.782 1857/58 49.747 51.756 -2.009 1858/59 46.920 52.719 -5.799 1859/60 43.807 52.606 -8.799 1860/61 50.052 52.358 -2.306 1861/62 52.489 53.050 -561 1862/63 48.342 57.000 -8.658 1863/64 54.801 56.494 -1.693 1864/65 56.996 83.346 -26.350 1865/66 58.523 121.856 -63.333 1866/67 64.777 120.890 -56.113 1867/68 71.201 165.985 -94.784 1868/69 87.543 150.895 -63.352 1869/70 94.847 141.594 -46.747 1870/71 95.885 100.074 -4.189 1871/72 101.337 101.581 -244 1872/73 110.713 121.874 -11.161 1873/74 102.652 121.481 -18.829 1874/75 104.707 125.855 -21.148 1875/76 100.718 126.780 -26.062 1876/77 98.970 135.801 -36.831 1877/78 109.221 151.492 -42.271 1878/79 111.801 181.469 -69.667 1879/80 120.393 150.134 -29.741 1880/81 128.364 138.583 -10.219 1881/82 130.698 139.471 -9.015 1882/83 129.698 152.958 -23.260 1883/84 132.593 154.257 -21.664 1884/85 121.974 158.496 -36.522 1885/86 126.883 153.623 -26.740 444