UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIAIS E POLÍTICOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA
A CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA COMO PROCESSO DE LONGA
DURAÇÃO: ESTADOS PÓS-COLONIAIS E DESENVOLVIMENTO
DESIGUAL NA AMÉRICA LATINA (c.1770-1945)
Pedro dos Santos de Borba
Rio de Janeiro
Março de 2019
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIAIS E POLÍTICOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA
A CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA COMO PROCESSO DE LONGA
DURAÇÃO: ESTADOS PÓS-COLONIAIS E DESENVOLVIMENTO
DESIGUAL NA AMÉRICA LATINA (c.1770-1945)
Autor: Pedro dos Santos de Borba
Tese
submetida
ao
Programa
de
Pós-Graduação em Ciência Política do
Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IESP/UERJ), como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em
Ciência Política.
Orientador: Prof. Dr. Breno Marques Bringel
Rio de Janeiro
Março de 2019
A CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA COMO PROCESSO DE LONGA
DURAÇÃO: ESTADOS PÓS-COLONIAIS E DESENVOLVIMENTO
DESIGUAL NA AMÉRICA LATINA (c.1770-1945)
Nome do Autor: Pedro dos Santos de Borba
Orientador: Prof. Dr. Breno Marques Bringel
Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política do Instituto de
Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IESP/UERJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Ciência Política.
Aprovada por:
____________________________________________
Orientador: Dr. Breno Marques Bringel (IESP/UERJ)
____________________________________________
Prof. Dr. José Maurício Castro Domingues da Silva (IESP/UERJ)
____________________________________________
Profa. Dra. Maria Regina Soares de Lima (IESP/UERJ)
____________________________________________
Profa. Dra. Monica Esmeralda Bruckmann Maynetto (UFRJ)
____________________________________________
Prof. Dr. Rafael Bivar Marquese (USP)
Rio de Janeiro
Março de 2019
DEDICATÓRIA
Dedico esta tese a todas e todos que, com trabalho, luta e esperança, mantêm viva a
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pela bolsa de “Doutorado Nota 10” (2016-2018),
à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa
de doutorado (2014) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) pela bolsa de doutorado (2014-2016). Em paralelo, gostaria de
agradecer à criadora do Sci-Hub, Alexandra Elbakyan, e a todos aqueles que mantém
e alimentam plataformas digitais de compartilhamento de livros, como a Library
Genesis.
Em segundo lugar, gostaria de agradecer aos professores que, à sua maneira,
foram fundamentais no percurso, em particular a César Guimarães, José Maurício
Domingues e Breno Bringel. Sou grato também à professora Elisa Reis por sua
generosa intervenção em minha banca de qualificação, além dos seminários
preparatórios da tese conduzidos no IESP por Christian Lynch e Cristiana Buarque de
Hollanda. Nestes seminários, contei com a colaboração solidária de inúmeros colegas
do Instituto que não conseguiria nomear individualmente. Ainda em Botafogo, deixo
meu fraterno agradecimento à toda a equipe que trabalha no cotidiano do IESP, José
Márcio, Alessandra, Maricleide, Simone, Louise, Leonardo, e tantos outros, mas
especialmente à querida Cristiana Avelar.
Também gostaria de agradecer pela acolhida na Universidade de Buenos Aires
à professora Verónica Giordano em 2016, que me proporcionou inestimável diálogo
com pesquisadores de sociologia histórica de diferentes quadrantes da América Latina.
Outra oportunidade singular de discussão do trabalho se deu em 2015 no Laboratório
de Doutorandos da Associação Internacional de Sociologia, pelo que gostaria de
agradecer também a cada um dos participantes.
Esta tese não teria sido possível sem o afeto, a companhia e o intercâmbio com
amigos e amigas do Núcleo de Estudos em Teoria Social e América Latina, do qual
faço parte desde 2012. Pela leitura atenta e generosa de versões e partes
intermediárias, sou muito grato aos queridos Guilherme Benzaquen, Simone Gomes,
Pedro Cazes e Juan Pedro Blois. Por todo o companheirismo, às vezes perto, às vezes
longe, alargo o agradecimento a Alfredo Job, Fernando Vieira, Marcelo Viola e
Juliane Furno. Nesses anos de doutorado no Rio de Janeiro, contei com a acolhida
terna de Márcia Ribeiro, Carlos Augusto Campos, Maíra Campos e Cicilia Guimarães,
a quem também sou muito grato.
E à Luna Campos sou infinitamente grato por tudo o que vivi nos últimos anos
e espero viver nos próximos. Sem seu carinho, sua força e seu inconfundível senso
prático, não consigo imaginar como chegaria ao final desta etapa, e ir além dela. Não
caberia aqui tampouco a gratidão que tenho ao Ramiro Santos, à Lorena Martins e aos
luminosos Augusto e Júlio. E se houvesse quem devesse constar em cada nota de
rodapé de cada página como agradecimento, estes seriam o Clóvis Borba e a Maria
Angélica Santos, porque afinal eles estão sempre em tudo o que faço.
A CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA COMO PROCESSO DE LONGA
DURAÇÃO: ESTADOS PÓS-COLONIAIS E DESENVOLVIMENTO
DESIGUAL NA AMÉRICA LATINA (c.1770-1945)
RESUMO
Este trabalho pretende rediscutir a formação histórica dos estados modernos na
América Latina, mobilizando uma crítica ao eurocentrismo como plataforma de
reconstrução conceitual. O argumento principal é que a autoconstrução institucional
desses estados foi propulsionada por um dínamo causal que conectava o alargamento
do ciclo extrativo-coercitivo às oportunidades fiscais do ciclo sistêmico liderado pela
industrialização britânica no “longo século XIX”. Durante a Era das Revoluções
(1770-1840), que marca o arranque do ciclo, a crise dos impérios ibéricos produziu
uma abertura do horizonte de possibilidades. No contexto das independências, a
disputa por imaginários incompatíveis de ordem política se combinou com uma
tendência à proliferação de reivindicações autonômicas de províncias, regiões e
cidades. Diante disso, a reciprocidade formada entre estadistas e capitalistas teve
como subproduto um processo longo de desencaixe desses espaços locais, cada vez
mais subordinados às injunções de um liberalismo hegemônico. Nesse sentido, a
nacionalização da disputa política é também um fechamento do horizonte de possíveis
abertos no ciclo das independências. A tese desenvolve três estudos de caso para
projetar empiricamente essa explicação em trajetórias particulares. Através do
percurso, a tese rejeita a hipótese de replicação, na qual os estados latino-americanos
são considerados unidades analiticamente equivalentes e independentes do processo
que ocorreu na Europa. A contrapartida é partir das conexões mundiais que envolvem
Europa e América Latina no mesmo processo de expansão, embora desigual, do
sistema interestatal moderno. A crítica ao eurocentrismo, nesse sentido, é
encaminhada como uma reconstrução conceitual que traga ao primeiro plano a
dimensão imperial da política moderna e o desenvolvimento desigual da economia
mundial capitalista.
Palavras-chaves: Construção da Ordem; Eurocentrismo; Transições Hegemônicas;
América Latina; Sociologia Política.
THE MAKING OF POLITICAL ORDER IN THE LONGUE DURÉE:
POSTCOLONIAL STATES AND UNEQUAL DEVELOPMENT IN LATIN
AMERICA (c.1770-1945)
ABSTRACT
This dissertation intends to rediscuss the historical formation of modern states in Latin
America, calling upon a critique of Eurocentrism as platform of conceptual
reconstruction. The main argument is that institutional buildup was propelled by the
connection between an enlargement of the coercive-extractive cycle and the fiscal
opportunities of British world hegemony during the “long XIX century”. During the
Age of Revolutions (1770-1840), which stands in the beginning of the cycle, the
Iberian empires crisis had broadened the horizon of historical possibilities. During
Latin American independencies, the struggle among opposing imaginaries of political
order has intertwined with the proliferation of autonomic vindications of provinces,
regions and cities. In this context, the link formed between capitalists and
state-makers resulted, as a by-product, in a long process of disentanglement of these
local spaces, as they became more subordinated to hegemonic liberalism. Hence, the
nationalization of political dispute is also a closure in the horizon of possibilities
opened during anti-imperial struggles. The dissertation develops three case studies to
cast this explanation into particular trajectories. Along the way, it rejects the
replication hypothesis, by which Latin American states are considered unit-like cases
of the process previously fulfilled in Europe. The theoretical counterposition
emphasizes world connections that encompass Europe and Latin America in the same
and unequal process of development of the modern interstate system. The critique of
Eurocentrism, in this sense, is developed as a conceptual reconstruction that brings to
the forefront the imperial dimension of modern politics and unequal development in
capitalist world economy.
Key-words: Political Order; Eurocentrism; Hegemonic Transition; Latin America;
Political Sociology.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................11
PARTE I: SOCIOLOGIA HISTÓRICA COMO TEORIA POLÍTICA...................... 33
1. A construção social da ordem política..................................................................... 34
1.1. Dominação e obediência política como relação social..................................34
1.2. A tessitura de relações ético-políticas........................................................... 42
1.3. Da política do medo: os arranjos móveis de proteção mediante extorsão.....48
1.4. Da extração em geral ao ciclo extrativo-coercitivo como mecanismo
contingente........................................................................................................... 62
2. O sistema mundial visto da periferia........................................................................74
2.1. Anarquia e hierarquia: a soberania como hipocrisia organizada...................79
2.2. Mercados e contramercados.......................................................................... 87
2.3. O tempo do mundo: transições hegemônicas e caos sistêmico..................... 94
2.4. Expansão e formação de um sistema em movimento..................................101
3. Estados latino-americanos, eurocentrismo e seus impasses...................................105
3.1. Estados modernos e “uma Europa que se autointerpreta”...........................109
3.2. A teoria do estado na América Latina: reiteração e diferença.................... 115
3.3. Sociologia política diante da história mundial............................................ 123
3.4. Para além da reiteração e diferença: estados pós-coloniais na periferia..... 131
PARTE II: A AMÉRICA LATINA NO LONGO SÉCULO XIX.............................141
4. A Era das Revoluções e as independências latino-americanas (1770-1840)......... 142
4.1. Os espaços imperiais em uma corrida competitiva..................................... 144
4.2. A Era das Revoluções em perspectiva mundial.......................................... 154
4.3. Contingência, conflito e impérios no percurso das independências............159
4.4. Localismo e soberania................................................................................. 170
5. Capitalismo, tributação e violência: as forças de desencaixe da política de seus
contextos locais (1810-1930)..................................................................................... 176
5.1. Os atores e bastidores do liberalismo mundial............................................179
5.2. Soberania e comércio
.............................................................................. 186
5.3. A utopia de mercado na periferia................................................................ 194
5.4. As escalas da violência e seu controle.........................................................203
5.5. O desencaixe como processo autoestimulante............................................ 210
6. Os sinais do outono: progresso e desdemocratização na financeirização da
hegemonia britânica (1873-1931).............................................................................. 214
6.1. A crise de 1873 como inflexão mundial......................................................220
6.2. A política dos governados........................................................................... 229
6.3. Intransigência e rotina: o liberalismo em desdemocratização.....................235
6.4. Sobre a possibilidade de oligarquias em meio à turbulência global............245
7. As guerras euroasiáticas e o colapso da civilização do século XIX (1910-1945)..248
7.1. Os giros da bússola do progresso................................................................ 253
7.2. A crise do liberalismo latino-americano..................................................... 258
7.3. O magnetismo dos Estados Unidos............................................................. 266
PARTE III: ESTADOS PÓS-COLONIAIS EM PERSPECTIVA COMPARADA.. 272
8. México: construção da ordem política no “longo século XIX”............................. 273
8.1. Conjunção crítica I (1808-1824): revolução agrária e municipalismo........274
8.2. A formação de um liberalismo hegemônico no México (1810-1910)........ 286
8.3. Conjunção crítica II (1910-1940): a via revolucionária para outra nação...300
9. Argentina: construção da ordem política no “longo século XIX”..........................309
9.1. Conjunção crítica I (1810-1827): das margens do império ao impasse federal312
9.2. A formação de um liberalismo hegemônico na Argentina (1810-1916).....324
9.3. Conjunção crítica II (1912-1946): os descamisados na política nacional... 339
10. Brasil: construção da ordem política no “longo século XIX”.............................. 349
10.1. Conjunção crítica I (1820-1840): a antecipação monárquica e a “segunda
escravidão”......................................................................................................... 357
10.2. A formação de um liberalismo hegemônico no Brasil (1838-1930)......... 365
10.3. Conjunção crítica II (1917-1945): as ruas, o povo e o desenvolvimento..377
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 385
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 392
ANEXOS....................................................................................................................424
INTRODUÇÃO
Um ano antes dessa tese ser apresentada, no dia 14 de março, a vereadora
Marielle Franco foi assassinada junto com seu motorista, Anderson, no Rio de Janeiro,
uma execução política que ainda permanece impune1. Alguns dias antes de morrer,
Marielle denunciara a onda de violência em curso no bairro de Acari, sede do 41o
batalhão da Polícia Militar. O estado do Rio de Janeiro estava sob intervenção federal,
que transferira para competência militar diversas áreas da administração pública. Em
seu último discurso na Câmara dos Vereadores, no contexto do 8 de março, ela
denunciou a violência institucional e a marginalização das mulheres na política; foi
interrompida inúmeras vezes e recebeu uma flor de um vereador enquanto falava.
Embora a filmagem não permita identificar seu interlocutor, em dado momento ela
olha-o dizendo que não seria interrompida por quem usa o parlamento para
homenagear a ditadura. O desprezo pela democracia, prossegue a vereadora, é a
incapacidade de ouvir a uma mulher eleita. Diz eleita pausadamente, com os olhos
ainda firmes no interlocutor.
Um dia antes de morrer, Marielle mencionou o assassinato de Matheus Melo
Castro (23 anos) em seu Twitter e disse: “Quantos mais vão precisar morrer para que
essa guerra acabe?”. A “guerra” tem como pano de fundo a seletividade com que a
força de estado é organizada na cidade. Em sua dissertação de mestrado na UFF,
“UPP: a redução da favela em três letras”, Marielle argumentava que, sob a guerra às
drogas, “o que de fato existe (...) é uma política de exclusão e punição dos pobres, que
está escondida por trás do projeto das UPPs” (FRANCO, 2014: 11). Como ela diz, “as
práticas policiais nesses territórios violam os direitos mais fundamentais, e a violação
do direito à vida também está incluída nessa forma de oprimir” (FRANCO, 2014: 97).
O questionamento à seletividade da violência de estado é uma contestação da forma
como se divide politicamente o que constitui uma ameaça potencial do que é o terreno
da proteção devida. Ou ainda, como a segurança pública, a garantia da lei e da ordem
separam, em inúmeras pequenas decisões práticas, o que exige ação e urgência
daquilo que é indiferente, tolerado ou tergiversado.
As informações relacionadas ao inquérito foram extraídas da série de dez reportagens publicadas pelo
Intercept Brasil, chamada “Caso Marielle” (INTERCEPT, 2018/2019). Durante o mês de março de
2019, após a redação desta introdução, novos desdobramentos do caso levaram à prisão de dois
acusados, vinculados a uma milícia da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Um terceiro acusado permanece
foragido. O contratante dos matadores responsáveis pelo crime, contudo, ainda não foi esclarecido.
1
11
Uma das questões candentes que percorrem a tese é que essa seletividade e seus
significados são objeto de uma disputa contínua, ainda que não simétrica. Com efeito,
é possível observar essa disputa em uma semana trágica na cidade do Rio de Janeiro,
mas também em períodos muito mais longos de tempo. Em última instância, o estado
não é uma realidade institucional prévia, um arcabouço dado em que a disputa ocorre,
mas um resultado dessa própria disputa. A preocupação da tese é conferir
profundidade histórica a essa ideia. Não é por isso um argumento exclusivamente
sobre o passado, pois, se bem encaminhada, a sociologia histórica interpela o presente.
É notório que instituições poderosas produzem uma ilusão de permanência e
atemporalidade, o que já foi chamado de uma “amnésia da gênese” (BOURDIEU,
2014). Essa amnésia é um passo para a naturalização do existente. A luta de Marielle
foi tão potente e incômoda não só por contrariar decisões políticas como a intervenção
federal ou as Unidades de Polícia Pacificadora, mas por contestar quais são a lei e a
ordem que na prática são garantidas. Como construção política, a ideia de ordem
nunca foi uma realidade independente de suas contestações e seus dissensos, da
indignação moral com a autoridade, da fricção contra suas práticas de exclusão.
Esta tese procura construir um tratamento original para os desenvolvimentos de
longo prazo da política moderna na América Latina, à luz da discussão acumulada
pela sociologia histórica sobre o tema. Mais especificamente, ela pretende oferecer
recursos para oxigenar os estudos sobre a formação de estados na região,
aproximando-os de uma teoria crítica. A rigor, “formação do estado” é um tema
suficientemente vago para comportar diversas linhas independentes de pesquisa, com
técnicas, linguagens e escalas próprias. Em diversas oportunidades em que resultados
preliminares da tese foram debatidos, foi possível perceber que a expressão evoca
problemas muito diferentes conforme a área de especialização e a bagagem teórica do
interlocutor.
O papel dessa introdução é, na medida do possível, esclarecer quais as questões
que estão em jogo, a razão de sua importância e a forma como elas serão enfrentadas
no restante do trabalho. O primeiro passo para fazê-lo é destacar uma linha de
continuidade com a dissertação de mestrado que a precedeu (BORBA, 2014). O
argumento desenvolvido ali era que persistia uma espécie de viés modernizador na
sociologia histórica sobre os estados latino-americanos, em alusão às teorias da
modernização correntes nas décadas de 1950 e 1960. Embora nominalmente
12
descreditadas, suas fundações permaneciam sub-reptícias em diversos campos da
literatura especializada. Pode-se simplificar essas fundações por meio de uma
conjugação entre um pressuposto desenvolvimentista de mudança histórica com uma
teoria apologética do estado moderno. Assim, em momentos diferentes em cada
sociedade nacional, com resultados mais bem-acabados conforme o caso, a formação
do estado se confundia com a própria realização das expectativas normativas da
modernidade. Ao destrinchar o conteúdo desses termos e cotejá-los com o estado da
arte sobre o tema, a dissertação oferecia uma revisão bibliográfica que municia muito
do argumento agora apresentado.
A contrapartida propositiva indicava então a possibilidade de uma teoria crítica
do estado moderno a partir de seus processos históricos de formação. De forma
sintética, reivindicava a sociologia histórica como teoria política. As balizas da
agenda de pesquisa giravam na órbita do trabalho do sociólogo norte-americano
Charles Tilly (1929-2008), cuja obra foi decisiva, a certa altura, para uma
reorientação interdisciplinar do que entendemos como construção de estados.
Especialmente entre 1975 e 1990, seus trabalhos galvanizaram uma série de
perspectivas inovadoras na intersecção entre história e sociologia política (TILLY,
1975; 1978; 1984; 1985; 1990).
No embate direto às teorias do desenvolvimento político, a agenda seguia três
preocupações axiais: (1) o interesse pela explicação histórica em ciências sociais,
incorporando a contingência em escalas longas de tempo; (2) a relevância da agência
política popular como parte de um gabarito amplo de confronto político [contentious
politics], capaz de englobar a guerra, os movimentos sociais, o nacionalismo, os
conflitos étnicos, entre outras formas de ação coletiva; (3) por fim, a crítica ao
desenvolvimentismo político, naquele contexto, carregava uma premissa de
desnaturalização do processo de formação de estados, despindo-o de um conteúdo
ético intrínseco. Relido nesse prisma, o processo se convertia em um conflitivo e
acidentado percurso pelo qual organizações políticas em contínua competição foram
impelidas a mobilizar volumes crescentes de capital e coerção para continuar
existindo. Em sua forma mais crua e também mais célebre, ele postulava que os
estados fizeram a guerra enquanto a guerra fazia os estados (TILLY, 1975).
Mais do que a ênfase na guerra, a tese privilegia as três preocupações mais
gerais. Como propôs Breno Bringel para o campo de movimentos sociais, o desafio
13
era aproveitar a originalidade do programa de pesquisa de Tilly e levá-lo adiante, em
um conflito criativo com suas fragilidades (BRINGEL, 2012). Reconhecer que a
sociologia histórica anglo-saxônica estabeleceu os termos do problema não
significava que ela era capaz de oferecer todas as respostas. Aliás, a apropriação de
suas contribuições fora de seu contexto original de formulação criava inclusive um
tipo novo de problema que, a rigor, ela sequer havia se colocado.
Um dos traços renitentes do viés modernizador é ler a experiência
latino-americana na chave da negação, da incompletude, da temporalização da
diferença. De forma mais ou menos explícita, estabelece-se um hiato entre a realidade
observada e o significado da política moderna em suas formas genuínas, a cidadania,
o estado burocrático, a democracia, a nacionalidade. Tratam-se de sociedades ainda
em processo de modernização, mesmo que a palavra tenha sido substituída por
variantes menos datadas. A modernidade política se define no restrito círculo da
Europa Ocidental, enquanto que, para o resto do mundo, ela representava um projeto
importado e aclimatado, um porvir auspicioso, uma transformação social que ainda
não maturou completamente. Fora do debate sobre formação de estados, essa
gramática da ausência tinha raízes mais profundas a serem revolvidas.
“Mais do que qualquer outra região”, escreveu recentemente Achille Mbembe,
“a África permanece o receptáculo supremo da obsessão ocidental e do discurso
circular sobre os fatos da ‘ausência’, da ‘falta’, do ‘não-ser’, da identidade e diferença,
da negatividade” (MBEMBE, 2001: 04). Algumas décadas antes, um argumento
muito parecido fora apresentado sobre o Oriente em um dos livros mais influentes do
século passado (SAID, 2008). Mais do que um vício dos estudos latino-americanos
em particular, o que foi identificado como resquício das teorias da modernização era,
até certo ponto, a reinvenção de um discurso etnocêntrico mais amplo. Portanto, esta
pesquisa atingiu o problema do eurocentrismo enquanto representação hegemônica de
mundo. Diante disso, a tarefa era menos diagnosticá-la nos conceitos, bibliografias e
exemplos históricos que ainda hoje povoam a sociologia política; o desafio era
sobretudo levar a denúncia para um terreno reconstrutivo, propositivo, instituinte no
plano teórico (BRINGEL & DOMINGUES, 2015).
Nesse sentido, ao resgatar a hipótese de uma teoria crítica do estado a partir
seus processos históricos de formação, a tese também postula que essa possibilidade
não consegue subsistir sem uma crítica consequente ao eurocentrismo. Se bem
14
compreendida, a questão não é perseguir uma teoria sem eurocentrismo, mas sim
contra ele. A contraposição funciona como plataforma de reelaboração teórica, de
desvelamento do que havia sido negligenciado e apagado. Nessa passagem, a crítica
ao eurocentrismo tem como contrapartida um reposicionamento forte do colonialismo
na sociologia do estado (BHAMBRA, 2016). Do ponto de vista conceitual, isso
fertiliza uma hipótese de desenvolvimento desigual da política moderna como
processo macro-histórico, uma ideia que remonta às teorias da dependência. Explorar
caminhos nessa direção foi, por assim dizer, o primeiro conflito criativo com o
programa de pesquisa tal qual definido por Tilly e seus colegas.
Em segundo lugar, havia o problema da mobilização de capital e coerção como
eixo da autoconstrução de estados no longo prazo. Também aqui se revelavam
dificuldades do argumento ao ser interpretado desde suas margens. Na América
Latina, a forma mais comum de fazê-lo reduziu essa mobilização à preparação para a
guerra, levando a uma comparação entre continentes com resultados paradoxais
(CENTENO, 2002, entre outros). Ao restringir à guerra o que fora pensado como um
gabarito amplo de confronto político, esse procedimento sacrificou elementos
importantes do programa de pesquisa. Ao invés disso, a estratégia que a tese propõe é
repensar a questão da mobilização de capital e coerção na América Latina no marco
da análise dos sistemas mundiais.
Dito da forma mais geral possível, isso implica que não é indiferente o fato de
que estados se situem nos centros ou nas periferias para avaliar suas trajetórias de
longo prazo. Ou ainda, é dizer que o insulamento dos casos de suas conexões
sistêmicas subtrai aspectos relevantes para a explicação. Em si, essa é uma
constatação pouco operacional. Sua aplicação à pesquisa se deu por meio da teoria de
transições hegemônicas mundiais formulada por Giovanni Arrighi (2009), cujos
detalhes serão apresentados mais adiante. Com ela, foi possível reenquadrar o século
XIX na América Latina em um conjunto definido de tendências de grande escala,
discernindo também as oportunidades e pressões postas às periferias em tal contexto.
Os estados latino-americanos, assim, fazem parte de um sistema mundial cujo
desenvolvimento é desigual no tempo, com momentos generalizados de expansão e
crise, e no espaço, com centros e periferias articuladas em um ciclo de acumulação.
Enquanto incorporação teórica, a análise de sistemas mundiais foi um segundo ponto
de apoio da tese na tentativa de “provincializar” o argumento de Tilly.
15
Por fim, havia outro flanco frágil no que diz respeito às dimensões intangíveis
da ação política. A prioridade analítica ao capital e à coerção deixava pouco espaço
para a linguagem, o imaginário, a utopia, a valoração, isto é, as visões de mundo que
atravessam o confronto político. As tentativas do próprio Tilly em reparar esse
materialismo forte não foram muito convincentes2. Talvez aqui o desafio maior seja
admitir a relevância do conteúdo das ideias políticas (e não apenas sua eficácia
relativa), sem para isso recair em noções reificadas de legitimidade, nação ou outras.
Naturalizar a legitimidade ou a nacionalidade ao redor da autoridade política
encerraria de antemão os horizontes de uma teoria crítica. Logo, a demanda é
conceber a reflexividade dos atores e seus imaginários políticos no bojo do gabarito
amplo de confronto político contingente que a sociologia histórica havia proposto
inicialmente.
Para isso, uma terceira apropriação teórica é desenvolvida ao longo da tese.
Trata-se da discussão sobre a construção social da ordem política, enquanto um
processo agonístico de definição da realidade, dos sujeitos e do significado da própria
política (LECHNER, 2013; 2014). Tanto o uso da força como a barganha pelo capital
envolvem, pois, interpretações contraditórias do dever político, sentidos diversos de
como a sociedade é e de como ela deve ser, do que é justo, imutável, urgente e
aviltante, para quem e em quais circunstâncias. Assim, a ordem não é a negação
simétrica da desordem, mas sim o triunfo prático de certa visão de mundo sobre
concepções alternativas e subalternas de ordenamento da sociedade, que permanecem
desarticuladas, episódicas, subterrâneas. Essa chave de interpretação já havia
encontrado eco na obra de Waldo Ansaldi e Verónica Giordano (2012) e é aqui
retomada.
Dessa forma, a construção de uma saída propositiva ao viés modernizador na
sociologia política latino-americana encaminha o programa original de pesquisa sobre
formação de estados em três novas direções: a crítica ao eurocentrismo, a reavaliação
da condição periférica e o lugar das ideias políticas. Essa interpelação franqueou o
diálogo com três campos distintos que a tese buscou concatenar em seus capítulos
Ver, por exemplo, os conceitos tardios de “conexão” (TILLY, 2003) e de “redes de confiança”
(TILLY, 2007). Em certa ocasião, ao comentar o conceito de legitimidade, o autor a traduz em termos
de estabilidade. Isto é, em lugar de esmiuçar o que seria ou não legítimo, cabe ao analista tomar como
legítimo aquele governo que se sustenta, da forma como consegui-lo (TILLY, 1985). Em seu contexto,
essa manobra não deixa de ter seu mérito, mas leva longe demais sua iconoclastia. O conteúdo do
imaginário com que se produz obediência política não é irrelevante, inclusive para compreender o
intercurso de capital e coerção.
2
16
iniciais. Antes disso, contudo, convém delinear mais claramente o terreno no qual
aterrissam essas diferentes balizas teóricas. Iremos discutir os elementos básicos do
desenho de pesquisa: (A) as perguntas, (B) as escalas espaciais, (C) as escalas
temporais, (D) o método pelo qual se constroem as explicações e (E) a justificativa
dos estudos de caso.
(A) Perguntas de pesquisa:
A primeira das perguntas precisa ser necessariamente lidar com a definição do
objeto. Nesse ponto, a formulação é delicada. Por exemplo, indagar simplesmente “o
que é o estado?” não é só imprudente, mas contraproducente. O leitor seria abalroado
por um vendaval de definições, obras e autores, e o resultado seria fatalmente uma
definição a mais para uma palavra já saturada delas. O objeto da pesquisa é antes de
tudo um processo, ou um feixe de processos de longo prazo. Chamá-lo de formação,
desenvolvimento ou construção apenas ratifica esse aspecto, mas faz pouco além
disso. A forma mais usual de torná-lo empírico seria indagar o que ocorre com
determinada organização política ao longo desse processo, ou seja, que tipo de
mudanças institucionais são discerníveis.
Esse ponto de partida tem por vício analisar o estado desde um ponto de vista
de estado, observando a mudança de cima do ombro do Príncipe. Se adotamos a
perspectiva dos governados, a ênfase recai sobre as consequências práticas das
mudanças institucionais para a forma como a maioria das pessoas experimenta a
política. O conteúdo das mudanças institucionais não é o interesse em si, mas um
subsídio indispensável para entender como “ser governado” é uma circunstância
histórica e móvel. O tema da formação do estado é refraseado como a possibilidade de
discernir, em recortes longos de tempo, mudanças significativas na condição dos
governados, em seu espaço de experiências e de expectativas com relação à
autoridade política. Como esclarecimento do domínio da pesquisa, a primeira
pergunta poderia ser então formulada como segue:
Pergunta 1: o que significa dizer que há uma tendência à concentração da vida
política em torno a um estado moderno?
17
Em termos coloquiais, parafraseando um professor e mentor, a questão diz
basicamente o seguinte: como é que eu sei o que é uma “formação de estado” quando
estou na frente de uma? É, pois, uma pergunta de tipo o-que3. Ora, seria possível
objetar que essa pergunta não prescinde de uma definição do que é “estado”,
“tendência”, “moderno”, “vida política”, e assim sucessivamente. Mas há que ter
certo cuidado para não ser empurrado a uma regressão interminável às premissas,
como na “armadilha de Confúcio”4. Os termos empregados para formular a pergunta
serão resolvidos com definições de trabalho que permitam respondê-la. Uma segunda
objeção possível seria que a questão não pode ser trabalhada adequadamente em
termos tão gerais, o que é certo. Ainda nesta introdução, discutiremos as operações
para delimitar, no tempo e no espaço, o contexto empírico relevante para a pesquisa.
No entanto, é pertinente que a pergunta inicial seja mantida no plano conceitual, isto é,
mantida como um problema de teoria política para o qual a sociologia histórica é
mobilizada.
A segunda pergunta possui caráter propriamente explicativo e, para isso, se
apoia sobre a anterior. Supõe de saída que a formação do estado se realiza como uma
tendência real no contexto observado. Isso pode parecer autoevidente, mas
curiosamente um dos paradoxos da interpretação “belicista” na América Latina foi
Há uma sutileza aqui que convém esclarecer: haveria uma circularidade no fato de que uma das
perguntas da pesquisa é definir o objeto de interesse dela mesma? Do ponto de vista formal, isso parece
tautológico. Para estudar, digamos, as democracias, o caminho lógico é definir de antemão o que uma
democracia é para saber onde buscá-las. Isso, contudo, responde a uma metodologia normativa, que
estipula como uma pesquisa deve ser, e não como ela realmente funciona. Coloca os requisitos lógicos
do contexto de validação à frente dos procedimentos concretos do contexto de descoberta. Assim,
esconde o percurso de suposição, descarte, reelaboração, tentativa e erro para apresentar o resultado
final como uma simples execução de um desenho de pesquisa previamente projetado. Na prática,
diversas definições provisórias foram sendo adotadas para enquadrar o objeto desta tese em seu
desenvolvimento. Assim, optou-se por considerar esse trabalho de bastidor como a primeira pergunta
de pesquisa, ao invés de apresentar artificialmente seu ponto de chegada como se fosse um ponto de
partida.
3
A “armadilha de Confúcio” é uma expressão que faz alusão ao risco de, na busca pela fundamentação
adequada ao problema, criar-se uma regressão às premissas na qual se perde de vista a questão original
(PÖSSEL, 2013). Baseia-se em uma interpretação sarcástica do seguinte trecho de Confúcio: “Os
antigos que quisessem difundir a virtude pelo reino, primeiro deveriam ordenar bem seus próprios
estados. Querendo ordenar bem seus estados, eles primeiro regulavam bem suas famílias. Querendo
regular suas famílias, eles primeiro cultivavam suas pessoas. Querendo cultivar suas pessoas, eles
primeiro retificavam seu coração. Querendo retificar seu coração, eles primeiro buscavam ser sinceros
em seus próprios pensamentos. Querendo ser sinceros em seus pensamentos, eles primeiro estendiam
ao máximo seu conhecimento. Esta extensão de conhecimento estava na investigação das coisas” (apud
PÖSSEL, 2013: s/p).
4
18
justamente negar, até certo ponto, o processo que pretendia explicar5. Além de
assumir que ele ocorreu, é preciso determinar referências no tempo e no espaço para
observá-lo. Isso feito, pode-se colocar uma questão de cunho causal nos seguintes
termos:
Pergunta 2: Por que razões ocorre, como resultado tendencial, uma concentração da
vida política ao redor de estados modernos na América Latina durante o “longo
século XIX” (1770-1945)?
Esse é o núcleo da tese em termos de sociologia macro-histórica. Sua
operacionalização metodológica será tratada nos próximos apartados desta introdução.
É preciso, antes, desenvolver uma terceira pergunta que nasce no espaço
intermediário entre as outras duas, ou melhor, no hiato entre uma discussão conceitual
que recorre a termos abstratos (Pergunta 1) e uma explicação construída sobre um
processo histórico concreto, situado na América Latina (Pergunta 2). A rigor, não se
trata simplesmente de uma mediação entre generalidade e particularidade, ou entre
teoria e empiria. Revela-se aqui o impasse com relação ao estatuto teórico das
experiências latino-americanas uma vez descartada a hipótese de replicação, segundo
a qual elas poderiam ser lidas como unidades analíticas equivalentes (eventualmente
incompletas ou deficientes) dos processos que haviam ocorrido anteriormente na
Europa.
Dessa forma, o eurocentrismo não se manifesta unicamente no amplo
predomínio de referências teóricas da Europa e dos Estados Unidos, mas também da
dificuldade de pensar o resto do mundo fora dessas referências. Esse impasse põe em
primeiro plano a vinculação entre conhecimento e poder, ou ainda, uma geopolítica do
conhecimento. A ideia de elaborar uma explicação plausível para as trajetórias
latino-americanas no século XIX carrega consigo uma indagação sobre o lugar que
essa explicação há de ocupar diante do que se sabe sobre o estado-nação europeu
ocidental. A tese de certa forma aposta que as duas questões também se resolvem de
maneira associada. A pergunta sobre os caminhos propositivos contra o eurocentrismo,
então, se formula como segue:
Um olhar mais detalhado sobre a recepção da tese de Charles Tilly nos estudos sobre a América
Latina pode ser encontrado na dissertação já mencionada (BORBA, 2014: 157-197).
5
19
Pergunta 3: qual a posição da reflexão sobre os estados latino-americanos diante do
debate eurocêntrico estabelecido sobre o tema?
O tratamento dessas três perguntas perpassa a tese como um todo, e é
sistematizado em suas conclusões. A originalidade da tese está menos na formulação
desses problemas do que na tentativa de mobilizar recursos novos para enfrentá-los,
cujo mérito está, como sempre, aberto ao debate. Do ponto de vista acadêmico, sua
relevância se justifica pelo potencial de estabelecer conexões substantivas entre
campos de especialização institucionalmente distanciados, tentando resgatar agendas
de pesquisa efetivamente multidisciplinares. No debate público, os argumentos
apresentados na tese contribuem para um contraponto crítico a visões estereotipadas
sobre passado, cujas apropriações cotidianas da “formação nacional” adquirem
visibilidade ainda maior por ocasião dos bicentenários da independência.
(B) Escalas espaciais
O primeiro parâmetro de operacionalização é o tratamento do recorte espacial,
antes formulado superficialmente como “América Latina”. Há conhecidas razões para
o ceticismo com relação ao termo (FERES JR., 2005). Seu emprego frequentemente
subentende uma homogeneidade social que serve de base para “raciocínios
sinedóquicos”, em que a parte é tomada pelo todo e o todo, pela parte. Um estudo
sobre um aspecto particular observado em qualquer quadrante do continente é
imediatamente transposto como “latino-americano”, em uma falácia metodológica
não raro eivada de preconceito e exotismo. Ora, argumentos desse tipo abundam na
bibliografia consultada, mas isso não quer dizer que só se possam produzir raciocínios
sinedóquicos sobre a América Latina. Em verdade, a tese transita entre diferentes
escalas, e o que se dirá a seguir sobre esta tem validade para as outras.
Antes de tudo, uma escala não pressupõe uma regularidade empírica de
observação. Dizer, por exemplo, que houve nos anos 2000 um giro à esquerda na
política latino-americana não conota um movimento uniforme em todos os países, ou
ainda, uma afirmação que seja potencialmente falseável pela eleição de um governo
de direita naquela década. Da mesma forma, reconhecer que, durante a primeira
20
metade do século XX, houve uma espiral de belicosidade na política internacional não
exige que isso açambarque todas as relações diplomáticas no mundo. Situar um
fenômeno em uma escala não significa preenchê-la com uma generalização, ou
contemplar extensivamente tudo aquilo transcorrido nela. Recortar a escala serve
antes de tudo para delimitar o escopo adequado para melhor discernir as
características do fenômeno que se quer observar.
Além disso, tempo e espaço não são realidades dadas com escalas uniformes,
nos termos estabelecidos na ciência ocidental clássica (BRUCKMANN, 2011: cap. 1;
WALLERSTEIN et al, 2007). Com efeito, a construção metodológica de escalas não
é independente da forma como imaginamos nossa experiência espaço-temporal no
mundo. Enquanto tal, ela também concorre a constituir as escalas que utiliza. Por
exemplo, o sistema mundial se mostrou uma escala pertinente para observar o
desenvolvimento do capitalismo no longo prazo. A partir do momento em que projeta
uma divisão entre centros e periferias, e um desenvolvimento desigual em sua
interação, essa escala também constitui uma imaginação espacial condizente, que
orienta determinadas práticas por oferecer uma apreensão relevante sobre o mundo.
Uma escala espacial desse tipo não é uma métrica da natureza, independente do
esforço e das preocupações daqueles que a elaboram. Inserido no processo de
produção de conhecimento, o debate sobre as escalas adquire sentido em sintonia com
os problemas colocados.
Mesmo que a lógica abrangente do sistema mundial tenha oferecido uma
apreensão relevante sobre o mundo, isso não implica automaticamente que qualquer
evento precise dela para ser decifrado. Um dos riscos da análise de sistemas mundiais,
inclusive, foi superestimar a densidade explicativa que tal sistema podia oferecer para
a multiplicidade de realidades específicas e contingentes, que transcorrem em seu
espaço. Por sua vez, a naturalização da escala espacial de estados individuais para
captar e explicar processos sociais já foi criticada como “nacionalismo metodológico”,
uma vez que ceifa conexões importantes que não são visíveis apenas em uma
“sociedade nacional”. Ao fim e ao cabo, toda análise acaba manipulando diferentes
escalas, e essa manipulação precisa decidir estrategicamente o que ganha ou perde,
ora com observações mais agregadas e abstratas, ora com a imersão nas sutilezas de
uma situação concreta.
21
Em termos espaciais, há três escalas prioritárias adotadas na tese: em ordem
decrescente, o sistema mundial, a América Latina e a espacialidade que os estados
pós-coloniais circunscreveram em sua autoconstrução. A primeira é a mais vasta e
heterogênea, englobando as outras duas, enquanto que a terceira é obviamente menor
e inserida nas anteriores. É certo que essas não são as únicas escalas possíveis, e
sequer as únicas utilizadas na exposição da tese. Por vezes, determinado fenômeno é
posicionado na escala da economia atlântica, que foi um segmento importante do
sistema mundial, ou da Bacia do Rio da Prata, de determinado estado imperial
espalhado por diferentes continentes, de uma província irrendenta e mesmo em uma
localidade específica, como o vilarejo indígena de Buriticá na Colômbia, quando este
tinha pouco mais de 700 habitantes (ver seção 4.3). Há um trânsito constante entre
escalas na exposição, mas a prioridade atribuída àquelas três obedece aos termos das
perguntas formuladas.
A escala da América Latina serve para desenvolver uma resposta à obsessão
modernizadora de defini-la pela ausência ou pelo atraso. Desde os anos 1960, o
pensamento crítico latino-americano desenvolveu aportes originais nessa direção,
partindo de uma realidade periférica para um contradiscurso sobre as desigualdades
mundiais. Na crítica ao eurocentrismo, desde uma perspectiva latino-americana, jaz a
possibilidade de explorar o significado do colonialismo e da condição periférica em
uma sociologia política crítica. O recorte está orientado, portanto, à Pergunta 3 sobre
o estatuto das trajetórias latino-americanas perante o debate eurocêntrico estabelecido.
Ao reduzir a escala espacial para os estados individuais, a prioridade recai
sobre a Pergunta 1, que versa sobre a tendência de concentração da vida política ao
redor de estados modernos. Embora contribuições possam ser extraídas de escalas
maiores ou menores, a verdade é que a tendência se realiza como a própria produção
de sua escala espacial. Por fim, a análise dos sistemas mundiais atravessa de alguma
forma essas duas perguntas (1 e 3), porque oferece o pano de fundo da cena. No
entanto, a vitalidade dessa escala se torna indispensável para desenvolver os
argumentos explicativos demandados pela Pergunta 2.
(C) Escalas temporais
22
O recorte temporal de quase duzentos anos pode soar estranho, mas esse tipo de
imprudência é mais comum do que parece. Recentemente, um historiador israelense
causou algum furor pela originalidade de sua narrativa sobre a espécie humana, em
uma escala de nada menos que dez mil anos (HARARI, 2015). A sociologia histórica
de Michael Mann, por exemplo, põe em tela os últimos quatro mil anos, com a
pretensão de estabelecer ali um modelo geral de funcionamento do poder político
(MANN, 1986; 1993). Como não poderia ficar de fora, Charles Tilly é ele próprio um
entusiasta de “grandes estruturas” e “comparações enormes” (TILLY, 1984). Seu
argumento sobre a formação dos estados europeus manipula uma escala temporal de
um milênio (TILLY, 1990), com razoável sucesso a julgar pela recepção do livro.
A intenção dessa digressão não é relativizar a extensão desse chamado “longo
século XIX”, que começaria já pelos anos 1770 e viria a soçobrar só em meados dos
novecentos. Seja em dez, cem ou mil anos, o problema da inteligibilidade de uma
escala sempre concerne ao fenômeno que quer capturar. A ideia de que as escalas
temporais são construções analíticas gera resultados às vezes bizarros para um leitor
desavisado: a tomada da Bastilha em Paris, como é sabido, ocorreu durante a tarde do
dia 14 de julho de 1789, mas o historiador William Sewell Jr. (2005) argumenta que,
como evento histórico, ela teria começado no dia 12 e terminado só no dia 23, mais de
uma semana depois. No mesmo espírito, um filósofo brasileiro considerou que o fim
do século XIX teria acontecido só na década de 1970 (ARANTES, 2014). Essa
revolta contra os calendários não é uma excentricidade de eruditos.
Para Sewell Jr., a tomada da Bastilha só acaba de fato quando a Assembleia
Nacional decide reivindicá-la como uma expressão da soberania popular contra a
autoridade do rei, e não mais como a ação de uma turba violenta e descontrolada
(SEWELL JR., 2005: 236-244). Através da escala de duas semanas, a intenção é
mostrar que a interpretação que os atores formam sobre um evento histórico é parte
constitutiva dele, logo, é inseparável das mudanças que por ele desencadeadas.
Da mesma forma, o “longo século XIX” aqui tem como referência o ciclo
hegemônico britânico, perfazendo emergência, ápice, declínio e crise. Com isso, seu
objetivo é mostrar que o sistema mundial não é uma constante ambiental no qual
ocorrem processos individuais de formação do estado. Com uma escala longa, é
possível discernir movimentos de caos e governabilidade no sistema, tendências de
expansão e travamento que são melhor visualizadas na longa duração. Informado por
23
essa teoria, o “longo século XIX” é usado como uma convenção, portanto, para
referir-se ao ciclo sistêmico de acumulação que tem o Império Britânico como
potência hegemônica. Daí sua elasticidade com relação ao século XIX cronológico.
Essa escala secular é a mais abrangente: uma vez estabelecido esse bloco
temporal, é possível manobrar com diferentes escalas em seu interior, inclusive para
mostrar como a trama real dos eventos não acata às tendências de longo prazo
identificadas na escala do sistema. Quanto mais nos aproximamos das guinadas e da
incerteza no calor dos eventos históricos, mais remotos e inconsequentes tendem a
ficar os processos sistêmicos gerais. Em outros termos, o desafio é demonstrar a
consistência dos desenvolvimentos de longo prazo sem precisar sacrificar, nem
mantê-los imunes a, o aspecto contingente que é irredutível da história. O teor do
intercurso entre processos e eventos, contudo, não é meramente uma questão de escala,
mas fundamentalmente um problema metodológico sobre a explicação em sociologia
macro-histórica.
(D) Explicação e método
Como já observou José Maurício Domingues (2015), a sociologia histórica
como campo apresenta certo viés antiteórico, como se a história viesse para substituir
raciocínios gerais, abstratos, descontextualizados, pretensamente universalistas.
Importando um forte empirismo historiográfico, trata o explicandum como eventos e
observações históricas, e o explanans na forma de uma narrativa da situação concreta,
da malha de antecedentes que localiza esse evento. A explicação é tomada como um
procedimento eminentemente empírico e descritivo. No limite, o risco desse
empirismo é estabelecer princípios explicativos à maneira do Dr. Seuss: “calhou de
acontecer, mas não é muito provável que venha a acontecer de novo” (GOLDSTONE,
1998a: 832); ou ainda, como dizia Chicó, o carismático personagem de Ariano
Suassuna, “não sei, só sei que foi assim”.
Nesse contexto, permanece incontornável a provocação: “o que há de história e
o que há de sociologia na sociologia histórica?” (DOMINGUES, 2015: 214). O hiato
entre o sequenciamento e a explicação exige o recurso a algum mecanismo mais geral,
cuja operação pode ficar implícita. Por exemplo, a pergunta “por que a caneta caiu?”
pode ser respondida “porque eu a soltei”, isto é, com um evento anterior relevante.
24
Implícito, contudo, existe um mecanismo causal que explica porque a caneta, o copo,
a bola, quando soltos, tendem a cair. Ora, a gravitação universal não explica porque
eu soltei a caneta na hora e lugar em que isso ocorreu. De fato, não diz efetivamente
nada sobre a sequência real de eventos que levou, naquela circunstância, a canela ao
solo.
Na linguagem corriqueira, há uma elipse dos mecanismos causais por razões
óbvias, mas não se deveria fazer o mesmo na análise social. Em termos
metodológicos, isso significa que não é possível ligar as condições iniciais aos
resultados efetivos sem a aplicação de algum mecanismo que explique porque, dadas
essas condições, tais resultados são esperados, prováveis, possíveis (GOLDSTONE,
1998a). A presunção de que a causalidade jaz na ligação direta entre eventos
subsequentes é uma falácia empirista (BHASKAR, 2008; DOMINGUES, 2018).
Vista dessa maneira, a atuação de mecanismos transfactuais não é incompatível
com a contingência, pois esses mecanismos não estão agarrados ao que Roy Bhaskar
chamou de “determinismo de regularidades” (BHASKAR, 2008: 59-69). O
mecanismo não diz que “sempre que eu soltar uma caneta, uma caneta vai cair no
chão”, isto é, que um evento determina a ocorrência de um evento subsequente. Ele
diz que os corpos se atraem na proporção de sua massa e do inverso do quadrado da
distância entre eles. Ora, alguém sempre pode agarrar a caneta no caminho, ou eu
posso soltá-la em uma nave espacial com gravidade zero – e isso, por si só, não
desmente ou falsifica a proposição geral. Pesquisadores sociais de orientação empírica,
particularmente “sociólogos históricos” ou historiadores, têm um receio desmesurado
com teorias e generalizações, tidas como perniciosas por encaixotar, distorcer,
submeter as nuances da realidade às exigências pré-definidas do modelo. É
inadequado, no entanto, supor que toda a teorização equivale ao positivismo como
epistemologia.
As ciências sociais se valem de diversas formas de mecanismos gerais, sem que
isso seja em si uma tentativa de determinismo universal. Eles trabalham com maior
abstração diante dos casos empíricos: a extração de mais-valia elaborada por Marx é
um mecanismo abstrato, cuja formulação prescinde das situações concretas de
trabalho assalariado na história. Ele não é uma lei geral falseável, passível de ser
descartada por observações discrepantes. Em seu escopo de atuação específico, é um
mecanismo causal abstrato a partir do qual se pode construir uma explicação para a
25
acumulação capitalista em geral, o que serve a entender contextos específicos, se
feitas as mediações adequadas.
A abstração não significa a normalização das leis universais do comportamento
humano, mas uma vinculação não-empírica (portanto, “transfactual”) entre fenômenos.
Ao contrário do determinismo, essa vinculação não é incompatível com o intercurso
de fatores imponderáveis, com a imprevisibilidade do mundo social, ou dito
sucintamente, com a contingência. Tampouco há uma anulação da autonomia dos
agentes, cujas decisões de fazer uma greve, ir à guerra ou soltar uma caneta não são
derivadas nem causadas por leis gerais de desenvolvimento. A análise empírica é
insubstituível porque o encadeamento real entre fenômenos é uma possibilidade
realizada dentro do universo de possíveis constituído por um encaixe particular entre
condições iniciais, processos e episódios. A saída para o caráter híbrido da “sociologia
histórica” passa por desfazer a oposição rígida entre os termos: nem a sociologia
opera somente no plano teórico e nomotético, nem a história é uma ciência
particularista e descritiva (WALLERSTEIN et al, 2007).
Isso dito, o próximo passo é observar o caráter da causalidade como ligação
entre fenômenos. Em geral, esta é pensada a partir de uma direcionalidade da causa
para o efeito: eu soltei a caneta (causa) leva à queda da caneta (efeito). Por certo pode
haver fatores intervenientes (como alguém agarrar a caneta) ou condições iniciais
relevantes (como a gravidade zero), mas a direcionalidade permanece decisiva. A
forma mais comum de modelá-la é através de variáveis independentes (causas) e
variáveis dependentes (efeitos). Mudanças na variável independente permitem
explicar o comportamento da variável dependente.
Queremos explorar uma via alternativa que, embora contraintuitiva, revela-se
adequada para a análise causal em escalas grandes. Em lugar da variação
independente, presume que uma explicação plausível pode ser obtida pela interação
continuada entre processos ao longo do tempo. Uma primeira pista é encontrada em
um texto tardio de Norbert Elias intitulado “O recuo dos sociólogos ao presente”,
publicado em 1987.
A certa altura, o autor sinaliza as consequências extraordinárias
advindas da interligação histórica entre a produção de excedente agrícola e o
surgimento das primeiras cidades-estados. Da combinação entre esses fatores
decorrem inúmeras transformações na organização política das sociedades sedentárias,
como os registros escritos e a consolidação de uma elite não-produtiva.
26
O que nos interessa aqui é a objeção de Elias a pensar essa combinação em
termos de causa e efeito. O excerto é longo mas vale reproduzi-lo na íntegra:
Já foi defendido algumas vezes que a apropriação do excedente econômico foi a fonte
principal do poder dos dois grupos dirigentes desses primeiros estados [sacerdotes e
guerreiros]. No entanto, o excedente não estava lá simplesmente. Ele cresceu junto, e em si
fazia parte da organização humana que assumiu as características de uma cidade-estado,
inicialmente centrada no templo e depois no templo e no palácio. Uma explicação causal
confunde a questão. Nesses casos uma explicação processual é mais apropriada. O estágio
final do processo, que é o único visível para nós, mostra claramente que não só o excedente
de alimento extraído da população trabalhando na terra era condição para a existência de
uma população citadina, mas também que uma organização estatal capaz de coordenar o
trabalho na terra e manter obras de irrigação e defesa era condição para a produção regular
de excedente” (ELIAS, 1987: 240-241).
Em suma, sua opção por uma “explicação processual” [process-type explanation]
em vez de uma “explicação causal” faz sentido porque não há uma direcionalidade
clara de um fator sobre o outro, mas uma alimentação recíproca. A produção de
excedente agrícola é ao mesmo tempo consequência de e condição para a
centralização política. A busca pelo fator originário perde de vista o essencial, que é a
reciprocidade entre ambos os processos no tempo. Um raciocínio muito parecido é
aplicado por Charles Tilly ao falar do papel da guerra na formação dos estados na
Europa. Salvo melhor juízo, a guerra não é uma variável independente no modelo,
capaz de determinar uma variação concomitante da variável dependente. A guerra foi
feita pelos próprios estados, cuja mobilização militar acabou produzindo certos
“resíduos organizacionais” (cf. TILLY, 1985: 181), que por sua vez transformaram
continuamente a escala e os métodos da guerra. Não há variação independente porque
os dois processos entrelaçam seus efeitos no tempo, como se uma afinidade efetiva
entre eles produzisse uma causalidade circular e acumulada.
Afora a questão da guerra, compreender esse tipo de interação causal é
fundamental para a tese. É a partir dessa dinâmica recíproca que se concatenam os
elementos para a explicação de resultados tendenciais, nos termos da Pergunta 2. Tal
qual no caso dos eventos, essa causalidade processual não se resume à justaposição no
tempo e no espaço. É preciso soldar as pontes que efetivamente explicam por que os
processos em questão são interdependentes, isto é, quais os reagentes e os produtos
que formam uma autocatálise. De resto, é justamente pelo exame dessas pontes que
podemos avaliar quão convincente é o argumento apresentado.
27
Entre a “produção de excedente agrícola” e a “centralização política” se soldam
pontes plausíveis: as obras de irrigação, a coordenação do trabalho agrícola e a defesa
dos campos cultivados estabelece uma relação relevante com a elevação do excedente
obtido da terra, ao passo que a sustentação material de uma população não-produtiva
também tem forte incidência sobre a chance de construir diques e canais, armazenar
as colheitas e expulsar eventuais saqueadores. Evidentemente essas pontes causais
podem ser sempre rediscutidas à luz da pesquisa empírica. Mas sua força não é
medida pelo acúmulo de demonstrações observacionais, mas porque se apoia sobre
mecanismos robustos: é plausível pensar que, em geral, populações agrícolas
desarmadas, vulneráveis ao saque, tenham menos facilidade de acumular excedentes
produtivos no longo prazo.
Não é por ser processual, pois, que o tipo de explicação defendido por Elias não
deixa de apoiar-se sobre algum mecanismo geral para estabelecer uma ligação entre as
condições iniciais e os resultados efetivos. A necessidade de abstração fica ainda mais
clara quando os processos transcorrem em escalas muito grandes: afinal, no
tratamento de milênios ou séculos, é virtualmente impossível manipular o material
empírico em seus detalhes. Como recurso, a tese emprega uma última ferramenta para
controlar a complexidade de seu universo observacional, a ideia de conjunção crítica6.
A proposta é que as explicações processuais, baseadas em causalidades recíprocas,
não são necessariamente um gradualismo de longo prazo, mas possuem pontos
cruciais para compreender seu arranque histórico.
Uma conjunção crítica é um momento decisivo para a definição de trajetórias
de prazo mais alargado, um recorte temporal que sobressai no estudo da mudança.
Nesse sentido, contradiz a imagem de uma evolução homogênea em processos de
longo prazo. Uma conjunção crítica implica uma descontinuidade no fluxo do tempo,
uma espécie de aceleração que a torna mais atrativa em termos explicativos. Nesta
tese, as duas conjunções críticas são identificadas a partir das duas transições que
demarcam o começo e o fim do “longo século XIX”, a “era das revoluções”
aproximadamente entre 1770 e 1840 e as chamadas “guerras euroasiáticas” da
primeira metade do século XX. Esses nomes foram espelhados da literatura como
Como ideia e recurso metodológico, “conjunção crítica” é um termo bastante explorado nas Ciências
Sociais, em particular no chamado “institucionalismo histórico” (HALL & TAYLOR, 2003).
Possivelmente o trabalho de pesquisa mais consagrado por empregá-lo é o de Ruth Collier e David
Collier (2002) sobre a incorporação da classe trabalhadora à arena política na América Latina.
6
28
convenção. Ambas correspondem ao momento entre ciclos hegemônicos, tidos como
caos sistêmico (ARRIGHI & SILVER, 2001).
A tentativa mais rigorosa de aplicar a ideia de conjunção crítica à formação dos
estados latino-americanos utilizou basicamente os mesmos períodos de referência,
embora com outra denominação (KURTZ, 2013). Para Marcus Kurtz, as trajetórias
institucionais seriam pontuadas por conjunções críticas no momento das
independências (aqui inseridas na “era das revoluções”) e na emergência da questão
social durante o século XX (aqui inserida nas “guerras euroasiáticas”). De certa forma,
essa escolha vai na contramão de uma visão muito comum sobre a história da região,
que identifica sua virada mais importante em meados do século XIX, ora com a
“unificação política”, ora com a “transição para o capitalismo”. Ainda mais, rechaça a
imagem genérica de que nos oitocentos “as sociedades latino-americanas não
protagonizaram acontecimentos importantes (...) O essencial da história da América
Latina estava reservado para o século XX” (SADER, 2000: 95).
Do ponto de vista analítico, as conjunções críticas não são definidas apenas
pelo caos sistêmico. A erosão do ciclo de acumulação é acompanhada por uma
aceleração da agonística da construção social da ordem política, isto é, um
acirramento da disputa entre horizontes possíveis de futuro. Nesse sentido, a crise se
expressa como abertura do horizonte de possibilidades históricas. A decolagem de um
novo ciclo, por seu turno, gera uma pressão contrária de estreitamento desse horizonte.
A conjunção crítica, portanto, é uma circunstância privilegiada para identificar o
entrelaçamento contingente entre processos e eventos que delineia explicações
tendenciais.
Por fim, conjunções críticas também são recursos comparativos, na medida em
que se delimitam como “períodos analiticamente equivalentes” (COLLIER &
COLLIER, 2002: 32). Ora, se esses períodos concentram em intensidade a mudança, é
possível usá-los para discernir variações de trajetória através dos casos empíricos.
Para dar um primeiro passo nessa direção, a tese apresenta três estudos de caso,
organizados transversalmente pelas conjunções críticas que vertebram o “longo século
XIX”. Cabe, pois, um esclarecimento sobre sua escolha.
(E) Estudos de caso
29
De saída, é preciso perceber por que estudos de caso são uma ferramenta
relevante na economia da tese, isto é, porque ela não cumpriria satisfatoriamente o
que se propõe sem eles. Para tal, os estudos de caso são pensados como momento de
síntese. Eles fazem valer o que se disse sobre a importância da análise empírica para
concatenar explicações processuais, conceitos e contingências em direções
particulares. A plausibilidade desse procedimento demanda na prática um trânsito
entre escalas diferentes de tempo e de espaço. Ao fazê-lo, ressalvam de maneira
substantiva a heterogeneidade da América Latina como recorte. Ao invés de frases
protocolares sobre o risco de se generalizar, os estudos de caso permitem observar
concretamente as diferenças e suas implicações explicativas.
Esse olhar individualizante também se aplica às consequências do colonialismo
e da posição periférica para a construção da ordem política. No debate contra o
eurocentrismo prevalecente na sociologia histórica, essas duas categorias são
fundamentais para descartar a hipótese de replicação dos casos europeus. Elas
oferecem, como foi dito, o chão sobre o qual se pode pensar a hipótese de um
desenvolvimento desigual, e não simplesmente assimétrico, da política moderna. No
entanto, elas não podem aterrissar imediatamente em um caso para explicar sua
trajetória, porque se tratam de níveis de abstração distintos. Para que o colonialismo e
a periferia sejam efetivamente categorias históricas e relacionais, não seria possível
tratá-las somente no recorte da América Latina ou do sistema mundial.
Os três estudos de caso são México, Argentina e Brasil, os três maiores países
latino-americanos em área e população. A designação é algo anacrônica, uma vez que
entidades políticas assim identificadas não existiam em boa parte do período histórico
analisado. Esses três casos apresentam trajetórias significativamente diferentes na
construção da ordem política no “longo século XIX”, com uma bibliografia bastante
consolidada a respeito. É preciso esclarecer que, embora a análise de uma conjunção
crítica nos três casos ofereça insumos comparativos, a prioridade não é estabelecer um
desenho convencional de comparação pela semelhança ou diferença. Os estudos de
caso não foram escolhidos pela capacidade de extrapolar uma inferência geral, nem
por sua representatividade amostral do que seria a América Latina.
(F) Plano da tese
30
A estrutura geral da tese está dividida em três partes. A Parte I (“Sociologia
histórica como teoria política”) tem cunho teórico. Seus três capítulos reconstroem o
debate do plano mais abstrato ao concreto, buscando conferir organicidade às
apropriações teóricas enunciadas acima. O primeiro elabora desenvolve os
procedimentos intermediários para uma síntese entre conceito de ordem política com
a dinâmica de um ciclo extrativo-coercitivo. Ocupa-se, dessa forma, de uma
sociologia política pensada em termos conceituais. O segundo capítulo trata da análise
de sistemas mundiais, buscando pôr em relevo as diferentes formas de estratificação
que se formam em seu desenvolvimento. Aqui, a teoria de Arrighi sobre as transições
hegemônicas é tratada em maior detalhe. Por fim, o terceiro capítulo lida frontalmente
com o problema do eurocentrismo, o que aproxima o debate pós-colonial
contemporâneo.
A Parte II (“A América Latina no ‘longo século XIX’”) segue uma ordem
cronológica, pautada por diferentes recortes dentro do ciclo. Sua prioridade é observar
a inserção da região de forma panorâmica, recorrendo constantemente à escala
sistêmica. Os capítulos 4 e 7 tratam das duas conjunções críticas (c.1770-1840 e
c.1910-1945) como momentos de aceleração do confronto político. Ao posicionar a
América Latina nesse contexto, ambos se preocupam em salientar as origens
multicêntricas da mudança e da criatividade. O capítulo 5 trata especificamente dos
processos de desencaixe da política de seus contextos locais ao longo do ciclo,
destrinchando as soldas de sua explicação processual. O capítulo 6 recorta o período
declinante do ciclo, a partir da década de 1870, para reinterpretar o fenômeno das
“oligarquias”. De forma geral, a Parte II cumpre um papel intermediário: historicizar
as categorias apresentadas na Parte I, mas também delinear os processos amplos que
atravessam os estudos de caso da Parte III.
A Parte III (“Estados pós-coloniais em perspectiva comparada”) compreende
estudos de caso sobre Argentina, Brasil e México. A ênfase recai, pois, sobre a escala
espacial que os estados pós-coloniais circunscreveram em sua autoconstrução. Se, na
Parte II, a preocupação era mostrar que, a despeito de inúmeras particularidades, era
possível discernir tendências gerais na região, na Parte III a questão se inverte: mesmo
inseridos em processos mais amplos, a trajetória de casos particulares revela a
heterogeneidade desses processos e sua maleabilidade às contingências. Os três
31
capítulos estão organizados de forma a propiciar uma perspectiva comparativa do
desenrolar das duas conjunções críticas em cada caso.
32
PARTE I: SOCIOLOGIA HISTÓRICA COMO TEORIA POLÍTICA
A primeira parte da tese é composta por três capítulos e tem como objetivo
estabelecer o terreno conceitual em que o argumento se desenvolve. Ao invés de uma
revisão bibliográfica, optou-se por estipular os conceitos operacionais da pesquisa e
mobilizar a literatura em função deles. Ainda assim, o capítulo 3 reserva espaço para
uma interlocução mais sistemática com a agenda de pesquisa sobre estado e política
na América Latina, em particular seus desdobramentos recentes.
No conjunto, os capítulos apresentam uma tentativa de reconstruir o problema
desde sua forma mais simples e abstrata, definida como uma relação contingente de
dominação política. No capítulo 1, o fio condutor é esmiuçar essa unidade analítica. A
partir dela, elabora-se duas noções basilares para a tese, além de outras intermediárias.
A primeira delas é a de ordem política, cuja inspiração mais forte é o trabalho do
sociólogo teuto-chileno Norbert Lechner (2013; 2014). A segunda é a de ciclo
extrativo-coercitivo, que é herdeira da sociologia histórica weberiana (TILLY, 1975).
Ambas as noções são eivadas por uma dinâmica de confronto, que é a chave para o
entendimento da mudança.
O segundo capítulo oferece os insumos para compreender um ciclo hegemônico
como recorte de longa duração histórica. Desse ponto de vista, a construção da ordem
política pós-colonial na América Latina está inserida em um processo mais amplo sem
ser redutível a ele. Para compreender essa escala temporal longa, é preciso mobilizar
uma escala espacial correspondente, aquilo que a literatura especializada chama de
sistema-mundo ou sistema mundial. O problema essencial do capítulo gira ao redor
das consequências de se estudar esse sistema desde suas margens ou de suas
periferias.
Por fim, o terceiro capítulo caminha um passo adiante em especificidade.
Centra-se sobre o estatuto teórico dos estados latino-americanos diante da crítica
contemporânea ao eurocentrismo. Aqui, a proposta de reconstrução pós-colonial de
conceitos, defendida atualmente por Gurminder Bhambra (2014), serve de eixo.
Como preâmbulo da Parte 2, o capítulo explora o significado de repensar a sociologia
histórica dos estados latino-americanos em suas conexões sistêmicas, posicionando-os,
assim, como trajetórias de formação de estados pós-coloniais na periferia.
33
1. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA ORDEM POLÍTICA
“Acredito na resistência do mesmo modo que acredito que não pode haver luz sem
sombra; ou melhor, não pode haver sombra a menos que também haja luz”
Margareth Atwood
1.1. Dominação e obediência política como relação social
O percurso que vamos seguir nesse capítulo é de organização e encadeamento
de conceitos, com o intuito de produzir explicações processuais a partir de
mecanismos não-deterministas. O ponto de partida inevitavelmente exige algo de
abstração. A unidade fundamental sobre a qual o raciocínio se apoia não é um
“estado” tomado isoladamente em seus atributos, nem um indivíduo abstrato capaz de,
junto a seus pares, delegar e constituir uma autoridade política. Há boas razões para
sustentar que a configuração mais simples da sociologia do estado parte de uma
relação contingente de dominação política7, de modo que tentaremos detalhar cada um
dos termos dessa expressão. A “relação” aqui faz jus ao caráter interativo que engaja
quem pretende governar e quem é governado em um processo contínuo. Em outras
palavras, não existem dois sujeitos pré-constituídos – com suas preferências,
interesses e capacidades – que decidem entrar em uma relação de dominação política,
mas é pela dinâmica dessa relação que se pode acessar e explicar as partes envolvidas8.
O primado da relação de dominação é uma forma de deslocar as chamadas “robinsonadas” dedutivas,
isto é, uma axiomática calcada em indivíduo genérico, atomizado e modelável, isto é, apartado de sua
inserção social concreta. O tema ganha força na dialética hegeliana do senhor e do escravo e é
recuperado na antropologia filosófica liberal feita por Marx, que faz diversas referências às
“robinsonadas” (em alusão à Robinson Crusoé) da época. Em síntese, essa axiomática essencializa o
interesse egoísta e o cálculo racional. A contingência irredutível das relações de dominação política foi
um tema caro a Weber (PALONEN, 2011). No século XX, a crítica ao individualismo metodológico
ganhou um novo fôlego com o trabalho de Norbert Elias (2001), publicado como heterodoxia no auge
da teoria da escolha racional. Recentemente, com tonalidades simmelianas, Charles Tilly retomou essa
abordagem ao propor “fazer da interação social a unidade fundamental de observação, de análise e da
teoria” (TILLY, 1992: 358)
7
A constituição prática de sujeitos por relações de poder foi objeto por excelência da extensa reflexão
de Michel Foucault (2005), mas antes dele o tema já fora tratado, sem os mesmos termos, por Antonio
Gramsci (2000) e por diversos pensadores anarquistas clássicos como Proudhon e Bakunin (para um
panorama, ver GUÉRIN, 1980). Nos anos 1970, percebe-se a absorção relativa do contraponto
foucaultiano no pensamento marxista, tendo como pivô o trabalho de Ernesto Laclau (1977) contra o
reducionismo de classe, com grande influência sobre a sociologia política de Norbert Lechner naquele
momento (LECHNER, 2013). A obra tardia de Poulantzas (1979) também tentou conciliar uma teoria
marxista do estado com a dinâmica produtiva (e não simplesmente inibidora) do poder político.
8
34
Não existem “estados”, “estadistas” nem “cidadãos” em uma redoma abstrata,
congelados para que se possa observar suas propriedades. São nas relações de poder
móveis, porque históricas, que se podem observar dominantes e dominados a partir de
sua interação.
O segundo termo da expressão alude à contingência, um termo bastante
difundido pelas ciências sociais contemporâneas. Para entender seu sentido aqui, o
primeiro passo é supor, por enquanto de forma muito genérica, que em uma relação de
poder existe uma imposição de comportamento, alguma forma assimétrica de
manuseio da vontade alheia. Quando uma regra prevê que todos os jovens de dezoito
anos devem se apresentar ao serviço militar, trata-se de um comportamento
compulsório – com o qual esse jovem põe à disposição sua própria vida. Para obter
obediência ao recrutamento, estadistas ao longo da história recorreram ao mais
variado leque de ameaças e penalizações, ofereceram remuneração e benefícios,
tentaram controlar os castigos disciplinares a que o recruta poderia ser submetido,
além de explorar diversas formas de adesão pela sacralidade da causa, pela
grandiosidade da luta, pelo amor à pátria. Não obstante, não há como assegurar o
consentimento por quaisquer dessas induções, não há necessidade ou determinismo
causal que produza os comportamentos esperados por quem governa. Uma vez que a
evasão, a insubordinação e a contestação são possibilidades constitutivas da relação
de poder, existe um hiato entre a pretensão de dominação e sua efetivação, entre a
reivindicação de mando e a obediência, no extremo, contingente9.
Contingência, então, se refere à indeterminação em última instância, não ao
sentido comum de aleatoriedade. O caráter contingente da dominação política se
expressa pela impossibilidade de se pressupor conformidade a uma ordem política por
seus atributos intrínsecos (isto é, sua capacidade de convencer, ameaçar, subornar,
etc.). Fazê-lo seria suprimir o caráter relacional do poder político: os jovens de
dezoito anos então acometeriam lobotomizados para os quarteis. Por que há interação
A relação entre interação de vontades e a dominação como saída contingente é um ponto de partida
weberiano, que pretendia limar de sua sociologia as figuras coletivas reificadas herdadas do idealismo
alemão (Estado, Nação, Exército, Igreja, etc.). Suas relações de dominação são sempre entre indivíduos
em ação, e portanto sempre sujeitas à incerteza (BENDIX, 1980: 3-20; CENTENO, 2014; HÜBINGER,
2011; PALONEN, 2011). A proposta conceitual de José Maurício Domingues sobre as subjetividades
coletivas incide nesse ponto sensível, permitindo que a contingência irredutível às interações sociais
não necessariamente carregue sua dissolução analítica em uma sociedade de indivíduos em ação
(DOMINGUES, 1999). A seu modo, a reflexão sobre os giros modernizadores opera sobre uma
causalidade coletiva e contingente (DOMINGUES, 2008).
9
35
entre vontades e um conflito em potencial, há uma margem irredutível de fricção e
indeterminação no consentimento político. Definitivamente não é uma maneira
intuitiva de pensar, afinal não andamos pela rua e vemos pessoas decidindo se vão
obedecer ao governo ou vão sabotá-lo. As coisas na realidade são mais complexas,
mas é justamente para compreender essa complexidade que precisamos começar com
raciocínios simples.
Em uma relação de dominação contingente, pois, a obediência convive com seu
contrário, a hipótese de deserção, insubordinação, conspiração, revolta, boicote.
Temos a seguinte formulação, aparentemente banal: a obediência política é sempre a
insubmissão que não chega a se realizar, assim como a revolta é a obediência que não
se efetiva. Constatá-lo é mais do que um malabarismo lógico: o consentimento em
uma relação de dominação se torna inteligível nos termos de seu contrário, nas
condições de sua negação. Mesmo no exemplo hipotético do alistamento dos jovens
de dezoito anos, a conformidade à regra não se resolve no plano do exercício abstrato
do juízo prático, ou seja, da deontologia. É pelo significado e pelas consequências de
desobedecer, tal qual postos para um grupo ou pessoa em uma dada circunstância, que
é possível compreender seu consentimento contingente, tal qual a insubordinação faz
sentido como negação das induções com que se espera produzir o consentimento.
A advertência coloquial de que “se você não se alistar você vai preso” poderia
exemplificar o argumento em sua forma mais singela: a prisão, mesmo quando não se
efetiva, é inseparável do alistamento. O alistamento, por outro lado, pode significar a
participação em uma guerra com a qual não se compactua, ao que se pode preferir a
prisão ou o exílio. A ação sobre o alistamento não faz sentido fora dos termos
específicos da interação continuada entre quem recruta e quem é recrutado, que recém
começamos a explorar. O cerne do apelo à contingência na relação de dominação
política, então, é que a autoridade, o estado, o governo ou o império, não importa
quão poderosos à primeira vista, não são capazes de suprimir o hiato entre a
reivindicação de mando e a obediência civil, e, portanto, a insubordinação, mesmo
quando não se realiza, é central e inseparável da interação entre governantes e
governados.
Isso dito, vamos agora observar melhor o último termo, “dominação política”.
Sem dúvida, estadistas não passam seus dias como um profeta em cima da montanha
ditando regras imperativas sobre o comportamento das pessoas, assim como essas não
36
se dividem simplesmente entre a resistência heroica e o conformismo bovino. Já não
precisamos mais simplificar tanto, ou seja, mando e obediência precisam ser
entendidos para além de seu sentido corriqueiro. Para tal, o primeiro esclarecimento é
que a dominação política, e consequentemente sua institucionalização como estados,
não tem uma finalidade intrínseca, e, portanto, não pode ser definido por seu
propósito10.
Dos teóricos do contrato social ao funcionalismo norte-americano, uma longa
tradição de pensamento atribuiu ao poder político um sentido último, seja garantir a
segurança, a propriedade, a vontade geral ou resolver os problemas alocativos da
sociedade. Por exemplo, Gottfried Fichte, um romântico alemão escrevendo à época
da ocupação napoleônica, pensava que o estado era “meramente um meio para o mais
elevado propósito do eterno, regular e contínuo desenvolvimento do que é puramente
humano na nação” (FICHTE, 1922: 147). Pelo contrário, assumimos aqui que esse
propósito mais elevado não existe enquanto tal. Justamente porque há dissenso quanto
ao significado e ao propósito das relações de dominação política que sua efetivação é
contingente. Boa parte da incerteza envolvendo a obediência e seu contrário resulta da
disputa entre horizontes distintos com relação à razão de ser do governo em inúmeras
circunstâncias específicas.
Tampouco se pode estipular uma coerência última das práticas que até então
tratamos genericamente como desobediência, que iriam, em tese, da mais retumbante
ofensiva revolucionária à evasão fiscal encoberta de um opulento capitalista. A
clivagem entre consentimento e não-consentimento continua fundamental, mas não se
pode transpô-la diretamente para a realidade sem produzir esse efeito de
desorientação. Por ora, embora tentador, é improdutivo tentar discernir as formas de
insubordinação que efetiva e deliberadamente buscam confrontar a posição dos
dominantes daquelas que supostamente servem apenas a motivações oportunistas e
limitadas, que são específicas, pontuais ou que desafiam o poder político sem
perceber-se como tal. Os jovens podem desertar por suas convicções religiosas ou
A impossibilidade de definir o estado por seu propósito último advém de um contraponto tanto ao
instrumentalismo marxista (no qual o estado tem como finalidade as condições exteriores da
acumulação capitalista) quanto as inúmeras variações do argumento liberal do bem comum, seja ele de
acepção contratual, utilitária ou funcional. Isso não significa que as relações de dominação política não
têm um desígnio. Pelo contrário, é pelo fato de terem múltiplos propósitos práticos diante de
circunstâncias móveis, muitas vezes contraditórios ou incoerentes entre si, que uma definição
teleológica é improdutiva. Perceber que esses objetivos circunstanciais não são redutíveis a uma lógica
estrutural é também assumir sua opacidade e sua irracionalidade em última instância.
10
37
para não abandonar seus entes queridos, para lutar do outro lado da guerra ou por
medo da morte – essa falta de coesão de propósitos não impossibilita que ecloda uma
crise de dominação política pela objeção generalizada ao recrutamento.
O que confere unidade às diferentes configurações particulares é que a
dominação política é imposta, em última instância, pelo uso da força física ou sua
ameaça. Como Max Weber tornou célebre, ela não se define por seus fins, mas por
seus meios (WEBER, 2013). Qualquer discussão sociológica sobre o estado, a
autoridade, o governo ou o sistema político esbarra em uma gramática da violência,
sua distribuição, organização, método e representação como prática social. A
assimetria pela qual se constituem governantes é uma assimetria na organização social
da coerção. No entanto, o emprego da violência nunca é o ato abstrato de bater em
alguém com um porrete, descolado do mundo como se em um tubo de ensaio. Ao
contrário, o emprego concreto da violência é inseparável do intercurso de juízos de
valor sobre quem está coagindo e quem está sendo coagido, por quais razões e de que
forma — mesmo quando quaisquer desses juízos estão sendo brutalmente violados na
interação.
Nesse caso, é justamente o fato de que certas expectativas sociais de
reconhecimento, dignidade e proteção estão sendo violadas que torna a situação
substancialmente diferente de quando, digamos, esse mesmo castigo físico corrobora
expectativas de punição, culpa e reparação adequada. Nenhuma prática violenta está
isenta da disputa pelas representações éticas dessa violência (BOURDIEU, 2014). As
ideias compartilhadas ao redor de uma certa organização da violência não são um
enfeite, um engodo ou uma proteção avançada que resguarda um suposto núcleo da
dominação como força pura, porque nenhuma força é rigorosamente pura. Mesmo o
mais brutal dos governos recorre, nas palavras de um sociólogo que nos será muito
útil mais adiante, ao “poder normativo do fático” (LECHNER, 2013). Se a definição
da dominação por seus meios nos levou a uma gramática da violência, essa não pode
ser desenvolvida sem recurso às dimensões intangíveis do poder político.
Pensada como célula básica da construção da ordem política, toda relação de
dominação envolve o intercurso entre coerção e consenso, entre a capacidade de
38
coagir e de persuadir11. Para dissipar mal-entendidos, é importante esclarecer que
essas duas categorias não serão empregadas com nenhum destes dois sentidos:
primeiro, coerção e consenso não são dois instrumentos alternativos e excludentes à
disposição dos governantes, que fariam escolhas análogas ao dilema entre manteiga
versus canhões12. Segundo, o binômio coerção e consenso não serve para decifrar uma
especificidade histórica das democracias liberais ou do estado de bem-estar na Europa
do pós-guerra, em que aparatos de consenso (hegemonia) teriam se sobreposto às
instituições estatais convencionais de repressão e controle13.
Ao contrário, são categorias mais genéricas que servem para entender a
pretensão de dominação como uma unidade entre esses dois opostos14. Para transmitir
essa unidade, Maquiavel, e Gramsci depois dele, se valeu da analogia com o centauro
mitológico, que conectava força (cavalo) e astúcia (humano) de forma “orgânica”
(BIANCHI & ALIAGA, 2011). Um dos textos mais brilhantes e intrigantes de Marx
afirma que, embora o consumo seja o contrário da produção, “a produção é
imediatamente consumo e o consumo é imediatamente produção”, porque, na
produção, trabalho e insumos são literalmente consumidos e, no consumo final, as
pessoas e suas necessidades são produzidas (MARX, 2011a: 64). Ao invés de isolar a
análise da produção na economia ou da violência na política, podemos decifrá-las por
seu contrário: onde a produção é consumida, onde a dominação não é violenta.
Por seu apelo, esses termos e seus correlatos já foram explorados das mais diferentes formas nos
estudos sobre o estado. Destaque é merecido pela linhagem de estudos inspirados pela atualização de
Maquiavel por Gramsci (GRAMSCI, 1980; MAQUIAVEL, 2006; ver também ANDERSON, 1976;
ARRIGHI, 2009; BIANCHI, 2007; BIANCHI & ALIAGA, 2011; POULANTZAS, 1979).
11
12
O dilema da manteiga e dos canhões foi cunhado originalmente por Joseph Schumpeter e expressa
uma disjunção lógica entre o gasto público com fins civis e com fins militares, tidos como opostos e
mutuamente excludentes. O melhor exemplo de uma abordagem para a coerção e consenso como
ferramentas alternativas é a obra de Margaret Levi (1988) sobre a tributação, que assume os estadistas
como maximizadores de receita em um modelo de escolha racional. A conclusão de Levi é de que
solução ótima seria uma “obediência consentida”, uma proporção ótima de coerção e de
convencimento.
Perry Anderson (1976) mostrou como essa foi uma das leituras derivadas da noção de hegemonia de
Gramsci. Por um lado, essa interpretação acentua a singularidade da experiência europeia do
pós-guerra, colocando tanto o Terceiro Mundo à época como o passado europeu em uma mesma
condição de não-hegemonia. Por outro, ela precisa descartar ou separar as estratégias de construção de
consenso que não equivalem à hegemonia propriamente dita. Em suma, para além do apego à
conjuntura, há um viés eurocêntrico marcante nessa leitura.
13
14
Para Bianchi e Aliaga (2011: 29), a coerção e o consenso “estão em relação de unidade-distinção”.
39
Usando uma analogia menos onírica que centauros, pensemos na circulação de
papel moeda15. No primeiro plano, a validade do dinheiro depende de que a
autoridade monetária, quando demandada, seja capaz de convertê-lo em reservas de
valor; contudo, a disponibilidade de reservas não resume a crença no valor da moeda.
Cotidianamente, a circulação desse dinheiro depende de uma relação fiduciária, do
estabelecimento de confiança sobre a qual se acredita na moeda mesmo sem dispor de
dados atualizados sobre o nível de reservas correspondentes. Essa atribuição de
confiança, que pode ser justificada pelo acompanhamento das finanças públicas, pode
ser também, e mais frequentemente o é, ancorada em um amálgama casual de
costume, comodidade, senso comum, propaganda, desinformação ou outras razões
irrefletidas ou tácitas. O elemento crucial é que esse delicado equilíbrio de
contingências que faz a moeda circular pode se romper, pondo à prova a capacidade
da autoridade monetária de fazer jus às suas obrigações e eventualmente levando ao
seu colapso: o dinheiro se torna então apenas um pedaço de papel, e outras unidades
de valor o substituem. “Reservas” e “juízos sobre o valor da moeda” são separáveis
como noções opostas, mas na realidade elas se fundem. Não há como medir o quanto
da confiança advém das reservas e quanto das crenças, nem calcular uma proporção
áurea que otimize o consentimento com o papel moeda.
Isso dito, convém observar com mais detalhe os termos em uso. Como noção
teórica, a coerção corresponde à prerrogativa de violência sobre os corpos,
produzindo uma política da proteção, do medo e da ameaça; no limite, da vida e da
morte. Por seu turno, o consenso não corresponde à noção corriqueira em que as
pessoas “chegam a um consenso” sobre um tema, mas sim, como antípoda da coerção,
opera como o poder sobre o certo e o errado. Como tal, abre o terreno da luta pelas
representações da sociedade, pelo significado das palavras, pelo imaginário de futuro,
pelo senso de pertencimento ou exclusão, e, consequentemente, pelos meios através
dos quais essa disputa de valores é travada na prática. À primeira vista, a
criminalização de um movimento social estaria tipicamente no campo da “coerção”,
enquanto que a isonomia legal, isto é, o princípio de que as pessoas são iguais perante
a lei, no do “consenso”. No entanto, sem que isso deixe de valer, a repressão ao
movimento social apela, no plano do certo e do errado, àqueles que veem esse
Essa analogia é explorada tanto por Perry Anderson (1976) quanto por Reinhard Bendix (1980), dois
autores com perspectivas, se não opostas, bastante distantes.
15
40
movimento (ou o próprio grupo social mobilizado, ou o repertório de ação empregado)
como ilegítimo, perigoso ou inaceitável. Da mesma forma, a isonomia legal, sem
deixar de ser uma forma não-coercitiva de reivindicar a obediência política, é um
gabarito específico de delinear as expectativas de uso da violência. Os princípios de
isonomia jurídica e o devido processo legal subsidiam, inclusive, a própria
criminalização de movimentos sociais.
Com o percurso que fizemos até aqui, demonstramos como a unidade
fundamental da nossa análise é a de uma relação contingente de dominação política,
que se produz por uma dialética entre a coerção e o consenso. O passo seguinte é
entender a noção de ordem política como projeção espaço-temporal de relações
contingentes de dominação política, transpondo a bagagem do raciocínio anterior.
Com isso, o tema da coerção se converterá na análise dos arranjos continuados de
proteção mediante extorsão e de suas linhas de fratura. Enquanto isso, o tema do
consenso, projetado na história e no espaço, se torna o problema de relações
ético-políticas que reivindicam consentimento e pertencimento ao poder instituído,
delineando com isso movimentos práticos de inclusão e exclusão. A explicação de
cada uma dessas expressões é a função do resto do capítulo.
Do que vimos até agora, podemos intuir que uma ordem política, como
projeção de relações de dominação, está continuamente produzindo subjetividades em
sua interação. Por exemplo, Mara Loveman mostrou como “estados que
institucionalizam legalmente distinções raciais ‘produzem a raça’ ao fazer a raça
importar, direta e explicitamente, na vida das pessoas individualmente” (LOVEMAN,
2014: 05). Essa ideia pode ser levada em várias direções, como indicaremos adiante.
Em segundo lugar, qualquer ordem política é fundamentalmente contingente,
atravessada pela possibilidade de sua ruptura. Tal qual entendemos a obediência nos
termos de seu contrário, qualquer ordem política é sempre inteligível por meio da
contestação pretérita, do conflito político no presente e de suas possibilidades
contingentes no futuro. A ordem política, nessa medida, não se define como oposição
simétrica à “desordem”, mas como triunfo agonístico com relação a projetos
alternativos de ordenamento político que permanecem interditos, marginais,
controlados, tácitos (LECHNER, 2013: 267-422 e 439-446). Em terceiro lugar,
podemos intuir que, para a reprodução da ordem política, interatuam a violência sobre
os corpos e a colonização do juízo ético, não em uma relação de hierarquia ou
41
alternância, mas como contrários recíprocos. Toda a persuasão é coercitiva em última
instância, assim como toda a coerção apela a valores últimos. Seguindo a trilha aberta
por Norbert Lechner (2013: 79-102), a ordem política se realiza como um processo de
definição política da realidade: do bom, do justo, do necessário, do urgente, assim
como do criminoso, do impróprio, do intolerável, do desumano. Nesses termos,
estipula determinados limites de possibilidade para a política em um dado momento
histórico.
1.2. A tessitura de relações ético-políticas
A dimensão intangível do poder político é uma longeva preocupação da
sociologia política, que para tratar dela recorreu a noções como legitimidade,
hegemonia, poder simbólico, nacionalismo, ideologia, consenso, mito, conexão, e
mesmo outras mais exóticas como “poder brando”, “estórias de povo” ou
“reciprocidade ética". Não cabe aqui uma revisão bibliográfica detalhada, mas é
preciso sublinhar que os termos não são equivalentes: não dá no mesmo falar em uma
ocultação mistificadora de relações reais de exploração, em uma atribuição individual
de legitimidade à dominação, em uma superioridade intrínseca da democracia liberal
baseada no consenso ou em uma manifestação da estrutura estruturante subjacente à
ação. Com a licença dos teóricos de ofício, iremos atalhar o caminho buscando
demonstrar como a noção de relações ético-políticas, tomadas enquanto pretensão de
adesão com base no que é ou não certo, desdobra o que dissemos antes sobre
dominação, contingência e relação.
Em primeiro lugar, ética é empregue aqui em acepção diferente de moral.
Como aspirou Kant, a moral se forma na busca de um juízo abstrato sobre a ação
humana a partir de seus motivos, de modo a depurar das contingências do mundo uma
noção racional de certo, de um dever moral universal. Ao contrário, a ética se abstém
da posição transcendental, submergindo os juízos de valor na existência concreta de
comunidades humanas, entendendo que a obrigação moral ou ética se apresenta como
fenômeno histórico. A presunção de que a ética está enraizada em sociedades
concretas tem como corolário de que ela se solidifica pela disputa nessas mesmas
sociedades. As condições pelas quais se produz essa dimensão ético-política foi um
tema crucial para Gramsci, que articulou ao redor dele sua análise dos intelectuais, da
42
cultura, do partido e do chamado “estado ampliado”. Ao comentar sobre Maquiavel,
ele diz que “o príncipe ocupa, nas consciências, o lugar da divindade ou do imperativo
categórico” (GRAMSCI, 1980: 15), isto é, da obrigação moral incondicional.
Ora, quem governa reivindica o lugar de um imperativo categórico na medida
em que produz deveres políticos como deveres éticos, por isso se trata de uma relação
ético-política. Para além do medo da prisão, o alistamento aspira obediência como
algo que se deve fazer em nome da pátria, da nação, da comunidade. Pagar os
impostos aspira ser certo, e não só imposto, na medida em que se pretende uma forma
de servir ao interesse público. De forma geral, a identidade da lei com o certo ou justo
é uma forma cotidiana de observar a efetivação de reivindicações ético-políticas.
Ela é contingente porque o edifício ético-político da ordem convive com a
possibilidade de sua erosão, com a contestação social de seu sentido de justiça, com a
inadequação do que está sendo vivido com as representações éticas que lhe são
imputadas. Com efeito, é pelo dissenso produzido em torno ao conteúdo, à
circunscrição e às consequências desses apelos ético-políticos que a ordem política se
movimenta. Assim, iremos olhar nessa seção para os três momentos: a vigência de
imaginários ético-políticos como produção de subjetividades, as práticas de inclusão e
exclusão que ela implica e a contestação política sobre o pertencimento e suas
consequências.
Como ponto de partida para pensar a reprodução desses imaginários, é preciso
superar a falsa dicotomia entre naturalismo e ideologia, como se eles necessariamente
fossem ou realidades dadas ou mistificações fictícias. Usando os termos de um estudo
famoso, se as pessoas estipulam determinadas situações como reais, elas são reais em
suas consequências; isto é, as abstrações se tornam reais na prática16. Não há sentido
em investigar se há de fato uma nação boliviana, francesa ou catalã, se a isonomia
jurídica é real em si ou se determinado governo é ou não a verdadeira expressão do
povo. Essas abstrações não existem senão por meio das práticas que organizam. Em
um tribunal, pode haver advogados, juízes, promotores, testemunhas, policiais, réus,
júri e o que seja, mas seguramente quem não está presente é “a lei”. Sem dúvida, é
possível apelar à lei, ao mandato dos céus, à vontade da nação, à defesa do povo ou à
O estudo foi feito na década de 1920 por William Thomas e Dorothy Swaine Thomas, intitulado The
child in America. Extraio a citação especificamente de Wallerstein (1988: 131), mas um comentário
mais sofisticado sobre o “teorema de Thomas” pode ser encontrado em Peters (2017). Há interessante
paralelismo com o tema marxiano do trabalho abstrato e suas derivações (ver, em particular,
CHAKRABARTY, 2000: 54-56).
16
43
honra da família, mas as consequências desses apelos não são dadas pela validade real
da “lei” ou da “nação”, mas pelas circunstâncias práticas em que o apelo está posto.
Pensando nessa chave, podemos abrir um leque variado de reivindicações
ético-políticas sem a necessidade de submetê-las a uma taxonomia, hierarquia ou
tipologia geral. Por ora, o importante é ter em mente que a noção é mais geral e
indeterminada que sua acepção liberal ocidental, na qual a obediência voluntária se
efetiva através de instituições democráticas, eleições e liberdades civis. Na tradição
confuciana, por exemplo, o poder investido nos líderes tem como contrapartida
exigências com relação a seu comportamento na família e na comunidade. Nesses
termos, a legitimidade das lideranças está mais ligada à observância desse código de
conduta que ao sufrágio. Igualmente, a fundamentação no mandato divino para
governar, destrinchada há décadas por Bendix (1980), compõe esse leque de
possibilidades ético-políticas sem necessariamente se limitar a um passado remoto ou
pré-moderno17. Embora derrotado, um dos mais recentes processos de formação de
estado, o chamado Daesh ou Estado Islâmico, recorreu fundamentalmente a um
mandato divino. De saída, não é plausível teoricamente nem prudente empiricamente
assumir que as relações ético-políticas na modernidade correspondem aos arranjos
representativos de democracias liberais em sociedades capitalistas.
Mais exatamente, a representação liberal pertence a uma família ampla de
formas possíveis de construção de consenso com base no imaginário de soberania
popular, isto é, na crença em um mandato do povo para governar (BENDIX, 1980).
Do socialismo de estado aos movimentos de libertação nacional, do nacional-popular
ao fascismo, existiram diversas formas práticas de construir adesão política ao
encarnar interesses e identidades dos próprios governados, e não dos governantes18. A
soberania popular não é em si um fato nem um discurso, mas uma matriz da qual se
podem produzir argumentos não só diferentes como conflitantes. Ora, quem é o povo
e quem encarna a vontade popular, por que meios, com que instituições e com qual
No caso da obra de Reinhard Bendix em particular, há um raciocínio subjacente de progressão
histórica do mandato divino para o mandato popular, com diversas trajetórias empíricas. Como dito,
estamos trabalhando aqui sem essa progressão (ver capítulo 3).
17
A ciência política como área acadêmica, formatada nos Estados Unidos durante a Guerra Fria, tem o
cacoete, hoje mais recalcado, de separar regimes “democráticos” e “autoritários” como duas espécies
opostas, bifurcando duas agendas de pesquisa: a Ciência Política propriamente dita ocorreria
unicamente nos sistemas democráticos, como os próprios Estados Unidos.
18
44
linguagem política são questões em aberto entre uma reivindicação ético-política e
sua efetivação.
A efetivação de relações ético-políticas conforma, portanto, aspectos
fundamentais do sentido que governantes e governados têm de si mesmos. Uma
ordem política que apela à igualdade cidadã e ao governo da lei, por exemplo,
pressupõe uma cadeia de práticas correspondentes com consequências reais. Por isso
Lechner advoga o estudo da “construção da ordem junto com e por meio da formação
dos sujeitos” (LECHNER, 2014: 389).
Isso dito, passamos ao segundo aspecto: qualquer relação ético-política é um
contínuo movimento entre práticas concretas de inclusão e exclusão. Essas linhas
podem adquirir inúmeros recortes contextuais (classe, religião, língua, gênero, raça,
posição política, de repertório de ação, etc.), ou serem mesmo mais arbitrárias que
essas categorias gerais. O importante é perceber que essas exclusões não são
meramente a ausência do reconhecimento em potencial, mas sim práticas
efetivamente orientadas a negá-lo. Assim como observamos a obediência política pelo
prisma da resistência, a construção de consenso através de relações ético-políticas
também precisa ser lida através de sua negação, quando decisões concretas
circunscrevem a igualdade, o povo escolhido, a comunidade política, os sujeitos de
direito.
Os estudos sobre a cidadania moderna tem chamado atenção para essa
reciprocidade entre inclusão e exclusão de diversas maneiras, ora teóricas, ora
empíricas (BHAMBRA, 2015; GONZALO SÁNCHEZ, 1999; ISIN & TURNER,
2007; PATEMAN, 1988; SASSEN, 2006). Esse olhar coloca em contato diferentes
situações de marcação institucional da diferença, do colonialismo à migração, da
segregação urbana à perseguição política. Ao invés de erguer uma teleologia da
inclusão, em que diferentes grupos sociais são incorporados progressivamente às
formas em si universais, uma perspectiva que parta de suas práticas de exclusão, nos
contextos em que se desenvolvem, permite visualizar a componente propriamente
política do pertencimento e do reconhecimento. A construção social de uma ordem
política também é o arraigamento de suas linhas de inclusão e exclusão, a
naturalização de sua seletividade formal ou informal como prática cotidiana.
Por certo a seletividade e o conteúdo dos apelos ético-políticos são objeto de
dissenso, de disputa, de indignação moral e de contestação prática – esse aspecto é o
45
terceiro que devemos somar à linha de raciocínio. Além de produzirem realidades
enquanto ordem vigente (1) e discernirem suas linhas de inclusão e exclusão (2), as
relações ético-políticas são objeto de contínuo litígio por seu significado e suas
consequências (3). Como dissemos antes, a ordem política não se define pela simples
ausência de desordem, mas como uma ordem historicamente triunfante, hegemônica
frente a outros projetos alternativos, subalternos, invisíveis de ordenamento social,
que tendem a ser por ela igualados à desordem e ao caos. Uma ordem é política, e não
simplesmente ordem em abstrato, no sentido em que se reproduz, no tempo e no
espaço, pelo controle, modulação e criminalização de suas alternativas, aspirando a
“conquista da inevitabilidade”19.
Portanto, é necessário pensar qualquer relação ético-política como uma
pretensão, uma tentativa, uma reivindicação que se quer efetiva. Por exemplo, o
descrédito recente da democracia liberal passa pelo descrédito do apelo de que,
através de seus mecanismos, se pode fazer valer a vontade dos governados. Se
democracia permanece como algo desejável, os governos que se dizem democráticos,
por outro lado, não fazem jus às aspirações do termo. No mesmo sentido, as teses
pregadas por Lutero em 1507 contestavam que a ancoragem do poder político na fé
cristã fazia jus ao seu conteúdo religioso. A luta contra o apartheid na África do Sul
afrontava a estória de povo africâner e suas linhas raciais de inclusão e exclusão. De
forma geral, os movimentos nacionais-populares na América Latina do século XX
pretenderam inverter os termos da ideia de “nação” para deslocar a soberania popular
em nova direção: a “oligarquia” podia ser retratada como antinacional enquanto que
os trabalhadores iletrados de massa passavam a povo, depositário genuíno de
soberania.
Como rastilho subterrâneo da indignação, então, correm determinados sentidos
práticos de justiça: sobre o direito aos frutos de seu trabalho que as pessoas
contrapõem a um coletor de impostos, de que sua vida não há de ser posta em risco
por uma guerra alheia, de que é inaceitável a inanição, de que existem meios
adequados para que elites políticas cheguem a sê-lo, de que há tratamentos desumanos
A expressão foi importada do livro de Barrington Moore Jr. sobre a injustiça e a indignação moral,
mais especificamente para lidar com a aceitação de condições flagrantemente opressivas, como os
campos de concentração nazista e a discriminação contra os intocáveis na Índia. Para o autor, mesmo a
mais brutal das situações alimenta processos psicológicos, sociais e culturais que revestem o
sofrimento com autoridade moral, aspirando, assim, a conquista da inevitabilidade (MOORE JR., 1979:
80).
19
46
e indignos para os filhos do mesmo deus, da mesma nação, da mesma etnia. Toda a
luta social tem implícita alguma concepção de sociedade, um senso de ordenamento
social alternativo. Não é necessária uma teoria “pan-humana”20 da indignação moral
para perceber como o edifício ético-político da ordem vigente necessariamente se
equilibra delicadamente sobre o que os governados imaginam que seja uma sociedade
bem governada, especificamente em suas consequências particulares a si ou seu
grupo.
Não há razão para supor que esse seja necessariamente um contraponto
igualitário: não raro, figuras com distinção econômica, cultural, política alimentam
uma visão de justiça que lhe assegure privilégios correspondentes a esse estatuto, que
corresponda ao valor que elas julgam ter socialmente. Pondo seu papel, ora como
empresários, salvadores de almas, distribuidores de justiça, raça superior, fazedores de
chuva ou defensores do povo, em relevo como um benefício para todos, desenvolvem
uma crença compartilhada de que um bom governo é o que reconhece essa condição
específica e especial, uma sociologia implícita da devida desigualdade que organiza a
ação política desses segmentos.
Pode se dizer que há, pois, uma política competitiva em torno ao conteúdo das
relações ético-políticas: oposicionistas avançam um entendimento diferente de quais
são os anseios do povo, de quais leis são justas ou necessárias, de como vertebrar as
práticas de inclusão e exclusão política. Elites governantes, por seu turno, flexionam
imaginários abstratos para conferir-lhes consequências reais, aspirando a coincidência
entre o imaginado e o existente. Ao fazê-lo, também modulam as relações
ético-políticas conforme sua origem social, seu universo cultural, seus interesses
concretos – em suma, como racionalização de seu próprio poder político. Nesse
sentido, os termos de persuasão e consenso são imanentes à própria disputa política
em que são mobilizados, se movem no intercurso entre a vigência de ordem e sua
contestação, entre um projeto hegemônico e suas alternativas. O significado do léxico
corrente pelo qual a política é designada abre-se como terreno de batalha dessa
política competitiva, como ilustramos nos exemplos da crise da democracia
contemporânea
(o
que
é
democrático?)
e
da
emergência
dos
blocos
nacional-populares no século XX (quem é a nação?).
A alusão aqui é extraída do já citado livro de Barrington Moore Jr. (1979), que pretende um
argumento tão amplo a ponto de recorrer à expressão diversas vezes.
20
47
Ora, a disputa em torno ao que é “cidadania” é uma disputa em torno a quem
pode (ou não) reivindicar o quê com base nesse pertencimento político, de garantias
previdenciárias, integridade física, língua materna, ou o direito de trabalho.
Igualmente, a polêmica sobre o que é uma “ditadura” é hoje inseparável do
significado de consentir a quem governa sob essa caracterização. Quanto maior a
indefinição ou o estiramento a que esses termos são submetidos na polarização
política, menor é a força com que o status quo é capaz de determinar os limites
cotidianos da política, seus atores, discursos e repertórios coletivos. Quanto menor
essa força, mais maleáveis ou transigentes ficam os imaginários políticos para
projetos alternativos de ordenamento social, consequentemente mais abertos ficam os
horizontes de futuro.
Ao observar a tessitura das relações ético-políticas como processo de longa de
duração histórica, convém então deslocar a teleologia da inclusão política em que
sucessivamente grupos subalternos passam de “fora” para “dentro” da política
institucional. Nela, mulheres, ex-escravos, trabalhadores, analfabetos, colonizados,
intocáveis, indígenas e demais grupos excluídos seriam incorporados historicamente
ao escopo da cidadania moderna, uma vez que o conteúdo desta é intrinsecamente
universalista. Nessa chave, a história realiza o que já estava posto como ideia.
Por outro lado, desenvolvemos um raciocínio que assume as práticas de
exclusão como ponto privilegiado de observação, assumindo-as não como o
pertencimento que ainda não veio, mas como o lócus fundamental da fricção política.
Nesses termos, as relações ético-políticas se desenvolvem na longa duração através do
movimento contingente de suas linhas de inclusão e exclusão, bem como das formas e
consequências do pertencimento político. Se bem entendidas, essas relações se dão
como móveis da interação entre governantes e governados: ao fazer do dever político
um dever ético, reivindicam que o certo coincida com o existente.
1.3. Da política do medo: os arranjos móveis de proteção mediante extorsão
A projeção das relações de dominação no tempo e no espaço é uma medida de
força. Embora ainda haja filósofos que atribuam a constituição de estados a uma “mão
48
invisível” orquestrando acordos voluntários ao longo do tempo21, tomamos aqui o
ponto de partida da sociologia histórica: estados são resultado de processos
contingentes de conflito político violento, são formas de organização da violência
através de seu exercício. O objetivo nessa seção, então, é perceber as consequências
da projeção da categoria coerção no tempo e no espaço, percebendo como a violência
sobre os corpos se torna processo histórico na forma de arranjos móveis de proteção
mediante extorsão. Toda ordem política é uma reivindicação, mais ou menos
bem-sucedida em cada contexto, de controle sobre o uso da violência por uma
organização política, como um império, um principado, um partido, um califado, uma
guerrilha ou uma milícia paramilitar. A rigor, qualquer organização pode se tornar
política na medida em que efetiva uma reivindicação dessa natureza, com
continuidade e por seus próprios meios.
A continuidade acarreta uma característica central: a organização que governa é
sustentada por aqueles que são governados, daí a famosa analogia de Tilly (1985)
entre formação do estado e a extorsão praticada pelo crime organizado. A dominação
política se projeta no tempo e no espaço como uma espécie de venda continuada de
proteção contra ameaças reais ou fabricadas, inclusive, no limite, daqueles mesmos
que vendem a proteção. O controle sobre o uso da violência é também o controle
sobre a definição do que configura uma ameaça, o que estabelece uma divisão entre
aqueles que são titulares de proteção daqueles que são inimigos em potencial ou cujo
destino é politicamente indiferente. Um arranjo de proteção mediante extorsão se
sustenta no intercurso entre extração material e garantia de segurança, definindo os
termos específicos (quem, quando, quanto, como, sob que justificação) que esse
intercurso assumirá (ver Gráfico 1.1).
Em um livro com exagerada repercussão, Robert Nozick afirma precisamente isso: o problema
contratualista da origem do estado pode ser resolvido hipoteticamente por acordos voluntários entre
proprietários, regidos por uma mão invisível. Senão vejamos: “desincumbimo-nos, achamos, de nossa
tarefa de explicar como um Estado emergiria do estado de natureza sem que os direitos de qualquer
pessoa fossem violados. São assim rejeitadas as objeções morais do anarquista individualista ao Estado
mínimo. Não se trata de imposição injusta de um monopólio: o monopólio de facto cresce mediante um
processo de mão invisível e través de meios moralmente permissíveis, sem que o direito de pessoa
alguma seja violado e sem que sejam apresentadas reivindicações a um direito especial que outros não
possuem” (NOZICK, 2011: 132). Após erguê-lo, o autor evade o tema das reparações ao lesados por
quaisquer formas de apropriação não-consensual de propriedade verificadas na história.
21
49
Gráfico 1.1. Dinâmica básica de um arranjo de proteção mediante extorsão
Fonte: Elaboração própria.
A forma mais convencional de enquadrar a violência ao “estado”, à “ordem” e
à política assume que a existência do estado se opõe simetricamente à guerra civil,
quando o uso imoderado da força produz desordem, insegurança e instabilidade.
Haveria uma situação pré-política de conflito social e outra propriamente política, em
que o estado assegura, pelo monopólio do uso da força, a subordinação deste à
garantia da lei e da ordem. Consequentemente, a prática de violência adquire
significado radicalmente oposto quando é executado por autoridades uniformizadas de
um estado, no que implica aplicação da lei, de quando o é por quaisquer outros grupos,
no que implica distúrbios sociopatológicos, extremismos irracionalistas e ameaças
criminosas (TILLY, 1984: cap. 2; HOLDEN, 2004: cap. 2). Segurança, estado,
proteção, lei e ordem são postos em uma mesma linha lógica, como neutralização do
medo. Desnecessário dizer, é uma cisão que assume a defesa da ordem em si,
independentemente de seu conteúdo. Combinando uma versão anacrônica do
contratualismo com uma leitura conservadora de Weber, produz-se uma análise do
estado carregada com o ponto de vista de estado, uma sociologia política de reificação
da ordem.
Com a desnaturalização dessa oposição entre ordem e desordem, a violência
política se torna parte da competição entre arranjos de proteção mediante extorsão,
entre formas de organizar socialmente as ameaças, a culpa, as sanções e a proteção.
50
Em uma sociedade capitalista, a exploração do trabalho humano faz parte da ordem,
enquanto que sua contestação é criminalizada. Sob o proibicionismo, as substâncias
psicoativas são postas no campo da ameaça e do medo, enquanto que a violência
rotinizada contra usuários, vendedores e produtores pertence ao campo da garantia de
lei e de justiça. Em uma sociedade xenófoba, a imigração é tratada como questão de
segurança nacional e de defesa dos cidadãos, enquanto que a discriminação e a
segregação das populações minoritárias são normalizadas. Em um estado confessional,
a livre expressão de religiosidades alternativas, o ateísmo e o secularismo podem ser
postos como risco à ordem, enquanto que a prática religiosa compulsória é parte do
bom funcionamento das instituições. Em um cenário como o descrito por Margareth
Atwood no romance que epigrafa esse capítulo, o controle, a vigilância e a violência
contra os corpos das mulheres são partes do consenso patriarcal sobre o que seria uma
sociedade bem governada. Toda eclosão de uma crise pressupõe uma forma concreta
de ordem que está em crise, e toda forma de ordem supõe um gabarito de
inteligibilidade para a violência, padrões e critérios de distinção para suas práticas.
Essas formas concretas de ordem são efetivações contingentes de controle da
violência no tempo e no espaço. Assim, estados não são realidades prévias para a
política ser possível, mas são organizações políticas que se constituem, se
desenvolvem no tempo e no espaço e eventualmente são dilaceradas, conquistadas e
refundadas. O resultado é que, assentado sobre essas bases móveis, “o estado não é
um sujeito fixo ou uma coisa estável, mas um conceito do possível” (PALONEN,
2011: 107). Isso pode soar contraintuitivo porque, na escala de nossa observação
cotidiana, estados simplesmente estão lá e a política ocorre em seu marco. É
especialmente em momentos críticos que se entrevê a impermanência do controle
político sobre a violência, a contingência que atravessa entre a reivindicação desse
controle e sua efetivação.
Um termo essencial para entender essa fratura é o de “soberania múltipla”,
derivado por Tilly (1978) da análise de Trotski sobre a Revolução Russa de 1917.
Para tanto, “uma situação revolucionária começa quando um governo anteriormente
sob controle de uma autoridade única e soberana de torna objeto de reivindicações
efetivas, concorrentes e mutuamente exclusivas por parte de duas ou mais autoridades
distintas” (TILLY, 1978: 191). Em uma situação de soberania múltipla, não há
simplesmente uma competição pelo controle da violência, mas, inseparável dela, um
51
realinhamento de fidelidades políticas entre os governados. A oposição articula uma
hierarquia paralela, apela a imaginários políticos alternativos, estabelece canais de
comunicação próprios com a população, estipula novos critérios para a extração e
para a proteção, em suma, postula-se como outra soberania.
Nos anos 1850, na China Imperial fragilizada pela ingerência ocidental, o
movimento popular liderado por Hong Xiuquan estabeleceu na região de Nanjing um
governo paralelo por mais de dez anos, o Reino Celeste da Grande Paz. Com milícias
próprias, a rebelião de Taiping, como ficou conhecida, apelava à decadência moral da
dinastia Qing combinando-a com um renovado, fervoroso e sincrético movimento
religioso de base popular. Importando noções do Velho Testamento difundido pelos
missionários, o regime de Xiuquan, que reivindicava parentesco direto com Jesus
Cristo, impunha rígidos padrões ascéticos, ojeriza aos estrangeiros e sanções pesadas
contra o jogo, o ópio, a idolatria, a prostituição e a prática de deformação infantil dos
pés femininos (BAYLY, 2004: 148-155; FAIRBANK & GOLDMAN, 2006: cap. 10).
Com efeito, não era simplesmente um grupo armado competidor, mas uma visão
radicalmente diferente de como ordenar a sociedade.
Com a formação de polos de poder alternativos, o realinhamento das
fidelidades políticas se relaciona com a manutenção de um circuito entre proteção e
extração. Frente às obrigações incompatíveis postas pela obediência ao governo e aos
poderes alternativos, a ordem política se põe em suspenso pela indefinição do controle
político da violência. Finalmente, se e quando as autoridades de governo não têm
capacidade e/ou disposição para suprimir o(s) poder(es) paralelo(s), isto é, quando há
uma “inibição política do uso da coerção”, situações revolucionárias atingem
desfechos revolucionários (CEPIK, 1995: 165).
O entendimento sobre a soberania múltipla nos será valioso para compreender
posteriormente os processos de independência na América Latina durante a Era das
Revoluções, bem como outras conjunções críticas na construção da ordem
pós-colonial. Em processos revolucionários com ativação popular, inibição política do
uso da coerção e consequências institucionais claras, essa descontinuidade é inegável.
No entanto, nem toda a mudança ocorre pela demolição violenta da ordem política
precedente. Com efeito, a noção de soberania múltipla tem dificuldade de diferenciar
uma revolução social de qualquer guerra civil, em boa medida porque esmaece o
recorte de classe que para Trotski era fundamental.
52
Adentrar as polêmicas da sociologia das revoluções parece temerário em um
trabalho que não tem fôlego para apresentar-lhes soluções razoáveis. Ainda assim, é
importante perceber como da fricção, contestação e conflito que subjazem a vigência
de uma ordem política produzem-se também descontinuidades não propriamente
revolucionárias. Ao preço de 20 milhões de vidas humanas, o movimento dos Taiping
foi derrotado pelas forças imperiais com apoio ocidental, resultando em golpe de
estado em 1861 que alterou o perfil da liderança Manchu. Acomodando-se ao sistema
comercial imposto pelos ocidentais, a dinastia direcionou então suas energias para a
reorganização de seu controle interno em uma sequência de intentos reformistas.
O declínio dos Qing na segunda metade dos oitocentos é também o triunfo da
reação nobiliárquica às rebeliões internas das décadas de 1840 e 1850, que aspirava
resolver pelo alto as tensões rurais de uma China sitiada no litoral (SKOCPOL, 1979:
67-81). Mesmo quando não vitoriosas, como os Taiping, as contestações à ordem se
inscrevem na realidade como risco de recorrência que precisa ser contido, como
receio dos governantes ou demonstração de força dos governados. Esse é um sentido
profundo pelo qual a compreensão de uma ordem vigente se faz pelo prisma de seu
contrário.
Tal qual as rupturas revolucionárias, as mudanças políticas pactuadas sem
ativação popular são objeto de rico acervo de estudos e conceitos no pensamento
social, como o de uma “via prussiana” de formação do capitalismo, o
“transformismo” por cooptação de elites, ou as noções de uma “revolução passiva”,
uma “modernização conservadora” ou uma “revolução pelo alto”. Explorar as
sutilezas dos termos em seus contextos de formulação extrapola as ambições desse
texto, mas seu denominador comum é a produção de consequências institucionais
fortes (revolução burguesa, modernidade, etc.) sem envolver rupturas políticas
correspondentes, controlando a pressão desde baixo à mudança política.
Seja por um golpe militar, por uma coesa elite reformista, pela cooptação de
lideranças populares ou pela ascensão de elites secundárias, produz-se, em todo o caso,
um deslocamento em termos de ordenamento social, um novo projeto hegemônico do
que seria uma sociedade bem governada. Como elites políticas não são um bloco
atemporal, sua coesão e sua homogeneidade são móveis em alianças e barganhas
concretas. Há exemplos abundantes de acordos formais ou informais para retirar
intensidade dos atritos entre elites para evitar extrapolações imprevisíveis, para
53
assegurar seu controle sobre os limites da rivalidade política. Pense-se, por exemplo,
nos pactos de Punto Fijo (Venezuela) e Sitges (Colômbia) em 1958, o acordo entre
roquistas e mitristas em 1898 (Argentina), os gabinetes de conciliação entre liberais e
conservadores no Império (Brasil) ou o regime patrocinado por Simón Patiño na
Bolívia. Tanto a ruptura quanto a autoproteção
Episódios de crise que colocam a ordem em suspenso não estão restritos a um
passado longínquo nem a lugares onde a ordem ainda não prevaleceu contra a guerra
civil. Irromperam muito recentemente sob estados que mantinham até então um
controle bastante efetivo sobre a violência e suas representações ético-políticas. Se
percorrermos os séculos precedentes, e esse é o ponto de partida prioritário da
sociologia histórica, poderemos observar como os estados que hoje consideramos
realidades dadas são resultados de sucessões bastante fortuitas de golpes de estado,
revoluções sociais, guerras civis, guerras interestatais, quarteladas, conquistas e
secessões em um movimento sem uma direcionalidade uniforme. Tampouco existe,
como veremos melhor no terceiro capítulo, uma espécie de efeito catraca, um estágio
ou forma institucional em que a ruptura política é legada ao passado e uma ordem se
solidifica em definitivo.
Como organizações históricas, estados são resultados de arranjos móveis de
controle da violência no tempo e no espaço, estabelecendo situações de proteção
mediante extorsão. Repare-se que a noção de controle político sobre a violência é
usada em lugar de seu monopólio, que induz mal-entendidos. Para entender a
diferença, vamos desdobrar um percurso que começa com o ponto cego do tipo-ideal
de um monopólio para as margens flutuantes de violência paraestatal, em suas formas
passadas e presentes22.
Ao debater a contestação à ordem e a soberania múltipla, é muito persuasivo
pensar, como um exagero proposital da realidade, que o estado aspira o monopólio do
uso da força legítima. Neutralizando a hipótese de soberania múltipla e trazendo a
resolução das diferenças a termos não-violentos, esse monopólio típico reflete a
capacidade de rotinizar o poder de quem governa. De acordo com esse tipo, os estados
são organizações políticas que, mesmo que não o atinjam na prática, reivindicam
Essa substituição da noção de monopólio da violência congrega contribuições variadas sobre a
violência e teoria política, como Ansaldi e Giordano (2014), Azellini (2005), Bolívar (1999; 2010),
Davis e Pereira (2003), Migdal (2001), Schmitt (2009) e Tilly (1985), além da crítica de Bhambra
(2014; 2016) e Cardoso e Faletto (1970) ao método de tipos-ideais.
22
54
subjugar os demais detentores de violência, desarmá-los ou assimilá-los às rotinas
institucionais. Essa é a imagem clássica do poder soberano, do Leviatã hobbesiano: a
prerrogativa de uso da força concentrada toda em um só decisor.
A questão fica mais escorregadia quando a palavra legitimidade entra em cena,
no sentido em que o monopólio reivindicado seria não de qualquer, mas da violência
tida como legítima (BEETHAM, 1991). Na leitura weberiana convencional, essa
legitimidade adviria da prevalência do direito racional e do procedimento burocrático:
o emprego da força pelo estado moderno, ao contrário dos demais grupos sociais e
estados precedentes, estaria respaldada por uma racionalização impessoal, em que o
arbítrio casuístico seria substituído pela lei abstrata. Por um lado, é lógico que isso
não corresponde à realidade, uma vez que foi pensado como um tipo-ideal. Por outro,
com base no percurso já feito até aqui, podemos observar que não se trata
simplesmente de um mal-entendido metodológico, mas de que, mesmo que
ideal-típica, a caracterização baseada no “monopólio” e na “legitimidade” deixa-nos
sem ferramentas para lidar com questões importantes.
Em primeiro lugar, a atribuição de legitimidade à violência pressupõe, na
tradição weberiana, a vigência de relações ético-políticas baseadas no governo da lei:
o uso legítimo da força é aquele que se exerce consoante às normas procedimentais
válidas igualmente para todos. Mais do que isso, há uma compactação, uma
sobreposição, um alinhamento, mesmo que só no terreno ideal típico, entre o uso da
violência por um estado (moderno) e o imaginário de um estado de direito. Em termos
mais simples, a violência por parte do estado é aquela que é praticada conforme a lei,
e a lei estipula uma gramática da violência que é praticada pelo estado. Ao fazer essa
equiparação, a ideia weberiana de dominação racional-legal produz um ponto cego
que não se resume às distâncias entre as formas empíricas e o tipo-ideal. Para levar
esse ponto cego às suas devidas consequências, iremos observar por um momento o
uso paraestatal da violência, então generalizar um pouco mais para o debate sobre as
“margens do estado”, até chegar a uma rediscussão sobre exceção, decisão e coerção
que englobe as formas móveis de controle político da violência como uma
reivindicação contingente.
Ora, nem toda a violência empregada por grupos sociais que não o estado
expressa as aspirações dos subalternos, contesta a ordem vigente, aspira uma mudança
revolucionária – como qualquer estudante da história latino-americana prontamente é
55
obrigado a reconhecer (ANSALDI & GIORDANO, 2014; HOLDEN, 2004). Na
análise da violência organizada na região, encontramos grupos como as Autodefesas
Unidas da Colômbia, os Esquadrões da Morte em El Salvador, as Patrulhas de
Autodefesa Civil na Guatemala, entre tantas outras milícias contrainsurgentes que não
pertencem ou não obedecem à organização do estado, mas nem por isso o contestam.
A propósito, esse fenômeno não é exclusividade da região; ao contrário, a suposição
de que a forma final e irreversível de organização da violência na modernidade seja
forças nacionais regulares está sendo fortemente revista pela literatura especializada
(DAVIS & PEREIRA, 2003).
De forma panorâmica, o uso da força por estados na história foi
predominantemente apoiado por parcerias, subvenções e subcontratações, formais ou
informais, públicas ou secretas, com agentes não-estatais. Dos mercenários e corsários
nos séculos XVI e XVII às companhias militares privadas do século XXI, esses
arranjos não ocorrem porque os estados são monopólios imperfeitos, mas porque há
vantagens e oportunidades específicas em fazê-lo dadas as circunstâncias. Ao invés de
dois polos estanques, exércitos, polícias, milícias, jagunços, grupos paramilitares,
bandidos, mercenários e guardas nacionais flutuam em um espectro de maior ou
menor
subordinação
institucional
à
autoridade
política,
em
um
extremo
confundindo-se com ela, em outro operando com recursos próprios em hierarquia
paralela. O uso de forças irregulares para manutenção da ordem, reprimir greves,
perseguir dissidências religiosas, fazer a guerra e impor obediência é um tema
fundamental teórica e politicamente.
Por controle político da violência, ao invés de virtual monopólio, refere-se à
capacidade das elites políticas de manter a constelação de grupos armados (regulares e
irregulares) nos limites da ordem política vigente, assegurando relativa coerência e
direção ao emprego da força. Subordinar a violência, em suma, a um arranjo
contingente de proteção continuada. Isso não implica necessariamente, embora seja
uma forma de fazê-lo, a subordinação institucional de todas as forças armadas
atuantes no terreno: no extremo, improvável mas possível, o controle político da
violência pode se dar mesmo sem o controle direto sobre os grupos armados, como na
descrição da Grécia oitocentista feita por Achilles Batalas (2003)23.
O argumento de Batalas se constrói por uma inversão da proteção mediante extorsão, em que os
grupos armados transitam entre a criminalidade e a oficialidade: “o Império Otomano, operando dentro
de relações societárias mais amplas de patrão-cliente, contratava forças armadas privadas dos mais
23
56
Por hipótese, se quaisquer desses grupos, sejam bandidos, milícias ou
corporações militares, se movem para fora do controle prático dessas elites e dispõem
de recursos suficientes para manter uma reivindicação de poder contra elas, tende-se a
evoluir para uma situação de soberania múltipla ou um golpe de estado. A situação
mais comum, contudo, é a de que os grupos armados paraestatais encontrem espaço
para operar sem conflito, não raro com clara afinidade, com a ordem política vigente.
Sob
o
regime
proibicionista
atual,
organizações
narcotraficantes,
embora
frequentemente tomadas como ameaças à soberania dos estados, são em geral muito
adaptadas à ordem política vigente, que lhes rende lucros extraordinários
(RODRIGUES, 2003; TOKATLIÁN, 1988).
Não se deve perder de vista que a mobilização e a desmobilização de forças
repressivas ocorre no bojo de relações contingentes de dominação política, e os
exércitos ou polícias regulares de cidadãos não necessariamente são a opção mais
interessante. Lembrando a constatação de Jean Bodin, pensador central para a noção
de soberania do século XVI, “é virtualmente impossível treinar todos os súditos de um
reino nas artes da guerra, e ao mesmo tempo mantê-los obedientes às leis e aos
magistrados” (apud ANDERSON, 1974: 30). As tropas mercenárias, cujo predomínio
à época de Bodin permitiu um salto de escala na guerra europeia, são uma das formas
possíveis de contornar ou aliviar os custos políticos da conscrição. Ao supor que
estados são formas mais ou menos definidas de monopólio da força se obscurece o
componente estratégico do uso de forças irregulares.
A mobilização e a desmobilização de forças regulares de cidadãos exigem
maior coerência com os imaginários ético-políticos que envolvem governantes e
governados, por isso são frequentemente contornados. Há uma literatura exuberante
sobre a construção de direitos e prerrogativas civis com base na barganha social
contra o recrutamento: ao apelar aos cidadãos em armas, aos filhos da pátria, ao povo
em alerta, as autoridades foram crescentemente comprometendo-se com garantias de
poderosos capitães, cuja lealdade era assegurada enquanto pudesse pagá-los. Os capitães, por seu turno,
pagavam capitães sob sua patronagem que então pagavam seus homens. Como resultado, os armatoloi
eram homens de seus capitães mais do que do estado otomano. (…) A mudança de armatolos para
klepht, ou klepht para armatolos era uma ocorrência normal para a maioria desses capitães e seus
respectivos bandos. De fato, é durante a administração otomana que a proteção mediante extorsão
inversa [inverse racketeering relationship] entre estado e formações militares irregulares emerge”
(BATALAS, 2003: 156). Essa mobilização fluída de forças legais (armatoloi) e ilegais (klepht)
prosseguiu após a independência, diante dos sucessivos fracassos dos governos provisórios entre 1821
e 1827 de formar um exército regular.
57
invalidez, com a atenção às famílias, com a educação aos jovens, com as pensões aos
veteranos. Nos Estados Unidos, onde essa barganha foi historicamente acentuada, os
custos políticos da cidadania armada se tornaram elevadíssimos no século XX,
abrindo fértil terreno para a terceirização com contratistas paramilitares. O
pensamento estratégico estadunidense foi, nesse e em outros sentidos, profundamente
marcado pelo “fantasma do Vietnam”, isto é, pelo rechaço amplo à conscrição
(ROXBOROUGH, 2003).
O problema da compactação entre monopólio e legitimidade pelo tipo-ideal
weberiano não advém, portanto, unicamente do tema do monopólio, mas também do
da legitimidade: estados modernos continuam se aproveitando das oportunidades do
uso da força por fora do imaginário de governo da lei, mesmo quando reivindicam o
estado de direito. As Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) não foram diretamente
organizadas por agências de estado, mas usufruíram de tolerância e colaboração para
conduzir a contrainsurgência e a perseguição política no país, especialmente após a
chegada de Álvaro Uribe ao poder em 2003. Como aliados não-oficiais do governo na
guerra civil, as AUC puderam manobrar com discricionariedade, brutalidade e sigilo
que seriam interditos legalmente às forças armadas colombianas, podendo contar com
uma fonte de financiamento igualmente inviável para as forças regulares, o
narcotráfico.
Manobrar fora dos quadros institucionais era uma vantagem para a
contrainsurgência, e o sucesso desta, ao sufocar a soberania múltipla criada pelas
guerrilhas rurais revolucionárias, encaminhava a prevalência da ordem vigente e suas
elites dirigentes. Além da mobilização/desmobilização, a violência organizada
envolve custos e riscos por seus métodos na repressão social. Por essa razão, inclusive,
forças policiais profissionalizadas foram desmembradas dos exércitos nos últimos
duzentos anos, com técnicas, armamentos e hierarquia específicos para a repressão
civil urbana (MANN, 1993: cap. 12).
Ao substituir o monopólio do uso legítimo da força pelo controle político da
violência em um arranjo contingente de proteção mediante extorsão, temos melhores
condições de lidar com a violência paraestatal que orbita, por assim dizer, as margens
do estado. Com efeito, floresceu nos últimos anos uma agenda de pesquisa específica
sobre as “margens do estado”, observando “os campos de força que se estruturam nas
dobras do legal e ilegal” (TELLES, 2012: 31). Através da barganha contingente entre
58
policiais e trabalhadores informais, entre políticos e milicianos, entre agentes públicos,
narcotraficantes e lideranças comunitárias, para usar apenas alguns exemplos, as
linhas entre o crime e a lei são definidas por agenciamentos específicos, que
manobram, ignoram ou subvertem a referência institucional.
Ao invés de aplicar a lei indistintamente, o estado produziria uma “gestão
diferencial dos ilegalismos” através de inúmeras práticas de seus agentes. Dessa
forma, essa linha de pesquisa tem sistematicamente contraposto, desde as margens, a
ideia do estado como ente coeso, burocrático, com monopólio do uso legítimo da
força (DAS & POOLE, 2004; TELLES, 2012). As margens, por sua vez, não são
confins em que o estado atinge precariamente, regiões onde a lei mal chega; são, isso
sim, espaços em que o legal e o ilegal são agenciados e tramados ao cotidiano, mesmo
que isso ocorra, por hipótese, na residência oficial do presidente fora da agenda
pública.
O tema das “margens do estado” permite generalizar com relação ao que
dissemos sobre a violência paraestatal no sentido em que agenciamentos oportunistas,
ambiguidades institucionais e práticas extraoficiais não se limitam à operação dos
grupos armados. Ao lançar nova luz sobre a zona de ambiguidade entre o legal e o
ilegal, essas pesquisas também colocam a construção da ordem política em
movimento cotidiano, prático e conflitivo, não como uma idealização jurídica
uniforme – daí sua convergência com o tema deste capítulo. Por outro lado, pela
crítica que desenvolve a essas leituras institucionalistas, a linha de pesquisa sobre
margens do estado não deixa claro se pretende ser-lhes uma alternativa em sentido
estrito, de forma que tudo o que elas reconhecem como estado possa ser etnografado
como uma margem, ou se existe alguma forma de núcleo que não se comportaria
como tal24.
Por um lado, é bastante claro que os campos de força entre o legal e o ilegal podem ser criados em
qualquer escalão do aparato de governo, de modo que as margens não se confundem com o que a
ciência política norte-americana chamou de “burocracia do nível da rua” (street-level bureaucracy),
isto é, os funcionários públicos diretamente engajados com a população (policiais, assistentes sociais,
agentes de fiscalização, etc.). Por outro lado, na forma que assumem no presente, os estados envolvem
complexas e diferenciadas estruturas administrativas que sequer interagem com o público. É verdade
que um agente comunitário, por hipótese, pode negociar os benefícios de uma política social com
traficantes, policiais ou milicianos em bairros pobres, mas, para que isso chegasse a termo, essa política
social eventualmente foi planejada por especialistas, deliberada por congressistas e seus assessores,
aprovada por um ministério do planejamento, difundida por publicitários e marqueteiros políticos em
escala nacional. Ora, que sociólogos e antropólogos fariam um exaustivo e monótono trabalho de
campo em repartições públicas aleatórias não parece ser o caso. As etnografias sobre as margens do
estado são atraídas para situações particularmente interessantes de conluio, conflito e barganha em
torno da aplicação da lei, dos mercados ilegais e do poder político, mas isso não ocorre exatamente em
24
59
Para costurar nossa discussão, sem enveredar a uma polêmica metodológica
desnecessária, podemos trazer a forma de pensar o estado a partir de suas margens
para o tema da reprodução da ordem política como arranjo de proteção mediante
extorsão. A rigor, no exemplo sobre a violência na Colômbia, do que antes falávamos
é justamente uma forma de gestão diferencial de ilegalismos: as FARC e as AUC
foram grupos armados ilegais tratados de forma fortemente distinta pelo governo
colombiano. Outros exemplos dessa seletividade prática são fáceis de encontrar. Na
história do Brasil rural, a tolerância com a jagunçagem contrasta com a brutal resposta
institucional às iniciativas de organização popular para ocupação de terras. O silêncio
no Sul dos Estados Unidos sobre os linchamentos e as milícias supremacistas é
nitidamente diferente da mobilização repressiva contra o Partido dos Panteras Negras
nas décadas de 1960 e 1970. Na Itália do pós-Primeira Guerra, a atuação dos camisas
negras como milícia anticomunista era vista com olhares condescendentes das elites
liberais, aterrorizadas pela onda de greves no norte e de invasões de terra no sul. Com
efeito, nesses exemplos há um tratamento desigual de usos políticos da violência, e os
critérios que explicam essas diferenças não se encontram na lei, mas na expediência
política. Invisível no tipo-ideal do monopólio da força, essa seletividade prática é uma
expressão do que o controle político sobre a violência significa como prerrogativa de
decidir perante a realidade. Observemos, agora, as consequências desse ponto.
Em qualquer arranjo de proteção continuada, existe uma divisão quem é
protegido e quem é, ao menos potencialmente, a ameaça para a qual a proteção se
presta. Sabemos que a “ordem” não existe em si porque essa distinção entre ameaças
e protegidos não é dada pela natureza. Há entendimentos contrastantes e aspirações
incompatíveis sobre a definição do que deve ser protegido do quê, por quem e com
que métodos. A definição de uma ameaça e a mobilização de meios para neutralizá-la
é uma demonstração de poder, enquanto que a garantia de proteção é uma afirmação
do pertencimento político. Como Thomas Hobbes (1979) mostrou com singular frieza,
a ausência de violência hostil não é o mesmo que a proteção garantida: como animais
errantes, os indivíduos que povoam seu estado de natureza sofrem violência
esporádica, mas vivem em constante e apavorante incerteza, com medo, insegurança e
toda a rotina administrativa e política, nem é necessariamente o mais importante para entender a
disputa política em curso. Em suma, o argumento sobre as margens do estado parece potencialmente
válido como chave de crítica teórica e referência para o trabalho etnográfico, mas não parece
preocupado com a mediação entre antropologia política e sociologia política.
60
desconfiança. Sua filosofia política é uma demonstração do intercurso imperativo
entre obediência e proteção.
Como percebemos já no começo de nosso percurso, o controle político da
violência é também um processo ético-político. Se todo o emprego da força é envolto
por interpretações e símbolos que lhe tornam inteligível para os agentes, toda a ordem
política aspira correspondência com o que é o uso desejável e necessário da violência
coletiva. A vigência de um arranjo de proteção mediante extorsão é, pois, uma
reivindicação bem-sucedida de separar um terreno ético-político de pertencimento –
reconhecendo pessoas, práticas e instituições que merecem proteção – do terreno da
indiferença ou da guerra contra os inimigos, terreno este em que se suspendem os
imaginários ético-políticos em nome da ordem, em que a exceção se pratica contra as
ameaças.
As clivagens ético-políticas entre cidadãos e não-cidadãos ou entre nacionais e
estrangeiros são inseparáveis das linhas de separação entre a latência da proteção
devida e a latência da repressão necessária. “Cada parágrafo da Constituição”, como
escreveu Marx em 1852, “encerra sua própria antítese” (MARX, 2011b: 42). Cada
afirmação ampla de liberdade, igualdade, justiça e imparcialidade, ele dizia, entreabre
os termos de sua suspensão emergencial25. Quando Walter Benjamin afirmou que,
para os oprimidos, vigora um estado de exceção permanente, ele não dizia que o
estado de direito era falso ou incompleto porque não atingia a todos da mesma forma;
dizia, com muito mais profundidade, que um governo de exceção contra os oprimidos
era a regra informal que sustentava o estado de direito para os cidadãos (AGAMBEN,
2004). Assim, do ponto de vista de quem é tratado como ameaça em potencial, a
proteção não é um direito, mas um privilégio de poucos.
No momento em que a exceção se coloca, “o Estado suspende o direito por
virtude do direito à própria conservação” (SCHMITT, 2009: 18). Como bom leitor de
Vale reproduzir a citação em seu contexto: “Quando ela proibiu ‘aos outros’ essas liberdades ou lhes
permitiu gozá-las sob condições que implicavam outras tantas armadilhas policiais, isso sempre
ocorreu apenas no interesse da ‘segurança pública’, isto é, da segurança da burguesia, como prescreve a
Constituição. Em consequência, ambos os lados se reportam, posteriormente e com toda razão, à
Constituição, tanto os amigos da ordem que suprimiram todas aquelas liberdades quanto os democratas
que exigiram o seu cumprimento. Isso se deve ao fato de que cada parágrafo da Constituição contém a
sua própria antítese, a sua câmara superior e a sua câmara inferior, a saber, na sentença universal, a
liberdade e, na nota marginal, a revogação da liberdade. Portanto, enquanto a denominação da
liberdade foi respeitada e somente a execução efetiva desta foi impedida – pela via legal, bem
entendido – a existência constitucional da liberdade permaneceu incólume, intocada, por mais que a
sua existência ordinária tenha sido suprimida” (MARX, 2011b: 42-43).
25
61
Hobbes, Carl Schmitt percebeu que o Leviatã não se apoiava simplesmente no
monopólio da força, mas no monopólio da decisão: decidir quando a realidade cabe à
norma ou à exceção, estabelecer “critérios de distinção para a realidade” é o ato
fundamental do poder soberano (VILLAS-BOAS, 2012: 125). Discernir o ordinário
do excepcional é separar a ameaça da proteção, conferindo coerência ao emprego da
violência sob o gabarito da ordem política. Por essa razão, enquanto poder de
definição sobre a realidade para agir sobre ela, “o caso excepcional transparenta de
maneira mais luminosa a essência da autoridade do Estado” (SCHMITT, 2009: 18).
A presunção do estado de direito como realidade em si, ou da coextensividade
entre coerção e legitimidade em um monopólio típico, obscurece a reciprocidade entre
proteção e ameaça, ou melhor, a seletividade própria à distribuição de proteção em
cada ordem política concreta. Justamente porque a lei não governa, nem tampouco
Deus, a nação ou o povo, toda a prática de governo, do mais alto escalão aos
funcionários rasos, implica uma decisão concreta perante a realidade, mas nunca uma
decisão tomada individualmente no vácuo. Projetado no tempo e no espaço, o
decisionismo se converte na seletividade prática de uma ordem política em discernir
as ameaças e agir sobre elas, valendo-se para tal da violência organizada que controla.
Com isso em mente, nos voltaremos agora para o outro termo da equação: a extorsão
continuada em troca de proteção.
1.4. Da extração em geral ao ciclo extrativo-coercitivo como mecanismo
contingente
Quando autoridades requisitam cavalos para a guerra, trigo para as tropas,
impostos para a saúde pública, pessoas para combater ou terra para seu controle, elas
estão pondo em prática formas de extração compulsória de recursos daqueles sob seu
governo. Alguém certamente poderia objetar que é inadequado colocar em um mesmo
saco a exigência de trigo sob a lâmina de uma espada e o imposto votado em uma
casa parlamentar, ou a saúde pública e a guerra como gastos equivalentes. Embora
pareça intuitiva, a objeção não encontra terreno firme. De um lado, ela demandaria
que erguêssemos essa forma parlamentar ou representativa de governo como distinta
em si, para então dividir a noção de “extração” entre democracias liberais e
não-democracias, ou em graus da primeira.
62
De outro, ela pressuporia que existem propósitos vis (guerra) e propósitos
nobres (saúde pública) para o emprego desses recursos, o que é uma linha muito
complicada de traçar por inúmeras razões. A tentativa de observar a extração
compulsória e suas finalidades políticas por uma divisão desse tipo não é só difícil de
executar na prática, mas turva o essencial: a imbricação existente entre finalidades
tidas como nobres e finalidades tidas como vis, entre métodos oficiais e práticas
informais, entre procedimentos legais e ilegais no circuito da extração compulsória.
Descartando de saída essas divisões normativas, vamos desdobrar o tema da
extração continuada de recursos humanos e materiais no bojo de relações de
dominação política; em última instância, o que importa não é o rito institucional em si
pelo qual uma requisição se produz, mas sim a interação entre vontades que ela
implica, a obediência ou o dissenso resultante dessa requisição. Qualquer liturgia
institucional, ocorra em um parlamento, em um comício ou em um templo, é imanente
à extração como relação social. Assim, toda extração é uma reivindicação contingente
sobre recursos alheios, sujeita, enquanto tal, a formas múltiplas de deserção, elisão,
evasão e contestação organizada. No ambiente neoliberal em que vivemos no Brasil,
em que ricos e proprietários capitaneiam o rechaço aos impostos que
proporcionalmente pouco pagam, é fácil esquecer que o fardo fiscal foi, ao longo da
história, uma fagulha recorrente entre os mais pobres de indignação contra a
autoridade.
O objetivo dessa seção é desenvolver o tema da extração regular para entender
como toda ordem política tece uma seletividade própria em termos de extração e gasto,
uma distribuição desigual de ônus e bônus materiais entre grupos e indivíduos, que se
movimentam em função dessa seletividade. Ao final do percurso, encadeia-se o tema
da seção anterior a partir de uma atualização da noção de “ciclo extrativo-coercitivo”
(FINER, 1975). A contestação da seletividade própria do ciclo extrativo-coercitivo é
uma chave de leitura para perceber, em um plano ainda geral, de que forma a
indignação moral contra a autoridade se efetiva como projetos alternativos de
ordenamento social. Mesmo quando não se consideram como tais, esses projetos são
contraposições à forma como uma ordem vertebra socialmente o pertencimento
ético-político e sua negação, a proteção e exceção, os bônus e os ônus da fiscalidade.
O primeiro passo é perceber que toda a extração é um redirecionamento social
de recursos, de modo que ela implica, em seu revés, uma injeção, um dispêndio, um
63
gasto do que está sendo extraído. A mesma organização política que cobra tributos,
quintos e pedágios emprega esses recursos para remunerar seus subordinados,
amortizar dívidas, organizar banquetes, contratar mercenários ou manter uma rede
oficial de escolas primárias. Utilizam esses recursos, inclusive, para sustentar um
aparato administrativo que cobre regularmente novos tributos e pedágios. Nesse ponto
inicial, precisamos pensar toda a estrutura administrativa, o funcionalismo, a política
pública, os braços armados da organização política como uma cristalização concreta
de seu “gasto” continuado, mesmo que eles não tenham sido literalmente comprados
por ela. Se um governo ocupa um prédio para torná-lo repartição administrativa, ou
expropria terras para a reforma agrária, extração e gasto passam ao largo do mercado
imobiliário, mas ocorrem igualmente. Extração e gasto são termos que, embora
opostos entre si, se explicam reciprocamente: formam o circuito material que engaja
governantes e governados.
No plano político, o intercurso entre extração e gasto implica necessariamente
favorecidos e prejudicados (OSZLAK, 2015: 196). Se uma empresa recebe um
vultoso contrato de fornecimento para o governo, se um latifundiário conta com a
cooperação de um instituto estatal de pesquisa, se um setor capitalista recebe isenções
fiscais, se o governo subsidia uma festa tradicional de uma região específica, é
razoável pensar que essa política apela, mesmo que sem pretendê-lo claramente, ao
apoio dessa empresa, desse latifundiário, das pessoas que prezam essa festa regional.
Se o financiamento dessa mesma festa é cortado, se o salário de alguns funcionários é
parcelado, se uma moratória da dívida é declarada, se os jovens são massivamente
recrutados para a guerra, é igualmente razoável pensar que essas políticas distribuem
ônus para os afetados.
Independente da forma como vem a público, os governados produzem
expectativas, juízos e interesses múltiplos sobre a forma com que se distribuem a
extração e o gasto das organizações políticas que os governam. Avaliam essa
seletividade a partir de um senso compartilhado de justiça. O que à primeira vista
poderia parecer um egoísmo coletivo de interesses adquire densidade ético-política na
medida em que se mistura com as formas pelas quais os envolvidos pensam seu lugar
em uma sociedade bem ordenada. Assim, a seletividade inerente à fiscalidade não
deve ser avaliada como se as pessoas fizessem a todo momento cálculos entre o total
que pagam e o total que recebem do governo, nem deve ser assumido um parâmetro
64
igualitário implícito contra o qual poderíamos medir desvios mais ou menos
revoltantes para as pessoas. Sob o prisma das relações de dominação em que ocorre, a
distribuição de fardos e benefícios é um movimento de coerção e consenso dentro do
circuito fiscal.
Percebe-se que toda a extração, embora seja antes de tudo uma medida de força,
faz apelos ético-políticos para obter consentimento, na forma de um imposto justo
para o interesse público, de uma contribuição emergencial diante das circunstâncias,
do recrutamento que se faz necessário. Não há extração regular que seja força
irrestrita e saque violento; ela se projeta no tempo e no espaço com alguma forma de
convencimento de sua adequação, mesmo que uma conformidade provisória, parcial,
seletiva26.
Por sua vez, o dispêndio dos recursos extraídos, ao abrir o leque de
transferências diretas e indiretas, se apresenta como terreno por excelência da
distribuição de benefícios, favores e inclusão política, da construção de consenso, do
aliciamento não-coercitivo à ordem. É um terreno aberto para a solidificação das
relações ético-políticas. Ao mesmo tempo, qualquer arranjo de gasto, dentre suas
inúmeras possibilidades, precisa manter algum aparato responsável pela extração
compulsória. Na medida em que o controle político da violência precisa ser
sustentado pelo emprego de recursos humanos, físicos e financeiros, há um substrato
coercitivo incontornável na alocação dos recursos. Em outros termos, todo o arranjo
seletivo entre extração e gasto produz dois efeitos continuados: a imposição, no
extremo armada, do projeto hegemônico de ordem sobre suas alternativas e as
condições materiais pelas quais os imaginários ético-políticos possam ser reais em
suas consequências.
A rigor, todo o tipo de classificação, regramento, interdição, símbolo ou
propaganda que se atribui genericamente ao poder de estado passa em alguma medida
por seu metabolismo fiscal, porque sem isso eles carecem de consequências reais
Citando diretamente Samuel Finer, cujo trabalho se orientou explicitamente para a relação entre
mobilização militar e estruturas políticas, encontramos que “as forças militares exigem homens,
materiais, e, uma vez deslanchada a monetarização, também dinheiro. Extraí-los foi uma tarefa
frequentemente difícil. Tornou-se mais fácil e mais genericamente aceita conforme os séculos passaram.
Onde as populações se mostraram recalcitrantes – e, eu poderia acrescentar, elas foram como um todo e
na maioria dos países extraordinariamente recalcitrantes até o século XIX, em um nível que faz a
recalcitrância popular estadunidense à Guerra do Vietnã parecer apenas um gesto – então os
governantes tiveram apenas duas rotas alternativas. Eles poderiam tentar coagir ou podiam tentar
persuadir” (FINER, 1975: 96).
26
65
sobre a vida dos governados. Quando mencionamos acima o trabalho exemplar de
Mara Loveman sobre a produção institucional de raças na América Latina, estava
implícito que essa produção se faz através de recursos, instituições e oportunidades no
aparato de estado que são dispostos como se raças existissem. Da mesma forma, a
garantia de proteção sobre determinadas instituições, práticas, pessoas ou grupos se
transpõe necessariamente para uma seletividade fiscal, caso contrário seria igualmente
uma decisão sem consequências. O que divide os titulares de proteção do vasto
terreno da indiferença ou da ameaça potencial não é uma declaração abstrata, mas um
conjunto de práticas conduzidas por agentes e agências de governo, que discernem e
incidem sobre os inimigos, os subversivos, os disfuncionais, os criminosos, os
antissociais – tratando-os como tal. Está igualmente inscrito, pois, na seletividade
fiscal da organização política as condições materiais pelas quais se almeja preservar a
ordem vigente contra suas alternativas, neutralizando ou modulando as ameaças.
Com isso, temos dispostos todos os elementos para entender a noção de ciclo
extrativo-coercitivo, que se desdobra da anterior de arranjos contingentes de proteção
mediante extorsão (ver Gráfico 1.2). Se a proteção exige recursos, ela não se limita à
mobilização desses recursos como uma dotação orçamentária; o controle político da
violência implica a capacidade de decidir sobre o que deve ser protegido de quais
ameaças. Penitenciárias, armamento, sanatórios ou espiões não são simplesmente
recursos alocados dessa forma, mas recursos que adquirem coerência relativa nos
termos da ordem vigente, que estabelece o terreno da proteção como prática seletiva
de pertencimento político. Os gastos para manter uma penitenciária não dizem que
tipo de pessoas devem ser presas, mas ninguém será preso se não houver uma
penitenciária funcionando.
Da mesma forma, se a extorsão exige o controle dos meios de coerção para
fazer valer a proteção, ela não é simplesmente uma sucção compulsória de recursos,
mas uma malha política que diferencia socialmente métodos de extração,
proporcionalidades, isenções e inclusive tolerância seletiva à evasão, conforme
circunstâncias e pretextos que sedimentam privilégios sob uma ordem vigente. Na
forma como os recursos são dispostos como gasto, essa malha se completa. Não há
sustentação política que prescinda de gastos que tentam traduzir concretamente os
apelos ético-políticos vigentes, bem como da distribuição de cargos, favores materiais
66
ou oportunidades de ganhos extraordinários que atendam a expectativas e interesses
específicos27.
Gráfico 1.2. Ciclo extrativo-coercitivo e sua seletividade prática
Fonte: Elaboração própria.
Um dos temas clássicos do estudo do Porfiriato no México é a tendência de
concentração privada da terra, como veremos em outros momentos da tese. De um
lado, a privatização da terra se respaldava em uma utopia de mercado como via de
progresso nacional. De outro, a transferência de terras para proprietários privados foi
uma das moedas com a qual o regime angariava apoio e respaldo: após a derrota dos
Yaquis em Sonora, uma única empresa recebeu nada menos que 547 mil hectares do
governo (BULMER-THOMAS, 2003: 92). Através da extração de terras ocupadas
pela Igreja, por povos indígenas e por adversários políticos, o governo podia distribuir
recompensas via mercantilização da terra enquanto reforçava o imaginário do
liberalismo oitocentista.
Com a reforma agrária no governo de Cárdenas, na década de 1930, foram
transferidas cerca de 17,8 milhões de hectares para camponeses e ejidos, criando um
sólido pilar de sustentação política pós-revolucionária no novo mundo rural
(SANTANA, 2007). Há, assim, uma reorientação forte na seletividade entre extração
e gasto decorrente de uma mudança legal, que, recalibrando a distribuição de ganhos
27
Na descrição de um país africano como um “sistema político de prebenda”, em que se produzira
uma “unificação pela corrupção”, o antropólogo Richard Joseph atribui o termo “às situações nas quais
os atores políticos concorrem em obter posições de poder no seio do Estado a fim de utilizá-las em
benefício pessoal ou dos grupos que os sustentam” (JOSEPH, apud BADIE, 1984, 191). Dissipando o
etnocentrismo, é de se perguntar qual sistema político não seria de prebenda nesse sentido.
67
entre os camponeses, oferece consequências reais para o imaginário nacional-popular
que emergira da Revolução. Indo além do exemplo mexicano, uma leitura política da
seletividade e suas reorientações não precisa assumir que todos os seus efeitos passam
pela lei e sua aplicação. Como ilustramos no caso da violência nas margens do estado,
aqui também inúmeros ilegalismos fiscais e monetários são regularmente utilizados
para colher dividendos políticos, ou contornar o dissenso consequente de uma
aplicação muito estreita das normas. O poder político se efetiva menos como
imposição uniforme de regras e diretrizes, mas na prerrogativa de gerir politicamente
os ilegalismos a partir de suas consequências previstas.
Nesse terreno, a tentativa de separar os gastos com propósitos particularistas e
universalistas é fadada a fracassar, porque, em primeiro lugar, as pessoas não usam
um véu rawlsiano para separar seus interesses de seus juízos práticos. Todo o
raciocínio que fizemos sobre o termo “ético-político” se baseava nessa suposição de
que utopias de ordem social não são separáveis de interesses, posições e estratégicas
particulares – esse é o espírito do realismo político de Gramsci (1980) a Lechner
(2013: 259-266). Além disso, as sociedades em que vivemos são suficientemente
complexas para que nenhuma política pública produza unicamente o efeito para o qual
o foi projetada.
Suponha-se que uma elite política reformista lance, por pura convicção no
progresso da nação, um programa para universalizar a alfabetização. Por sua própria
operação, ele pode vir a beneficiar certos setores industriais, empresas de
comunicação, forças políticas oposicionistas, isso sem mencionar o grupo de
educadores mobilizado para a tarefa e as pessoas que efetivamente aprenderão a ler e
escrever. Sem prevê-lo, pode eventualmente contrariar certas lideranças rurais ou
religiosas que se apoiam sobre o analfabetismo popular, ou que veem com maus olhos
a presença desses educadores em suas comunidades. Sem que se aperceba, ademais,
esse programa de alfabetização concorre para o fortalecimento da língua do estado
como língua única, destravando o caminho para uma uniformidade cultural que não
fora intencionada pelos reformadores. Mesmo o mais idealista deles se veria diante
dessas
injunções
políticas.
Por
isso
a
seletividade
inerente
ao
ciclo
extrativo-coercitivo é acompanhada por alguma forma de cálculo do dissenso, uma
aproximação dos resultados esperados de uma decisão política no bojo da interação
entre governantes e governados.
68
Dessa forma, o ciclo extrativo-coercitivo é entendido como um arranjo de
proteção mediante extorsão refratado por uma seletividade política, com que essa
ordem e suas elites aspiram sua própria preservação. Essa preservação significa a
reposição das condições de dominação política. O ciclo extrativo-coercitivo é um
intercurso contingente em que proteção e exceção, bônus e ônus fiscais são costurados
ao tecido social, são discriminados em práticas concretas por uma organização
política que efetivamente governa. Através dessa seletividade política, é barganhada a
reprodução da ordem no tempo e no espaço, pelo controle, modulação ou repressão do
dissenso. Ora, toda a seletividade política almeja dissolver-se como natural, devida,
sagrada, necessária ou correta para o bem de todos. E é nos termos em que essa
reivindicação é posta que ela pode ser contestada.
Para concatenar os pontos do raciocínio, pensemos por um momento em uma
questão clássica de teoria crítica do estado: a garantia pelo estado da propriedade
privada dos meios de produção. De saída, ela implica uma seletividade bastante clara
do ponto de vista de organização da coerção, colocando contratos, heranças e
propriedades no terreno da proteção devida, enquanto que o dispêndio de recursos
para fazê-lo, no campo do necessário e do desejável. A regulação de práticas sociais
como se a propriedade fosse de fato inviolável depende do trabalho acumulado e
cotidiano não só de polícias e presídios, mas de cartórios, tribunais, arquivistas,
peritos e oficiais de justiça que demandam recursos regulares.
Ao se firmar esse terreno ético-político em que a propriedade é um direito
inviolável dos cidadãos, abre-se a margem de decisão sobre a exceção, de uma gestão
seletiva dos ilegalismos. Isso porque, mesmo em uma sociedade capitalista, o direito à
propriedade privada nunca é um princípio universal que se justifica em teoria. Seja
pela despossessão de uma etnia minoritária ou de uma religião perseguida, pela
grilagem de terras indígenas, pelo desmanche da sede de um partido de oposição, pelo
confisco de um trabalhador informal, pelo saque em território inimigo ou pela
expropriação de uma empresa específica, o princípio abstrato é modulado de forma
circunstancial sem que isso seja propriamente uma anomalia.
Como o apelo ético-político foi firmado não por uma declaração de princípios,
mas por uma estrutura de poder e governo, ele porta consigo o poder de decidir sobre
sua própria suspensão, manobrando entre a inclusão e a exclusão. Em uma sociedade
capitalista o direito à propriedade é transgredido a todo o momento, inclusive por
69
agentes de estado, sem que isso produza uma reação de classe por parte dos
proprietários dos meios de produção28. Por outro lado, a possibilidade dessa reação se
efetivar inscreve um enorme poder dissuasório no cálculo do dissenso de quaisquer
decisões políticas.
Ao controlar as alavancas do investimento e do crédito, dispor de conexões
políticas e recursos materiais desproporcionais, a classe proprietária tende a dispor de
meios para tornar impensável politicamente qualquer iniciativa nessa direção, ou que
sequer possa ser percebida como tal. “O que importa não é só que certas decisões não
são tomadas”, disse um importante sociólogo contemporâneo, “mas que elas não são
sequer consideradas” (GIDDENS, 1989: 10). Salvo por revoluções, guerras ou outros
momentos críticos de suspensão da ordem, a hipótese de uma contraofensiva de classe
permanece latente como resguardo da propriedade capitalista, como uma interdição da
disputa política, como delimitação tácita do possível29.
Portanto, em seu cotidiano institucional, sociedades capitalistas alimentam
assimetrias políticas tais que não só tornam proibitivos desafios ao caráter de classe
da propriedade, mas também dispõem recompensas de diversas naturezas à propulsão
da acumulação capitalista, à aliança particularista com capitalistas e financistas, ao
disciplinamento da força de trabalho (BLOCK, 1987: caps. 3 e 5). No próximo
capítulo, rediscutiremos as condições dessa sinergia à luz da sociologia histórica, mais
especificamente da teoria das transições hegemônicas mundiais.
Por ora, é
importante perceber que o entendimento desse terreno de reciprocidades entre
capitalistas e estadistas pode ser construído sem que recorramos à presença ou não de
A rigor, o argumento de Marx permite inferir que a exploração do trabalho é uma transferência
não-paga de propriedade do trabalhador para o capitalista. O funcionamento do capitalismo exige que
essa violação da propriedade do trabalhador sobre os frutos de seu trabalho seja reconhecida
legalmente. Se isso é verdade, não há como o estado capitalista ser indistintamente o garantidor da
propriedade privada, mas deve garantir uma propriedade de classe que é a dos meios de produção, em
uma desconexão entre produção e apropriação do qual depende a acumulação.
28
Ora, esse argumento não deve ser reduzido ao absurdo de que estadistas são implicitamente contra a
propriedade privada em qualquer circunstância, mas simplesmente não podem levar a cabo seus
desígnios por prudência. Que haja uma ampla promiscuidade na relação entre estadistas e capitalistas
ao longo da história é algo relativamente banal, de modo que explicar sua cooperação nesses casos é
quase irrelevante. O ponto aqui é que não pode extrapolar disso uma identidade entre estadistas e
capitalistas em sociedades capitalistas, nem que os segundos dependam de posições da estrutura de
estado para fazer vale seus interesses. É justamente para lidar com casos em que há fricção entre
estadistas (mesmo que não sejam propriamente anticapitalistas) e capitalistas (ou alguma fração de
classe específica) que precisamos conservar a contingência imanente à relação política. Assim, o
raciocínio simplesmente assume que esta, como qualquer outra delimitação de possibilidades, não está
fora da disputa política como uma cláusula pétrea; ao contrário, é o caráter da disputa, ou melhor, sua
assimetria, que lhe confere essa aura de inviolabilidade.
29
70
capitalistas no aparato de governo para dirigi-lo a seus fins, nem que precisemos
abdicar da contingência para recorrer a imperativos funcionais, determinações
estruturais ou uma essência política pré-formada. Como observamos desde o princípio,
qualquer ordem política não é formada por decisões monocráticas do poder instituído,
mas pelas injunções da interação continuada entre governantes e governados.
Entender a ordem pelo prisma de seu contrário é perceber que a hipótese de
dissidência e contestação que não se efetiva, não só por parte dos subalternos mas
também por grupos privilegiados, molda e circunscreve os limites da rotina política.
Por outro lado, a naturalização do privilégio de classe em sociedades
capitalistas foi de fato contestada historicamente por movimentos sociais
antissistêmicos, lastreados por reivindicações igualitárias de justiça e pelo rechaço à
exploração do trabalho humano. De um lado, essa contestação se efetiva como lutas
concretas, com uso de repertórios específicos como greves, marchas ou guerrilhas,
com pautas e resultados variáveis ao contexto. De outro, ela se apresenta como
projetos subalternos de ordenamento social que rejeitam as relações ético-políticas em
que a defesa da propriedade se sustenta. Ao fazê-lo, necessariamente contestam
também a seletividade do ciclo extrativo-coercitivo: a violência e a vigilância
sistemática contra sindicatos, sem teto, comunistas, anarquistas e bairros pobres; o
recrutamento de trabalhadores para combater na guerra; os subsídios, juros e contratos
com que a fiscalidade reproduz privilégios de classe.
Na própria contestação à seletividade vigente, emergem formulações
alternativas fora da ordem: a hipótese de que, por exemplo, a violência organizada
seja empregada para expropriar capitalistas ou latifundiários, ou que seja subordinada
a conselhos de bairro. No movimento pelo qual a seletividade vigente é questionada, a
reivindicação coletiva de alternativas pressiona os horizontes de possibilidade que a
vigência da ordem tende a naturalizar e ossificar, disputa os limites da política, das
práticas, dos atores e das palavras com que ela é feita.
Para além da política da propriedade privada, essa é um quadro mais geral da
agonística da ordem política. Ao se disputar o conteúdo e a extensão dos imaginários
ético-políticos (quem é a nação, o que significa ser cidadão, como governar
devidamente segundo a palavra divina, etc.), há um impacto carregado à seletividade
do ciclo extrativo-coercitivo, sobre quem é titular de proteção contra quem é posto no
terreno da indiferença ou da ameaça potencial, sobre quem arca sobremaneira com o
71
fardo fiscal, sobre como os recursos são ou devem ser direcionados. Pode-se também
observar ao inverso: toda a disputa sobre a seletividade do ciclo fiscal e coercitivo
(pelo direito à aposentadoria, pelo fim da guerra, por políticas ambientais
consequentes, pelo fim de perseguições religiosas ou culturais, etc.) implica uma
disputa de horizontes ético-políticos sobre o pertencimento e sua negação, sobre os
termos de uma sociedade bem ordenada.
O vértice que une os dois pontos é a mobilização concreta de subjetividades
coletivas diante de oportunidades políticas históricas, com sentidos alternativos do
que é necessário, justo e bom. Por esses contrapontos práticos, dizemos que o
horizonte de possibilidades se dilata, mais ou menos, com relação à rotina da ordem
política vigente, com sua semântica estabelecida, sua arena e seus protagonistas.
Nesse sentido José Maurício Domingues (1999) trabalha o conceito de “criatividade
social” em sua teoria das subjetividades coletivas, ou Norbert Lechner (2013: 209-230)
resgata o tema das utopias, ressoando Mannheim e Polanyi. A Revolução Haitiana era
impossível até o momento em que aconteceu, diz-nos Trouillot (1995), porque
ninguém até então havia concebido que escravos negros pudessem conquistar eles
próprios sua liberdade. O fato de ela ter triunfado transformou o horizonte de
possibilidades históricas da época30. Se uma ordem política pretende equivaler o
existente ao possível, sua contestação resiste a essa redução, mesmo que não o
formule explicitamente ou se perceba como tal.
Atualizado com relação ao trabalho de Samuel Finer (1975), o ciclo
extrativo-coercitivo, nesses termos, é um mecanismo contingente pelo qual uma
ordem política aspira sua continuidade no tempo e no espaço, assentando bases
sociais pelas quais um estado mobiliza regularmente capital e coerção (TILLY, 1990).
Essa mobilização envolve conflitos e compromissos, revoltas e aliciamentos, já que
toda a seletividade prática é entremeada com reivindicações ético-políticas de
pertencimento, justiça e bom governo, assim como linhas decisórias sobre a exceção,
a desigualdade e a necessidade. Do ponto de vista conceitual, esse movimento
30
Em seu combate contra a filosofia de Althusser, o historiador E. P. Thompson demarcou a
centralidade da experiência em confrontar esquemas vigentes de pensamento, contra o que se blindava
o estruturalismo althusseriano: “Pessoas estão famintas: seus sobreviventes têm novos modos de pensar
em relação ao mercado. Pessoas são presas: na prisão, pensam de modo diverso sobre as leis. Frente a
essas experiências gerais, velhos sistemas conceptuais podem desmoronar e novas problemáticas
podem insistir em impor sua presença” (THOMPSON, 1981: 17)
72
constitui a construção da ordem política como projeção contingente de relações de
dominação no tempo e no espaço.
73
2. O SISTEMA MUNDIAL VISTO DA PERIFERIA
"Como pode ver, é uma história muito comprida e, se eu tentar explicá-la em detalhes,
você vai se entediar. Assim, em linhas gerais, direi que tudo começou com o
desenvolvimento da construção naval na Europa, com a utilização da bússola –
descoberta pelos chineses – e com o aprimoramento da arte da navegação. Tudo isso
permitiu que os navegadores europeus (a começar pelos genoveses, venezianos,
florentinos e portugueses) descobrissem novas rotas marítimas que acabaram por dar
origem ao comércio global. Comerciantes portugueses, holandeses, britânicos e
espanhóis carregavam os navios com lã da Inglaterra e da Escócia, que trocavam por
espadas japonesas em Yokohama. Depois voltavam para o Ocidente, mas antes
faziam escala em Bombaim, na Índia, onde trocavam as espadas pelas especiarias,
que levavam para a Europa a fim de trocar por... quantidades de lã muito superiores
às que tinham levado para o Oriente, E assim recomeçava o ciclo."31
Yanis Varoufakis
Se pensamos na projeção de relações de dominação no tempo e no espaço,
precisamos necessariamente lidar com um problema de escalas espaço-temporais.
Sabemos do capítulo anterior que uma ordem política se reitera através da
acomodação circunstancial de interesses e aspirações ético-políticas em um projeto
hegemônico de ordenamento social, barganhando e sufocando o dissenso efetivo ou
esperado. Esse ordenamento é promovido por uma organização política, que faz girar
continuamente um ciclo extrativo-coercitivo com os diferentes segmentos da
sociedade que governa. Esse quadro não nos deve induzir a equiparar necessariamente
a escala dos fenômenos políticos à redoma do estado nacional, procedimento que
ficou conhecido como “nacionalismo metodológico”32.
O objetivo do capítulo é desbravar a premissa de que há uma escala mais ampla
que os estados individuais, porque estados se formam e se destroem no sistema em
que interagem regularmente. A esse sistema coexiste uma malha de relações
econômicas que produzem a vida material nesse espaço alargado, o que Braudel
chamou de “economia mundo”. A interação entre uma economia-mundo e o sistema
de estados delimitam as dinâmicas de um sistema mundial (ARRIGHI, 2009;
31
Extraído de Varoufakis (2013: 47).
Para um bom panorama sobre a origem do termo, ver Chernilo (2007: cap. 1). Para situar a crítica ao
nacionalismo metodológico: Agnew (1998: introdução e cap. 3), Chernilo (2007: cap. 2), McMichael
(1992) e Wallerstein (2000: cap. 5-7), entre outros.
32
74
BRAUDEL, 1972; KARATANI, 2014; QUIJANO & WALLERSTEIN, 1992;
WALLERSTEIN, 1974).
A leitura clássica considera que viveríamos atualmente no único sistema
mundial da história, tendo se originado na Europa Ocidental em algum momento entre
os séculos XV e XVI, e se espalhado posteriormente para o resto do mundo. Por essa
singularidade, Immanuel Wallerstein (1974) comparava seu método de análise com a
astronomia, que não pode replicar, isolar e comparar fenômenos, mas sim intuir a
partir de certas regularidades em um único sistema integrado. Especialmente após o
trabalho seminal de Janet Abu-Lughod (1989), que estudou a formação e
desintegração de um sistema mundial policêntrico na Eurásia do século XIII, essa
crença começou a ser matizada. Hoje é mais razoável advogar que o atual sistema
mundial, baseado em uma economia mundial capitalista e um sistema competitivo de
estados soberanos, é uma das configurações possível do termo, a que chamamos
“moderno” sistema mundial.
Existem então duas controvérsias imediatas: uma ligada à origem e outra ao
caráter desse sistema. No saber corrente, a origem do sistema remonta à crise do
feudalismo na Europa, à erosão das autoridades supranacionais do Império Germânico
e da Igreja Romana e à pacificação das guerras religiosas a partir do princípio de
soberania exclusiva em Vestefália (1648)33. Conforme o trabalho assalariado começa
a despontar na agricultura voltada ao mercado, e a política europeia se organiza pela
competição anárquica entre estados independentes, cria-se as instituições básicas do
sistema que posteriormente se globalizou. Com isso, subentende-se também os temas
centrais à dinâmica do sistema: de um lado, a soberania e a anarquia competitiva,
entendida como ausência de qualquer poder sobreposto às partes; de outro, a
concorrência intercapitalista no mercado mundial e o conflito de classes pelo
excedente34.
Nessa chave, não só o sistema amadurece institucionalmente antes na Europa
como sua formação responde a causalidades internas ao continente; “formação” e
“expansão” no moderno sistema mundial são processos separados temporal e
Para os propósitos deste texto, é secundária a controvérsia sobre o mito fundacional criado ao redor
do Tratado de Vestefália de 1648, que imputa significados sabidamente anacrônicos ao episódio.
33
Na passagem final, recuperada por Arrighi (2009: xi), de um dos mais incisivos livros de Charles
Tilly, sustenta-se que há “dois processos-chave interdependentes da era moderna: a criação de um
sistema de estados nacionais e a formação de um sistema capitalista mundial” (TILLY, 1984: 147).
34
75
analiticamente. Trata-se claramente de um quadro eurocêntrico em que o resto do
mundo recebe e se adapta à modernidade que provem daquela estreita península da
Eurásia. Constatá-lo é trivial; a questão mais desafiadora é em que sentido se altera,
pela crítica ao eurocentrismo, nosso entendimento sobre a origem e as dinâmicas do
sistema. Em outros termos, dizer que a modernidade na América Latina tem origem
colonial é algo bastante óbvio; a pergunta é o que isso efetivamente interfere em nossa
compreensão sobre a modernidade mesma.
Para quaisquer fins teóricos, o quadro antes esboçado apaga o colonialismo da
história35, subestimado como uma via transitória pela qual a dinâmica do sistema
interestatal capitalista pôde se instituir no resto do mundo não-europeu, ou como um
elemento peculiar da história dos países colonizados. A crítica ao “nacionalismo
metodológico” precisa nos levar, assim, à crítica do eurocentrismo ou da
colonialidade. Com efeito, essa dupla crítica já desbravou um vasto terreno na
rediscussão sobre a constituição do sistema mundial moderno, contrapondo a
premissa do desenvolvimento endógeno, singular e difusionista da sociedade europeia
ocidental36.
Um tema candente da sociologia histórica passou a ser então as conexões entre
histórias de sujeição e espoliação colonial na expansão ultramarina europeia e a
produção das condições de possibilidade dessa mesma expansão. Em outras palavras,
interroga-se de diversas maneiras sobre “o papel que o ‘resto’ [rest] cumpriu na
própria ideia de ‘Ocidente’ [West]” como epicentro desenvolvido, racional e moderno
(HALL, 1995: 279). Desse ponto de vista, os resultados da escravidão atlântica, do
comércio exclusivo, das guerras e da evangelização no Atlântico e no Índico se
envolvem reciprocamente ao que se atribuía como causas endógenas da ascensão
europeia, como o processo de monetarização da economia, o salto qualitativo da
competição interestatal, as revoluções “industriosa” e industrial, a estabilidade de um
sistema internacional de crédito, bem como as leituras de mundo, proselitistas,
Christopher Chase-Dunn, por exemplo, descreve um “sistema de estados desigualmente poderosos
em competição” (CHASE-DUNN, 1981: 32) e Agustín Cueva, uma “‘cadeia’ composta por múltiplas
entidades nacionais” (CUEVA, 1980: 30). Em ambas as definições, aqui simplesmente usadas como
exemplo, é claro o aspecto interativo do sistema interestatal; contudo, a interação dada por estados
soberanos ou nacionais apaga qualquer alusão a sua dimensão imperial (BHAMBRA, 2016).
35
Seria possível rastrear essas críticas por todo o século XX, mas congregamos aqui algumas das
referências importantes no debate atual (AMIN, 1988; ARRIGHI, 2008; BHAMBRA, 2007; 2014;
BLAUT, 1993; DUSSEL, 1992; GOLDSTONE, 1987; 1998b; GOODY, 2006; QUIJANO, 2000;
POMERANZ, 2000; WALLERSTEIN, 1997).
36
76
orientalistas, iluministas, racistas, evolucionistas, que autorreferenciavam esse poder
mundial sobre os povos.
Para os objetivos dessa tese, é menos importante a controvérsia sobre os
processos da formação empírica do sistema mundial moderno do que o são suas
dinâmicas de longo prazo, assumindo que “o desenvolvimento internacional ocorre
dentro de uma estrutura colonial” (CASANOVA: 2006: 191). Se pensamos o sistema
mundial pelo prisma do colonialismo, como exatamente isso altera nossa leitura sobre
a competição interestatal e acumulação capitalista? Ou ainda, de que forma a
competição interestatal e a acumulação capitalista permitem explicar a extroversão
violenta de impérios europeus? Nessa direção, para entender a formação de estados na
América Latina, é preciso reconstituir o sistema do qual estes fazem parte desde as
suas periferias, admitindo que isso permita iluminar aspectos que permanecem
entreditos na escala unicamente europeia. Entender essa escala mundial da formação
de estados modernos é um passo para conectar a sociologia política da dominação
contingente,
que
antes
esboçamos
em
termos
gerais,
com
o
debate
histórico-sociológico sobre estados nacionais na Europa Ocidental e fora dela, que os
atrairá no próximo capítulo.
Na primeira seção do capítulo, o foco será o sistema competitivo de estados
soberanos, que propulsiona a reprodução ampliada dos ciclos extrativo-coercitivos
como uma “reação em cadeia”. Em primeiro lugar, está posto que o princípio da
soberania moderna esmaece, sob a igualdade abstrata, assimetrias de poder que se
plasmam como uma hierarquia informal. Ademais, a experiência colonial põe em
destaque a negação de soberania, ou seja, a circunscrição ou suspensão do princípio.
Conectando os dois aspectos, a soberania se converte em uma reivindicação
contingente que se resolve, como afirmação ou negação, pelas injunções da hierarquia
informal do sistema. Mesmo quando soberanos, países periféricos e pós-coloniais
convivem com a possibilidade de violação dessa soberania pela imposição vertical do
sistema. Essa possibilidade, mesmo quando não se efetiva, está inscrita no cálculo do
dissenso dessas elites políticas, isto é, sobre a projeção de consequências que pesa
sobre uma decisão estratégica, encurtando ou alargando o horizonte de possíveis.
Na segunda seção, observamos a economia mundial capitalista desde as
margens, sinalizando como os arranjos de exploração de força de trabalho através do
mercado são rodeados, acolchoados e impulsionados por formas sociais outras de
77
trabalho e acumulação de excedente. Este foi um tema clássico de toda a economia
política crítica no Terceiro Mundo durante o século XX. Organiza-se sua exposição
desta forma: de um lado, partimos do trabalho coagido sob o colonialismo para
conectar outras formas de violação do valor da força de trabalho, assalariado ou não.
De outro, no estrato superior, posiciona-se as possibilidades de entender o capitalismo
como um superlativo, como um “contramercado” que institui e amplia oportunidades
para lucros extraordinários pela possibilidade de burlar, alterar ou ignorar os termos
correntes da competição no mercado. Seja do ponto de vista de estadistas interessados
na reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, seja do ponto de vista de
capitalistas em busca de lucros extraordinários, o colonialismo serve como ponto
privilegiado de observação das sinergias que se solidificam entre capital e coerção na
ponta de lança do sistema mundial. Colocando essa ponta de lança em perspectiva
histórica, a terceira seção discute a teoria das transições hegemônicas como ciclos
longos no moderno sistema mundial, como ciclos sistêmicos de acumulação. Isso nos
servirá futuramente para enquadrar o “longo século XIX” como recorte empírico da
pesquisa.
As análises sobre a América Latina recorrem frequentemente a termos de viés
estrutural ou sistêmico, como “periférico”, “dependente”, “colonial” ou com variações
da noção de desenvolvimento (“sub”, “em”, “tardio”). Mesmo no alvorecer das
historiografias nacionalistas no século XIX, a intelectualidade da região posicionava o
“nacional” em um quadro mais amplo, à época dominado pela marcha da civilização
ocidental37. De certa forma, o nacionalismo metodológico foi precocemente contido
por esse sentido geral de que, para entender essas sociedades, são importantes
Alguns historiadores já mostraram como a euforia com a nova historiografia “global”, “conectada”
ou “transnacional” desmerece o pensamento latino-americano precedente, que, ao contrário da Europa
e dos Estados Unidos, nunca enveredou convictamente na senda da fabricação nacionalista de
mitologia fundadora. A historiografia latino-americana foi, em alguma medida, permeável às conexões
em escala mundial, mas a nova historiografia global tem relativamente pouco interesse sobre a América
Latina se comparado com a Eurásia (ADELMAN, 2005; PRADO, 2012; MARQUESE & PIMENTA,
2015; WEINSTEIN, 2013). Como apontou João Marcelo Maia (2013), o mesmo ocorre na sociologia
“pós-colonial” anglo-saxônica.
37
78
explicações e inspirações que transcendem suas fronteiras oficiais38. Por outro lado,
existe o risco de reproduzir certos vícios herdados do pensamento oitocentista: usar o
“colonial”, o “dependente” ou o “tardio” como forma de lidar com o que discrepa
com relação à versão original, sem levar a sério o truísmo de que para que haja
colonial precisa haver impérios, ou se há periferias, por definição, elas precisam estar
em interação com os centros no sistema.
Seguindo o espírito da sociologia histórica contemporânea, o desafio do
capítulo
é
refazer
as
conexões
recíprocas
dessas
histórias
para
acessar
conceitualmente as dinâmicas desiguais desse sistema mundial, que produziu tanto a
soberania como o colonialismo, tanto a escravidão como o assalariamento. Para não
vulgarizar as alusões ao periférico ou o pós-colonial, precisamos de atenção com sua
posição histórica em relação a essa escala abrangente que precisa ser explicada, e não
simplesmente presumida. Simultaneamente, ao considerar os processos desiguais e
hierárquicos que moldam essa escala mundial, evitamos que a crítica ao
“nacionalismo metodológico” seja capturada por um cosmopolitismo inócuo, que já
foi ironicamente apelidado de uma “consciência de classe do passageiro frequente”
(CALHOUN, 2002)
2.1. Anarquia e hierarquia: a soberania como hipocrisia organizada
Em um texto hoje clássico, o historiador Gabriel Ardant (1975), especialista em
história das finanças públicas na França, reproduz um diálogo entre o rei Luís XII
(1498-1515) e um condottiere italiano à época da segunda invasão francesa da
península. Preparando sua investida contra Milão em 1499, o rei inquire sobre o que
seria necessário para seu sucesso militar, ao que Trivulce responde: “três coisas são
necessárias: dinheiro, dinheiro e ainda mais dinheiro” (ARDANT, 1975: 164). Este é
um dos gatilhos com que o autor desenvolve o funcionamento do sistema fiscal como
um “transformador” da infraestrutura econômica em estruturas políticas, uma tese de
No primeiro volume de sua quadrilogia sobre o sistema mundial moderno, Wallerstein (1974)
explica que seu ponto de partida para a elaboração da teoria foi a análise da política na África antes e
após a independência, debatendo-se na época com as referências da modernização. Seu depoimento é
eloquente do léxico parsoniano que dá luz à perspectiva: “Foi nesse momento que eu abandonei de
todo a ideia de usar como unidade de análise tanto o estado soberano como aquele conceito ainda mais
vago, a sociedade nacional. Eu decidi que nenhum deles era um sistema social e que só se podia falar
de mudança social em sistemas sociais. O único sistema social nesse quadro era o sistema-mundo”
(WALLERSTEIN, 1974: 07).
38
79
certa forma assimilada ao capítulo anterior. Dito genericamente, o sistema interestatal
cria pressões competitivas que impulsionam uma reprodução ampliada do ciclo
extrativo-coercitivo.
Nesse sentido, a autoconstrução de estados opera como uma violenta “reação
em cadeia” em escala sistêmica (HOLSTI, 2004: 44), em que guerra e diplomacia se
encadeiam ao desequilíbrio dinâmico produzido pelo “dilema da segurança”39.
Embora isso não seja sempre evidente, o intercurso entre governantes e governados é
inserido na competição entre governantes de diferentes organizações independentes.
No sentido mais imediato, isso se aplica ao que se disse no capítulo 1 sobre a proteção
e a extração. Mas a competição interestatal é uma constante mesmo quando não se
manifesta empiricamente como guerra ou barganhas diplomáticas. Seus efeitos
envolvem e contagiam a expediência com que elites políticas conduzem seus
impasses, dos conflitos industriais à educação oficial. É possível detectar as
dimensões empíricas dessas relações (pense-se, por exemplo, no papel da
alfabetização popular para o desempenho militar ou para a competitividade
econômica), mas neste momento nos interessa sobretudo sua forma conceitual.
Nesse terreno, o emprego da violência para dobrar a vontade de um estado
inimigo não é substantivamente diferente de seu emprego como repressão policial
para dobrar a vontade da oposição de grupos dissidentes, ou de impor determinados
parâmetros de conduta sob a ameaça da coerção. Isso se depreende dos aforismas
espelhados de Clausewitz e Foucault40 sobre a guerra e a política. A despeito das
diferenças observáveis, a coerção em ambos os casos se situa em uma relação política
entre vontades coletivas, sujeita, pois, à incerteza, ao erro e às consequências não
O dilema da segurança é uma expressão de John Herz que resume o mecanismo pelo qual a
incerteza induz consequências não-intencionadas na segurança internacional. Mais especificamente, a
preocupação de um estado com sua própria segurança o leva a investir em defesa, mas esse gasto
militar não pode ser claramente separado de seus empregos de ataque. A incerteza produz insegurança
nos demais estados do sistema, que são induzidos a investir em sua própria defesa, gerando o mesmo
receio com relação a suas intenções. Assim, o incremento dos gastos individuais para a segurança
produz insegurança generalizada.
39
O famoso aforisma de Carl von Clausewitz diz que a guerra é a continuação da política por outros
meios, enquanto que a inversão proposta por Michel Foucault, comentando Clausewitz, diz que a
política é a continuação da guerra por outros meios (FOUCAULT, 2005: 54-55). É também digno de
nota, a esse respeito, um comentário epistolar de Stálin sobre as notas de Lênin a respeito de
Clausewitz. Argumentando que o líder bolchevique não estava estritamente interessado nas questões
militares da obra do general alemão, ele diz que “Lênin ponderava a Clausewitz antes de tudo porque,
não sendo este marxista, (...) confirmava em seus trabalhos a conhecida tese marxista segundo a qual
entre a guerra e a política existe um enlace direto, que a política engendra a guerra e que a guerra é o
prolongamento da política por meios violentos” (STALIN, 1979: 104; grifo adicionado).
40
80
intencionadas da ação. Na metáfora clausewitziana, aliás, a atividade militar não pode
ser rigorosamente modelada porque em sua execução uma “névoa da guerra” torna
opacas aos decisores as exatas condições da disputa e as consequências precisas de
suas iniciativas. A guerra pertence à política do medo que a coerção organiza; e todo o
uso da coerção é interativo como a guerra, e portanto em alguma medida estratégico.
Assim, independente da escala, a violência de estado implica uma adequação
tentativa de meios e fins, em que a distinção de uma ameaça real ou fabricada carrega
consigo uma mobilização correspondente do ciclo extrativo-coercitivo para
neutralizá-la. Seja para combater uma invasão militar inimiga, o narcotráfico, os
planos secretos da Internacional ou uma onda de greves, os estados ativam alguma
logística específica de polícias, soldados, espiões, equipamentos, suprimentos, para
não falar da rede de órgãos de bastidores de sua atuação. Há uma reciprocidade entre
a decisão subjetiva sobre a ameaça potencial e o direcionamento objetivo de capital e
coerção, que estabelece consequências reais para essa decisão.
Não há uma peculiaridade da guerra nesse aspecto, inclusive porque ela sequer
precisa ser entendida em um binômio rígido de guerra e paz. Os estudos
historicamente orientados preferem matizá-lo em um continuum de empregos táticos,
dos mais aos menos incisivos, da força armada para atingir determinado objetivo
político (TILLY, 1985; MARES, 2001). Para além das guerras deflagradas há formas
muito mais veladas e sutis pelas quais se faz valer o poder das armas em uma
interação estratégica. Igualmente, todo o emprego da força abre os flancos de sua
contestação: a contestação do limite prático traçado entre ameaça e proteção, bem
como a disputa sobre os fardos e ganhos da mobilização extrativo-coercitiva. A
ativação da força armada para qualquer propósito impõe um cálculo do dissenso
àqueles que a empregam, com consequências não-intencionais. Se o uso da força está
subordinado à política, a névoa da incerteza não se dissipa totalmente quando não há
guerra.
Dessa forma, um primeiro aspecto importante é que a competição militar entre
estados não está separada da dinâmica contingente da sociologia política que antes
esboçamos, por mais que seja impraticável reconstituir empiricamente todos os
infinitesimais movimentos que subjazem a essa “reação em cadeia” mundial. Se a
ordem política é a projeção espaço-temporal de relações de dominação, o sistema
interestatal é o intercurso, com maior ou menor atrito, entre reivindicações
81
concorrentes de exercer a autoridade política. Se a violência organizada é entendida
não por parâmetros abstratos, mas nos termos da ordem política vigente, então
ameaças, sanções, a barganha militarizada ou guerras formam parte dos recursos
estratégicos para fazer prevalecer uma ordem concreta sobre suas alternativas
imediatas.
Para tal é irrelevante se a guerra é fabricada para angariar adesão popular,
perseguir minorias vulneráveis ou alimentar a indústria bélica; ela continua sendo
uma aposta, sempre contingente em seus resultados, de reforçar a sustentação política
de quem governa. O controle político da violência existe enquanto possibilidade de
discriminar, dissuadir e suprimir reivindicações alternativas de governo, sejam elas
postas por grupos de oposição ou por estados rivais. Uma derrota militar pode
disparar a ruptura da ordem política tanto quanto uma revolução social desde baixo, e
não raro ambos os fenômenos se entrelaçam (SKOCPOL, 1979).
A segunda ideia importante é que, neste vasto campo do confronto político
contingente em que guerras e revoluções acontecem, o que está em jogo é a
reprodução e ruptura do ciclo extrativo-coercitivo, bem como suas perspectivas
relativas de ampliação ou de contração no tempo e no espaço. Quando Theda
Skocpol (1979) comparou as revoluções agrárias na França, na Rússia e na China, o
triunfo revolucionário se mostrou condicionado ao desmoronamento do aparato
coercitivo e fiscal do estado, para o que a pressão militar internacional foi decisiva.
Mesmo quando não atinge o limiar crítico da guerra e da revolução, a competição
interestatal é parte central das expansões e travamentos do circuito entre extração e
gasto, entre proteção e ameaça, que cada organização política faz girar no tempo e no
espaço. As guerras têm o potencial de abrir oportunidades fiscais não só quando os
vitoriosos passam a controlar poços de petróleo, regiões industriais ou minas de prata,
mas também pelas exigências postas à sociedade em condições emergenciais. A
competição interestatal, mais do que o militarismo indiscriminado, é uma competição
pela reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, com a qual a organização
política pode dispor de maiores recursos para manobrar coerção e consenso. A
ampliação do ciclo reduz, nesse sentido, as pressões sociais sobre sua seletividade,
enquanto que sua contração tende a acentuá-las.
Isso dito, essa competição transcorre em condições de óbvias desigualdades. As
bases sociais de mobilização de coerção e capital, ou “infraestrutura econômica” para
82
Ardant (1975), constituem os esteios logísticos sobre os quais se forma uma
hierarquia informal. A hierarquia é informal na medida em que as assimetrias entre
estados individuais são negadas pelo princípio normativo de que eles são iguais e
soberanos, o que cria uma contradição. A oposição convencional entre hierarquia e
anarquia em Relações Internacionais esforça-se por diferenciá-las com base no
princípio aristotélico do “terceiro excluído”, o que mal representa tanto o “interno”
hierárquico como o “internacional” anárquico (WALTZ, 1979). Do ponto de vista de
quem deve obedecê-los, um acordo entre grandes potências é provocativamente
similar a um acordo entre elites políticas que dispõem de polícia e exército para
impô-lo.
Dado que esse sistema existe, nenhum estado é ou pode ser soberano enquanto
tal. É a partir do momento em que, em uma relação concreta, atores se comportam
como se essa soberania fosse real que ela se torna real em suas consequências. Dessa
forma, um ponto crucial para entendermos o funcionamento do sistema interestatal é
que ele cinde práticas concretas de afirmação e de negação do princípio da soberania.
Em outras palavras, entre a reivindicação e a efetivação da soberania há um hiato que
depende de práticas que a efetivem realmente; logo, as práticas que suspendem ou
ultrapassam essa regulação abstrata, por contraste, são práticas orientadas a negá-la e
circunscrevê-la. É nestas últimas que aflora mais claramente a hierarquia informal do
sistema.
A fundação mitológica do sistema interestatal em Vestefália (1648), para além
das inúmeras imprecisões históricas, tem o efeito letal de desconectá-la da linhagem
dos tratados e bulas coloniais, como Tordesilhas (1494). De fato, os reinos ibéricos já
eram a ponta de lança da expansão europeia no Atlântico, mas, por uma sucessão de
acordos, foram atribuídos a eles domínios formais divididos por um meridiano,
ficando excluídas as terras controladas por cristãos. Essa titulação não simplesmente
ignorava os povos vivendo no que hoje conhecemos por América, África e Ásia, mas
os subsumia deliberadamente ao poder concedido aos reinos de Portugal e Espanha,
então responsáveis por sua evangelização. Aqui reside um aspecto inventivo
fundamental: institui-se uma prerrogativa soberana contra os povos, como criação de
direito pelo colonialismo moderno. O símbolo mais forte disso talvez seja o infame
83
“requerimento” espanhol, avalizado em última instância por Jesus Cristo41. Aos povos
americanos era dada a escolha entre aceitar a suserania ao rei ou morrer pela guerra.
Cria-se o poder de governar sobre um espaço subentendido como vazio de qualquer
direito e de qualquer política.
No mesmo movimento, essa soberania colonial, que cria ex nihilo o poder de
Portugal e Espanha nas Américas, também ratifica sua primazia ultramarina na
política europeia, congelando de certa forma o status quo frente a outros competidores
imperiais. Conforme Holanda, França e Inglaterra vão infiltrando a divisão de
Tordesilhas, a erosão do status quo transparece como reivindicações soberanas de
outros colonizadores, ou seja, como negação reiterada de autogoverno aos povos
americanos. O notável filósofo John Locke, que trabalhou na América do Norte no
princípio da colonização inglesa, produziu uma teoria da propriedade privada em que
o uso comum e coletivo da terra não conferia qualquer direito sobre ela, de modo que
a invasão colonial não configuraria propriamente uma despossessão, uma violação de
direitos, mas exatamente sua instituição primordial (HOLMWOOD, 2016: 152-154).
A adequação do princípio filosófico, tal qual no caso da soberania, é agenciada pelo
colonizador, que só reconhece direitos em um colonizador rival. Como extroversão do
sistema de estados soberanos, o colonialismo se realiza como uma competição entre
impérios coloniais que instituem sua soberania contra os povos.
O tema não é que Tordesilhas seja mais importante que Vestefália, pois ambos
são eventos igualmente arbitrários para reflexões mais abrangentes. O crucial é que o
princípio de soberania igualitária que atribuímos a Vestefália – assim como o
jusnaturalismo do século XVII que lhe embasa – é melhor entendido no reverso da
soberania colonial de Tordesilhas. Eles são inteligíveis por oposição em um processo
que é contraditório. O mundo da soberania pelo direito natural circunscreve uma
geografia imaginária em que os cristãos, os civilizados, os brancos estabelecem
parâmetros que não são aqueles com que se relacionam com os demais povos, que
constituem uma categoria fora do direito internacional propriamente dito (KEENE,
2004). Emergem, assim, princípios universais que regulam sua realidade intramuros,
que refletem presunções sobre o caráter humano, sobre a cultura e a história que não
O “Requerimento” é como ficou conhecido o documento lido pelos invasores castelhanos aos
nativos para justificar seu direito de ocupação, amparado pela concessão papal e pela cosmovisão cristã.
O papel do requerimento era sobretudo criar para a monarquia uma legitimidade teológico-política para
o empreendimento colonial, quando os primeiros trinta anos haviam sido marcados pela brutalidade
desmesurada.
41
84
cabem aos colonizados. As convenções de Augsburg (1585), Vestefália (1648),
Utrecht (1701) ou de Viena (1815) amadurecem a ideia de que as relações entre as
nações europeias, mesmo fraturadas pela religião ou pela revolução, não haveriam de
replicar os termos em que os europeus se relacionam com os povos outros –
desumanizados, colonizados e escravizados. A maturação do direito universal entre os
povos é refratada pelo que Partha Chatterjee (1993) chamou de “regra da diferença
colonial”.
Pelo prisma do colonialismo, somos obrigados a observar o desenvolvimento
da noção de soberania por meio de sua persistente negação, o que não é o mesmo que
sua ausência. Do ponto de vista daqueles que nunca puderam ser tidos como
soberanos no sistema interestatal moderno, como os astecas ou os zulus, a soberania
moderna é simplesmente uma afronta colonialista, em que os invasores se
autointitulam direitos e prerrogativas de mando. Enquanto as formas políticas nativas
são invalidadas, os estados europeus dividem soberanias coloniais entre si,
trazendo-as para a esfera da competição interestatal. A pressão competitiva no topo do
sistema empurra a corrida colonial, como ocorreu após celebrada a paz de Vestefália
(1648): o século que seguiu o apaziguamento da Europa central testemunhou a mais
incisiva ofensiva até então de impérios europeus sobre o resto do mundo. Visto desde
as margens, a soberania, princípio que se calca na igualdade abstrata e na
não-ingerência, se realiza justamente pela desigualdade e pela intervenção fora de seu
perímetro.
Dessa perspectiva, a hierarquia informal do sistema interestatal irrompe como
decisão prática sobre a extraterritorialidade, como imperialismo, como policiamento
internacional, como flexão casuística do princípio da não-ingerência, da igualdade
abstrata. Um poder de decisão que se exerce como pressão vertical do sistema. Assim,
o fim do colonialismo europeu durante o século XX não é a afirmação última o
princípio da soberania em todo o mundo, culminando sua longa difusão civilizatória
que se iniciara em Vestefália. Ao invés de universalizar a soberania como síntese
entre política, ordem e direito, o sistema mundial sem colônias oficiais desenvolve a
contínua reinvenção da relação histórica entre sua afirmação e sua negação. Quanto
mais se complexifica institucionalmente uma legalidade igualitária sobre o sistema de
estados, tentando encapsular a hierarquia competitiva à estática jurídica, maiores são
as margens para práticas concretas que manobram ilegalismos, isto é, suspendem,
85
transgridem ou refazem a regra à expediência política. Para dar conta dessas práticas,
aliás, um cientista político conservador propôs que pensássemos a arquitetura
normativa da soberania como uma “hipocrisia organizada” (KRASNER, 1999).
Para a história latino-americana, como questão de fato, o reconhecimento
institucional de estados pós-coloniais soberanos não retirou essa margem de
arbitrariedade: o bloqueio naval a portos, a cobrança armada de dívidas, os privilégios
legais a cidadãos estrangeiros, a invasão, a ocupação e a mudança de governantes
demonstram esse transbordamento de hierarquia internacional por entre as brechas da
soberania igualitária. Nas palavras de Theodore Roosevelt, assiduamente citadas por
sua crueza e por suas consequências, “a delinquência crônica [de alguns países
latino-americanos] pode [...] fazer necessária a intervenção de alguma nação
civilizada, e no hemisfério ocidental a Doutrina Monroe pode obrigar os Estados
Unidos [...] a exercerem um papel de polícia internacional” (apud BOERSNER, 1996:
149). Esse intercurso entre afirmação e negação de soberania é sempre historicamente
situado, e a citação de Roosevelt é extraída de um contexto sabidamente acirrado das
pressões verticais do sistema (ver capítulo 6). Ainda assim, de forma mais geral, essas
pressões não deixam de existir quando arrefecem.
Dessa forma, a possibilidade da guerra se inscreve no jogo político mesmo
quando não se realiza. A hipótese de que outros estados respondam com guerra uma
dada iniciativa pesa sobre essa decisão assim como, por exemplo, trabalhadores
podem responder com greves, passeatas e confronto civil à retirada de direitos
assegurados, ou capitalistas podem desinvestir e financiar oposicionistas frente ao
receio de que seus interesses estejam em risco. Elites políticas podem estar mais ou
menos conscientes das implicações possíveis de suas decisões específicas, mas nunca
são capazes de domesticá-las todas a um cálculo de otimização.
Se há hierarquia internacional, em sua base a intervenção extraterritorial
impõe-se como risco latente, impondo um recorte potencial à construção da ordem
política.
Em
1954,
na
Guatemala,
o
projeto
de
reformas
nacionais-desenvolvimentistas foi ceifado pela intervenção estadunidense, que guinou
as balizas da ordem vigente no país instaurando uma ditadura militar. Na década de
1930, a guerrilha sandinista na Nicarágua foi combatida sob o mesmo estandarte
anticomunista, sob imprecações do Departamento de Estado dos EUA contra as
supostas maquinações da Comintern no istmo.
86
A ideia de que existem pressões verticais no sistema dadas por sua hierarquia
informal se inscreve, portanto, na construção da ordem política em países na base
dessa hierarquia42. A iminência de retaliação imperialista restringe o horizonte de
possibilidades da disputa política, ainda que nunca pode fazê-lo de forma pétrea. Não
obstante a assimetria do conflito, o imperialismo também está sujeito à “névoa da
guerra” e ao cálculo do dissenso no emprego da força. À primeira vista, intervenções
desse tipo são feitas pelas razões mais fortuitas e irregulares. Se vistas em conjunto, as
práticas de negação de soberania formam uma porta móvel para a expansão do ciclo
extrativo-coercitivo nos estados imperialistas, não só pelo que pretendem atingir
(espoliação colonialista, agenciamento de comércio, cobrança coagida de dívidas,
promoção de um governo dócil), mas pelo que exigem para sua execução
(mobilização militar, aparato de governo colonial, sinergia tecnológica, gastos de
reconstrução, etc.). É sobretudo quando a estática jurídica do sistema de estados
soberanos é rompida que se criam oportunidades extraordinárias de acumulação
capitalista pelas bordas da concorrência de mercado.
2.2. Mercados e contramercados
Em Marx (1996), a crítica da economia política cumpre o papel de desvelar a
espoliação de trabalho humano que ocorre no capitalismo sem que sejam
expressamente violadas as leis do intercâmbio de mercadorias. Essa apropriação de
trabalho não-pago através do mercado é chamada de mais-valia, sendo a plataforma
sobre a qual se desenvolve a acumulação capitalista. A perspectiva de que a vida
social possa ser regulada pela troca de mercadorias é o fundamento da economia
mundo moderna. A confecção histórica das condições para a acumulação capitalista
ficou conhecida, graças ao célebre capítulo d’O Capital que leva esse nome, de
acumulação primitiva ou originária: por processos erráticos de espoliação e violência,
o trabalho humano é posto no mercado para ser empregado por quem passa a
controlar os meios de produção (MARX, 1996: 339-381).
Uma corrente pouco lida da teoria da dependência, preocupada em se afastar o marxismo, entendeu
essa supressão de autonomia dizendo que, ao contrário das “nações dominantes”, para uma nação
dependente “a estratégia racional (...) sói ser a de utilizar só uma fração do poder real de sua própria
nação” (O’DONNELL & LINK, 1973: 42). Celso Furtado, por sua vez, entendia o desenvolvimento
em íntima ligação com a “internalização dos centros de decisão” em países periféricos.
42
87
Não é o objetivo dessa breve seção adentrar-se por debates espinhosos sobre a
origem do capitalismo, sobre o eurocentrismo de Marx ou sobre a atualidade de suas
categorias. Muito mais contido, nosso objetivo parte das ligações pelas quais a já
citada exigência de “dinheiro, dinheiro e mais dinheiro” pelos estados do sistema
submerge a construção da ordem política em uma economia mundial capitalista cujas
dinâmicas eles não conseguem controlar diretamente. Isso nos obriga a entender um
pouco a relação entre coerção e trabalho, repensando as relações entre “acumulação
primitiva”, colonialismo e o capitalismo propriamente dito.
Em geral, o marxismo clássico importou a premissa de que a coerção
extraeconômica pertencia a um passado pré-capitalista que tendia a se dissipar em
direção às formas capitalistas mais maduras, tornando assim mais evidentes e
pulsantes as contradições de classe que moveriam a história para além dele. Desde
Rosa Luxemburgo, pelo menos, abriu-se um flanco de renovação da economia
política marxista a partir da acumulação primitiva continuada, permanente, reposta
como imperialismo. Isso permitia não só pensar o imperialismo à época da II
Internacional, mas abria uma ponte crucial com os trabalhos sobre escravidão
atlântica e da produção colonial, que a partir dos anos 1930 começaram a conectá-las
a um desenvolvimento capitalista desigual (JAMES, 2000; PRADO JR., 1963;
WILLIAMS, 2012). O capitalismo deixava de ser um sistema fechado para ser um
sistema que depende de sua própria expansão.
Destarte, foi sofisticada em várias direções a ideia de que, sob o capitalismo,
pensado da vida doméstica à escala sistêmica, reproduziam-se lógicas desiguais de
extração de excedente para além das relações de trabalho “livres” no mercado43. O
gatilho veio sobretudo do estudo de sociedades fora do núcleo industrial a que Marx
se dedicara, mas suas conclusões retroagiram para a classe trabalhadora como um
todo. Provocativamente, um importante historiador do trabalho afirmou recentemente
que o “assalariado puro” é uma “abstração” criada pelo movimento marxista
tradicional, uma vez que está rodeado, em fronteiras fluidas, com semiproletários
Todo o debate marxista sobre formação social tem a preocupação de desvelar as conexões entre
relações de trabalho “capitalistas” e “não-capitalistas” (AMIN, 1973; HOBSBAWM, 1985).
Diretamente derivado de Rosa Luxemburgo, o debate contemporâneo de David Harvey (2004: cap. 4)
sobre acumulação por despossessão incide sobre outra face do problema, que é a resiliência histórica de
estratégias de acumulação capitalista por fora da mais-valia do trabalho assalariado. A crítica feminista
de Silvia Federici (2013) atualiza com profundidade a ideia de um trabalho não-pago às mulheres nas
tarefas de reprodução da força de trabalho, subentendidas e invisibilizadas pelas relações contratuais de
trabalho no capitalismo.
43
88
como “ambulantes, meeiros, trabalhadores a domicílio, prostitutas, trabalhadores por
conta própria, ladrões e catadores de lixo” (VAN DER LINDEN, 2002). A lógica
capitalista não estava contaminada com impurezas contingentes herdadas de formas
históricas anteriores, mas recriava essas diferenças de forma racializada (QUIJANO,
2000; HOLMWOOD, 2016) e generificada (FEDERICI, 2004). Mais do que
concentrar e expropriar trabalhadores, constata Silvia Federici, a acumulação
primitiva era “uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora,
na qual as hierarquias construídas sobre o gênero, assim como sobre a ‘raça’ e a idade,
se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado
moderno (FEDERICI, 2004: 113). A acumulação capitalista não só é expansiva, como
é desigual: pensada no plano mundial, sua reprodução explora assimetrias ao invés de
uniformizar o trabalho sob a lógica universal do capital.
Pensando desde suas margens, trabalho excedente e violência se reencontravam
nos “bastidores” do mercado capitalista, para o qual é indiferente se o que está sendo
comprado e vendido como mercadoria foi expropriado à força, foi produzido com
trabalho coagido ou por produtores independentes, foi reproduzido graças a trabalho
doméstico não-pago, foi rapinado do que era antes comum, sagrado ou estatal. Em
algum momento, essa profusão de bens era trazida à órbita do mercado, mesmo que
isso implicasse uma viagem intercontinental, onde toda a violência se esfuma em
capital na forma dinheiro. A produção que, estando orientada ao mercado capitalista,
não satisfaz o valor de troca da força de trabalho sempre foi um tema caro ao
marxismo latino-americano, da escravidão colonial à superexploração do trabalho
assalariado. O tema era inseparável da apropriação desigual nas cadeias mundiais de
valor que formam centros e periferias, e como tal foi apropriado pelos teóricos do
sistema mundo como Immanuel Wallerstein44.
Daqui podemos observar a questão por outro ângulo.
Ao comentar a
prosperidade da economia de plantation escravista organizada pelos portugueses, por
exemplo, Wallerstein (1974: 121-123) destaca a alavanca do crédito obtido da Europa
do Norte contra mercadorias coloniais vendidas antes da produção. Essa prática
44
Sem dúvida, a formulação de Wallerstein (1974) era fortemente determinista nesse aspecto,
indicando que haveria uma relação entre os diferentes estratos do sistema (centros, semiperiferias e
periferias) e o regime de trabalho predominante, o que se relacionaria com o nível de coerção sobre a
força de trabalho. Não é preciso endossar a ideia de forma tão esquemática para conceber que o sistema
mundial articula formas não-livres ou não-assalariadas de trabalho no processo geral de acumulação, e
que isso não é reminiscência do passado pré-capitalista.
89
interceptava-as da venda no mercado aberto, permitindo a esses financistas
aproveitar-se das oscilações de preço, em particular da tendência inflacionária que
ficou conhecida como “revolução dos preços” no século XVI. Ao controlar o nó entre
crédito e distribuição na Europa, usufruíam de posição dominante na apropriação do
excedente de um setor em expansão.
Em um mercado concorrencial, as margens de lucro tendem a ser niveladas e
achatadas pela pressão dos inúmeros competidores. É pela capacidade de aliviar essas
pressões competitivas que determinados segmentos das cadeias de valor se tornam
centrais na economia mundo, acumulando lucros literalmente extraordinários. Em
contraste, quanto mais periféricos forem os nós na cadeia, mais expostos eles estão à
competição irrestrita, de modo que seu lucro é nivelado por preços de mercado que
não controlam (ARRIGHI, 1997).
Essa prerrogativa de transferir para outras partes as pressões competitivas do
sistema pode se efetivar por diversos expedientes, como a formação de oligopólios,
oligopsônios ou cartéis, pelas oportunidades de uma nova tecnologia, por subsídios ou
isenções fiscais, por compras governamentais ou pelo monopólio colonial. Essa
propensão ao descolamento de certos setores privilegiados fez com que Fernand
Braudel considerasse o capitalismo como uma espécie de superlativo, um setor
restrito em que se produziam “contramercados”, isto é, vias de acumulação que
subvertem os procedimentos e condições vigentes no mercado competitivo em busca
de lucros superiores. O historiador francês chamou a atenção para algo crucial: em sua
ampla maioria esses contramercados são agenciados pelo estado, daí sua célebre
formulação: “o capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é
o Estado” (BRAUDEL, 1987: 44).
Retornando ao exemplo das plantations escravistas nos séculos XVII e XVIII,
a historiografia hoje substituiu seu suposto primitivismo tecnológico por uma leitura
oposta, na qual a organização do trabalho, os ganhos de escala e os melhoramentos
técnicos faziam delas unidades com elevada produtividade para a época, orientadas
por cálculos econômicos bastante instrumentais. Dispondo do trabalho coagido de
duzentos ou mais escravos, as técnicas de divisão e padronização de tarefas, com
turnos de trabalho definidos e regidos por um sino ou sirene, as usinas açucareiras
serviriam de modelo para a administração das primeiras indústrias na Europa
(BLACKBURN, 1998; GÓMEZ-GALVARRIATO, 2008). Apesar disso, os ganhos
90
de produtividade eram relativamente homogêneos para as firmas individuais,
submetidas à competição de preços no mercado mundial. Como vimos, a posição
dominante nessa cadeia de valor, aonde gravitava o grosso de seus lucros, estava
distante, nas praças capitalistas de Amsterdã ou Antuérpia, não obstante os
incrementos de produtividade realizados nas plantations americanas.
Por contraste, na Inglaterra após 1750, quando o efeito encadeado de inovações
técnicas e disciplinamento fabril do trabalho fez saltar a produtividade industrial, esse
salto foi revestido com patentes, restrições setoriais à exportação e mesmo à migração
de técnicos que asseguraram, por intervenção política, contramercados temporários
para a produção inglesa. Embora tenham sido burladas antes disso, a proibição à livre
circulação de artesãos foi revogada só em 1825 e a restrição à exportação de
maquinário, em 1842. Ao contrário das plantations, o salto de produtividade interagia
reciprocamente com o domínio das cadeias mundiais de valor, que permitia arrefecer
a pressão competitiva ao dividir entre empresas inglesas o mercado mundial de têxteis
maquinofaturados. A mais-valia extraída do operariado fabril inglês era, então,
sobremaneira apropriada pelos capitalistas ingleses, que controlavam, de resto, a
distribuição, a corretagem e os seguros subsidiários ao impulso dado pela indústria. A
apropriação do excedente econômico era modulada pela intersecção entre mercados e
contramercados.
Por duas frentes, estamos cercando a questão da relação entre violência
organizada e acumulação capitalista: do ponto de vista do trabalho que não está
inteiramente desamarrado da coerção extraeconômica, ou do ponto de vista dos
capitalistas que conseguem acesso a determinados contramercados em conluio estado.
Uma das questões chave da ideia original de “acumulação primitiva” é que o mercado
capitalista não é um desdobramento espontâneo, mas se fabrica politicamente como
contramercado, como manobra de força, como desenraizamento da vida econômica. É
isso que retorna em Polanyi (2012) para entender a utopia oitocentista de
ordenamento social através do mercado autorregulado, que tem no estado liberal seu
demiurgo. A expansão da economia mundo é movida por esses desenraizamentos
violentos e pelos lucros extraordinários que eles ensejam, daí a interligação íntima
entre colonialismo, capitalismo e acumulação primitiva tornada permanente.
Podemos, a essa altura, substituir essas alusões a “estado” ou “violência
organizada” pelos termos da seção anterior, de um sistema competitivo de estados
91
soberanos, cuja hierarquia informal extravasa como negação de soberania. O que isso
significa exatamente? Em primeiro lugar, a capacidade de agenciar contramercados
com determinadas frações capitalistas é desigualmente distribuída conforme a
hierarquia informal do sistema, moldada pelas assimetrias nos ciclos de extração e
coerção. Por um lado, qualquer agenciamento desse tipo demanda recursos
específicos de estado, para subsidiar uma indústria nascente, desenvolver tecnologia
sensível, discriminar compras governamentais, restringir legalmente a competição
com consequências efetivas. Porque contramercados são uma torção particular da
seletividade do ciclo extrativo-coercitivo, com seus ganhadores e possíveis dissensos,
a maior escala de recursos abre maiores possibilidades para produzi-los com sucesso.
Por outro lado, a proteção desses contramercados depende, no extremo, do
controle político da violência, o que também reflete as assimetrias do sistema
interestatal. A introdução massiva de têxteis britânicos na Ásia teve como
contrapartida a destruição deliberada da base manufatureira indiana durante o século
XVIII, especialmente em Bengala (BHAMBRA, 2007: cap. 6). Com efeito,
explicações baseadas na produtividade superior da indústria ocidental perdem de vista
que a entrada nos circuitos de comércio do Índico prescindiu da livre competição de
mercado, valendo-se da eficiência de sua força a par com a força de sua eficiência
(POMERANZ, 2000). Dos invasores portugueses aos ingleses, os estados europeus
que aplicaram com sucesso o comércio armado passaram a controlar os nós centrais
das redes já existentes no Índico, subordinando-as à política imperial europeia.
Usando a linguagem de Frederick Lane (1979), a ameaça de disrupção dos
concorrentes pela força abria a possibilidade de converter “protection rackets”
(arranjos de proteção mediante extorsão) em “protection rents” (rendas de proteção)
para as companhias comerciais ocidentais.
Em segundo lugar, substituir “estado” ou “violência organizada” por um
sistema assimétrico de estados também nos permite observar que as atividades
centrais nas cadeias mundiais de valor são desproporcionalmente concentradas nos
estados do estrato superior da hierarquia. De um lado, essa é outra forma de observar
a desproporção na capacidade de agenciar contramercados, que produz uma
territorialização desigual dos segmentos de vanguarda da acumulação capitalista. A
territorialização das cadeias de valor, e as oportunidades fiscais decorrentes, se
conectam com as segmentações e hierarquias produzidas na classe trabalhadora. Se o
92
capitalismo não se realiza uniformemente como capital industrial e trabalho livre, essa
desigualdade se transpõe, inclusive, como “encapsulamento jurídico e político das
massas trabalhadoras” por estados com diferentes posições no sistema (FONTES,
2000: 357). Essas posições, por sua vez, dependem do grau em que esses estados
internalizam, em sua jurisdição, segmentos de altos lucros, onde a competição é
rarefeita ou controlada, em contraposição com os vastos segmentos periféricos da
economia mundial premidos pela concorrência irrestrita. Além das divisões de raça e
de gênero, a classe trabalhadora é segmentada mundialmente através da hierarquia de
estados.
Dito de forma sintética, há um entrecruzamento entre a hierarquia informal
entre os estados no sistema e o desenvolvimento desigual de centros e periferias na
economia mundial capitalista. Como sublinhou Arrighi (1997), o centro do sistema
não só usufrui de uma posição privilegiada nos termos do comércio internacional, mas
também um controle desproporcional sobre os fluxos de pessoas (imigrantes,
degredados, colonos, etc.) e capital circulante (crédito, dividendos, patentes,
investimento especulativo, etc.). Esse controle extraeconômico cria “movimentos
unilaterais de capital e trabalho” no sistema para além do que decorre diretamente do
comércio (ARRIGHI, 1997). No contexto dessas assimetrias, a busca pela reprodução
ampliada do ciclo extrativo-coercitivo faz com que estados individuais se engajem
politicamente em aliviar as pressões competitivas mundiais sobre sua base econômica
de tributação, ou seja, em galgar posições relativas na economia mundial45. Em
síntese, em uma economia capitalista, a competição não é um dado, mas uma
dinâmica na qual se busca transferir as pressões competitivas para outro lado46.
Como a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo tende a esmaecer as
tensões sociais ao redor de sua seletividade, estadistas tem ganhos concretos com
arranjos de extração e gasto que ensejem retornos crescentes, que ampliem a
perspectiva fiscal além dos dividendos políticos imediatos. Assim, se a acumulação
Nas palavras de Giovanni Arrighi, a assimetria internacional se explica pelos “estados conterem
dentro de seu domínio jurisdicional uma combinação de atividades de núcleo orgânico e de periferia
que eles lutam para melhorar” (ARRIGHI, 1997: 153). E completa: “quanto maior o peso das
atividades periféricas na combinação que se encontra dentro da jurisdição de um dado estado, menor
será a parcela dos benefícios totais da divisão mundial do trabalho comandada pelos residentes daquele
estado” (ARRIGHI, 1997: 162-163).
45
“Como resultado”, ainda de acordo com Arrighi, “os nós ou atividades econômicas de cada uma das
cadeias de mercadorias tende a se polarizar em posições que transferiram as pressões da competição
para outro lugar (atividades típicas do núcleo orgânico) e posições para as quais essa pressão se
transferiu (atividades periféricas)” (ARRIGHI, 1997: 146).
46
93
capitalista tem vetores expansivos a partir de agenciamentos de estado, esses
agenciamentos não são resultado de uma determinação causal da política pela
economia, mas têm uma lógica política interna inteligível. No sistema mundial
moderno, a exigência de “dinheiro, dinheiro e mais dinheiro” por parte dos estadistas
para fazer girar o “transformador” fiscal os recompensa por produzir estímulos à
mercantilização e à acumulação capitalista, recorrendo à “violência organizada” para
expandir seu perímetro.
Sem dúvida, o colonialismo foi a expressão mais radical, e portanto um ponto
privilegiado de observação, desse processo. Nele, sinergias entre estado e capital
propulsionaram, entre aqueles no topo do sistema, imensos contramercados à
acumulação capitalista através de sua extroversão violenta. Por essa extroversão, as
oportunidades de lucros extraordinários se articularam à negação do princípio de
soberania e à segmentação dos regimes de trabalho sob o capitalismo, com a
instituição de trabalho coagido nas periferias coloniais. Ao contrário das
interpretações
eurocêntricas
que equiparam o
sistema ou a modernidade
exclusivamente à Europa, o colonialismo está inscrito na formação e na dinâmica
dessa escala histórica que enquadramos como sistema mundial moderno. Entender
suas forças motrizes nos leva além da experiência estrita de governo colonial nos
lugares onde ele ocorreu, refinando categorias e mecanismos mais gerais sobre a
interação expansiva entre estados e capitais. Ao analisar a construção da ordem nos
estados pós-coloniais na América Latina, isso nos permitirá contextualizar a
acumulação primitiva tornada permanente e a mercantilização como política
governamental, sem para isso recorrer ao determinismo econômico. Oferece também
ferramentas para entender o limiar delicado com que o princípio de soberania foi,
circunstancialmente, escancarado como hipocrisia no continente. Antes disso, contudo,
precisamos completar o raciocínio sobre o sistema mundial a partir da ideia de
transições hegemônicas como ciclos longos, conectando, dessa forma, uma escala
espacial a uma temporal.
2.3. O tempo do mundo: transições hegemônicas e caos sistêmico
O debate sobre transições hegemônicas tem duas vertentes distintas: uma tem
origem em Charles Kindleberger e seu principal discípulo em Robert Gilpin (1987),
94
enquanto a outra tem inspiração em Fernand Braudel, encontra-se nos anos 1970 com
a perspectiva dos sistemas-mundo e desemboca na trilogia liderada pelo economista
italiano Giovanni Arrighi (ARRIGHI, 2008; 2009; ARRIGHI & SILVER, 2001).
Aqui nosso percurso segue a trilha da segunda. Vamos expor aqui alguns
fundamentos dessa teoria que, costurando noções já apresentadas no capítulo,
perfazem o arco que sustenta a segunda parte da tese. Esperamos recompensar a
síntese em pelo menos dois aspectos: de um lado, deixar claro que o “sistema
mundial” não é uma variável ambiental constante para o estudo da construção da
ordem política, mas, situado historicamente, desenvolve movimentos discerníveis de
expansão e crise, de provisória governabilidade e de caos sistêmico. De outro lado,
pela análise desses movimentos, é possível estipular uma escala temporal para a
mudança de longo prazo sem implicar uma homogeneidade ou sincronia mundial.
Articular a história latino-americana a esses processos sistêmicos, de resto, pode
contribuir a descentrar certo viés neohegeliano da análise das hegemonias mundiais,
manifesto como prioridade única à ponta da flecha da história, ou seja, aos pivôs ou
líderes de cada reorganização geral do sistema – como se eles subentendessem o
resto47.
Esse panorama básico da teoria será explicado através de três ideias-força: (1)
ciclos hegemônicos são processos sistêmicos, distintos portanto da agregação
empírica de histórias nacionais ou da repetição histórica; (2) cada um desses ciclos
longos é liderado por um arranjo hegemônico entre estado e capital, percorrendo uma
fase de expansão produtiva, um zênite de liberalização mundial e uma fase declinante
de financeirização; (3) na antípoda dos momentos de governabilidade hegemônica do
sistema estão períodos críticos de agravamento do conflito (interestatal e social), que
constituem “conjunções críticas” de aceleração e definição dos rumos no próximo
ciclo longo. Assim, a análise do “longo século XIX” enquadrada pela ascensão e
colapso da hegemonia britânica é limitada por duas conjunções críticas de
desmoronamento da ordem vigente, a chamada Era das Revoluções (c.1770-1840) e
as Guerras Euroasiáticas (c.1910-1945).
47
A crítica é postulada, por exemplo, por Walter Mignolo como segue: “Na reconstrução de Arrighi, a
história do capitalismo é vista ‘dentro’ (na Europa), ou de dentro para fora (da Europa para as Colônias)
e, por isso, a colonialidade do poder é invisível. A consequência é que o capitalismo, como a
modernidade, aparece como um fenômeno europeu e não planetário, do qual todo o mundo é partícipe,
mas com distintas posições de poder. Isto é, a colonialidade do poder é o eixo que organizou e continua
organizando a diferença colonial, a periferia como natureza” (MIGNOLO, 2005: 36).
95
Começando pelo item (1), é preciso dissipar de saída a ideia de que, ao conferir
motricidade ao sistema mundial, a teoria advoga explicar estruturalmente as histórias
nacionais, regionais ou locais nesses termos. Justamente porque o sistema mundial
não é uma agregação putativa de unidades nacionais, não se pode confundir um
processo naquela escala como uma regularidade empírica em todas as suas partes. Se
é possível discernir uma tendência sistêmica à financeirização, por exemplo, em um
dado contexto histórico, a demonstração de casos onde essa financeirização não se
efetiva não é razão suficiente para falseá-la. Assumir que tendências e processos
ocorrem em escala sistêmica, assim, não subentende sua homogeneidade ou sincronia
empírica, mas sim que tais processos adquirem maior inteligibilidade se postos nessa
escala.
Consequentemente, embora os ciclos hegemônicos refiram coloquialmente aos
estados que os lideraram, como o britânico, o holandês ou o estadunidense, “os ciclos
mesmos se referem ao sistema como um todo e não a seus componentes” (ARRIGHI,
2009: xiii). Uma hegemonia não se define, pois, pela supremacia de um estado
individual sobre os demais, mas pela capacidade de, em uma conjunção crítica, uma
articulação entre estado e capital oferecer um horizonte de expansão para a economia
mundial, capitaneando o sistema em um novo ciclo de acumulação. Um ciclo
sistêmico de acumulação se identifica, pois, pela ascensão, apogeu e crise de uma
conformação histórica de mobilização do capital e do trabalho, de regulação política
da acumulação capitalista.
Por exemplo, a produção fordista, a integração vertical de empresas
transnacionais e mediação coletiva entre capital e trabalho pelo estado são
características nucleares do ciclo sistêmico liderado pelos Estados Unidos no “longo
século XX”. Novamente, isso não quer dizer que a produção fordista foi
“universalizada” em todo o sistema durante esse período, o que seria um absurdo
mesmo para a economia estadunidense, mas sim que essa ponta dinâmica passou a
mobilizar lucros extraordinários que assentaram trilhos para uma expansão econômica,
obviamente desigual e combinada, em escala sistêmica. O fordismo estadunidense não
está só na Detroit dos anos 1920: ele põe em conexão o trabalho forçado nas
seringueiras da Amazônia, o café cultivado por semiproletários rurais na Meseta
Central da Costa Rica, a ditadura petroleira de Juan Vicente Gómez na Venezuela, o
Plano Marshall na Europa e a invenção do consumismo de massas pelas agências de
96
publicidade em Manhattan. Nessa acepção, que sugere um feixe expansivo de cadeias
mundiais de valor, refere-se ao ciclo de acumulação como sistêmico.
Passando ao ponto (2), a teoria discerne três fases fundamentais em um ciclo
hegemônico (ver gráfico 2.1). A primeira fase diz respeito a uma vantagem
desenvolvida na esfera da produção, cujas oportunidades de ganho atraem o capital
circulante nas finanças mundiais. Essa vantagem é territorializada no sentido em que é
garantida por uma aliança concreta entre capitalistas e estadistas no centro emergente
do sistema. Sua decolagem, contudo, oferece perspectiva de complementaridade
produtiva através de uma nova divisão internacional do trabalho. O novo ciclo vai se
delineando quando esse padrão emergente de acumulação produtiva se combina com
o apaziguamento da beligerância interestatal e da contestação social. Em sentido
gramsciano, a potência hegemônica então faz universal seu interesse particular pela
estabilização da nova ordem, gerindo politicamente as raízes da turbulência global
precedente.
Gráfico 2.1. Etapas do ciclo hegemônico segundo Arrighi e Silver (2001)
Fonte: ARRIGHI & SILVER, 2001: 19.
Enquanto ordem política singular, o estado hegemônico emergente se apresenta
como via exemplar de resolução de conflitos e de prosperidade material, pelo que
97
atrai os demais estadistas e capitalistas para sua órbita política, para sua via de
desenvolvimento, para seu imaginário de ordem. Com a decolagem da produção
fordista, essa posição foi sendo ocupada na primeira metade do século XX pelos
Estados Unidos, cujo dinamismo econômico parecia superar as contradições de classe
que haviam engolfado a Europa. Antes disso, foi ocupada pela Inglaterra em
industrialização durante a Era das Revoluções, que parecia assentar as aspirações de
liberdade, igualdade e razão como uma via de progresso material. No ciclo anterior,
foi ocupada pelas Províncias Unidas dos Países Baixos e suas companhias de
comércio, cujo ecumenismo instrumental oferecia um horizonte de futuro em pleno
apogeu das guerras religiosas europeias entre 1618-1648.
O segundo momento corresponde ao zênite do ciclo como expansão econômica
mundial, que culmina tendências de extroversão espacial e relativa liberalização
econômica. A potência hegemônica transfere sua supremacia da produção para o
comércio, orquestrando, à força quando necessário, uma divisão internacional do
trabalho que oferece aos agentes margens de complementaridade sobre a competição.
Ao proporcionar certos alicerces para a economia mundial, como uma referência de
valor, uma praça de crédito, canais logísticos, difusão de tecnologia ou uma força
armada para abrir comércio e pagar dívidas, a potência hegemônica capitaneia uma
governabilidade provisória ao sistema ao redor de seus próprios interesses
estabelecidos.
Essa janela de crescimento material generalizado tende a proporcionar um
período de estabilidade, o que decididamente não é o mesmo que paz. Especialmente
nas margens coloniais, periféricas e rurais, o impulso à extroversão espacial se realiza
como brutal processo de desenraizamento humano, negação de soberania e inserção
subordinada nas cadeias mundiais de valor. Para elites políticas nas periferias, as
oportunidades de associação dependente à economia mundial se reforçam em sua
expansão, alavancando um desenvolvimento em que “se desenvolve tudo o que é
dependente e se elimina ou estanca o que é independente” (CASANOVA, 2006: 229).
É possível distinguir essas janelas de governabilidade provisória nos períodos
entre 1846-1873, sob liderança britânica, e entre 1945-1973, sob liderança dos EUA;
com menos nitidez um processo análogo ocorre após 1648 sob a batuta holandesa.
Entretanto, esse zênite hegemônico tende a produzir contratendências que corroem
suas bases. No centro do sistema, as condições econômicas favoráveis funcionam
98
como uma incubadora para competidores emergentes, que desafiam o predomínio da
potência hegemônica na esfera da produção e do comércio. Através da emulação e de
novos contramercados, eles vão congestionando o controle sobre as cadeias mundiais
de valor. O acirramento da competição sistêmica enxuga a margem de
complementaridade e, consequentemente, vai solapando as bases da liberalização
precedente. Na forma de protecionismo, mercantilismo ou nacionalismo, as vantagens
competitivas sobrepujam as vantagens comparativas: a reprodução ampliada no ciclo
extrativo-coercitivo tende à encarniçada soma-zero.
A supremacia da hegemonia declinante se transfere, então, para o mundo das
finanças, que adquire ímpeto e atratividade. O enorme excedente acumulado ao longo
do ciclo não encontra canais amplos o suficiente para reinvestimento na produção,
inflando a massa de capital circulante que lucra sobre si mesmo. Essa financeirização
assegura opulência e poder à hegemonia em declínio, mas sinaliza, na expressão de
Braudel, o “sinal do outono” de sua posição mundial. Enquanto isso, entre os novos
competidores vão se gestando estratégias de acumulação capitalista que sinalizam
tendências de desenvolvimento do próximo ciclo. Saturado como liquidez financeira,
o capital migra silenciosamente para os novos polos dinâmicos na produção, como o
capital holandês se transferiu para Londres na primeira metade do século XVIII para
financiar a revolução industrial, e o inglês para os EUA na segunda metade do século
XIX para construir ferrovias e bancos.
Gráfico 2.2. O “longo século XIX” como ciclo hegemônico mundial
Fonte: Elaboração própria.
99
Como observou Arrighi (2009), o movimento do ciclo se assemelha ao
esquema de acumulação de Marx: um momento inicial de capital abundante na forma
dinheiro (D) se converte à produção material de mercadorias (M), que produzem uma
expansão material (M + m). Ao saturar-se, essa expansão culmina em uma fase final
de liquidez financeira aumentada (D + D’). Nesse sentido, a financeirização da
hegemonia declinante se conjuga com a incipiente vantagem produtiva da hegemonia
ascendente, um ciclo longo começa sem que o anterior tenha se dissipado – por isso a
agenda de pesquisa trata de transições hegemônicas mundiais. O que nos leva ao
ponto (3), sobre o caráter dos momentos críticos de caos sistêmico.
Uma crise hegemônica se desencadeia quando a governabilidade provisória é
irreversivelmente ultrapassada pelas pressões competitivas do sistema mundial, isto é,
quando o encadeamento de inúmeras decisões estratégicas no contexto dessa
competição produz um “ponto de não-retorno”. Conforme se sufocam as condições de
acumulação capitalista e de reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, a
beligerância interestatal e a contestação social espiralam. Sem dúvida, a projeção
espaço-temporal de uma ordem política concreta se refere ao estado que a governa,
então não há, nos termos do capítulo anterior, uma “ordem política mundial” em
sentido literal. No entanto, percebemos como a decolagem de um ciclo sistêmico de
acumulação logra, mesmo que em uma conjunção efêmera, proporcionar alguma
governabilidade ao sistema, injetando combustível no ciclo extrativo-coercitivo dos
estados que o compõem.
A disponibilidade desses recursos para barganhar tende a solidificar a ordem
política vigente, arraigando seus procedimentos, suas hierarquias e suas elites. Ainda
que isso sabidamente não se produza de forma uniforme ou síncrona em todos os
lados, a expansão material liderada por uma hegemonia mundial alimenta uma
tendência de arrefecimento da agonística da ordem nos estados individuais. Além da
expansão material, o próprio sucesso testemunhado por essa via de desenvolvimento
afunila as controvérsias sobre o que é desejável, necessário e impensável para a
política.
No reverso, consequentemente, o declínio e a crise desse ciclo hegemônico
fazem aflorar mais agudos os conflitos. Ainda que não se possa falar em uma ordem
política na escala do sistema, a crise produz um abalo sistêmico aos alicerces sobre os
quais os estados individualmente se amparam, com consequências largamente
100
contingentes. Nesse sentido, a desestabilização da ordem ocorre também como uma
“reação em cadeia”, e não como regularidade síncrona de histórias nacionais. O
acirramento da rivalidade interestatal e intercapitalista pressiona os governantes a
aumentar a constrição social do ciclo extrativo-coercitivo, levando-o eventualmente
ao limite de sua ruptura. Esse quadro geral servirá de referência para observarmos as
duas conjunções críticas que balizam o “longo século XIX”, nos capítulos 4 e 7.
Há dois aspectos importantes para sublinhar aqui com relação à contingência:
em primeiro lugar, por mais que possa parecer claro aos nossos olhos no presente, não
esteve dado de antemão qual das potências emergentes iria capitanear, em meio à
crise, uma reorganização do sistema e de que forma. Não há um critério formal de
eficiência para arbitrá-lo, mas somente o acidentado percurso da rivalidade
ascendente, no qual há emulação institucional e técnica, a névoa da guerra, disrupções
revolucionárias, erros estratégicos e vantagens meramente contingentes. O formato da
sinergia entre estado e capital que emerge hegemônica da crise não foi previamente
projetada nem solidificada, mas define seus contornos últimos na própria convulsão
sistêmica da qual é parte. Consequentemente, o “caos sistêmico” é uma conjunção
crítica não só porque o novo ciclo sistêmico de acumulação emerge dos escombros do
anterior, mas porque, no turbilhão em que isso ocorre, afirma-se politicamente um
horizonte hegemônico do que venha a ser uma sociedade bem ordenada.
O segundo aspecto pelo qual convém sublinhar a importância da contingência é
que a crise sistêmica favorece uma dilatação do horizonte de expectativas históricas,
aliviando, por assim dizer, o peso do passado sobre o presente. O abalo das
hierarquias e procedimentos institucionais rotinizados se corrobora com a pressão
sobre as linhas de inclusão e exclusão da ordem política, fazendo-as mais maleáveis.
Não se trata, por isso, de uma intensificação da contestação social ou da beligerância
interestatal simplesmente, mas de seu desenvolvimento em direções até então
desconhecidas e imprevisíveis. A conjunção crítica é um ponto privilegiado para
observar a emergência de projetos alternativos de ordem política e sua confrontação
contingente, a densidade associativa de subjetividades políticas até então inexistentes,
a polarização posta na linguagem com que a política é feita, as pressões sociais sobre
a seletividade prática do ciclo extrativo-coercitivo. Em uma palavra, a agonística da
ordem se acelera.
101
2.4. Expansão e formação de um sistema em movimento
Cristóvão Colombo acreditava que sua expedição em 1492 poderia contribuir
para a libertação das cidades sagradas pelos reis católicos. Supunha que a Terra fosse
do formato aproximado de uma pera, com o Eldorado ao topo, e que suas viagens
desbravavam uma quarta península do continente asiático, a leste do Vietnam. Seus
marinheiros, que se rebelaram contra aquela viagem suicida à borda do mundo,
estavam presumivelmente ainda mais desorientados. Os navegantes portugueses
atraídos pela opulência do reino cristão de Preste João acabaram por atingir em cheio
as rotas comerciais do Índico. O fato de que nenhum deles não tivesse então dimensão
nem compreensão acurada do que estava acontecendo não os impediu de tomar parte
no que são possivelmente os eventos mais decisivos para a conformação do sistema
mundial moderno.
De forma geral, a narrativa sobre grandes escalas de análise às vezes dá a
impressão de que a atuação humana é mecânica, irrelevante ou pré-determinada. Seria
insuportável e um pouco protocolar, por outro lado, reafirmar em todas as frases a
importância da incerteza, de decisões mal informadas, de oportunidades políticas
específicas, de emoções, de valores compartilhados e de consequências imprevistas
para a tessitura do emaranhado de ações envolvidas. Ao postular que existe uma
escala mais ampla para analisar a construção da ordem, o objetivo foi mostrar que é
possível discernir processos nessa escala que são efetivos e relevantes para aquele
propósito, e não abarcar toda a complexidade vivida em seu desenrolar.
Pelo que foi dito até aqui, a formação e a expansão do sistema se fazem em um
mesmo movimento, de modo que nem a formação é precedente no tempo, nem a
expansão é subsequente no espaço. “As Américas não foram incorporadas a uma
economia mundo capitalista pré-existente”, diz o célebre artigo de Aníbal Quijano e
Immanuel Wallerstein (1992: 549), pelo simples fato de que “não poderia ter havido
uma economia mundo capitalista sem as Américas”. Nesse sentido, ao buscar a lógica
expansiva própria ao sistema, atingimos as sinergias contingentes que vinculam
estadistas e capitalistas, o terreno de estímulos e induções recíprocas entre a
acumulação de capital e a territorialização do excedente via fiscalidade. Nas margens,
por assim dizer, da troca de equivalentes no mercado, onde a força de trabalho é
disposta como mercadoria e os lucros são achatados pela concorrência, a articulação
102
entre violência organizada e acumulação de capital pavimenta vias de expansão do
sistema, seja pela estratificação da força de trabalho, seja pelo agenciamento de estado
a frações capitalistas específicas. A acumulação primitiva se torna permanente na
medida em que a violência organizada não é um estágio prévio à acumulação
capitalista, em vias de dissipar-se; ao contrário, sua configuração mesma vai sendo
reinventada na trajetória.
Um olhar ao sistema mundial desde as margens precisa, então, conjugar uma
leitura do princípio de soberania a partir de suas práticas de negação com um olhar
sobre o capitalismo a partir dos bastidores violentos de sua expansão. Isso coloca o
colonialismo e o imperialismo no núcleo de uma sociologia histórica desse sistema.
Também descarta a tautologia do nacionalismo metodológico, que encerra a escala na
jurisdição empírica de um estado cuja formação é o próprio objeto da análise. Mais do
que isso, permite enquadrar a reprodução do ciclo extrativo-coercitivo nas
oportunidades e assimetrias postas pela economia mundo capitalista: como o próprio
Tilly (1990) notou, mas só nos limites da Europa, é profundamente diferente a
autoconstrução de estado em uma paisagem econômica rural e senhorial, como eram a
Rússia ou a Polônia, e em contexto altamente capitalizado e mercantil, como em
Veneza ou nas Províncias Unidas.
Como dissemos ao princípio, é difícil praticar sociologia histórica na América
Latina sem alguma projeção, mesmo que intuitiva ou subliminar, a respeito de um
espaço alargado no qual ela se insere, como o “mundo”, o “capitalismo”, a
“modernidade”, o “sistema”, a “estrutura”. Recorremos aos estudos sobre sistemas
mundiais para conferir mais rigor a essa escala. Isso não significa assumir
necessariamente uma causalidade estrutural invariável, nem presumir um sistema
fechado, nem subsumir a disputa política aos interesses de classe, nem subscrever, por
vias tortas, o excepcionalismo europeu – críticas essas que já foram postas em outros
contextos48. Embora o diálogo entre a historiografia “mundial” e a abordagem dos
A crítica ao eurocentrismo de Wallerstein foi posta de forma contundente por Janet Abu-Lughod
(1989) e recentemente retomada por Bhambra (2007). Salvo melhor juízo, a resposta de Wallerstein
(1997) acaba por dar ainda mais razão às críticas, uma vez que reitera o excepcionalismo europeu com
sinal invertido. Já em termos explicativos, a teoria dos sistemas-mundo foi criticada por Skocpol (1981)
principalmente pelo mecanicismo causal com que a política seria determinada pela economia, e esta
por posições estruturais no sistema, regido por uma lógica rígida e perene. O argumento sobre a
“incorporação” ao sistema mundial, particularmente importante para o Terceiro Mundo, é fortemente
determinista na adequação das estruturas políticas às exigências da economia mundo (WALLERSTEIN,
1984: cap. 8; 1988: cap. 3).
48
103
sistemas mundiais ainda esteja por amadurecer49, é um terreno promissor para a
renovação da sociologia histórica contemporânea.
Em alguns aspectos cruciais, a trilogia de Giovanni Arrighi e seu círculo de
colaboradores representou um salto qualitativo para essa agenda de pesquisa. Ao
invés da rigidez astronômica do sistema mundial de Wallerstein, abrem-se momentos
críticos de redefinição da escala, da regulação e da localização da acumulação
capitalista. Ao invés de imperativos estruturais de sobrevivência do sistema, essa
redefinição se faz por obra de sinergias inovadoras entre capital e coerção, que
sobressaem da competição interestatal e articulam-se com estratégias de
apaziguamento do conflito social e interestatal. Nesse contexto, a potência
hegemônica adquire o aspecto de um “bloco histórico” emergente, galvanizando
certas aspirações epocais a uma organização política concreta. A dinâmica expansiva
do sistema mundial pode ser então situada na matriz que conecta ciclos sistêmicos de
acumulação às hegemonias mundiais. Ao invés de uma repetição ou circularidade
histórica, constitui-se uma trajetória longa pontuada por conjunções críticas de
redefinição sistêmica, cujos protagonistas, inovações e continuidades podem inclusive
ser objeto de pesquisa comparativa.
Sobre a constituição de uma perspectiva mundial na historiografia como construção de realidade, ver
Conrad (2016: cap. 8).
49
104
3.
ESTADOS
LATINO-AMERICANOS,
EUROCENTRISMO
E
SEUS
IMPASSES
“A História é uma estória que os entusiastas da cultura ocidental contam uns aos
outros”50
Donna Haraway
"A primeira vez que os navios rasgaram as águas do Nilo, vieram carregados de
canhões, não de pão, e as ferrovias foram construídas, na verdade, para transportar
tropas. Ergueram escolas para nos ensinar a dizer 'sim' em sua língua"51
Tayeb Salih
“As forças principais que capacitaram as pessoas de cor para afirmar que são
iguais foram as ideias e técnicas que as potências europeias disseminaram por todo o
mundo” (CROSSMAN, 1987: 351). Com essa constatação, Richard Crossman
(1907-1974), outrora importante intelectual do Partido Trabalhista britânico, parecia
justificar a ausência de todo o mundo fora da Europa e dos Estados Unidos em sua
“história das ideias políticas e da prática política” nos últimos quinhentos anos. Ela
percorre o caminho habitual: a Renascença e Maquiavel, o absolutismo, a Revolução
Inglesa e Hobbes, a Revolução nos Estados Unidos e Os Federalistas, a França
revolucionária e o Iluminismo, a Alemanha do romantismo ao nazismo, o comunismo
de Marx à URSS. A irrelevância do resto do mundo para a “biografia do estado
moderno”, título que o livro recebeu em espanhol, contrasta com a precocidade
assombrosa das certas sociedades europeias: ele identifica, por exemplo, traços de um
estado-nação na Inglaterra já por volta do ano 1100 (CROSSMAN, 1987: 56).
Embora intrigante, o argumento de Crossman está longe de ser uma exceção.
Para o medievalista norte-americano Joseph Strayer, “o estado moderno, onde
quer que o encontremos hoje, é baseado em um padrão que emergiu na Europa entre o
período 1100 e 1600” (STRAYER, 1973: 12). A mesma ênfase no Medievo tardio
para o surgimento de estados nacionais reaparece na ambiciosa obra de Michael Mann,
que por volta de 1000 d.C. já converte a Europa na ponta líder (leading edge) de sua
50
Extraído de Haraway (1995: 10-11).
51
Extraído de Salih (2018: 95).
105
história mundial (MANN, 1986: cap. 12-14). A narrativa de Martin Van Creveld
(2004) sobre o surgimento, apogeu e crise dos estados modernos deixa a mesma
impressão: o resto do mundo aparece muito recentemente como um apêndice do
desenvolvimento da história ocidental. É até irônico que os estados africanos e
latino-americanos ajudem a compor o quadro da crise histórica do estado sem terem
participado efetivamente de seu desenvolvimento.
Quando o historiador Adam Watson, por seu turno, concebe a ideia de uma
“sociedade internacional” como modulação cultural da beligerância irrestrita e
calculista entre os estados, esta emerge nos círculos diplomáticos da Europa Ocidental
cristã para em seguida “universalizar-se” por meio da expansão colonial. “Portanto,
dentro da estrutura de dependência externa”, comenta Watson sobre as Américas
como um todo, “os colonizadores europeus desenvolveram uma crescente capacidade
de administrar seus assuntos, e adquiriram a experiência de governo necessária para a
inclusão na sociedade internacional europeia quando a hora chegasse” (WATSON,
1992: 221). Os europeus não só são inventores e protagonistas da história universal
como também tem a capacidade de ativá-la no resto do mundo conforme o controlam.
Como ritual de iniciação, qualquer estudante interessado em sociologia dos
estados modernos será invariavelmente submerso em referências europeias. Desafiado
a ler Pierre Bourdieu, Perry Anderson, Max Weber ou Norbert Elias, sua iniciação
teórica se faz por intermédio de instituições, narrativas e modelos referenciados nessa
península ocidental da Eurásia. Enquanto tal, o longo percurso da Antiguidade
greco-romana e do feudalismo à modernidade atinge o estatuto de passado comum de
toda a humanidade, de linha de imaginação histórica universal (GOODY, 2006: cap. 2,
3 e 11). Essa “ignorância assimétrica”, como chamou Gyan Prakash, tem
consequências teóricas: a política moderna na Europa se confunde com a própria
teoria, enquanto que o resto do mundo tem nela um “referente silencioso” obrigatório
(PRAKASH, 1994: 1484). A posição de importação e consumo de teoria oriunda de
um núcleo autorreferenciado projeta uma relação assimétrica no campo do
conhecimento, aparentando as periferias do sistema-mundo com as periferias da
produção de conhecimento.
O interesse pelas experiências coloniais e pós-coloniais na América Latina,
partindo dessa formação teórica encerrada na Europa, colocou o eurocentrismo na rota
desta pesquisa desde seus primeiros momentos. O amadurecimento de respostas, no
106
entanto, tomou um longo percurso, que, por limitação de espaço e foco, não será
transposto inteiramente para esse capítulo. Restringindo especificamente ao problema
da tese, a primeira constatação importante é que a maré de críticas ao eurocentrismo
nos últimos quarenta anos repercutiu de forma relativamente diminuta na agenda de
pesquisa sobre formação histórica dos estados modernos, bem como na Ciência
Política de forma geral (CHANDRA, 2013). Embora argumentos importantes tenham
sido levantados por Bhambra (2016), Cooper (2005), Bayly (2004: cap. 7) e Quijano
(2000), sua repercussão foi epidérmica frente ao que é o conhecimento estabelecido
sobre o tema, assentado sobre a premissa de que a política moderna tem uma origem
endógena, independente e pioneira na Europa Ocidental.
A segunda constatação importante é que o eurocentrismo não é uma distorção
intelectual artificial, um erro que possamos simplesmente corrigir. Ele se constituiu
historicamente pela reflexividade imperial de um mundo que “eurocentrou-se” por
meio da expansão colonial europeia, reflexividade que se alimentou dessa expansão,
buscou compreendê-la e concorreu a legitimá-la. Nesse sentido, a crise do
eurocentrismo como visão de mundo é inseparável da obsolescência do mundo
eurocentrado que o engendrou (ver capítulo 7). No último século, as lutas de
libertação nacional, os movimentos antirracistas e o terceiro-mundismo fustigaram na
raiz a plausibilidade da visão eurocêntrica de progresso. A decolagem econômica do
Leste Asiático nos últimos cinquenta anos desafia na prática as premissas
excepcionalistas e orientalistas da prosperidade ocidental, especialmente diante de seu
declínio relativo. A própria consciência crítica de que existe “eurocentrismo” em
nossa forma de pensar já revela o gatilho do processo pelo qual ele obsolete.
Das fissuras do pensamento eurocêntrico abrem-se esforços por reaver a
agência, a criatividade e a autonomia dos povos até então “sem história”, revolver os
silêncios históricos impostos pela dominação ocidental (BHAMBRA, 2007, 2014;
TROUILLOT, 1995; WOLF, 1982). Desvela-se igualmente um debate sobre as
consequências teóricas, institucionais e éticas de fazê-lo (KNOBL, 2016). Nesse
sentido, a crítica do eurocentrismo é um movimento em curso, uma contraposição
tomada frente ao “modelo de mundo do colonizador” (BLAUT, 1993). A razão do
argumento é que parece ilusória a expectativa de pensar uma teoria política isenta de
eurocentrismo, como se fosse possível neutralizar, por um movimento interno à
consciência, o peso da história sobre as condições de produção do conhecimento. Ao
107
invés de aspirá-la sem eurocentrismo, é mais consequente elaborá-la contra ele, como
uma forma de construção crítica52.
Isso dito, não há evidentemente um consenso sobre como fazê-lo. A proposta
que exploraremos neste capítulo não aposta em um programa paroquialista de
substituição de importações intelectuais (ver, para um extremo, CERVO, 2008).
Tampouco se acredita, seguindo a exposição já feita por Gurminder Bhambra (2014),
que o pensamento eurocêntrico se desintegraria pelo simples acréscimo de pensadores
não-ocidentais ao cânone acadêmico, diluindo-o por “igualdade putativa” em uma
sociologia política “global”. Da mesma forma, simplesmente incluir casos
não-ocidentais no radar da análise não significa que ela deixa de ser eurocêntrica,
como as teorias da modernização não deixam dúvida. É preciso enfatizar que as
histórias e saberes periféricos têm um potencial de subversão semântica diante do
conhecimento eurocêntrico que lhes marginalizou, o que não se resume à agregação
multicultural (BHAMBRA, 2014).
Um caso ilustrativo do ponto é o do filósofo Enrique Dussel (2005) em sua
polêmica sobre o conceito de modernidade. A ideia até hoje corrente de que esta
representaria “uma emancipação, uma ‘saída’ da imaturidade por um esforço da razão
como processo crítico” constitui, para ele, um conceito “eurocêntrico, provinciano,
regional” da mesma (DUSSEL, 2005: 28). Não parece casual o deslizamento de
eurocêntrico a provinciano na mesma frase. Vista da América Latina, a modernidade é
fundada sobre uma dimensão sacrificial e colonial, que sublinha a razão do ego
conquiro (eu conquisto) um século antes ao ego cogito (eu penso) cartesiano: “a
conquista do México foi o primeiro âmbito do ego moderno” (DUSSEL, 2005: 30).
Em outras palavras, não é possível reduzir a modernidade a um projeto de
emancipação universal uma vez feita a crítica ao eurocentrismo desse projeto. Não é
possível acrescentar a modernidade na América Latina à modernidade em geral sem
subverter o significado mesmo do termo.
Neste capítulo, iremos nos aproximar da literatura de sociologia histórica sobre
os estados modernos, com ênfase na América Latina, imbuídos do propósito de uma
52
Na síntese de Bhambra: “O eurocentrismo é a crença, implícita ou não, da significância histórica
mundial de eventos que se desenvolveram supostamente de forma endógena dentro da esfera
cultural-geográfica da Europa. Ao contestar o eurocentrismo, contesto o ‘fato’ da ‘singularidade da
Europa’ – tanto em termos de sua cultura e de seus eventos; o ‘fato’ do desenvolvimento autônomo de
eventos, conceitos e paradigmas; e, finalmente, o ‘fato’ da Europa mesma como uma entidade coesa e
limitada dando forma ao que disse acima” (BHAMBRA, 2007: 05).
108
crítica consequente ao eurocentrismo no campo. Implicitamente, as ferramentas para
fazê-lo já foram sendo dispostas nos dois capítulos anteriores. Na contraposição ao
imaginário eurocêntrico de uma Europa moderna de estados-nação soberanos como
um sistema fechado, será necessário lembrar, por exemplo, que o princípio da
soberania é historicamente refratado pela regra da diferença colonial, que o
pertencimento político sempre traça linhas práticas de inclusão e exclusão, que a
vigência de uma ordem política não é o contrário do caos, da mera ausência de ordem.
Culminando o movimento que fizemos contra os raciocínios ideal-típicos nos
capítulos anteriores, a construção histórica da ordem política na América Latina não
pode ser atrasada, incompleta nem desviante com relação à modernidade enquanto tal,
abstraída de uma Europa desconectada e reificada.
Pensados a partir de suas conexões mundiais, os estados latino-americanos
durante o longo século XIX podem ser analisados como “estados pós-coloniais” e
“estados na periferia”, enquanto posições em processos sistêmicos desiguais como o
colonialismo e o capitalismo. Esse será o ponto de chegada do capítulo, que prepara a
próxima parte da tese. Se temos claro conceitualmente o que é um ciclo
extrativo-coercitivo, podemos investigar quais as consequências de mobilizá-lo no
“núcleo orgânico” do capitalismo e em suas periferias, no ápice do ciclo sistêmico de
acumulação ou em sua crise. Não há um sistema de estados como constante ambiental,
mas fundamentalmente dinâmicas desiguais que estabelecem posições relativas na
expansão desse sistema. Se bem encaminhada, a crítica ao nacionalismo metodológico
se consubstancia a uma crítica ao eurocentrismo.
3.1. Estados modernos e “uma Europa que se autointerpreta”
A mobilização em massa das tropas napoleônicas sob os lemas revolucionários
é possivelmente a imagem mais vívida do alvorecer do moderno estado-nação,
ribombando sob uma carcomida Europa feudal e dinástica. Dos escombros da guerra e
da revolução, erguera-se uma máquina militar cuja vantagem decisiva era o apelo
igualitário aos cidadãos, armados em defesa da pátria. O governo da razão adquire
também um inédito apelo popular, heroico e épico. Reinventando a relação entre a
política e a guerra, o levée en masse francês torna obsoleto o Antigo Regime no
continente, do racionalismo aristocrático prussiano ao monarquismo neoescolástico
109
ibérico. Por trás do brilhante general, que ascendera na hierarquia militar por suas
conquistas, jazia uma nação em armas como vontade soberana, despida da arquitetura
gótica de estamentos, corpos intermediários, privilégios e superstições. Um novo
Código Civil instituíra um mundo jurídico de livres contratos, propriedade inalienável
e cidadania igualitária; não obstante a derrota napoleônica, seu desígnio constitucional
serviria de modelo ao mundo moderno. Ao som da Marselhesa ou da Eroica de
Beethoven ao fundo, a modernidade política insinuava-se pujante no palco da história.
O único problema dessa vívida imagem é que ela abdica, em nome da
coerência interna, de importantes laços com a realidade que quer retratar. Observemos
por um momento essas nuances. A mobilização em massa em nome da pátria
ameaçada, em verdade, havia deslanchado no período jacobino e logo se esgotado: já
em 1798 fora instituído o recrutamento forçado de soldados. No período das guerras
napoleônicas, o exército fora largamente mobilizado em movimento nos próprios
territórios conquistados, uma das muitas inspirações do general corso em Júlio César.
O resultado era uma força multinacional de inúmeras línguas, procedências e etnias.
Mais do que uma força de cidadãos franceses, a fisionomia do exército napoleônico
era imperial. Como disse Frederick Cooper, “a ideia que o sentimento nacional
significava que jovens iriam voluntariamente morrer por seu país pode ser
convincente para os acadêmicos do século XX, mas era insuficiente para os líderes
pós-revolucionários” (COOPER, 2005: 168). A resistência ao recrutamento forçado
era violenta no que fora a França monárquica tanto quanto nos territórios recém
conquistados.
Mais do que isso, o espaço político forjado pelas vitórias francesas estava longe
do que convencionalmente se supõe a forma essencial da política moderna, um
estado-nação. Em determinados contextos, como em Nápoles ou na Espanha, os
franceses governaram por linhas dinásticas instituídas desde a própria família de
Napoleão. Em muitos outros, as tropas napoleônicas carregaram consigo o estandarte
republicano, instaurando regimes vassalos de Paris, como as repúblicas Liguriana,
Transalpina e Helvética. No mundo germânico, onde a autoridade claudicante do
Império é definitivamente destruída, os invasores mantiveram um regime de ocupação.
O nacionalismo que emerge ali, tal qual na Espanha, não é despertado pela chegada
das tropas revolucionárias, mas se forma justamente contra essa ocupação, estrangeira
e imperial. Os horizontes de uma nação republicana de cidadãos livres, por um lado, e
110
de um império territorial diferenciado e hierárquico, por outro, estão envolvidos no
mesmo processo. Ainda assim, a própria imagem de uma população unificada por um
imaginário nacional está sabidamente distante do que de fato existia à época da
Revolução, quando sequer se compartilhava uma mesma língua no território
metropolitano francês.
A outorga do Código Civil napoleônico ocorreu poucos meses após a derrota
da expedição militar a Santo Domingo de 1803, em que tropas multinacionais, sob
liderança do cunhado de Napoleão, atravessaram o Atlântico com a missão de
restaurar a ordem escravocrata na colônia caribenha. Com efeito, a insurreição dos
jacobinos negros liderados por Toussaint L’Ouverture triunfara na década anterior e
proclamara uma nova constituição para a colônia que assegurava que “todos os
homens nela nascem, vivem e morrem livres e franceses” (BLACKBURN, 2006: 647).
Ao derrotar a expedição militar de 1803, que lhes negava a possibilidade de serem
franceses e livres ao mesmo tempo, os ex-escravos declararam a independência e
fundaram a República do Haiti em 1804. Mas não era somente do outro lado do
oceano que a escravidão assombrava a cidadania instaurada pelo Código Civil. Uma
de suas invenções fora formalizar o casamento civil como um contrato de propriedade
da mulher pelo marido, o que circunscrevia a cidadania moderna aos homens
proprietários. “Libertem os últimos escravos que ainda existem na sociedade
francesa”, arrematava a socialista Flora Tristán na década de 1840: “proclamem os
direitos da mulher” (TRISTAN, 2015: 130).
Ao fim e ao cabo, o processo revolucionário francês enseja muito mais
paradoxos e desajustes que a imagem laudatória de modernidade política que nele se
inspira. O problema do eurocentrismo não é simplesmente que só a experiência da
França ou da Inglaterra é levada em conta ao se conceitualizar nação, cidadania ou
estado, porque mesmo essa experiência é eventualmente podada de suas contradições
e conexões externas (KNOBL, 2013). A ironia é que muitos intelectuais periféricos,
para mostrar a artificialidade dos conceitos hegemônicos diante de suas realidades,
ratificaram implicitamente essa imagem homogênea e idealizada do que seria o
Ocidente ou a Modernidade. Em um sentido profundo, o eurocentrismo mistura e
confunde três matérias-primas: as experiências históricas da Europa e dos Estados
Unidos, a história do pensamento social e político ocidental e os termos gerais que
empregamos no debate sobre teoria e metodologia das ciências sociais. Ao liquidificar
111
isso tudo, forja-se também uma coerência retrospectiva da história europeia,
normalizada pelos conceitos universais que presumem a modernidade como ruptura
da história, como emancipação humana.
A sociologia histórica dos estados modernos na Europa possui três vertentes
majoritárias, talvez quatro. A primeira finca pé nas bases ideológicas de sustentação
do poder político, rastreando o deslocamento da legitimidade baseada na tradição
monárquica para a outra, em que a obediência civil se funde a modulações da ideia de
soberania popular (BENDIX, 1980). A segunda dá prioridade à mobilização para a
guerra como gatilho não-intencionado para o governo direto, para a burocratização do
estado e para a barganha por direitos cidadãos (TILLY, 1990). Ao contrário destas,
ambas de inspiração weberiana, a terceira coloca a classe social como principal eixo
da explicação, de modo que as formas políticas modernas seriam inseparáveis da
ascensão da burguesia e, portanto, da passagem do feudalismo para o capitalismo
(WALLERSTEIN, 1984). A quarta, que poderíamos acrescentar, deriva das obras
tardias de Michel Foucault (2005; 2008) sobre biopolítica e o surgimento da
governamentalidade como saber e prática de gestão de populações pelo estado
moderno, especialmente nos séculos XVII e XVIII.
Não obstante suas diferenças e méritos, elas comungam a premissa de que o
processo tem um fundamento circunscrito à própria Europa, ao mesmo tempo singular,
dinâmica e endógena. Desses textos canônicos, as perguntas postas ao resto do mundo
dizem respeito à difusão empírica da política moderna, como quer que ela seja
definida: quando se instaura um governo propriamente burguês? Quando se produz a
nacionalização do estado? Quando se atinge a cidadania? As perguntas de tipo
“quando” são substituídas pelas de “por que” somente na medida em que se
encontram obstáculos e defasagens na aterrissagem daquelas instituições, dando vazão
a hiatos culturais, históricos ou econômicos que explicam a inadequação. Em síntese,
como na narrativa sobre Napoleão, o resto do mundo é irrelevante para a gênese da
política moderna, ao passo que a política moderna no resto do mundo não pode ser
contada sem sua gênese na Europa Ocidental.
Como antecipamos na apresentação do capítulo, o eurocentrismo é uma
expressão do colonialismo moderno no campo do conhecimento. No quinto
centenário da viagem de Colombo, Dussel fez questão de sublinhar como, ao desvelar
pela primeira vez o globo terrestre, a conquista colonial tivera repercussões
112
epistemológicas, articulando a releitura do mundo “desde uma Europa que se
autointerpreta, também pela primeira vez, como ‘Centro’ do acontecer humano em
geral, e, portanto, lança seu horizonte particular como universal” (DUSSEL, 1992:
36). Essa reflexividade imperial oferece um gabarito da história mundial como
difusão progressiva, como irradiação, como desdobramento do que ocorre em seu
núcleo original. A coerência retrospectiva da história europeia, antes referida, é
implicitamente assentada sobre a naturalização de sua superioridade – através da
história se resgatam os traços excepcionais dessa civilização que não só lhe alçaram
ao domínio mundial, mas que foram transmitidos aos outros povos por meio do
colonialismo. Da marcha do progresso até a sociologia do desenvolvimento no século
XX, essa geopolítica do conhecimento foi se renovando notavelmente (ESCOBAR,
2007; LEPENIES, 2008). Nunca é demais dizer: toda a conversão tácita da história
europeia em história universal tem uma elipse colonial entredita.
Em que sentido, então, “provincializar a Europa” pode ser uma agenda
propositiva, distinta do relativismo cultural, para a sociologia histórica dos estados
modernos? Tentaremos agora pavimentar o caminho para o desenrolar do capítulo.
Dito sucintamente, a crítica ao eurocentrismo indica uma necessidade de reverter a
compactação tripla entre as experiências históricas ocidentais, as categorias analíticas
em geral e a história do pensamento político ocidental. Ao desmembrar esses campos,
dividem-se agendas de trabalho independentes mas complementares. Em primeiro
lugar, essa descompactação permite restituir o que é contraditório e heterogêneo nas
múltiplas narrativas históricas sobre a própria Europa Ocidental e os EUA, uma vez
subtraída sua coerência retrospectiva. Se dissociados das definições mesmas de
“modernidade”, “democracia” ou “nação”, essas experiências podem ser reavaliadas a
partir do que lhe é particular, contingente e contraditório, a exemplo do que
comentamos brevemente sobre o Império Francês sob Napoleão. A rigor, a
dissonância entre certas expectativas institucionais da modernidade e a realidade
vivida não é algo restrito ao mundo não-europeu, que teria importado essas
instituições de fora, mas é inseparável dessas expectativas mesmas.
Ademais, a descompactação põe em evidência como a naturalização desse
cluster regional chamado Europa resulta anacrônica em um contexto histórico de sua
expansão imperial continental e ultramarina. Ao invés de reproduzir o “nacionalismo
metodológico” em escala continental, “provincializar a Europa” exige observar a
113
florescente renovação historiográfica53 que tem explorado o apagamento dos “povos
sem história” durante a expansão capitalista (WOLF, 1982), para a importância das
conexões
entre
dinâmicas
em
que
a
Europa
não
estava
no
centro
(SUBHRAMANYAM, 1997) e para uma perspectiva mundial tecida por essas
conexões (BAYLY, 2004). Além de perder um estatuto imediatamente teórico ou
normativo, a história europeia deixa de bastar-se em si, adquirindo sentido através de
suas interligações mundiais tecidas por processos concretos, ora pela escravidão e
pelo comércio, ora pela guerra e pelo genocídio, ora pela sexualidade, pela arte e pela
crença religiosa. A criatividade social deixa de emanar de um núcleo para suas
margens, mas se produz justamente nas conexões que, ainda que desiguais ou
violentas, são recíprocas em seus efeitos (KNOBL, 2016).
De outro lado, a descompactação dos conceitos analíticos abre uma segunda
linha de trabalho, que tem mais a ver com a reconstrução desses conceitos em uma
chave antieurocêntrica. Ela parte da suposição de que a teoria social existente não
pode ser nem rechaçada nem aceita uniformemente. Se constatamos que as noções
correntes de “cidadania”, “capitalismo” ou “estado-nação” são eurocêntricas porque
são modeladas sobre a experiência ocidental e autorreferenciadas no pensamento
político ocidental, como essa constatação deve repercutir sobre o conteúdo mesmo
desses conceitos? Em outras palavras, como o resgate das experiências subalternas e
não-ocidentais nos obriga repensar, situar ou reconstruir os próprios termos do debate?
Afinal, é ainda possível falar em “capitalismo” ou “nação” como categorias válidas
em geral? Uma saída provisória para esse impasse será trabalhada no final do capítulo,
partindo da proposta de Gurminder Bhambra de uma “reconstrução pós-colonial de
conceitos” (BHAMBRA, 2007; 2014; 2016).
Por fim, a referida descompactação separa as categorias analíticas correntes do
domínio vizinho da história do pensamento político e social ocidental, cujo objetivo é
compreender a produção e circulação de ideias em seu sentido e contexto histórico.
Não é razoável, assim sendo, dizer que Jean Bodin literalmente “inventou” a moderna
noção de soberania, que Nicolau Maquiavel plasmou a “razão de estado” como a
conhecemos, ou que a concepção teórica de democracia foi estabelecida por James
Madison. Se “democracia” ou “soberania” são categorias analíticas importantes para a
Referem-se a alguns trabalhos seminais na crítica historiográfica ao eurocentrismo, mas haveria
muitos outros por mencionar. Para uma introdução ao tema, vale a consulta ao manual de Sebastian
Conrad (2016).
53
114
análise social atual, elas não podem ser a mesma coisa que Madison e Bodin
escreveram em seus respectivos horizontes históricos. É razoável recorrer à história
das ideias para um debate conceitual, mas não se tomar uma coisa pela outra, assim
como não se pode substituir o estudo empírico da política dos Estados Unidos pela
leitura d’O Federalista54. Ao separar a história do pensamento político como um
domínio próprio, de resto, torna-se evidente a gritante negligência com tudo aquilo
que não foi escrito por homens brancos, eruditos e ocidentais. Como programa amplo,
“provincializar a Europa” na história intelectual não é só destronar seu cânone de
universalidade automática, mas exige uma revalorização consequente, no passado e
no presente, da imaginação política produzida fora dos centros.
As críticas contemporâneas ao eurocentrismo tem avançado em todas essas
direções: resgatar saberes subalternos, reavaliar a história mundial desde suas
margens e conexões, rediscutir conceitos supostamente universais a partir de
experiências subalternas. Tudo isso tem como contrapartida uma separação entre (1)
nossas definições de trabalho sobre um fenômeno (digamos, a “democracia” ou
“classe social”), (2) as múltiplas situações concretas observáveis no chamado
Ocidente (a classe operária inglesa ou a democracia nos Estados Unidos) e (3) aquilo
que o pensamento ocidental consagrado elaborou a respeito desses fenômenos (a obra
de Marx ou Tocqueville, mantendo o exemplo). Embora à primeira vista banal, essa
separação é uma premissa para pensar o antieurocentrismo para além da denúncia
destituinte (BRINGEL & DOMINGUES, 2015). Isso porque, no revés, a
descompactação do bloco eurocêntrico abre espaço para reconciliar a história e a
teoria social fora do centro, subvertendo a clivagem particularista imposta pelos
chamados estudos de área.
3.2. A teoria do estado na América Latina: reiteração e diferença
Os Estudos Latino-Americanos se constituíram nos Estados Unidos como uma
projeção de alteridade, como uma forma de orientalismo de norte a sul (FERES JR,
2005). Em diversos sentidos, e sem uma direção deliberada para que assim fosse, o
Conjunto de artigos de jornal publicados por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay para
defender a ratificação da Constituição dos Estados Unidos de 1787. É considerado um texto teórico
basilar sobre as noções de freios e contrapesos (checks and balances) e da separação institucional dos
três poderes (executivo, legislativo e judiciário).
54
115
estudo da outra América se fazia em oposição à imagem que se subentendia dos
Estados Unidos – moderno, branco, capitalista, secular, racional e individualista. A
presunção de que a América Latina encarna uma forma imperfeita da modernidade e
da cultura ocidental transcendeu seu contexto original, adquirindo versões mais
elegantes na prosa acadêmica. Desde as independências e praticamente sem cessar, a
intelectualidade da região lidou com o impasse entre reiteração (a urgência de
preencher o hiato que nos separa das sociedades ocidentais modernas) e diferença (a
reticência com a importação de modelos exóticos a nossa realidade). Esse dilema
talvez seja a expressão mais recorrente de nossa posição periférica, da colonialidade
do saber ou do predomínio prático do eurocentrismo como gabarito de
inteligibilidade.
Como dito na introdução da tese, desenvolvi previamente a ideia de que
persistiria certo
“viés modernizador” na sociologia histórica dos estados
latino-americanos: diante de uma concepção idealizada de estado, afirma-se ausência
ou incompletude; diante de uma concepção desenvolvimentista de história, afirma-se
a defasagem temporal ou a imunidade à mudança (BORBA, 2014). Reconheço que a
discussão sobre o estado na América Latina recebeu bastante mais atenção do que à
época eu conhecia, e certamente há muito além do que estou familiarizado hoje. O
tema foi alentado sobretudo nos anos 1970 pela preocupação com as ditaduras
civil-militares na região, pela efervescência do debate marxista europeu e pelas
expectativas de indução estatal nutridas pelo nacional-desenvolvimentismo. Boa parte
das figuras centrais do pensamento social latino-americano do período dedicaram pelo
menos um trabalho a decifrar teoricamente o que haveria de próprio ao estado e à
política na região (CARDOSO, 1977; CASANOVA, 1990; CUEVA, 1980; DILLON
SOARES, 1973; EVERS, 1981; FALETTO, 2014; GRACIARENA, 2014; LACLAU
& LECHNER, 1981; KAPLAN, 1974; 1996; IANNI, 1988; TORRES RIVAS, 1977;
ZAVALETA MERCADO, 1985). Se alargarmos aos aportes sobre colonialismo
interno, sobre a colonialidade do poder, sobre plurinacionalidade e sobre a
democracia na América Latina, a lista seria infindável.
Sendo impraticável condensar aqui uma resenha dessa literatura, que renderia
um trabalho paralelo, podemos, ainda assim, reter alguns pontos mínimos sobre
aquele momento: (1) existe um debate latino-americano sobre o desenvolvimento da
política moderna que não se resume aos preconceitos herdados dos Estudos
116
Latino-Americanos hegemônicos, nem à reiteração do “viés modernizador” com
relação aos estados europeus; (2) de forma panorâmica, essa tradição crítica não
apostou sua originalidade em um rechaço do pensamento ocidental, à moda de um
nativismo epistemológico ou relativismo cultural, mas a um engajamento criativo com
essa literatura, estabelecendo afinidades, contrapontos e questões novas. Como nos
demais campos, a reflexão latino-americana sobre a política esteve fortemente
apoiada no estruturalismo cepalino e no marxismo, ao passo que o funcionalismo, as
teorias da modernização e o cientificismo de matriz anglo-saxônica foram
sistematicamente objetos de crítica teórica e política (STAVENHAGEN, 1981).
O argumento central dessa seção é que essa sociologia crítica latino-americana
oferece ainda hoje uma base muito mais promissora para avançar uma crítica ao
eurocentrismo do que as correntes que se tornariam dominantes no debate posterior.
Sob as críticas usuais de economicismo, determinismo e obsolescência, o pensamento
marxista sobre o estado foi gradualmente sendo desalojado nas últimas décadas de sua
posição de destaque, e com ele qualquer teoria crítica do estado55. Parte de um
movimento mais amplo, a polêmica teórica sobre reiteração e diferença na análise dos
estados latino-americanos foi refeita por três novas correntes, que merecem algum
esclarecimento.
A primeira delas deslanchou nos anos 1990 a partir do trabalho sobre as
independências hispano-americanas do historiador François Xavier-Guerra (2000), ele
próprio inspirado no revisionismo historiográfico sobre a Revolução Francesa. As
reverberações de seu trabalho se alastraram amplamente no estudo da modernidade
política na América Latina do século XIX, mas manteremos a ênfase em suas
formulações originais56. A prioridade de Xavier-Guerra era destacar o novo ambiente
cultural que passa a envolver a política a partir da crise do Antigo Regime em fins do
século XVIII, quando referências modernas à nação, à soberania popular e à cidadania
adquirem centralidade no debate político. Contrapõe-se, portanto, ao estudo das
revoluções por sua dimensão de classe: os protagonistas na emergência da
modernidade política eram antes uma classe cultural de intelectuais e publicistas, sem
Desde o marxismo, a crítica ao desenvolvimento da análise política dos últimos trinta anos foi feita
por Atilio Borón (2003), Agustín Cueva (2015), entre outros.
55
Para alguns dos estudos diretamente inspirados no historiador francês, ver Annino & Guerra (2003),
Gouvea (1997), Knobl (2011), Rodríguez (2008), Sá Mader (2008), Uribe-Urán (2006), entre outros.
56
117
correspondência econômica imediata, unificada através do atlântico por seu credo
racionalista e republicano.
A modernidade, para o autor, deve ser estudada como um projeto ideológico
específico, uma concepção, um imaginário radical de refundação social. A crise da
monarquia espanhola abriu espaço para que se alterem os termos da linguagem
política corrente, até então dominada pelo pactismo neoescolástico e pelo absolutismo
doutrinário de inspiração francesa. No transcorrer da crise, a proliferação de
publicações e de espaços de debate, como saraus e tertúlias, configurariam uma
incipiente esfera pública independente em que autoproclamados cidadãos, despidos de
seus qualificativos de status, se valeriam da razão para refazer a constituição do reino.
Pela força dos acontecimentos, havia problemas imediatos a resolver em termos
de soberania, de representação e de organização constitucional. Nesse contexto, é
possível demarcar empiricamente, nos panfletos, opúsculos, periódicos ou discursos
que essa elite cultural agita durante a crise, a transição para a linguagem política
moderna, em que a soberania popular se deposita em uma nação unificada, composta
por cidadãos livres e iguais entre si. Essa abordagem transfere o problema para o
campo da história das ideias e prioriza a ação política de elites esclarecidas e letradas.
A segunda corrente que adquiriu centralidade no debate histórico-sociológico
sobre a política moderna na América Latina tem no sociólogo Miguel Angel Centeno
(1997; 2002) seu expoente de maior visibilidade. Herdeiro da macrossociologia
weberiana, ele a combina com uma tradição intelectual que remonta pelo menos a
Samuel Huntington, que abriu seu livro dizendo, em plena Guerra Fria, que “a mais
importante distinção política entre os países diz respeito não à sua forma de governo,
mas a seu grau de governo” (HUNTINGTON, 1968: 01).
Através de uma leitura peculiar da obra de Charles Tilly, Centeno propôs uma
relação causal e recíproca entre o histórico militar da região no século XIX e a
debilidade crônica de suas estruturas de governo: guerras intermitentes, internas e
limitadas haveriam resultado em instituições políticas mal desenvolvidas, com
precário controle sobre a violência, políticas públicas deficientes, baixa coesão
territorial e arraigados traços de clientelismo, discriminação e corrupção. Esses
estados, porque débeis, teriam menor capacidade e interesse em travar guerras
interestatais totais que poderiam, segundo a teoria, render-lhe maiores capacidades
fiscais e simbólicas. Essa circularidade negativa explicaria o que há de específico nos
118
estados latino-americanos quando comparados com seus homólogos europeus: o
baixo grau de governo, para usar a expressão de Huntington57.
Por fim, a terceira interpretação que ascendeu desde os anos 1990 é oriunda da
chamada Nova Economia Institucional, tendo como prioridade a relação entre
governança política e desenvolvimento econômico (ACEMOGLU & ROBINSON,
2012; DYE, 2008; NORTH, SUMMERHILL & WEINGAST, 2000; NORTH,
WALLIS & WEINGAST, 2009). O argumento gira ao redor de um determinado
conjunto de instituições – como a garantia de propriedade privada, a imparcialidade
procedimental, o pluralismo social e a segurança jurídica – que teriam uma correlação
no longo prazo com a performance econômica dos países que as enraízam. A pergunta
posta em termos históricos é em que medida essas instituições emergem ou não, que
obstáculos elas encontram e como elas explicam comparativamente o sucesso e o
fracasso das nações.
Com exceções pontuais, a leitura predominante é que na América Latina essas
instituições nunca se efetivaram adequadamente, fazendo com que pobreza e falta de
democracia se enlacem em um quadro institucional controlado por elites que dele se
beneficiam. Esse retrato é emblematicamente construído em oposição aos Estados
Unidos, cuja prosperidade é resultado dos incentivos de uma “ordem social aberta”
(NORTH, WALLIS & WEINGAST, 2009) ou de “instituições inclusivas”
(ACEMOGLU & ROBINSON, 2012). Moldando os incentivos para a acumulação
privada, essas instituições políticas se tornam os trilhos do desenvolvimento
econômico através da história humana: o liberalismo ressurge como sociologia
histórica comparada58.
Com efeito, essas três correntes ganharam relevância no bojo da crise do
marxismo latino-americano, recalibrando o debate sobre estado e cidadania na
América Latina nos últimos trinta anos. A avaliação que desenvolvo a seguir é a de
que essas três perspectivas, a seu modo, regrediram em temas centrais da crítica
57
Uma análise mais detida sobre essa corrente pode ser encontrada em Borba (2014: cap. 3)
Não se pode dizer que esse ponto de partida não seja explicitado pelos autores. Vide o excerto a
seguir, que deixa muito claro o fundo valorativo e o compromisso político postos na análise: “nós
entendemos que a boa organização da sociedade corresponde a um conjunto de instituições garantindo
que uma ampla e variada parte da sociedade [a broad and cross section of the society] tenha direitos de
propriedade efetivos. Referimo-nos a esse conjunto como instituições de propriedade privada, e
contrastamo-las com as instituições extrativas, onde a maioria da população vive sob elevado risco de
expropriação pelo governo, pela elite ou outros agentes” (ACEMOGLU, JOHNSON & ROBINSON,
2001: 13).
58
119
latino-americana ao discurso da modernização e seus pressupostos eurocêntricos,
estadolátricos e social-evolucionistas (BORBA, 2015). No caso do institucionalismo
neoliberal, que recria uma espécie de filosofia da história como foi a modernização, a
situação é bastante explícita. A arquitetura de seu raciocínio está baseada em uma
oposição temporalizada: na maior parte da história humana, imperaram “instituições
políticas extrativistas” ou “estados naturais”, que só recentemente foram substituídos
em alguns lugares específicos por formas modernas. Forjadas pela cultura ocidental,
essas formas novas conciliam a virtude da justiça – pluralismo político,
impessoalidade, bem público, propriedade privada – com o progresso econômico, na
forma de incentivos adequados aos agentes. Há uma racionalização retrospectiva da
história europeia em que sua dominação mundial se explica por essas mesmas
instituições, singulares, endógenas e progressivas, exportadas para o mundo através
do colonialismo e suas “neo-europas” (ACEMOGLU, JOHNSON & ROBINSON,
2000).
Sendo o objeto de pesquisa os estados latino-americanos, sua relação com a
teoria geral se define sempre em termos negativos. No capítulo inicial do livro,
Acemoglu e Robinson (2012) comparam duas cidades de mesmo nome da fronteira
EUA-México, decifrando sua diferença em termos das instituições prevalecentes em
uma e outra: “Por que as instituições dos Estados Unidos”, se perguntam, “são tão
mais conducentes ao êxito econômico do que as do México ou, a rigor, do resto da
América Latina?” (ACEMOGLU & ROBINSON, 2012: 09). O quadro descrito para
Nogales no México, que é transposto para a América Latina em geral, é de
instabilidade, criminalidade violenta, serviços precários, fraude eleitoral, ou seja, a
contrapartida negativa de Nogales nos Estados Unidos. A diferença se realiza como
ausência crônica59: de um lado da fronteira há perfeita indistinção entre teoria geral,
modelo normativo e exemplo concreto; no outro, uma descrição das deficiências que
colocam o caso aquém dos padrões da teoria (ver NORTH, SUMMERHILL &
WEINGAST, 2000).
Para mim parece incompreensível a ligação, recentemente sugerida em uma entrevista de Centeno
(2017), entre a obra de Douglass North e a teoria da dependência: “Eu suspeito que você em parte pode
traçar a recente consciência de North com os padrões históricos de construção de instituições à teoria
da dependência” (CENTENO, 2017: 78). A ideia de “padrões históricos de construção de instituições”
é usada em termos propositalmente genéricos, e acaba dissolvendo a orientação crítica da dependência.
59
.
120
Um raciocínio semelhante transparece na obra de Centeno (2002), em que o
“estado latino-americano” é revestido de características que constituem seu “fracasso”
frente ao modelo da Europa Ocidental, onde guerras interestatais recorrentes
produziram estados fortes e democráticos. Também aqui uma idealização da história
europeia se esgueira a parâmetro teórico e normativo. Se a preocupação com a história
é levada mais a sério do que no campo dos economistas institucionais, isso não altera
a estrutura geral do raciocínio: a modernidade é equivalente à emancipação
universalista das amarras do passado, o estado moderno realiza essa aspiração na
prática, e a Europa e os Estados Unidos são os exemplos imediatos dessa
possibilidade realizada. Logo, o resto do mundo se segmenta pela intensidade com
que conseguiu replicar a experiência ocidental de modernidade, cidadania,
propriedade privada, burocracia, etc. A pesquisa nesses casos adquire estatuto
eminentemente empírico, atingindo a discussão teórica como um “contrafactual” para
testar as razões do sucesso versus fracasso (CENTENO, 2002: 17).
O discurso triunfalista sobre a modernidade política e suas novas sociabilidades
é uma tônica da obra de Xavier-Guerra (2000), que tem o mérito de projetá-la em
contexto atlântico. O que ele entende por moderno, cumpre dizer, é espelhado nas
formulações iluministas que circulavam entre os letrados na época das independências,
sendo a França revolucionária a baliza, mais ou menos visível, de todo o livro. Isso
resulta em um conceito altamente restrito de modernidade, incapaz de reconhecer
mesmo o Romantismo alemão ou o socialismo internacionalista, por exemplo, como
fenômenos também modernos, para não falar da escravidão capitalista, do patriarcado
e da burocratização. Isenta de traços opressivos ou contraditórios, a modernidade é
reificada em oposição à tradição e ao Antigo Regime.
Ao definir a modernidade a partir do discurso otimista dos intelectuais da época,
resgata-se por vias tortas o problema da modernização como um projeto emancipador
de elites reformadoras contra uma sociedade atrasada, patrimonialista e avessa à
mudança (SHILS, 1960), resultando no que Gabriel Almond (1960), um pivô do
discurso da modernização, chamou de “dualismo cultural”. A sobrevivência de
corrupção, de clientelismo e de violência política não tem a ver com a modernidade
em si, mas com sua deturpação ou pelas camadas populares incapazes de
compreendê-la, ou por elites que se revelam insuficientemente modernas.
121
Lançamos um breve olhar sobre alguns epicentros da reorientação recente do
debate sobre a política moderna na América Latina, de modo a mostrar como ele
caminhou na direção contrária às críticas ao eurocentrismo que germinaram alhures
durante o mesmo período. Essa dificuldade reforça a compactação antes referida que
universaliza a experiência europeia: no caso de Xavier-Guerra (2000), o conceito
operacional de modernidade se confunde com o Iluminismo como movimento
intelectual e com a Revolução Francesa como episódio histórico; no caso de Centeno
(2002), a definição geral de estado se espelha nos estados europeus concretos, mas
também por uma explicação teórica produzida a seu respeito; no caso dos
institucionalistas, novamente a invenção intelectual, a efetivação histórica e a
produção de teoria sobre as instituições políticas modernas se resolvem internamente
no círculo das potências ocidentais.
A proposta de resgatar a trilha que estava sendo explorada pelo pensamento
crítico latino-americano nos anos 1950 a 1970 não significa que nossa resposta está lá
pronta, empoeirada nas bibliotecas, para ser lida60. Sem dúvida, ele não deixou de ser
também eurocêntrico em algum grau. À época foi predominante o reconhecimento do
estado de bem-estar social com democracia parlamentar, e sua crítica marxista em
curso na Europa, como a mais madura das determinações ou a forma acabada do
estado capitalista – o que o tempo acabou por revelar uma precipitação em parte
conjuntural, em parte eurocêntrica. Ainda assim, pavimentou-se ali o caminho
promissor de uma reflexão crítica sobre o estado moderno desde as margens do
sistema mundial. Ademais, o estruturalismo cepalino e dependentista encaminhou
uma nova chave para a polêmica entre reiteração e diferença: não mais como modelo
e deformação, mas como polos interligados em um sistema desigual. O marxismo
informou uma análise crítica do estado moderno, sem elevá-lo a vetor de realização de
uma modernidade tida como emancipação universal.
Agora nos encaminhamos para a parte mais interessante do capítulo. Até aqui
fizemos um mapeamento crítico da literatura, mostrando em linhas gerais como o
eurocentrismo organiza uma geopolítica do conhecimento com centros e periferias.
Nela, a prevalência de raciocínios difusionistas ou modernizadores esvazia as
Para uma tentativa de atualizar a discussão latino-americana sobre a modernidade, ver Domingues
(2008), que também propôs uma atualização da discussão de Cardoso e Faletto (DOMINGUES, 2013).
O trabalho de Monica Bruckmann (2011) também traça uma ponte entre o pensamento crítico
latino-americano clássico e a análise da conjuntura, a partir da integração entre movimentos políticos
de esquerda e os movimentos intelectuais de crítica imanente da realidade
60
122
periferias de significado teórico senão como contrapartida negativa de conceitos e
experiências referenciadas no centro. Isso dito, vamos tentar levar adiante a proposta
de reconstrução conceitual a partir de realidades pós-coloniais, em diálogo com o
movimento amplo de reconstrução de narrativas historiográficas em uma chave
antieurocêntrica.
3.3. Sociologia política diante da história mundial
A socióloga indiana Gurminder Bhambra (2014) argumentou que nossos
entendimentos sobre os fenômenos se alteram em consequência de novas e
significativas conexões que são reveladas neles. Ela se referia sobretudo ao
apagamento das experiências históricas de escravidão, colonialismo e despossessão na
construção teórica sobre a modernidade ocidental. Como dito antes, a reversão desse
apagamento é impossível por meio de seu simples acréscimo às narrativas e conceitos
já estabelecidos. Ao serem retiradas da invisibilidade, essas histórias impelem uma
revisão crítica dos próprios termos do debate. Por exemplo, ao investigar a relação
entre o mercantilismo, a escravidão capitalista e a industrialização inglesa, Eric
Williams (2012) não acrescentou meramente um capítulo à história conhecida, mas
desafiou as explicações correntes sobre a Revolução Industrial, iluminou uma
espacialidade que viria a ser chamada de Atlântico Negro e instigou um renovado
debate sobre o significado dos conceitos de capitalismo e racionalidade em termos
racializados. Mais do que a obra desse autor em particular, o desvelamento dessas
conexões corresponde à crítica ao eurocentrismo em movimento.
O desafio então passa a ser de reorganizar o pressuposto de que a política
moderna tem sua forma plena no estado-nação criado na Europa Ocidental, forma
essa que indicaria alguma coincidência entre governo, povo e território. Autores como
Richard Crossman, com quem abrimos o capítulo, postulam isso de forma clara:
“nação e estado são dois aspectos da ordem social ocidental, e cada um é inteligível
sem o outro”, concluindo, então, que “um Estado deve possuir ou surgir de uma base
de nacionalidade, e uma nação deve submeter-se a uma forma de controle
centralizado, se qualquer de ambas as organizações queira perdurar” (CROSSMAN,
1987: 22). Nossa crítica agora caminha em uma direção mais propositiva. Conforme
as fraturas nesse retrato forem aparecendo, resgato alguns termos apresentados nos
123
capítulos anteriores, justificando o desmembramento de uma noção genérica, o estado,
em conceitos mais delimitados e processuais, como o de ordem política e de ciclo
extrativo-coercitivo.
Como Craig Calhoun (2008) entre outros mostraram, a imagem da Europa
moderna de estados nacionais reproduz um preconceito orientalista de que “impérios”
são os outros, os persas, os chineses, os turcos, os indianos, nunca os próprios
europeus ocidentais. Subentende-se que os impérios na Europa pertencem a um
passado remoto, o que fundamentalmente apaga o colonialismo da história moderna.
Em termos espaciais, há uma desconexão forçada do espaço político das metrópoles
europeias de sua contrapartida imperial, que diz respeito à história da maior parte do
mundo (BHAMBRA, 2016). Em termos teóricos, a modernidade se torna um
fenômeno metropolitano, vivido em suas cidades, em suas fábricas, em seus
parlamentos. A ideia de igualdade entre os nacionais subjacente ao estado-nação não
se sustenta na escala dos impérios, como vimos no exemplo dos revolucionários
haitianos que aspiravam, em um primeiro momento, ser franceses e livres.
Durante o século XIX, como aponta Cooper (2005: cap.1), a racialização é
componente decisiva da divergência que vai se estabelecendo entre centros
metropolitanos cada vez mais republicanos e democráticos e suas possessões coloniais,
governadas de forma mais brutal e discricionária. Mas se poderia retroagir o
argumento no tempo. No contexto da América após a conquista espanhola,
especialmente na Nova Espanha, apartaram-se dois regimes políticos dentro da
mesma sociedade: a “república de espanhóis” e as “repúblicas de índios” ou
“naturais” (LEVAGGI, 2001). Dominantes na política mundial pelo menos até o
século XX, impérios não são geralmente governados por regras uniformes aplicadas
indistintamente a seus súditos, nem apelam a uma ideia unitária de povo, mas
justamente segmentam lógicas de integração e diferenciação dos espaços políticos
imperiais (COOPER, 2005: cap. 5). Deixariam então de ser modernos por isso? Teria
a modernidade política começado efetivamente há apenas meio século, quando enfim
soçobraram os impérios ultramarinos europeus?
Curiosamente, tampouco foi este meio século o momento áureo de
estados-nação propriamente ditos, mas sim, a julgar pela literatura especializada, de
sua crise, enlevada pelos desafios contemporâneos do multiculturalismo, da
globalização, da xenofobia, do plurinacionalismo, do supranacionalismo e das
124
autonomias subnacionais. Na ressaca pós-imperial da política moderna, o pensamento
eurocêntrico passou a diagnosticar o declínio do estado-nação como se ele de fato
tivesse existido solidamente no passado. Há um paradoxo pelo qual quanto mais se
assume conceitualmente do estado-nação como forma política da modernidade, menos
se encontram estados desse tipo quando o critério é efetivamente aplicado.
Essa sobreteorização jaz sobre uma premissa, falsa pelo que se disse acima, de
que o estado-nação sobrepujou efetivamente as alternativas, tornando-se o objeto dos
sociólogos enquanto o resto poderia ser entregue aos historiadores. A ideia de
estado-nação é um ícone do eurocentrismo não só porque ignora ou mal representa as
experiências políticas das periferias, mas também porque, em outra direção, normaliza,
filtra e adéqua conforme o modelo a própria história da Europa e dos Estados Unidos,
onde a coincidência entre estado, território e povo, se alguma vez existiu, foi
largamente marginal.
Para sair desse impasse, é preciso entender em separado o que está compactado.
Comecemos com a “nação”. De saída, ninguém negaria a relevância mundial do
nacionalismo moderno e de sua literatura especializada. Conceitualmente, contudo, o
florescimento das análises sobre o tema partiu de uma postura antinaturalista: nações
não simplesmente existem enquanto grupo humano coeso, elas são construções
simbólicas de unidade, são imaginários cuja tessitura é possível rastrear, documentar,
explicar. Ora, a força do nacionalismo tampouco é um dado, uma espécie de exigência
funcional das sociedades modernas. Sua validade depende da capacidade de,
elaborando sobre os significados desse pertencimento, mobilizar as pessoas em um
determinado contexto com um determinado propósito, tornando-se, então, real em
suas consequências.
Sem dúvida, essa é a linguagem com que falamos de relações ético-políticas no
capítulo 1. Nações são apelos ético-políticos contingentes, e portanto precisam ser
entendidos em seus três momentos: em sua construção como uma “estória eticamente
constituída”, em suas linhas divisórias do pertencimento político e na contestação que
se estabelece ao redor das consequências práticas desse pertencimento seletivo. Nessa
gramática os sentidos da nacionalidade são móveis de uma disputa mais ampla sobre
as fidelidades políticas, e para tal não precisam ser a forma final ou efetivamente
moderna dessa disputa. Na América Latina, mas não só, o nacionalismo foi
apropriado em chave anti-imperialista pelo menos desde José Martí na luta pela
125
independência de Cuba, tornando-se uma força de mobilização popular contra a
ordem vigente.
Agora, são estados-nação todos os estados que articulam alguma forma de
apelo nacional de pertencimento? A única resposta afirmativa possível é tautológica.
É possível reconhecer que apelos nacionais existiram em um império capitalista como
a Inglaterra vitoriana, em movimentos insurgentes, em uma cidade-estado
multicultural como Singapura, ou nas repúblicas racialmente divididas das Américas
nos oitocentos. Dizer que todas e quaisquer organizações políticas onde se identifique
um imaginário de unidade nacional são estados-nação é uma manobra mais retórica
que conceitual, daí a tautologia. Em geral, os estudos sobre nacionalismo avançaram
justamente quando assumiram o “estado-nação” como aquilo que ele de fato é: uma
aspiração política do próprio ideário nacionalista, uma forma imaginada de soberania
popular unitária, ligada a uma utopia de como a sociedade deva ser. Ou seja, não é
porque o nacionalismo projeta o estado como a realização, a totalização e o avatar da
sociedade que governa que os analistas devam manter essa reificação intocada
(CHERNILO, 2007). Os apelos de pertencimento e unidade se tornam interessantes
justamente quando são postos diante das clivagens raciais, religiosas, regionais,
classistas e coloniais que querem obscurecer.
Há outra consequência interessante nesse movimento. Historicamente a
decolagem de nacionalismos no século XIX é contemporânea de um grande
movimento de extroversão imperial da Europa, de modo que ele não se resume a uma
aspiração de comunidade e igualdade de um povo no estado (BAYLY, 2004: cap. 6).
No mesmo movimento ele circunscreveu essa nação diante de um mundo exterior,
assiduamente generificado como mostra Stuart Hall (1995: 300-303), a ser
conquistado em nome de sua própria grandeza. Comentando sobre a Europa
contemporânea, John Holmwood alerta as sérias consequências dessa miopia: “o
ponto não é que a imigração começou agora a deteriorar solidariedades, mas que as
solidariedades foram formadas sobre uma política racializada dos encontros
coloniais” (HOLMWOOD, 2016: 159). A tessitura cultural do nacionalismo europeu
não simplesmente diferenciava o francês do alemão, como é usualmente repetido, mas
126
igualmente, dentro do mesmo império, o francês autêntico do tuaregue, do caribenho,
do vietnamita, do polinésio61.
Justamente por perceber esse conteúdo implícito que diversos intelectuais
latino-americanos do século XX, como Eliécer Gaitán, Gabriela Mistral e José
Vasconcelos, reivindicaram um significado diferente para o nacionalismo quando
mobilizado fora de, e contra, as potências imperialistas (DEVÉS VALDÉS, 1997;
FUNES, 2006). Para Mariátegui, em sua polêmica com a APRA, a única forma de ser
coerentemente nacionalista era aderindo ao socialismo. Refeitas suas conexões
imperiais e coloniais, e portanto além das fronteiras que ele próprio estabelece, o
nacionalismo europeu oitocentista fortalece laços culturais internos daqueles que se
percebem na cabeça do império mundial, enquanto mantém fora dessa comunhão os
povos, línguas e culturas que estão nas bases subjugadas desse império em formação.
Por essa razão sublinhamos, ao tratar anteriormente do imaginário nacional no
âmbito das relações ético-políticas, que ele é inseparável das práticas cotidianas de
exclusão que tornam a inclusão inteligível. Isso nos leva a ver a conformação de
linhas móveis de inclusão e exclusão que discernem as consequências práticas do
pertencimento, seja no caso do nacionalismo em um império multicontinental, seja no
do colonialismo interno em uma república racista. O mesmo vale para um movimento
anticolonial, que elabora um apelo nacional que exclui os colonizadores. A vigência
dessas linhas divisórias não é um traço de uma modernidade ainda imperfeita, de uma
herança social mal superada ou da incapacidade de chegar a um estado-nação
propriamente universalista, mas sim uma visão menos eurocêntrica do que o
pertencimento político significa na prática. É a agência política que move essas linhas
conforme se apropria de imaginários de pertencimento político.
Se descartamos a expressão original hifenizada (“estado-nação”), e deciframos
o termo “nação” no bojo de relações ético-políticas mais amplas e agonísticas, como
pode ficar o termo “estado” agora isolado, assim indeterminado? Por um lado, é claro
que dispensamos um conceito que viaje dos hititas e sumérios antigos até o presente
sob uma definição comum do que “estado” significa. Tampouco parece recomendável
Falando sobre o século XIX, Bayly argumenta que “o imperialismo e o nacionalismo eram parte do
mesmo fenômeno. Nacionalismo e conflito na Europa fizeram os estados mais conscientes de seus
competidores estrangeiros e mais inclinados a delimitar demandas e preferir seus próprios cidadãos. A
partilha da África foi, de fato, um exercício parcialmente preemptivo, pelo qual governos nacionais
tentaram antecipar o caminho de seus rivais ao reivindicar faixas de território que podiam em algum
momento futuro se tornar importantes econômica ou estrategicamente” (BAYLY, 2004: 230).
61
127
abandonar de todo o termo, especialmente para análises políticas de longa duração
histórica. Recorrer ao adjetivo “moderno” parece uma saída simples para delimitar o
alcance histórico, mas acaba recolocando todos os problemas vinculados à definição
de modernidade. Conceitualmente, diríamos que um estado moderno é aquele que tem
uma burocracia impessoal, uma nação consociada, um regime democrático, uma
regulação efetiva da economia e um direito racional? Obviamente uma resposta
positiva nos levaria de volta ao campo do weberianismo da modernização,
confundindo tipo-ideal com teoria normativa e mensurando desvios, maiores ou
menores, entre os casos e o modelo.
Sabemos que as organizações políticas existentes durante a modernidade são
muito mais heterogêneas e contraditórias que esse modelo sugere, e não são só os
impérios capitalistas dos séculos passados que perturbam a uniformidade. Olhando
em escala mundial, teríamos que admitir o desafio de estipular características
“modernas” que englobem monarquias teocráticas como o Vaticano e a Arábia
Saudita, cidades-estados como Liechtenstein e Singapura, regimes de inspiração
comunista como Cuba e Coreia do Norte, regimes desenvolvimentistas autoritários ou
repúblicas de apartheid racial. Quanto mais retroagimos no tempo, mais heterogêneo
ficaria o universo empírico a ser coberto. Se assumimos que são modernos todos os
estados existentes na modernidade, esta última precisa diluir muito do seu sentido
usual.
Diante desse problema, recorremos uma vez mais à abordagem sistêmica do
capítulo 2: em suma, não há estados mais e outros menos modernos, nem estados
modernos primeiro na Europa e depois no resto do mundo, mas sim um sistema
interestatal moderno, cuja origem remonta às conexões atlânticas do “longo século
XVI” (c. 1450-1650). Em outras palavras, “moderno” diz respeito às dinâmicas
sociais em curso nessa espacialidade e uma temporalidade definidas historicamente,
inclusive em suas situações contraditórias. Assim, são “estados modernos” aquelas
organizações políticas que se engajam continuamente na dinâmica competitiva do
sistema, que são partes regulares de suas interações.
Por um lado, isso não incorpora indistintamente qualquer forma de organização
política existente no mundo desde o século XVI, pois a maior parte delas, do império
asteca sob Moctezuma, das “sociedades contra o estado” na América do Sul ao reino
havaiano de Kamehameha I, foi subsumida violentamente a esse sistema ao invés de
128
se tornar parte soberana dele. De outro lado, existe uma controvérsia interessante
sobre a autonomia resguardada nos circuitos políticos e comerciais no Índico mesmo
com a presença dos impérios ultramarinos europeus nos séculos XVI a XVIII. A
definição não se basta em parâmetros abstratos, pois ela adquire sentido conforme a
circunstância histórica em que se aplica.
Essa saída sistêmica tem a vantagem de remover as premissas triunfalistas que
incutem no “estado moderno” uma avalanche de esperanças emancipatórias de
igualdade e liberdade. Pelo contrário, resgata a perspectiva crítica que permite
vincular as aspirações universalistas, inclusivas e igualitárias em um quadro sistêmico
mais amplo, onde se conectam com histórias silenciadas de trabalho coagido,
espoliação imperialista, controle migratório, biopirataria, exploração capitalista e
troca desigual. Por certo, a história da modernidade é atravessada de práticas
opressivas que não podem ser simplesmente abstraídas ou insuladas.
Agora, como questão prática, o que significa dizer que uma organização
política interage com as demais como uma unidade do sistema interestatal moderno?
O elemento fundamental é sua capacidade de comandar um ciclo extrativo-coercitivo
próprio no tempo e no espaço, isto é, a capacidade de extrair recursos regularmente e
dispor do controle político da violência, com o qual essa extração seja protegida,
renovada e eventualmente expandida. Ademais, a proteção, renovação e expansão são
possibilidades que se definem, em última instância, por condições em curso no
sistema mundial – pela guerra, pela diplomacia, pela crise econômica, pela
concorrência interestatal pelo capital circulante, pela internalização relativa das
cadeias mundiais de valor, e assim por diante.
Desse ponto de vista, não é prioritário definir parâmetros formais do que deva
ser um estado para fazer parte do sistema, pois substitui-os um critério de efetividade
prática, qual seja, a continuidade no tempo e no espaço. É nesse sentido que
“estados-nação e estados-impérios são, antes de tudo, estados” (COOPER, 2005: 27).
A prioridade do “controle político da violência” sobre o monopólio legítimo da força,
em nossa discussão inicial sobre a coerção, tinha justamente o propósito de deslocar
as expectativas formais implícitas, atraídas pela forma da lei. Pode parecer cínico,
mas a diferença crucial entre o chamado “Estado Islâmico do Iraque e da Síria” e um
estado moderno não advém do fato de que o primeiro não respeite os direitos
humanos, misture religião e política, obtenha receitas oriundas do contrabando
129
internacional e imponha suas leis mediante uso da força bruta, porque estados
modernos também fazem isso. A diferença fundamental é que, no caso do Estado
Islâmico, a capacidade de articular sua autoridade com mobilização militar e extração
regular de recursos sofreu uma rápida e definitiva disrupção por ação de seus
inimigos.
A diferença entre regimes teocráticos, repúblicas socialdemocratas e governos
fascistas não é um grau de modernidade, mas sim uma mudança na forma como uma
ordem hegemônica específica se sobrepõe politicamente sobre suas alternativas. No
capítulo 1, descartamos a oposição entre ordem-desordem, assumindo que a
institucionalização de uma concepção de sociedade bem ordenada é um processo
político, inseparável da subordinação de projetos alternativos de ordenamento. Nesse
processo, incide uma circulação internacional de ideias e conhecimento aplicado, e os
agentes políticos ativamente mobilizam situações exemplares e contraexemplares, no
presente e no passado, conforme seus propósitos políticos (MÉNY, 2011). Isso não
significa que haja concepções modernas e arcaicas, ou governos mais ou menos
modernos, ou que haja um processo discernível de modernização da política em curso.
Ora, projetos de reordenação social radical, como o que Xavier-Guerra (2000)
encontrou nos publicistas liberais do começo do século XIX, são parte dessa disputa
de horizontes, mas ela não se resume à persuasão de discursos e panfletos. Seja em
espaços imperiais ou em estados territoriais, a agonística da ordem é feita de
confronto político [contentious politics], com a mobilização de recursos, estratégias e
repertórios pelos grupos organizados diante de suas oportunidades políticas. Nessas
disputas as palavras mudam de sentido, viajam de contexto, eventualmente trocam de
afiliação política e inclusive se convertem em lei escrita. Ao invés de uma invenção
de um grupo restrito de intelectuais, a modernidade política se produz no entrechoque
entre projetos de ordenamento social, dentre os quais participou, sem dúvida, o
racionalismo republicano na Era das Revoluções.
Em suma, a discussão inicial que fizemos sobre o ciclo coercitivo-extrativo,
sobre a ordem política e suas linhas de inclusão e exclusão, e sobre a contestação, a
barganha e o cálculo do dissenso não subentende uma forma singular de estado-nação.
O sistema mundial moderno é composto por unidades relativamente heterogêneas,
mas que, a seu modo, projetam com sucesso relações de dominação política no tempo
e no espaço, convertem essa dominação em circuitos regulares de extração, gasto e
130
controle social, organizam formas seletivas de pertencimento que tem consequências
reais para a vida das pessoas, lidam com iniciativas efetivas de contestação da
autoridade e das linhas divisórias do pertencimento, de promoção de interesses
particulares, ou mesmo de reivindicações concorrentes de governar.
Mais do que isso, essas organizações políticas o fizeram em interação contínua
com as demais, isto é, em competição pelas condições para a reprodução ampliada de
seu ciclo extrativo-coercitivo, o que pode querer dizer, conforme o contexto,
industrialização nacional, aquisição de novas colônias, a expansão territorial, controle
migratório, a proteção contra importações ou o aumento das exportações. Todo o ciclo
extrativo-coercitivo está pressionado não só pelo dissenso interno, mas pelas
múltiplas interfaces competitivas na economia mundial capitalista e do sistema de
estados.
3.4. Para além da reiteração e diferença: estados pós-coloniais na periferia
Do ponto de vista teórico, o problema principal do debate sobre reiteração de
modelos gerais versus a diferença das experiências latino-americanas foi tentar
equacionar uma solução sem desafiar consistentemente o significado desse modelo,
usualmente uma imagem eurocêntrica de estado-nação. A saída, então, reincidiu em
premissas modernizadoras, ora como temporalização da diferença, ora como
deficiência crônica com relação ao modelo. Na maior parte da história moderna, como
vimos, o que esteve por trás dessa imagem de estados-nação territoriais foram
impérios capitalistas multicontinentais, com lógicas raciais, culturais e espaciais de
diferenciação interna. Não só a mobilização de capital e coerção, mas a imaginação
política e as disputas concretas foram alimentadas pelas conexões erigidas por esses
espaços imperiais em competição entre si.
Diante disso, pode-se argumentar que a instituição do modelo de “um estado,
uma nação” foi antes uma invenção latino-americana que europeia (LÓPEZ-ALVES,
2011a; 2011b), o que é uma provocação interessante mas inconclusiva. Faz bem em
reforçar o caráter multicêntrico das origens do nacionalismo moderno, o que por certo
já aparecia em Benedict Anderson (1993), e da modernidade em geral como um
fenômeno que não é historicamente exótico à América Latina. Mas é inconclusiva
porque mantém o problema do “estado-nação” oscilando entre dois clusters regionais
131
separados, a Europa e América Latina, restringindo o debate à questão do pioneirismo.
A propósito, o ponto de partida da historiografia “conectada”, que inspirou as
“sociologias
conectadas”
de
Bhambra
(2014),
foi
justamente
questionar
metodologicamente a presunção automática dos blocos regionais herdados dos
estudos de área (SUBHRAMANYAM, 1997). É inglória a tarefa de definir a
especificidade do “estado latino-americano” porque ela, nesses termos, parece
magneticamente atraída ao paroquialismo e ao essencialismo, como se a América
Latina possuísse traços, únicos se vistos de fora e uniformes se vistos de dentro, que a
destacassem do escopo da teoria social enquanto tal. Provincializar a Europa acaba
por, em algum sentido, exigir que se desprovincialize a América Latina em uma
sociologia política conectada, conceitualmente mais densa que a controvérsia sobre
pioneirismo.
A teoria da dependência subverteu os estudos sobre o capitalismo ao
argumentar que o subdesenvolvimento no Terceiro Mundo não era um sintoma da
falta de capitalismo, mas da força de sua lógica internacionalmente desigual. Isso não
fazia com que economias dependentes exigissem uma teoria à parte, mas que a
economia política precisava refletir não só sobre a experiência das economias
industriais do centro, mas também sobre as múltiplas situações de dependência
estrutural e subdesenvolvimento a ele associadas. Ao invés de trajetórias separadas de
desenvolvimento nacional escalonadas conforme seu progresso relativo, as críticas
dependentistas colocavam em evidência uma economia mundial capitalista com
posições hierárquicas, que só eram inteligíveis em sua interação. Ademais, buscava
descrever mecanismos concretos, como a troca desigual, a dívida externa e a
superexploração do trabalho, para explicar essas economias dependentes, revigorando
desde as margens a economia política como um todo. O capitalismo na América
Latina não era decifrado como “latino-americano” em si, mas através de situações
históricas (i.e. conectadas) de dependência, que ocorriam na América Latina como
alhures.
A proposta de retomar a trilha da sociologia crítica latino-americana dos anos
1960 e 1970 busca resgatar esse movimento de crítica periférica ao discurso da
modernização. Naquele contexto, a implicação do argumento para a análise política
foi limitado, girando ao redor de uma relação causal entre dependência e
autoritarismo que supunha a democracia parlamentar como um traço típico do
132
capitalismo industrial do centro. O argumento final desse capítulo coloca outras
categorias para fazer esse movimento, buscando oxigenar a hipótese de
desenvolvimento desigual da política moderna. A partir do arco descrito pelo “longo
século XIX” na América Latina, a proposta é pensar a formação de estados
pós-coloniais, que também são estados na periferia do capitalismo.
As duas caracterizações precisam ser analisadas em seu próprio mérito. O
exame delas não se baseia em uma tentativa de estipular coincidências empíricas
através dos casos, do tipo “estados pós-coloniais” tem menos coesão nacional, ou
“estados na periferia” tem maior incidência de golpes de estado. Esse tipo de
regularidade não é só complicado de verificar, mas também tem certas fragilidades do
ponto de vista teórico e epistemológico62. O caminho será definir essas categorias em
termos dos processos de longa duração que as identificam, no caso o colonialismo
moderno e a divisão internacional do trabalho, em conexão com a formação de
estados – sem supor que essa relação determine uma homogeneidade empírica no
presente. Se bem-sucedido, o que sim se depreende do argumento é que o sistema
interestatal moderno obedece a uma lógica desigual, logo não difusionista, de
expansão.
Em primeiro lugar, vamos observar o tema de um estado pós-colonial. Por
certo, a proliferação do termo “pós-colonial” gerou como subproduto uma agregação
forçada de experiências históricas muito diferentes, do Caribe ao extremo Oriente.
Dependendo do ponto de observação que se adote, “colonialismo” implica uma
temporalidade histórica, um contexto e um projeto de sociedade bastante diversos.
Para o estudo do que seria a sociedade “pós-colonial”, os mandatos anglo-franceses
no mundo árabe do pós-Primeira Guerra acumulam diferenças significativas com o
que foi a longeva ocupação espanhola no México e nos Andes, para usar um exemplo
inequívoco. Para ancorar o problema em chão firme, vamos recorrer aos termos do
capítulo anterior, em que o “colonialismo” se situa nas margens expansivas do
sistema interestatal capitalista.
A fragilidade se refere à pressuposição ontológica de uma realidade formada por eventos
independentes, justaposta a uma visão humeana de causalidade como conjunção constante entre esses
eventos. A influente crítica de Bhaskar (2008) ao empirismo é pertinente aqui. A categoria não adquire
pela uniformidade de suas expressões empíricas, que são objeto de inúmeras outras interferências em
um sistema aberto, mas pelos mecanismos causais que permitem concatenar essas trajetórias empíricas.
Ver também a apropriação crítica de Bhaskar por José Maurício Domingues (2018).
62
133
O colonialismo moderno é uma plataforma de extroversão do sistema mundial,
em que as oportunidades de vantagens relativas – reais, percebidas ou projetadas para
o futuro – na competição interestatal e na competição intercapitalista impulsionam
reivindicações de soberania contra os povos. Desse ponto de vista, já presente no
capítulo 2, o colonialismo não se resume à estrutura administrativa que é formalmente
instituída nas sociedades coloniais, mas à multiplicação de chances de comércio,
pirataria, contrabando e trabalho coagido que se faz ao seu redor. Ao contrário do que
a etimologia latina do termo sugere, o colonialismo moderno aqui menos relação com
a transferência de pessoas para povoar e governar a colônia do que com o sistemático
processo de expropriação de terras, rios, florestas, minérios, combustíveis e do
conhecimento nativo sobre eles. Em sua contraface, essa expropriação se torna
contramercados à acumulação (ver seção 2.2). Parte da ideologia do colonialismo,
como já observamos, é esconder essa acumulação por despossessão subentendendo
um “vazio” para explorar e povoar, com encontros acidentais ou exóticos no percurso.
Do ponto de vista político, essa extroversão do sistema interestatal moderno
almeja subordinar as ecologias políticas pré-existentes aos espaços imperiais que os
governam. Ao sobrepor a elas essa reivindicação de soberania imperial, produz-se um
estremecimento, uma interrupção das rotinas prévias da política, isto é, um impasse
perante as formas pelas quais o exercício de autoridade até então se reportava a
práticas e crenças socialmente arraigadas. Para lidar com esse impasse, gera-se
continuamente no interior desses espaços imperiais uma expediência formal ou
informal, do genocídio à indiferença seletiva, da governamentalidade colonial ao
recrutamento de elites nativas. As linhas de inclusão e exclusão política formadas pela
extroversão imperial abrem inevitavelmente um terreno de fricção. Igualmente, a
propulsão do ciclo extrativo-coercitivo por espaços imperiais internamente
diferenciados acaba por produzir dissenso e disputa sobre a seletividade inerente a
esse ciclo, no caso do uso da violência contra os nativos, na sucção fiscal da colônia,
no acesso a determinadas posições de poder, na tensão entre integração e
diferenciação do império.
O colonialismo não adquire coesão conceitual pela uniformidade da
expediência política com que os espaços imperiais se ratificam no tempo e no espaço.
Sua coerência interna se revela anteriormente, na própria existência desses impérios
como vetores e resultados da expansão competitiva do sistema. Por isso dissemos no
134
capítulo 2 que o colonialismo não foi um traço particular das sociedades colonizadas,
mas um motor do sistema como um todo. Da mesma forma, a existência de “estados
pós-coloniais” não pode ser um predicado dessas organizações em particular, mas sim
sua posição relativa na retroação histórica da expansão colonial. Ela assegura que
estados soberanos, embora formalmente iguais entre si, não são unidades seriais com
“modelos ontogênicos comuns”63, mas trajetórias opostas de um desenvolvimento
desigual de expansão e retrocesso de estados imperiais.
Partindo de uma leitura de sistemas mundiais, Kojin Karatani lançou uma ideia
bastante original, embora por ele pouco desenvolvida: a de que o imperialismo
capitalista destruiria a base comunitária agrária das sociedades que invade, fazendo
com que a reação a ele não tome a forma de rebelião rural ou tribal, mas de uma
comunidade imaginada de tipo nacional contra o imperialismo. Segundo Karatani
(2014: 226), “o imperialismo – ou seja, o governo por um estado-nação sobre outros
povos – acaba criando novos estados-nação sem nunca o ter pretendido”. Sem dúvida,
o autor carrega forte herança eurocêntrica no argumento, assumindo que o surgimento
do estado-nação francês com Napoleão gerou sucessivas reações nacionais em
círculos concêntricos até o mundo não europeu64. Neste último, nada digno de
elaboração conceitual teria ocorrido que já não tivesse sido prenunciado, por exemplo,
pela resposta romântica alemã ao invasor francês. O maior ponto cego da análise de
Karatani parece ser justamente a América Latina. Suas duas categorias funcionam da
seguinte forma: “impérios” mundiais são contestados por revoltas tribais ou agrárias
ao contrário do que ocorre com estados-nação; estes, quando governam outros povos,
exercem “imperialismo” e são contestados por novas comunidades imaginadas
nacionais. Na América Latina, pelo contrário, a colonização é efetivada por impérios
(que não são estados-nação no sentido que Karatani extrai de Benedict Anderson),
mas a independência é articulada por movimentos “nacionais”, e não rebeliões tribais.
63
A expressão é de Phillip McMichael em sua crítica aos supostos da teoria da modernização. O
contexto exato é que, no âmbito daquele paradigma, “se supunha que as sociedades nacionais eram
sistemas autônomos com modelos ontogênicos comuns” (MCMICHAEL, 1992: 380).
64
O trecho seguinte resume esse aspecto: “E assim como a aparição de um estado soberano
imediatamente fez surgir [gave rise to the appearance of] outros, o estado-nação igualmente proliferou
para produzir estados-nação em outras regiões. A primeira manifestação disso veio com a conquista da
Europa por Napoleão. Ele pretendia transmitir os ideais da Revolução Francesa, mas, como nós vimos
com Fichte, Napoleão abriu caminho para o nascimento de estados-nação nas áreas ocupadas pela
França” (KARATANI, 2014: 224-225).
135
O que vale a pena explorar do argumento de Karatani é que o imperialismo
ocidental produz uma espécie de retroação que pode resultar no desmembramento
desses impérios em estados soberanos sem que isso fosse um desígnio original da
própria colonização65. Karatani considera corretamente que o “conceito de estado
soberano em si implica que países sem um estado soberano reconhecido podem ser
governados por outros” (KARATANI, 2014: 168). A aplicação desse princípio
sustentou a soberania contra os povos, nas Américas como alhures. Lembrando a
alusão a Tordesilhas no capítulo anterior, a soberania só foi reconhecida pelos
invasores europeus entre si, ou seja, por intermédio do colonialismo.
Nesse contexto, “países que querem escapar desse tipo de governo externo
precisam declarar-se estados soberanos e ganhar reconhecimento como tal das
potências ocidentais” (KARATANI, 2014: 168). Mais do que o “estado-nação”, é a
inclusão no perímetro de estados soberanos que se oferece como saída ao jugo
colonial ou, como disse Polanyi, “alcançar o status político necessário para
protegê-los das distorções sociais causadas pelas políticas comerciais europeias”
(POLANYI, 2012: 204). Vistos dessa perspectiva, estados pós-coloniais são
organizações políticas que se desdobram de uma situação de soberania múltipla em
espaços imperiais agregados pelo colonialismo moderno; em outros termos, são
reivindicações bem-sucedidas de soberania das margens contra o núcleo desses
impérios.
Há outra ideia interessante que se desdobra do raciocínio de Karatani. A ampla
predominância no mundo atual de relações ético-políticas baseadas na soberania
popular é sobretudo um resultado de sua apropriação estratégica em tais situações de
soberania múltipla, isto é, nas lutas anticoloniais como lutas de “libertação nacional”
em sentido lato. A forma como a dominação ocidental institucionalizou a soberania
entre e contra os povos ampliou, em determinadas conjunções críticas, oportunidades
políticas para quem articulasse o léxico de soberania popular contra a autoridade dos
Uma hipótese conceitual subsequente a explorar nessa direção é sugerida por C. A. Bayly ao
comentar as mudanças políticas na Eurásia pela pressão militar e comercial exercida pelos ocidentais
no fim do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX. Para além dos espaços efetivamente
colonizados, houve uma resposta preemptiva mais generalizada. Em suas palavras, foi “a expansão dos
impérios europeus que estimulou o rápido desenvolvimento de formas estatais modernas por todo o
arco que vai da Pérsia ao Japão. Todos os novos reinos que brotaram entre 1780 e 1820 tentaram
combinar formas nativas de tributação rural, ou produção direta de receita, com a capacidade militar e
avareza capitalista da Europa contemporânea” (BAYLY, 2004: 259). Essa hipótese seria coerente com
o entendimento sistêmico do colonialismo postulado no capítulo 2, que o entende como um processo
mais amplo que as situações imediatas de administração colonial.
65
136
impérios, isto é, para movimentos políticos que retraçassem o pertencimento político
nessas linhas divisórias. Ao redefinir o pertencimento contra a autoridade colonial,
pressiona-se o perímetro de reconhecimento da soberania entre os povos. Esse duplo
movimento, se bem-sucedido, desenlaça o confronto político em estados
pós-coloniais.
O fato de que certas reivindicações anticoloniais de soberania popular
triunfaram não significa que elas fossem democráticas e igualitárias. A mais
conhecida delas recorreu emblematicamente à soberania popular (“Nós, o povo dos
Estados Unidos...”) com um recorte racial, mantendo fora desse imaginário os
afro-americanos e os povos indígenas norte-americanos. Em 1965, a independência da
Rodésia britânica foi declarada por um governo segregacionista da minoria branca em
nome de si mesmo (“Nós, o governo da Rodésia...”), completando então que “o povo
da Rodésia apoia completamente a demanda de seu governo para independência
soberana”66.
A contestação dessa ordem pós-colonial pela maioria negra, em especial pelas
insurgências armadas marxistas, levou à guerra civil no Zimbábue que durou até 1979.
Das fricções intestinas da política imperial britânica, cuja política em 1960
contrariava a elite branca rodesiana, desencadeia-se uma disputa profunda sobre a
própria definição do que seria o povo e sua expressão política no contexto
pós-colonial. O governo de Robert Mugabe (1979-2017) não só simplesmente triunfa
com apelos ético-políticos ligados à soberania popular, mas define efetivamente,
inclusive pela perseguição de minorias étnicas e grupos oposicionistas, o conteúdo
dessa nacionalidade.
Há que ter certo cuidado com uma teleologia de nacionalidades predestinadas a
irromper livres do casulo imperial. Em boa medida, as reivindicações de soberania
adquirem conteúdo nas injunções da própria disputa política imperial, com suas
referências ético-políticas correntes, suas práticas linhas de inclusão e exclusão, e sua
estrutura de oportunidades para a ação coletiva. Da mesma forma como o
colonialismo não tem o desígnio intrínseco nem a vocação de criar estados soberanos
mundo afora, os movimentos de contestação da ordem política imperial não são
necessariamente arautos de uma nacionalidade definida e sufocada. Como veremos
O texto completo da Declaração Unilateral de Independência pode ser conferido em
https://en.wikipedia.org/wiki/Rhodesia%27s_Unilateral_Declaration_of_Independence#Text_of_the_d
eclaration. Último acesso em 10/07/2018.
66
137
em detalhe no ciclo das independências latino-americanos (capítulo 4), mesmo
movimentos nitidamente comprometidos com a integridade do império podem, dadas
as circunstâncias, criar as condições para que ela não seja mais viável.
Frederick Cooper oferece uma bela ilustração do problema a partir da África
Ocidental Francesa no pós-Segunda Guerra Mundial (COOPER, 2005: cap. 7). A
onda de greves desencadeada na capital Dakar em 1946 aspirava igualdade nos termos
da linguagem imperial francesa, demandando não só isonomia trabalhista com os
operários metropolitanos, mas também acesso a serviços sociais correspondentes.
Durante a negociação com os grevistas, o líder do Sindicato dos Empregados do
Comércio, Indústria e Bancos (EMCIBA), Papa Jean Ka, passou a contestar os
métodos de cálculo dos reajustes pelos funcionários coloniais, argumentando que eles
“assumiam que havia um padrão de vida africano distinto do europeu, e que isso era
contrário à realidade e aos princípios franceses” (COOPER, 2005: 209).
Os africanos lutavam em cima das linhas divisórias entre integração e
diferenciação do império, contando com respaldo de setores progressistas na
metrópole. Em meados da década de 1950, “o estado francês estava preso entre a
noção de equivalência dos cidadãos e a da indissolubilidade do império” (COOPER,
2005: 226). O uso estratégico da linguagem imperial pelos franco-africanos fez com
que a política colonial francesa abandonasse o discurso de assimilação, aprofundando
o fosso que separava a França europeia de suas colônias ultramarinas. Para os
movimentos em luta nas colônias, isso reforçava o deslizamento programático para a
necessidade de independência, o cultivo da unidade africana e o rechaço do
“colonialismo do progresso”.
Como o autor deixa claro, as apropriações estratégicas do discurso oficial do
império não encerram os apelos ético-políticos que efetivamente engajaram as pessoas
na luta anticolonial, como se nota pela circulação de conclamas a cosmovisões nativas
(a necessidade de “curar a terra de suas doenças”, a chegada de uma “nova ordem”
que redimiria a presente decadência) ou pela construção de um imaginário
pan-africanista historicamente inédito (COOPER, 2005: 204). No caso do Haiti
revolucionário, por exemplo, hoje é fartamente conhecido o papel cumprido pelo
vodu na organização da insurreição negra, sem que isso seja incompatível com a
inspiração jacobina entre os escravos. Há muito mais complexidade envolvida do que
138
o simples uso do discurso do colonizador contra ele mesmo, mas essa complexidade
se descortina por meio da aproximação empírica.
Conceitualmente, o importante é que a análise sistêmica de estados
pós-coloniais se ancora no processo assimétrico pelo qual impérios modernos se
integraram e foram desintegrados, resultando, com isso, em estados modernos com
um ciclo extrativo-coercitivo próprio. Nesse duplo movimento de negação e
reconhecimento de soberania, os espaços imperiais instituíram lógicas de
estratificação social e diferença colonial que não desaparecem com a declaração de
independência, uma ideia-força consagrada na América Latina pela expressão
“colonialismo interno” e que hoje aparece com outros léxicos no pensamento
pós-colonial (CHATTERJEE, 2004: cap. 2). Os estados pós-coloniais não são
meramente aquilo que segue o fim da administração colonial, nem tampouco
repetições tardias do que ocorreu anteriormente nas metrópoles europeias. São
organizações políticas que, embora parte da retroação sistêmica ao colonialismo,
governam uma sociedade talhada por ele67. Na próxima parte da tese observaremos
como essa dinâmica é importante para a construção da ordem na América Latina
oitocentista.
No esforço de pensar a sociologia política latino-americana em suas conexões
mundiais, a segunda categoria importante é a de estados na periferia, que remete às
relações desiguais estabelecidas na economia mundo capitalista. O sociólogo alemão
Tilman Evers fez uma lúcida contribuição à polêmica sobre o “estado dependente” ao
esclarecer que não seria possível uma teoria específica do mesmo, mas sim a de uma
análise sobre o estado capitalista em situações de dependência. Com efeito, a teoria do
“estado dependente” foi uma porta entreaberta ao estruturalismo causal, em que os
predicados políticos concretos eram determinados pela posição relativa na economia
mundial. Descartando esse tipo de derivação, o problema dos estados na periferia é,
Ao analisar as práticas coloniais no século XIX, C. A. Bayly (2004) oferece elementos interessantes
para pensar o impacto das divisões então instituídas para a vida política pós-colonial. Ao fazer o ponto,
o historiador permite ir além do senso comum que divide uma Europa onde a integração simbólica foi
bem-sucedida e o resto do mundo ainda fraturado por questões étnicas, culturais e religiosas. Diz Bayly
que, em comparação com a tendência do colonialismo em destruir a cultura de povos nômades e
caçadores, “mais significativo para o futuro de nacionalismos e estados-nação não-europeus foi a
tendência dos poderes coloniais de privilegiar diferenças de religião e raça nas sociedades majoritárias
de seus territórios. Aqui, as vantagens de políticas de ‘dividir para governar’ se tornaram proeminentes.
Em parte, isso emergiu do cálculo político. Um exército composto por minorias nativas, diferentes de, e
suspeitas com, a população majoritária era menos arriscado de se voltar contra os colonialistas”
(BAYLY, 2004: 222).
67
139
como em todos os quadrantes do capitalismo, um problema de construção social da
ordem política, nos termos tratados no primeiro capítulo. No entanto, esses estados
mobilizam um circuito extrativo-coercitivo diante das oportunidades fiscais do
capitalismo periférico, isto é, sobre setores produtivos e frações de classe que estão
em uma posição subordinada nas cadeias internacionais de valor.
Essa constatação não equivale a dizer que são estados de baixa intensidade ou
fracos, nem autoriza grandes inferências dedutivas sobre seu caráter em geral. De
forma menos abstrata, há uma relação que se destrincha entre o movimento de ciclos
sistêmicos de acumulação, a divisão internacional do trabalho e a reprodução
ampliada dos ciclos extrativos-coercitivos na periferia. Na América Latina durante o
“longo século XIX”, as periferias foram atraídas por uma nova divisão internacional
do trabalho liderada pela industrialização na Inglaterra. As oportunidades fiscais
ligadas ao novo mercado atlântico eram desproporcionais com relação à vida
econômica em curso no interior, funcionando como uma vantagem decisiva na disputa
sobre a ordem política pós-colonial.
Essa é a história que veremos em detalhe na próxima parte da tese. Nesse
capítulo o que fizemos foi analisar as consequências de uma crítica ao eurocentrismo
para o tema da formação dos estados modernos na América Latina, demonstrando
como elas se associam ao raciocínio que desenvolvemos sobre a construção da ordem
política (capítulo 1) e sobre o sistema mundial moderno (capítulo 2). A crítica ao
eurocentrismo não se manobra como rechaço irrestrito ao pensamento político
moderno, mas como um esforço de reconstrução conceitual que parta das margens
não-europeias, das experiências das sociedades coloniais e pós-coloniais, da
“alteridade negada” para aludir novamente a Enrique Dussel (1992).
O contraponto ao viés modernizador com que as experiências latino-americanas
são traduzidas teoricamente precisa confrontar o tipo-ideal eurocêntrico que engolfa
teoria e história europeia em um parâmetro de universalidade, que facilmente
escorrega para idealização normativa. Nesse caminho a sociologia política
latino-americana pode encontrar termos inventivos para superar a polêmica entre
reiteração e diferença, usando a posição periférica como uma plataforma de crítica.
140
PARTE II: A AMÉRICA LATINA NO LONGO SÉCULO XIX
A segunda parte da tese está composta por quatro capítulos dispostos em uma
sequência cronológica. Difere, portanto, da Parte I, cuja exposição tinha um
encadeamento lógico, da formulação mais abstrata do problema às suas controvérsias
mais concretas. Agora, o percurso está organizado pelo arco temporal do “longo
século XIX”, que, já o sabemos, não coincide rigorosamente com os oitocentos, mas
com um ciclo definido na escala do sistema mundial. Assim, a discussão do capítulo 2
está historicizada aqui em quatro momentos que perfazem o ciclo: o caos sistêmico
inicial, que corresponde às crises imperiais na chamada Era das Revoluções de 1770 a
1840 (capítulo 4); a expansão material acompanhada de apaziguamento político, que
corresponde ao ciclo de acumulação industrial liderado pela Inglaterra (capítulo 5); o
declínio hegemônico, demarcado a partir da crise de 1873 (capítulo 6); e o colapso do
ciclo em um novo caos sistêmico, identificado nas décadas de 1910, 1920 e 1930
(capítulo 7).
Ao conectar a história latino-americana a esse arco mundial, os capítulos
ensejam um diálogo construtivo da sociologia histórica com a renovação
historiográfica contemporânea, preocupada em revisar o eurocentrismo. Em particular,
oferece parâmetros mais concretos para se projetar a situação pós-colonial e periférica
como polos relacionais no desenvolvimento do moderno sistema mundial, como foi
proposto no capítulo 3.
Isso vale também para a sociologia política delineada no capítulo 1. Os
momentos de caos sistêmico que balizam o “longo século XIX” são entendidos como
conjunções críticas para a construção da ordem política. Implicam uma aceleração do
conflito entre projetos alternativos de ordem e uma abertura correspondente do
horizonte de possibilidades. O argumento identifica, por outro lado, uma interligação
de longo prazo entre a emergência de um projeto hegemônico de ordem com as
condições para a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo. Conforme se
desenvolve, esse mecanismo tem como subproduto um desenraizamento de inúmeros
espaços locais de transcurso da vida política. A erosão de sua autonomia é a
contraface da atração da política para os espaços institucionais nacionalizados, como
um resultado processual que altera os termos e os atores da disputa.
141
4. A
ERA
DAS
REVOLUÇÕES
E
AS
INDEPENDÊNCIAS
LATINO-AMERICANAS (1770-1840)
“Toda a crise escapa ao planejamento, ao controle racional sustentado pela fé no
progresso”68
Reinhart Koselleck
Quando os colonos norte-americanos decidiram boicotar em 1774 o comércio
de escravos como forma de afrontar sua metrópole, possivelmente não tinham ciência
que, do outro lado do atlântico, uma revolução muçulmana no Futa Tooro (1776)
estava prestes a depor um rei especializado no sequestro de seres humanos, decidindo
também interromper qualquer comércio com os britânicos na costa. Ávidos por mãos
negras para cortar e moer cana, colher algodão e enrolar charutos, os europeus vinham
injetando os milhares de mosquetes e garrafas de rum com que o último rei da dinastia
Denyake armava seus soldados na caça por mandes, serers ou jaxankes, prestes a
serem convertidos simplesmente em negros. Vitoriosos na guerra, os descendentes de
europeus da América do Norte acabariam por conciliar a escravidão com belas frases
constitucionais sobre a liberdade e a igualdade, em uma revolução anticolonial
decidida a afirmar, como disse John Adams em 1765, que “nós não seremos os negros
deles”.
Quando a revolução estoura na França em 1789, os parlamentares da nova
Assembleia Nacional rechaçaram a hipótese de que a cidadania universal pudesse
contemplar os mulatos das colônias do império no outro lado do atlântico. Suas
consciências foram subitamente despertas por uma insólita sublevação armada de
jacobinos negros no Haiti, que empurrou a Assembleia a extinguir oficialmente a
escravidão em 1791. Enquanto o medo do “haitianismo” se disseminava entre os
senhores proprietários, escravos insurretos eram reprimidos de Maracaibo a Salvador,
de Richmond a Coro. Já os eleitores da província de Oaxaca, no sul no México,
imbuídos com o espírito cívico de elaborar uma nova constituição para uma
monarquia em frangalhos, constatariam com desgosto que “os índios não trabalham
mais como antes”. Não muito mais tarde, assistiriam aterrorizados esses mesmos
68
Extraído de Koselleck (1999: 161).
142
índios percorrerem armados o país aos brados de “viva a Virgem de Guadalupe!
Morte aos gachupines!”69. Na virada do século XVIII para o XIX, um estremecimento
profundo abalou as hierarquias políticas e sociais do sistema mundial, com diferentes
epicentros revolucionários e contrarrevolucionários.
O objetivo desse capítulo é entender o ciclo das independências
latino-americanas no bojo dessa convulsão sistêmica que ficou conhecida como Era
das Revoluções (c.1770-c.1840). Em termos analíticos, define-a como uma conjunção
crítica na construção da ordem no “longo século XIX”70. Nesse sentido, a crise dos
impérios ibéricos se insere em um caos sistêmico que marca o fim da hegemonia
holandesa. Para isso, o capítulo se organiza em quatro seções. A primeira lida com a
fase terminal do ciclo anterior, marcado por um acirramento da rivalidade interestatal
no centro do sistema ao limite de sua ruptura. Ao sublinhar a dimensão imperial dessa
rivalidade, situa as reformas administrativas ibéricas de meados do século XVIII
como esforço de acompanhar a escala crescente de mobilização fiscal e militar no
Atlântico.
A segunda seção pretende interpelar o sentido da Era das Revoluções por meio
da história mundial, descompactando-a dos eventos políticos na França e da
industrialização na Inglaterra. Nesse sentido, concebe a conjunção crítica como uma
abertura do horizonte de possibilidades cujo ensejo é o abalo do edifício ético-político
monarquista, do poder colonial e da escravidão capitalista. A terceira seção se
preocupa especificamente com as independências latino-americanas, contrapondo
uma narrativa teleológica informada pelo princípio das nacionalidades. Em seu lugar,
entende a independência como uma saída contingente de uma situação de soberania
Sobre a revolução muçulmana de 1776, ver o trabalho de Boubacar Barry (2010). A citação de John
Adams foi retirada de um texto publicado na Boston Gazette (14/10/1765) sob o pseudônimo de
Humphrey Ploughjogger, a que cheguei através de menção em Greene (2008). O texto se insere na
reação dos colonos à Lei do Selo (março/1765) pela coroa britânica. A citação referente aos eleitores de
Oaxaca foi extraída de Xavier-Guerra (2000: 214) e se dá no contexto das eleições para as Cortes de
Cádiz em 1809-1810, aproximadamente um ano antes da eclosão da insurgência liderada por Hidalgo
na região de Guanajuato. Essa rebelião, que arregimentou mais de um milhão de indígenas, negros e
mestiços pobres no interior, chegaria à cidade de Oaxaca em 1812, quando era já comandada por
Morelos após o fuzilamento de Hidalgo pelos espanhóis em 1811. Uma explicação sucinta sobre os
significados da Virgem de Guadalupe para a cultura política popular mexicana se encontra em Carmen
Bernand (2016: cap. 2).
69
O tema da construção da ordem política deve ser tomado no sentido descrito no capítulo 1, que
possui afinidades com o que propôs Ansaldi e Giordano (2012) e, principalmente, Norbert Lechner
(2013). A reificação do problema da “ordem” política pode ser encontrada de certa maneira no estudo
de Safford (1992) sobre o período pós-independência, mas atinge mais nitidez no caso dos
neoinstitucionalistas, que transformam a ordem em “bem público” de neutralização da desordem (ver
NORTH; SUMMERHILL & WEINGAST, 2000).
70
143
múltipla colocada, em circunstâncias distintas, nos impérios espanhol e português. Por
fim, a quarta seção observa em maior detalhe a geografia política resultante da
desintegração desses impérios, com particular interesse pela tendência de atração da
soberania para instâncias locais e provinciais.
4.1. Os espaços imperiais em uma corrida competitiva
O ponto de partida do percurso é reconhecer que o sistema interestatal do
século XVIII tinha, em seu topo, estados imperiais europeus com suas conexões
intercontinentais, panorama que se manteria até a Primeira Guerra Mundial. A
propósito, como descreve C. A. Bayly (2004: cap. 1), a prevalência de impérios
extensivos e multiétnicos era então um fenômeno mais amplo, percorrendo a Eurásia
com os impérios Qing (China), Safávida (Irã), Mogol (Índia), Russo, Turco-Otomano
e Ashante, em um arco geográfico da Ásia ao ocidente africano. Os estados europeus,
mesmo sendo impérios, não governavam hierarquicamente uma economia mundial,
que se desenvolvia nas oportunidades e interstícios criados por sua concorrência. O
pano de fundo, assim, da construção do mundo atlântico controlado por europeus foi o
aproveitamento recíproco entre elites imperiais em guerra constante e capitalistas em
busca de lucros extraordinários (ver capítulo 2). As conexões dali criadas foram
tecendo uma densa rede de circulação de humanos escravizados, de produtos tropicais,
de armas, de cartas e livros, de viajantes, de têxteis e corantes naturais, de decretos
régios, de metais preciosos, entre uma miríade de outros fluxos que fizeram do
Atlântico uma versão ampliada do “movimento no espaço” que Fernand Braudel
(1972: 277) percebera no Mediterrâneo do século XVI.
Ao longo do século XVIII é possível identificar uma tendência à
financeirização do ciclo hegemônico liderado pelas Províncias Unidas dos Países
Baixos, sendo Amsterdam a praça financeira mundial para estadistas e mercadores
(ARRIGHI, 2009). Enquanto o poder da hegemonia declinante se transferia para as
finanças, uma contratendência se manifesta como rivalidade sistêmica entre potências
ascendentes, no caso os impérios francês e britânico. Sua projeção econômica e
política no Atlântico friccionava e corroía o congelamento de poder em prol de
portugueses e espanhóis, legado do Tratado de Tordesilhas (1494). O novo patamar da
competição fiscal e militar foi sendo estabelecido pela série de conflitos da Guerra de
144
Sucessão Espanhola (1700-1714) até a Guerra de Independência dos Estados Unidos
(1776-1783), com destaque para a Guerra dos Sete Anos (1756-1763).
As exigências crescentes da maior escala da guerra geravam constrição social,
uma exacerbação da extração ao limite do estiramento desses impérios. Grosso modo,
pode-se dizer que, do lado britânico, a tentativa de distribuir a pressão fiscal por seu
império ultramarino gerou a fissura em treze de suas quase trinta colônias americanas,
insultadas pela instituição de novos impostos nas décadas de 1760 e 1770. Essas treze
colônias rebeldes criariam os Estados Unidos da América na guerra anticolonial de
1776 a 1781. Do lado francês, essa escalada extrativa acabaria por levar de roldão a
monarquia dos Bourbons na sucessão de episódios revolucionários entre 1789 e 1799.
As guerras da reação contra a França revolucionária constituiriam os momentos finais
da longa queda de braço estratégica entre franceses e ingleses. Com a vitória naval
inglesa em Trafalgar (1805), define-se o controle político sobre o Atlântico e seus
circuitos econômicos. “Se a Grand Armée foi jogada de volta do leste com a ajuda dos
generais Outubro, Novembro e Dezembro”, comenta R. Blackburn (1998: 568) sobre
o desfecho das guerras napoleônicas, “a integridade do Sistema Continental sofreu no
oeste as infiltrações dos generais Açúcar, Chocolate e Café”.
Para um observador à época na China, na Etiópia ou na Ásia Central, essa
crescente belicosidade entre os dois grandes impérios e seus aliados teria repercussões
ínfimas ou nulas. Até o século XVIII nunca foi claro nem previsível que o sistema
interestatal capitalista engolfaria irremediavelmente o destino dos povos não-europeus
da Polinésia à África Subsaariana. É importante lembrar, contudo, que tal
belicosidade não se tratava de uma questão interna à península europeia, seja por seus
protagonistas, seja pelos objetos da disputa.
O que convencionalmente se chama de França era à época um heterogêneo
compósito de domínios e portos no Caribe, no Canadá, no delta do Mississipi, na
costa ocidental africana, no norte da América do Sul, no litoral indiano e no Índico –
ligados ao território continental europeu pela marinha e pelas companhias de
comércio que Colbert tanto empenhara-se em fortalecer. O mesmo valeria para o que
chamamos de Grã-Bretanha, que, além do domínio inglês imposto ao resto do
arquipélago, envolvia feitorias e colônias na Índia, na Pérsia, no Japão, na Indonésia,
no Caribe, no extremo sul da África e nas Américas. Eram unidades especializadas
em “comércio com coerção”, como discutiu Kenneth Pomeranz (2000). Em maior ou
145
menor escala, o mesmo raciocínio se poderia aplicar aos holandeses, portugueses,
dinamarqueses ou espanhóis, cuja monarquia ainda unia um mundo das Filipinas à
Califórnia71.
Assim, da mesma forma que os protagonistas da corrida militar europeia não
eram estados propriamente europeus, tampouco o eram o objeto de seus conflitos. Na
Guerra dos Sete Anos, por exemplo, a derrota francesa significou um drástico
enxugamento de escopo de seu comércio ultramarino, com as perdas do porto de Saint
Louis no Rio Senegal, de seu controle sobre o comércio de peles no norte da América
do Norte, de várias ilhas de plantation no Caribe e de sua principal cabeça de ponte
para o comércio indiano em Pondchérry. A Era das Revoluções, cujos primeiros sinais
se distinguem na década de 1770, se situa no extremo crítico do processo de expansão
competitiva de espaços imperiais de comércio com coerção que ligavam os territórios
metropolitanos a pontos nos quatro continentes. No auge da guerra por corretagem, o
vigor do comércio rebatia diretamente no peso geopolítico de cada estado (ver Tabela
4.1). Nos bastidores dos exércitos nos campos de batalha se contrapunham o maior ou
menor vigor das plantations coloniais, das frotas mercantes, das manufaturas
metropolitanas, da marinha, bem como da pirataria e do contrabando em larga escala.
Indo um passo adiante, o eixo central da competição econômica se constituiu ao
redor da escravidão capitalista no espaço atlântico (INIKORI, 2010; MANNING,
2008). Ao longo do século XVIII a quantidade de pessoas traficadas da África para as
Américas elevou-se, bem como o preço médio pago por cada indivíduo
(BLACKBURN, 1998: cap. 9). Esse novo e dinâmico comércio de longa distância
irrigou de força de trabalho o continente americano, apresentando notável
maleabilidade a diferentes contextos, como os latifúndios exportadores no Caribe, as
regiões de mineração pesada no Brasil ou na Colômbia, as regiões agrícolas satélites
aos centros mineradores, o trabalho doméstico e mesmo a produção para o mercado
em pequena escala. Na Capitania do Rio de Janeiro em 1804, relata Jeremy Adelman
(2006: 62), 72% dos fazendeiros tinham entre 1 e 5 escravos e isso perfazia 1/3 dos
escravos totais.
Através dos horizontes desvelados pela escravidão atlântica, a economia
mundial capitalista abriu caminho após um interregno de desmobilização produtiva no
Sobre o acirramento da competição militar e econômica da Europa no período 1689-1815, ver, por
exemplo, Arrighi (2009: cap. 3), Beaud (1994: cap. 2), Creveld (2004: cap. 3), Gunder Frank (1978:
cap. 3 e 5), Kennedy (1989: cap. 3), Wallerstein (1988: cap. 2)
71
146
século XVII. O eixo fervilhante do capitalismo comercial europeu se deslocara
decididamente para os portos ocidentais de Bristol, Lisboa, Cádiz, Nantes, Bordeaux,
Amsterdam e Londres. A meados do século XVIII, metade do comércio ultramarino
britânico consistia de cargas de açúcar ou tabaco; café e açúcar atingiam quase a
metade do francês (BLACKBURN, 1998: 396). Antes das treze colônias
norte-americanas avançarem sua independência, as exportações britânicas para
América e África já haviam aumentado nove vezes desde o início do século. O
número de armas de fogo entrando no continente africano pela costa atingia cifras
impressionantes: de 180 mil anuais por volta de 1730 já oscilava entre 280 e 390 mil
anuais entre 1750 e 1807 (WOLF, 1982: 210).
O diferencial do comércio atlântico, em oposição ao que florescera no Báltico
no século XVII e ao que os europeus adentravam à força no Índico, é que ele criava
imensas possibilidades para as exportações metropolitanas para colônias enriquecidas.
De acordo com as estimativas de Robin Blackburn (1998: 395), o comércio encetado
pela prosperidade das plantations escravistas girava cerca de dez vezes mais dinheiro
que o tráfico de escravos propriamente dito. A discrepância é ainda maior em termos
de tonelagem: mesmo no caso da marinha mercante britânica, de longe a principal
operadora do tráfico de escravos no século XVIII, apenas 5% estava em média
ocupada com esse setor.
A cadeia de valor da produção manufatureira europeia dependia, em seus
bastidores, de injeções de trabalho coagido no ultramar: para tingir os têxteis
exportados em escala crescente, indígenas do sul do México produziam cochonilha
sob um regime de trabalho forçado, similar ao que, nas minas de Zacatecas ou do Peru,
estava recolocando a prata americana em um circuito comercial que chegava até o
extremo oriente72. Desde a década de 1690 o mesmo acontecia com o ouro brasileiro,
extraído basicamente com trabalho escravo negro, cuja oferta abundante permitiu
maior estabilidade monetária e a adoção muito precoce da conversibilidade da libra
esterlina em ouro. Na primeira metade do século XVIII, portanto, o sistema mundial
parecia ter reencontrado trilhos de expansão a partir do dinamismo do Atlântico negro;
a proeminência dos impérios francês e britânicos nesse processo, como dito,
reorganizaria a política na Europa.
Para estudos sobre o ciclo dos metais e da cochonilha na América, ver os dois artigos de Carlos
Marichal na coletânea “From Silver to Cocaine: Latin American Commodity Chains and the Building
of the World Economy, 1500-2000” (TOPIK; MARICHAL & FRANK, 2006).
72
147
A partir de agora, nos concentraremos sobre uma parte desse sistema, os
espaços imperiais ibéricos. Visto de uma perspectiva macro-histórica, o colonialismo
é como uma tentativa de congelamento do poder mundial, isto é, um esforço por
enrijecer o status quo através de possessões coloniais e monopólios formais. Há uma
analogia aqui entre o colonialismo ibérico nas Américas após Tordesilhas (1494) e a
forma como a dominação europeia na África e Ásia se congelaria no século XIX.
Enquanto esta última foi se tornando cada vez mais obsoleta e impraticável no século
XX, o colonialismo ibérico na América dava sinais de caducar já no século XVII,
descolando-se gradualmente da distribuição de poder na Europa. Esse anacronismo se
evidenciava por múltiplas intrusões holandesas, francesas e inglesas no espaço
colonial que Tordesilhas havia dividido entre espanhóis e portugueses. Da mesma
forma como o descongelamento do imperialismo europeu no século XX produziu
acirrada disputa entre EUA e URSS sobre os rumos e afinidades dos novos estados, as
brechas e vulnerabilidades dos impérios ibéricos nos setecentos constituiriam objeto
da ambição daqueles que, na expressão de Pierre Chaunu (1972: 143), seriam já as
“metrópoles efetivas” de suas colônias.
A Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1714), que opôs os partidários dos
Bourbons franceses e os dos Habsburgos austríacos, foi o marco para inserção
subordinada das monarquias ibéricas na política dos grandes impérios mercantilistas.
No caso de Portugal, a ameaça de uma nova anexação pela Espanha fortaleceu a
necessidade de uma mais robusta aliança luso-britânica. Em 1703, seria assinado o
acordo de Methuen pelo qual os têxteis britânicos entrariam sem impostos no império
português, em troca de concessão equivalente aos vinhos portugueses. Esse acordo
adquiriu significado maiúsculo por interligar e reforçar três tendências: o crescimento
manufatureiro britânico, o crescimento da produção de ouro no interior brasileiro e a
vulnerabilidade estratégica de Portugal frente à escala da guerra europeia.
Após a restituição da soberania portuguesa em 1640, a conservação das
colônias vem ao preço da dependência externa com relação à Inglaterra. A força e
independência da monarquia frente às elites metropolitanas envolve a capacidade
fiscal das possessões ultramarinas, cuja abertura parcial à marinha mercante inglesa é
a contrapartida da sobrevivência de Portugal como estado soberano no jogo europeu.
O acordo de Methuen, pois, culmina e simboliza o “círculo de ferro que demarca o
horizonte lusitano após a Restauração” (ALENCASTRO, 1998: 203).
148
Conforme Portugal torna-se sócio da coroa britânica, restavam aos Bourbons de
Madri poucas alternativas senão assumir esse papel perante a França, especialmente
após o desfecho da guerra que os assegurou no trono. Através das concessões pelo
porto de Cádiz, manufaturas francesas entravam legalmente na península, enquanto
que às inglesas e holandesas sobrava o contrabando. Por seu turno, graças aos termos
acordados em Utrecht (1713), os ingleses obtiveram como contrapartida igualmente
vantajosa: a concessão do comércio de escravos (144 mil/ano, legalmente) para as
colônias espanholas na América, além de um navio de mercadorias isentas de
impostos (ZORAIDA VÁZQUEZ, 2003: 253-258). Essa brecha, alargada pelo
contrabando feito às suas costas, acabaria por deslocar os holandeses do chamado
“comércio triangular”, alavancando a marinha e o comércio atlântico britânicos à
escala antes referida. Ainda que revertida em 1739, e depois manipulada pelos
decretos da segunda metade do século XVIII, essa abertura comercial da América
Espanhola criaria uma cunha nas relações entre a península e a América, o que seria a
contraface da expansão da economia atlântica no “longo século XIX”.
Dessa forma, os acordos de Methuen e Utrecht seriam como duas grandes vigas
a organizar o período 1700-1815 nos impérios português e espanhol respectivamente,
na medida em que seu alinhamento geopolítico enlaçava a política comercial com
fissuras, praticamente irreversíveis, no pacto colonial. A autonomização dos espaços
imperiais se consolidava na medida em que “o tráfico de escravos permitia as
economias coloniais estarem mais livres das metrópoles porque estavam mais
dependentes
do
trabalho
coagido”
(ADELMAN,
2006:
56).
Destarte,
o
descongelamento do status quo ibérico nos séculos XVIII e XIX seria um longo e
irregular processo de adaptação à nova situação de poder mundial dominada por
ingleses e franceses e suas companhias de comércio.
Entre as elites políticas de Lisboa até Moscou, a agressividade desses impérios
disseminou a percepção de um misto de atraso econômico, frouxidão fiscal e
vulnerabilidade militar que germinaria diversos intentos reformistas na segunda
metade do século XVIII73. Há um sentimento de emergência implícito aos temas
racionalistas do “ressurgimento do império”, para usar a expressão de Marichal (2007:
Na Península Ibérica, as figuras mais destacadas a combinar essa percepção de
atraso/vulnerabilidade com o imperativo de reformas foram Alexandre de Gusmão (Portugal) e José del
Campillo y Cosío (Espanha). Sobre o pensamento político do reformismo ilustrado ibérico, ver os
trabalhos de Adelman (2006), Chiaramonte (2004), Halperín Donghi (1985) e Salvatore (1999).
73
149
cap. 1). A espinha dorsal desses processos reformistas foi o esforço deliberado por
soldar o circuito que deveria conectar a centralização política, o alento comercial e
manufatureiro, a capacidade fiscal, a musculatura militar e naval que, por sua vez,
sustentaria a centralização política.
No caso das monarquias ibéricas, a centralização passava por reverter o
formato político construído pelas guerras contra os muçulmanos na península no
século XIV, ditas de “reconquista”. Resultado de uma aliança militar em camadas,
essa ordem pós-reconquista alçava o catolicismo e a coroa sobre um arranjo
compósito e hierárquico de nobres, potentados e municipalidades que, resguardando
privilégios fiscal-militares e autonomia local, estavam unidos pelos laços de
fidelidade e compromisso que costuravam o corpo da monarquia74. Em lugar desse
formato corporativo, conhecido posteriormente como “antigo regime”, a centralização
imperial implicaria recolocar os portos e monopólios metropolitanos como pivôs da
circulação no Atlântico, fazendo da hierarquia comercial a plataforma de lançamento
para alcançar os estados comparativamente mais avançados.
Em Portugal, as reformas do Marquês de Pombal (1750-1777) buscaram
estreitar as amarras da monarquia para afastá-la da passividade resultante de Methuen,
erigindo diques ao escoamento do ouro brasileiro à City londrina. Não por acaso, o
limite político do pombalismo foi justamente uma crise militar em 1762 na qual o
imperativo de reaver o respaldo britânico obrigaria a monarquia a abandonar as
políticas dirigistas e protecionistas do ministro. Em seu período no cargo, Pombal
adotou medidas com profundas consequências para o colonialismo português na
América. Imbuído de interiorizar o poder metropolitano no Brasil, Pombal instituiu
duas companhias de comércio para operar na região norte, três fortificações militares
na bacia do Amazonas, espalhou funcionários régios pelo interior da colônia e criou a
Junta de Comércio com o objetivo de reduzir a margem de liberdade das casas
mercantis brasileiras. A unificação administrativa do espaço colonial no Rio de
Janeiro, como veremos no capítulo 10, só revela a extensão de suas consequências a
partir da independência brasileira em 1822.
No pano de fundo do reformismo pombalino estava a escravidão africana e o
ouro brasileiro: a tributação do minério foi alterada para controlar seu contrabando
Para um panorama da construção monárquica espanhola após 1492, ver Anderson (1974: cap. 3) e
para suas formulações doutrinárias ver Brading (2003), Chiaramonte (2003; 2004), Neves (2017),
Uribe-Urán (2006).
74
150
indiscriminado e toda uma economia regional subsidiária foi alentada para atender a
mineração (BLACKBURN, 1998: 483-494). De 1730 a 1770, a produção brasileira se
manteve no patamar de 10 toneladas anuais de ouro. Como causa e consequência das
reformas, o volume do comércio brasileiro atingiu em 1760 aproximadamente o dobro
do que fora registrado em 1710, elevado sobretudo pelo açúcar e pelo ouro. A moeda
de ouro fundida no Brasil e em Lisboa adquiriu ampla circulação internacional, como
o peso de prata espanhol. De 1750 até a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que
abalroou Portugal inclusive em território metropolitano, houve paz com os espanhóis
e o comércio legal e ilegal cresceu na região fronteiriça do Prata.
No caso da coroa espanhola, essa guerra foi o gatilho inicial do movimento
reformista: a marinha britânica tomou de assalto Havana e Manila, beirando atacar
também o porto de Veracruz no México. Enquanto Portugal temia por sua soberania
continental, os espanhóis perceberam quão vulnerável estava seu longevo império
colonial. O eixo central das reformas iniciadas por Carlos III em 1765 foi instituir um
sistema de governo direto através de intendentes, que a partir da década de 1780
foram substituindo definitivamente o sistema de corregedores e alcaldes maiores. Tal
havia sido o trauma de 1762 que o primeiro intendente, Miguel de Altarriba,
desembarca em 1765 exatamente em Cuba. A exação metropolitana foi crescendo
consistentemente na segunda metade do século XVIII, respondendo à pressão militar
das guerras intermitentes contra o Reino Unido entre 1761 e 1803 e contra a França
revolucionária a partir de 1793. Só o Vice-Reinado da Nova Espanha enviou 250
milhões de pesos de prata de excedente fiscal à metrópole entre 1760-1810
(MARICHAL, 2006; 2007; ver Tabela 4.2). Nas colônias menos opulentas tal era a
escassez de prata circulando que se utilizavam meios de pagamento alternativos para
as transações cotidianas.
Além disso, uma transformação importante que se enseja em 1765 (continuada
por decretos régios de 1778 e 1789) é a flexibilização dos monopólios comerciais no
Atlântico espanhol. De um lado, isso significava a concatenação de circuitos
intracoloniais independentes às corporações comerciais de Cádiz ou Sevilha, levando,
por exemplo, o açúcar de Mendoza a Potosí, o couro da pampa úmida a Charcas, o
milho do vale mexicano a Zacatecas ou o cacau venezuelano a Veracruz.
De outro
lado, o comércio entre a América Espanhola e a península desvencilhou-se do
monopólio de Cádiz, abrindo-se a mais de dez outros portos; os mercadores das
151
colônias também receberam autorização para transportar em direção à metrópole com
o fim do sistema de “navios de registro”. Os produtos estrangeiros puderam chegar
legalmente
às
colônias
americanas
através
da
intermediação
dos
portos
metropolitanos e de taxas adicionais, e o fizeram em tal monta que somavam 80% do
valor dos produtos que saíam da península em direção à América (HALPERÍN
DONGHI, 1985: 56).
O resultado geral dessa flexibilização foi a construção inédita de um espaço de
circulação desimpedida por portos coloniais e metropolitanos, conectando espaços
interiores de produção primária baseada sobretudo no trabalho coagido. Com a
criação dos consulados comerciais em Havana, Cartagena, Caracas e Buenos Aires
entre 1792 e 1794, esse novo arranjo imperial é complementado com grupos de
pressão organizados nas colônias para reivindicarem benefícios na sede do império
(ADELMAN, 2006). No entanto, a liberalização comercial da segunda metade do
século XVIII não deve ser confundida com nem lida como antessala do ideal de “livre
comércio” da era vitoriana; seu propósito deliberado foi dinamizar o comércio
intraimperial como estratégia de luta contra o inimigo britânico, como forma de
arrecadar mais e reverter o contrabando que grassava desde as concessões de Utrecht
(SALVATORE, 1999). Esse esforço gerará, como no caso do ouro brasileiro, um
último surto expansivo do intercâmbio colonial. Até a guerra contra o Reino Unido
bloquear o comércio marítimo espanhol em 1796, as exportações anuais da América
para a península já eram quatro vezes maiores que em 1778 (WALLERSTEIN, 1988:
239)
A contrapartida militar das reformas bourbônicas não deve ser menosprezada,
já que induziu, especialmente com a criação dos corpos de milícias, a uma
militarização da própria sociedade colonial (LOVEMAN, 1999: cap. 1). Só no Rio da
Prata e no Chile, seriam formadas 55 novas unidades entre 1760 e 1810, superando
em muito a capacidade portuguesa de reação à época (VOGEL, 2001). A criação das
capitanias gerais de Cuba (1764) e Venezuela (1777), bem como do Vice-Reinado do
Rio da Prata (1776) sediado em Buenos Aires, tinham explícitos propósitos militares75.
No caso deste último, cujos reforços recebidos superavam quatro mil soldados, eles
iam além da defesa contra assédios inimigos: em 1776, aproveitando-se do
Com as reformas bourbônicas, a estrutura administrativa do Império Espanhol na América passa de
dois (Peru e Nova Espanha) a quatro vice-reinados (Rio da Prata e Nova Granada), além de cinco
capitanias gerais (Caracas, Chile, Porto Rico, Guatemala, Flórida).
75
152
envolvimento do grande aliado de Portugal na guerra de independência dos Estados
Unidos, um destacamento espanhol invade a Colônia de Sacramento e expulsa
definitivamente os portugueses da foz do Prata.
Assim, há semelhanças entre as reformas pombalinas e bourbônicas no eixo
coercitivo e fiscal, embebidas que estavam ambas no contexto de escalada
competitiva entre os estados europeus. Se a paralisia das reformas portuguesas
resultou de sua vulnerabilidade à ameaça externa, no caso espanhol o apetite fiscal
bourbônico enfrentou uma escalada da resistência social, com grandes rebeliões em
Quito76 (1765), em Nova Granada77 (1781) e no Peru (1780-1782) (ver Tabela 4.3).
“Se, como levantamento indígena, o desencadeado por Tupac Amaru foi um fracasso”,
diz-nos Tulio Halperín Donghi (1985: 70) sobre a rebelião andina de 1780-1782,
“como advertência sobre os riscos de uma política de reforma em uma sociedade e
uma ordem política de extrema fragilidade resultou mais eficaz”.
A onda de revoltas indígenas que chacoalhou o Peru desde 1737, mais do que
um prelúdio à independência criolla, foi sobretudo um protesto recorrente contra a
taxação78 e o trabalho coagido sob o repartimiento de comercio colonial, operado por
alcaldes maiores e corregedores reais em seus distritos. Esse sistema, que vingou
sobretudo nos Andes e no México, seria extinto em 1786 com a Ordenação de
Intendentes, que concedia liberdade de trabalho e comércio para os indígenas. Triunfo
da resistência indígena por um lado, intento racionalista das reformas bourbônicas por
outro, essa transformação geraria ressentimentos na elite colonial — inclusive entre os
eleitores de Oaxaca que, à época das eleições para as Cortes de Cádiz, manifestariam
seu desgosto com a indolência recente dos índios. Em outras palavras, estamos no
A chamada Rebelião dos Bairros ocorrida em 1765 foi a maior sublevação urbana do período, tendo
clara conotação fiscal. O vice-rei de Nova Granada havia designado um interventor em 1764 para
reformar a cobrança de impostos em Quito e combater o contrabando. As medidas foram
implementadas à revelia da elite local, o que motivou uma reunião de cabildo aberto na municipalidade
em dezembro de 1764. A sublevação dos bairros pobres da cidade atingiu o ápice entre maio e junho de
1765, resultando na fuga do interventor.
76
A chamada Revolta dos Comuneros (1781) mobilizou considerável base popular em diversas
cidades do Vice-Reino de Nova Granada. Os rebeldes denunciavam os abusos do Visitador Regente,
nomeado pelo Coroa Espanhola para supervisionar e elevar a arrecadação regular. A contenção do
movimento só se realizou mediante um pacto com os rebeldes, que foi ignorado e descumprido pelas
autoridades coloniais.
77
Há uma discussão interessante a respeito da centralidade dos impostos ou do trabalho coagido para a
eclosão das revoltas andinas do século XVIII. Com as reformas bourbônicas, a alcabala (imposto de
compra e venda) deixou de limitar-se a bens sofisticados e passou a afetar a base da pirâmide social,
sufocando as condições básicas de vidas da população indígena.
78
153
limiar da grande e múltipla convulsão social da virada do século XVIII para XIX, que
envolveu protagonistas tão distantes quanto muçulmanos africanos, advogados
franceses, cossacos russos, quéchuas andinos e nacionalistas alemães. Com base no
panorama visto até aqui, podemos aproximar-nos dessa conjunção crítica a partir do
entrecruzamento entre três tendências amplas: a concorrência econômica e militar de
impérios mundiais, a tensão social decorrente da extração forçada de trabalho e
impostos, e a rearticulação de uma economia atlântica controlada pelos europeus e
calcada na escravidão capitalista.
4.2. A Era das Revoluções em perspectiva mundial
O estudo da chamada Era das Revoluções esteve originalmente dominado pelos
episódios da Europa Ocidental, especialmente pela conjugação de sua face econômica
da Inglaterra industrial com sua face política na França republicana (HOBSBAWM,
1996). Nessa narrativa, a inclusão do resto do mundo se dá em termos difusionistas:
interroga-se quando e como a ruptura histórica promovida na Europa Ocidental
chegou aos outros povos. Ora, como já sabemos que “Inglaterra” e “França” não são,
em fins do século XVIII, uma ilha anglo-saxã nem um hexágono gaulês, temos
ferramentas para deslocar o difusionismo construído pela explicação exclusivamente
europeia para fenômenos europeus. No próximo capítulo, observaremos melhor o
tema da industrialização; aqui, a ênfase recai sobre o terremoto político da Era das
Revoluções como uma “nova onda de rebeldia em escala sistêmica com origens
profundas na luta pelo Atlântico” (ARRIGHI, 2009: 52).
Para tal, o primeiro passo é projetar a escala propriamente mundial da crise,
como forma de perceber também sua heterogeneidade em termos de atores e
horizontes ético-políticos (ARMITAGE & SUBRAHMANYAM, 2010). Na África
Ocidental, encontraríamos na segunda metade do século XVIII o apogeu dos
movimentos de renovação muçulmana que haviam surgido ali cem anos antes,
resultado de um tecido social esgarçado pela guerra e pela escravidão. No império
russo, cuja centralização monárquica e expansão militar ao sul tentava acompanhar o
esplendor mercantilista de seus vizinhos atlânticos, a exploração intensiva da servidão
para uma economia exportadora primária fomentou, entre 1773 e 1775, uma
gigantesca rebelião de cossacos e camponeses no vale do Volga. Com a morte do
154
imperador chinês Qiang Long em 1799, acendem-se rumores e conspirações de que a
dinastia Qing estaria perdendo o Mandato do Céu para governar, germinando revoltas
de variadas inspirações, das quais a da Lótus Branca (1796-1805) foi certamente a
mais impressionante (POMERANZ, 2010).
Como esses, outros exemplos poderiam ser buscados nos Andes, na Arábia, na
Indonésia ou no Caribe para demonstrar a diversidade dos conflitos sociais em curso
nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do XIX. De uma forma muito
ampla, o que se percebe é a reversão mundial do ímpeto imperial do século anterior
(c.1650-1740), em que formações tributárias extensivas se consolidaram na Eurásia
(BAYLY, 2004: cap.1). Esse movimento inicial de ampliação do escopo de
observação coloca outro tipo de risco. Estariam todos episódios de insubordinação e
conflito social ao redor do mundo ligados causalmente a algo vagamente definido
como “sistema” ou “Era das Revoluções”?
Uma resposta afirmativa nos levaria a um estruturalismo bastante simplista,
convertendo a “história mundial” em uma narrativa totalizante que encaixota a priori
o significado das experiências históricas locais (ADELMAN, 2005). A revisão do
eurocentrismo da Era das Revoluções não pode levar a assumir que uma mesma crise
estrutural subterrânea está produzindo rebeliões sincrônicas da Australásia ao Caribe.
Além de um globalismo sabidamente anacrônico para o período, um determinismo
causal desse tipo desvalorizaria a heterogeneidade e a diversidade das lutas sociais em
escala global, justamente o que se estava tentando resgatar.
Reconhecer que há um acirramento do conflito social para além do escopo de
Europa Ocidental e EUA é, ato contínuo, admitir que nessa tendência convivem
coincidências e contingências entre contextos sociais muito discrepantes, irredutíveis
a uma generalização causal forte. Ora, os muçulmanos wahhabitas que se organizaram
em nome da renovação da fé na península arábica na década de 1750 não são
sans-culottes maometanos. São duas histórias em si diferentes, o que não invalida a
descoberta de fios que as interligam. Pelo contrário, levar em consideração que a
“história mundial” não tem a missão de produzir um relato coerente, universal e
unificado do mosaico da história humana é justamente abrir a possibilidade para o
estudo de comparações e conexões entre seus processos.
Nessa linha, seria plausível pensar como o desafio do novo estado wahhabita ao
controle otomano das cidades sagradas “encontra” a Revolução Francesa quando o
155
Egito é invadido pelas tropas napoleônicas em 1798. A conexão se torna mais
palpável se pensarmos do ponto de vista de um observador otomano da época, atento
aos dois assédios contra seus vassalos imperiais. Usando outro exemplo
contemporâneo, pensemos na agitação popular contra a invasão estrangeira da Índia,
inclusive com mobilização das castas baixas. Seu crescimento remonta a uma inflexão
na política colonial britânica para um controle mais estreito na Índia, cujas origens,
por sua vez, se conectam à procura de alternativas fiscais após das treze colônias
norte-americanas (1776-1783). Dessa forma, um passo importante para reavaliar a Era
das Revoluções seria substituir a imagem de um par de nações europeias na ponta da
flecha da história, irradiando mudança pelo mundo, ou de um mesmo movimento
orquestrado e coerente em todo o planeta, para um conjunto de conexões, processos e
contingências históricas que espiralaram em uma economia mundial em expansão,
criando pontos de não-retorno e epicentros revolucionários.
Um segundo passo para repensar a Era das Revoluções em escala mundial, que
encontra respaldo na historiografia mais recente sobre o tema, é relativizar o
singularismo modernista da linguagem revolucionária francesa ou anglo-saxã
(ARMITAGE & SUBRAHMANYAM, 2010; BAYLY, 2004). Trocando em miúdos,
isso significa o seguinte: ao assumir que a Revolução Francesa foi movida pelo uso da
razão abstrata, pela crença no individualismo e no progresso, pela soberania nacional,
popular, laica e liberal, somos obrigados a cristalizar essa revolução como
inauguração épica da modernidade no palco da história (ver capítulo 3). No entanto,
além de invisibilizar os paradoxos e contradições da própria Revolução Francesa, isso
dinamitaria todas as pontes possíveis de conexão e comparação com o resto do mundo,
subitamente reduzido a povos “sem história”.
A mera expectativa de que no Oriente Médio, nos Andes ou na China os
desafiantes da ordem estabelecida recorressem à linguagem ocidental da razão, dos
direitos ou da cidadania já é uma presunção de universalidade bastante etnocêntrica.
Ainda mais etnocêntrico seria supor que, por não se valerem dessa linguagem, os
povos do resto do mundo não fossem capazes de expressar sua indignação e revolta
no ciclo de conflito social de 1770-1840, nem sua projeção própria de justiça e bom
governo. Considerar as revoluções ocidentais descoladas dos demais contextos
contemporâneos de fricção política exige alguma etiqueta de conotação orientalista
(como tradicionalismo, milenarismo, fanatismo religioso) aplicada aos segundos.
156
Mais do que isso, hoje já dispomos de trabalhos que tensionam exatamente essa
fronteira. No caso do mundo anglo-saxão, o reexame da tradição do republicanismo
cívico, essencial na independência dos Estados Unidos, revela suas raízes nos valores
comunitários, no apreço à virtude, no localismo e na religiosidade popular mais do
que um apego à razão descarnada do Iluminismo. Isso permite explorar a hipótese de
que “ideias não dessemelhantes às tradições europeias de republicanismo cívico
existiram em muitas sociedades mundiais” (BAYLY, 2004: 288). No caso do mundo
muçulmano,
“muito do primeiro pensamento do nacionalismo muçulmano e do pan-islamismo foi atrás
das tentativas dos moralistas medievais árabes e persas de reconciliar a moralidade cívica
de Aristóteles com as normas do profeta para uma vida devota. (...) Aristóteles foi comum
às duas civilizações” (BAYLY, 2004: 289)
O propósito desse exemplo é esfumaçar a oposição modernista entre os eruditos
ocidentais e o resto, o que será decisivo para estudar a crise dos impérios ibéricos e as
independências latino-americanas. Por um lado, se deixamos de lado a régua europeia
para medir o mundo, percebemos a emergência de um leque amplo de lutas sociais,
utopias em conflito na Era das Revoluções, inclusive a associação, fora da Europa e
frequentemente contra ela, da legitimidade do poder político em bases imanentes e
populares79 (BAYLY, 2004, cap. 2). Na América Latina, o pactismo ibérico oferecia
uma linguagem constitucional de soberania popular distinta daquela da Ilustração
francesa (CHIARAMONTE, 2004). Diante da polêmica sobre a escravidão atlântica,
emerge nessa conjunção crítica tanto um “liberalismo republicano” de viés
antiescravista (HALPERÍN DONGHI, 2009: 302) como um “liberalismo escravista”
calcado nos direitos individuais dos proprietários (BERBEL & MARQUESE, 2010;
MARQUESE, 2003). De certa forma, é isso que se pode chamar de “origens
Bayly faz a audaciosa sugestão de que o símbolo do “povo” enquanto tal unia as forças
revolucionárias do período. Ele diz que “talvez mais importante que qualquer filosofia política
específica era o símbolo do ‘povo’ em si. A ideia de que o povo tinha direitos e podia também agir
como uma força criativa, até revolucionária, na política era global. Escravos insurretos no Caribe,
ativistas das castas baixas na Índia, artesãos rebeldes em Gênova podiam invocar os direitos do ‘povo’
e ser entendidos, até temidos, muito além de suas localidades” (BAYLY, 2004: p. 107)
79
157
multicêntricas da produção ideológica”, como contraposição ao difusionismo
modernista na história mundial80 (BAYLY, 2004: 471).
Por outro lado, também no caso da Europa Ocidental, a ruptura da Era das
Revoluções não se circunscreve ao advento da razão, da liberdade e da cidadania
contra o absolutismo gótico. Ao invés de episódios equivalentes à modernidade
teórica, sabemos que sua força reside na interposição de imaginários comunitários,
consuetudinários e religiosos na mobilização das pessoas, para não falar, como já se
estabeleceu claramente para a Revolução Francesa, de sua fome. Essa miscelânea é
especialmente forte no mundo rural que foi onde se definiu a cadência de
radicalização da revolução (SKOPCOL, 1979). Nesses limites, o Iluminismo foi um
movimento intelectual profundo que inevitavelmente marcaria a forma como os
europeus (e não só eles) articulariam seu dissenso e suas utopias; contudo, seu
discurso autorreferenciado de progresso universal não pode ser aceito pelo valor de
face.
Além da tentação de transformar tudo em antecedentes ou consequências da
Revolução Francesa, há outra tendência tão comum quanto traiçoeira: ao fincar apoios
nas revoluções triunfantes, comumente identificadas com os EUA, a França e
eventualmente o Haiti e a América Espanhola, tornam-se invisíveis ou irrelevantes as
inúmeras resistências que não se enquadram no desfecho épico da tomada do poder.
Como constatou Tilly (1978), quando falamos em revolução sempre nos vem à mente
as vencedoras. No extremo, a ideia de uma conjunção crítica entre 1770 e 1840
remete a um emaranhado infinitesimal de conspirações, rebeliões armadas, fugas de
escravos, petições, declarações de princípios, incêndios de fazendas, editoriais
inflamados, marcha de exércitos, eleições, entre outras formas de confronto político,
muitas das quais possivelmente perdemos o rastro documental.
É verdade que determinados episódios adquirem maior ressonância histórica
pelas apropriações que são feitas na disputa política posterior, na chave da
exemplaridade ou contraexemplaridade (MÉNY, 2010). A Revolução Haitiana, na
qual um de seus historiadores identificou “a característica peculiar de ser impensável
mesmo enquanto acontecia” (TROUILLOT, 1995: 73), tem contágio maiúsculo e
80
Segundo o autor, seria possível “escrever uma história global das ideias, uma que também enfatize
as origens multicêntricas da produção ideológica” (BAYLY, 2004: 471). Em seguida, faz menção ao
período 1780-1820, argumentando que ideias contemporâneas como a ‘revolução’ no sul da Ásia, a
ideia árabe/wahhabita de ‘renovação’ e o tema chinês do fim do ‘mandato do céu’ “parecem vir de
tradições de pensamento muito diferentes” (BAYLY, 2004: 471).
158
imediato no contexto americano, onde se registra uma sequência de conspirações,
fugas e rebeliões negras (ADELMAN, 2006: 92-96; ver Tabelas 4.4 e 4.5). Sua
irradiação também ocorreu pelos instrumentos de repressão colonial: os insurgentes
venezuelanos capturados com Francisco Miranda em 1806, por exemplo, foram
acusados de serem traidores afeitos ao “tirano negro Dessalines” (ADELMAN, 2010:
399). Os imaginários de ordem eram mutuamente constituídos pelos eventos da época
e suas interpretações. Nesse sentido, as revoluções triunfantes nos Estados Unidos, na
França e no Haiti fatalmente serviriam de referência concreta a ser apropriada no
confronto político do ciclo das independências hispano- e luso-americanas. Por sua
vez, a experiência espanhola foi exemplo e contraexemplo recorrente nas
controvérsias contemporâneas no império português (PIMENTA, 2003).
O elemento central da Era das Revoluções atlântica não é a coincidência de
lutas, seu número ou sua coerência ideológica; trata-se, antes de tudo, de como o
encadeamento delas criou pontos de não-retorno ao desestabilizar hierarquias sociais e
os fundamentos ético-políticos da ordem vigente. Os pilares da expansão sistêmica no
século XVIII, a legitimidade monárquica, a escravidão capitalista e o poder colonial
europeu, são postos em xeque. Alarga-se o horizonte de possibilidades no qual atores
sociais e suas utopias disputam o sentido da ordem em reconstrução, inclusive pela
reinvenção e adaptação daqueles pilares abalados. Com trajetórias específicas em
cada contexto, há uma aceleração da agonística de construção da ordem: do vulcão de
imaginários de ordenamento social revolvidos na conjunção crítica há os que são
marginalizados, os que são exterminados, os que são cooptados ou moderados, e há os
que vão se concatenando e solidificando em uma nova ordem vigente.
4.3. Contingência, conflito e impérios no percurso das independências
Em julho de 1797, o Capitão Geral da Venezuela Don Pedro Carbonell é
informado de uma conspiração republicana em La Guaira e captura 65 pessoas
envolvidas. Não tardou a se descobrir as estreitas conexões dos republicanos
venezuelanos com alguns intelectuais deportados da Espanha após uma tentativa de
depor Carlos IV no ano anterior. Entre os expatriados peninsulares, como Manuel
Campomanes e Juan Batista Picornell, e seus parceiros venezuelanos, como Manuel
159
Gual e José María España, um laço de convicção os unia em torno do republicanismo
ativista, radical e anticorporativo que a Revolução Francesa inaugurara.
Entre os conspiradores de La Guaira, além de traduções da Declaração de
Direitos de 1789 e outros folhetos subversivos, foram encontradas canções impressas,
como uma versão americana da Carmagnole jacobina em que se liam os seguintes
versos: “Yo que soy un sincamisa / un baile tengo que dar / y en lugar de guitarras /
cañones sonaran / Si alguno quiere saber / por qué estoy descamisado, / porque con
los tributos / el Rey me ha desnudado”. Em outro cântico revolucionário, a chamada
“Canção Americana”, os conspiradores de Gual e España entoavam que “La Patria es
nuestra Madre / nuestra Madre querida / a quien tiene el tirano / esclava y oprimida”.
Leitores de Rousseau e imbuídos do projeto de uma Venezuela independente, estes
insurgentes inscreveram seus nomes entre os hoje celebrados pioneiros das lutas
patrióticas, mas, ao cruzar o delicado limiar de arregimentar negros e pardos para
lutar pela liberdade, foram isolados, expatriados e mortos com apoio da elite local.
Dos 65 capturados em julho de 1797, apenas 34 eram brancos, sendo 21 espanhóis81.
É tentador partir de casos como a conspiração de Gual e España (1797), ou a
Inconfidência Mineira no Brasil (1789) e o périplo de militantes ilustrados como
Francisco de Miranda e Antonio Nariño, para encontrar ali o gérmen das futuras
nações americanas. Frente às novas investidas do absolutismo ibérico, forma-se no
espírito dos colonos a imagem futura de uma pátria livre e progressista, que o
desenrolar da história acabaria por confirmar. Sob essa insígnia, as rebeliões de índios
e escravos podem também ser incluídas no majestoso desabrochar da pátria, desde
que filtradas pelos ideais majoritários de liberdade e igualdade. Em um plano mais
abstrato, pode-se traduzir essa narrativa como uma teleologia nacional porque a
independência é antecedida e presidida por uma comunidade imaginada, encaixotando
um momento de indefinição das formas políticas e de conflito social multiforme a um
“princípio de nacionalidades”82. Alimentado pelo romantismo, esse princípio
Sobre a rebelião de Gual e Espanha, ver Adelman (2006) e Lynch (2009). Para um estudo mais
detalhado sobre a trajetória dos cantos revolucionários, ver Bugliani (1999).
81
Ninguém foi tão sofisticado e convincente na crítica à teleologia subjacente ao princípio das
nacionalidades no estudo das independências latino-americanas quanto o historiador argentino José
Carlos Chiaramonte (2004; 2016) em seu diálogo direto com Benedict Anderson (1993) e seus
seguidores. Outras contribuições para essa revisão historiográfica se encontram em Adelman (2006),
Chaunu (1972), Esheli, Kayali e Young (2006), Gouvêa (1997), Knobl (2011), Xavier-Guerra (2000).
82
160
redescreve o conteúdo anterior de “nação” pela fórmula política em que “a cada nação,
um estado; em cada estado, uma nação”.
Nesta seção, portanto, buscaremos demonstrar como esse ponto de vista
distorce e simplifica aspectos centrais do ciclo das independências latino-americanas.
Por contraste, três movimentos são destacados do ponto de vista teórico, tecendo
pontes com a primeira parte da tese. O primeiro é o resgate da contingência que
permeia o desenrolar das crises imperiais que desembocam em novos estados,
deslocando a presunção de necessidade histórica por trás da transição de império a
nação (ESHELI, KAYALI & YOUNG, 2006). Desdobrado deste, o segundo
movimento é o reconhecimento da abertura de horizontes do confronto político, em
lugar de polarizar dois campos antagônicos identificados como moderno e tradicional,
ou o nacional e o colonial. O terceiro argumento sobre o ciclo das independências traz
ao primeiro plano a dimensão imperial da disputa pela ordem naquele contexto, como
uma chave alternativa à análise que segmenta o processo na escala de estados
nacionais que sequer existem com nitidez à época.
De forma geral, revalorizar os gatilhos contingentes da independência implica
assumir que ela não era o desdobramento necessário de um desenvolvimento
cumulativo anterior, isto é, de uma maturidade da nação livre sob as amarras da
tirania metropolitana (KNOBL, 2011). Admite-se, de saída, que a trajetória dos
espaços imperiais em crise é uma resultante específica das pressões de desagregação e
reintegração, uma possibilidade efetivada dentre outras possíveis. Quando efetivada,
sua explicação depende da identificação de uma aliança anticolonial específica que
perceba nela, em dada circunstância, uma janela de superação da crise, conseguindo
defendê-la com sucesso. O que chamamos de ciclo das independências engloba
algumas reivindicações bem-sucedidas, mas muitas outras foram politicamente
anuladas no processo, desde a revolta negra de Berbice (Guiana) nos anos 1760 até a
República de Yucatán (México) nos anos 1840. A Era das Revoluções não demarca o
fim do colonialismo ultramarino europeu, mas um movimento contingente da linha de
inclusão do princípio de soberania na América.
O exemplo mais comum para evidenciar o papel da contingência nesse período
é a sequência de abdicações reais na Espanha após a invasão napoleônica (1807/1808),
que geram uma reação em cadeia na América Espanhola que chacoalha as fidelidades
e rotinas políticas (XAVIER-GUERRA, 2000). O súbito desaparecimento da figura
161
monárquica cria um gatilho para expectativas e conflitos que não estavam em
gestação ou maturação prévia, ou, em outras palavras, estabelece um ponto de
não-retorno no horizonte de possibilidades. É impraticável medir até que ponto a
história da América teria sido alterada pelo contrafactual em que a dinastia Bourbon
fosse mantida no trono espanhol, seja pelo invasor francês, seja pelo respaldo
britânico.
Assim como não era dado que os colonos ambicionavam sua independência
política, nem mesmo quando formaram as Juntas Provisórias nas cidades americanas
após 1808, tampouco era autoevidente que a reconquista espanhola após 1814
fracassaria em retomar suas colônias. Quando as forças regalistas retomaram a Nova
Granada e o Chile, o próprio Simón Bolívar no exílio sugeriu que a “restauração do
governo espanhol na América (...) parece certo” (apud BLAUFARB, 2007: 744). Em
1820, quando Fernando VII enviaria um comboio de reforços de Cádiz a Buenos
Aires, uma rebelião de oficiais liderada por Rafael de Riego abriria uma crise
institucional na Espanha que acabaria por submeter o rei a uma constituição liberal.
Essa situação nova levou a uma guinada de rumos das Américas Espanhola e
Portuguesa. Assim como as Abdicações de Bayona (1807-1808) não eram uma etapa
necessária do roteiro da independência, a inflexão decorrente do “triênio liberal” na
Espanha (1820-1823) não pode ser subsumida às tendências de longo prazo do
império bourbônico ou da formação nacional. Esse tipo de esquina da história são um
lembrete constante de que o passado se equilibra sobre inúmeras possibilidades
não-realizadas, justamente as que uma teleologia nacional se esforça em negar em
nome do progresso cumulativo.
Recolocar, então, as independências latino-americanas na agonística da Era das
Revoluções implica considerar a multiplicidade de projetos políticos em conflito, e
suas repercussões para o cotidiano dos setores diretamente envolvidos. Muito além de
arbitrar a divisão metrópole-colônia, a política revolvida nas sociedades americanas
pôs em questão a validade ou não da escravidão, a monarquia ou a república, o
significado do “mau governo” e seus responsáveis, o perímetro de reconhecimento da
cidadania, a fronteira entre a “liberdade” e a “libertinagem” de imprensa, a
distribuição do fardo fiscal, a soberania e direitos naturais dos pueblos, a arquitetura
da representação política, o mandato imperativo ou livre dos representantes, a relação
adequada com o comércio atlântico, a vigência ou não da religião oficial católica, a
162
manutenção ou não dos tributos indígenas, a distribuição ou não da terra entre os
camponeses, a aceitação de governos militares ou civis, a validade do extermínio total
dos descendentes de europeus ou a possibilidade dos ex-escravos se governarem
autonomamente em estados livres ou quilombos.
Argumentar que todas essas questões estavam em jogo no longo ciclo da
independência não significa que elas foram sendo debatidas ordenadamente nos
fóruns parlamentares, nem sequer que tiveram o mesmo peso em todo o subcontinente.
Por outro lado, significa afirmar duas coisas: primeiro, como questão de fato, a
política não se resume aos meios cordatos ou formais de resolução de conflitos,
registrados solenemente nas atas parlamentares. A indignação com a opressão e a
rebeldia contra a injustiça tomam frequentemente a via da violência, afinal não são
menos violentos os meios com que a opressão se mantém. A política de definição da
ordem passa por conflitos entre futuros possíveis que envolvem repressão e revolta,
não só mediações e compromissos.
Segundo, é preciso reconhecer que não são simplesmente “utopias” presentes
na Era das Revoluções os discursos e tratados de articulistas inspirados pela Ilustração,
mas que o eram também os horizontes de futuro que inspiraram movimentos plebeus
em luta contra o que lhes parecia injusto ou indigno. Se, por exemplo, para os
conspiradores mineiros de 1789 o fisco colonial lhes parecia ultrajante enquanto a
escravidão dividia sentimentos, os escravos que se amotinaram na Nova Granada em
1799 planejavam, segundo um dos seus, “matar todos os brancos e saquear os
tesouros do Rei, bem como aqueles de seus súditos” (ADELMAN, 2010: 397-398).
Quando Juan Castelli, representando a Junta de Buenos Aires no Alto Peru, anuncia
em Cochabamba, com tradução para o quéchua, que “a junta da capital os olhará
sempre como irmãos e os considerará como iguais”, a repercussão seria tal que, na
rebelião violenta em Huánuco (1812), a 2.000 km de distância, os indígenas
evocariam ali o Rei Castel como encarnação do Inca salvador (BERNAND, 2016: cap.
1).
Embora a monarquia inca não tenha sido restaurada nem os brancos tenham
sido ao final mortos e expropriados, é importante visualizar a amplitude do conflito
político para além dos parlamentos e gabinetes, porque com esse olhar temos a
dimensão do estremecimento das hierarquias sociais durante o processo. De certa
forma, a tendência de contar a agenda política das independências orbitando
163
unicamente ao redor dos temas da cidadania e da representação é uma forma de
normalizar o passado de acordo com os temas que o liberalismo posterior sabe lidar
bem. Ao ofuscar as possibilidades mais desconfortáveis como o virtual extermínio dos
brancos ou o autogoverno dos ex-escravos, aceitamos apagar certas lutas populares,
porque derrotadas, e repousar a história sobre uma zona de conforto criollo – conforto
esse com que eles próprios não pareciam à época tão seguros de contar. A história das
independências não só a de com que sonhavam as elites criollas, mas também a de o
que temiam.
Essa proposta – isto é, ler o ciclo das independências na chave do confronto
político de impérios atlânticos sob estiramento estratégico – serve para contrapor pelo
menos três leituras bastante comuns do mesmo período. A primeira é a uma espécie
de tese da frivolidade, segundo a qual “a mudança de poder não significava
transformação social (...). Daí o caráter essencialmente político e formal da
independência” (YUNES, 2009: 216). Com boa dose de determinismo retrospectivo,
essa visão tende a minimizar as possibilidades daquela situação revolucionária com
base em seu desfecho, contrapondo-a a um modelo de revolução burguesa (ou
democrática-popular) espelhado da Revolução Francesa. A conclusão subsequente de
que o processo “esteve longe de ser uma revolução burguesa” (YUNES, 2009: 216)
parece pouco produtiva e não faz jus ao redemoinho de lutas populares que não
aderem às expectativas do modelo.
Uma forma associada a essa é ler o ciclo das independências na chave da
continuidade, isto é, como sobrevivência encoberta da estrutura de poder imperial da
colônia, seu aparato fiscal, administrativo e eclesiástico (por exemplo, KAPLAN,
1996: cap. 3). Essa leitura, disfarçando ou não seu culturalismo, sinaliza um
imobilismo histórico que facilmente se imiscui com mitos da “lenda negra” ou da
“herança ibérica”. Empiricamente falando, é difícil argumentar pela continuidade
administrativa quando a tendência foi justamente de desarticulação das práticas fiscais
e legais do período colonial. Se há continuidades ou ressurgimentos, eles precisam ser
descritos e explicados sem depender de um núcleo institucional indistinto e
subterrâneo.
Em poucas palavras, a ordem política que emerge no pós-independência não há
de ser a atualização das monarquias absolutistas em nova roupagem, nem uma
não-revolução criolla, não-burguesa e não-democrática-popular. O que falta
164
claramente a essas duas perspectivas é uma dinâmica de conflito de horizontes, forças
sociais ou utopias que explique a ordem política pós-independência não como um
resultado pré-concebido, seja ele o projeto criollo conservador ou a reciclagem da
monarquia, mas como um dos resultados possíveis de uma luta que envolveu não
somente elites letradas e eurodescendentes.
Para discernir a abertura do horizonte de possibilidades, é preciso também
evitar o procedimento dicotômico realizado por Xavier-Guerra (2000), cuja crítica
antecipamos no capítulo 3. Ao enrijecer a fronteira modernista da linguagem
revolucionária francesa, ele acaba por sublimar a atuação de intelectuais ilustrados
como motores da revolução, porque se define a revolução em seus termos. Embora
outrora inovadora, o risco principal dessa interpretação é, ao reduzir a modernidade ao
iluminismo, reciclar fórmulas obsoletas como a “coexistência da modernidade das
elites com o arcaísmo da sociedade” para explicar as supostas deficiências do
liberalismo
político
realmente
existente
(XAVIER-GUERRA,
2000:
361).
Consequentemente, a ação política digna de atenção se daria no universo moderno das
elites, e não em meio à sociedade arcaica. Por não falar a língua da Assembleia
Nacional Francesa, o resto da sociedade colonial fica de fora da história da Era das
Revoluções, tal qual os românticos alemães, os dalits indianos ou os cossacos russos.
Um volume recente de estudos sobre o pensamento liberal na América Latina
oitocentista reconheceu-se tratando quase que exclusivamente de “uns poucos homens
educados, porque eram estes os sacerdotes da religião secular do liberalismo”
(SAFFORD, 2011: 325).
Como já foi apontado na historiografia latino-americana, traduzir a polarização
política do século XIX através do binômio liberal-conservador gera confusão porque
assume um alinhamento vertical de todas as questões em pugna na forma de dois
programas claramente contrapostos, com seus respectivos seguidores e bases
socioeconômicas (HALE, 1973; LYNCH, 2008; SAFFORD, 2009). Desfeita essa
imagem, é lógico que inspirações liberais ou conservadoras perpassaram diversos
cenários das independências. Sobretudo, o que era entendido como liberal ou
conservador foi sempre resultado de uma posição no embate político, e não uma
fidelidade programática abstrata. A identificação das facções se mistura com os
termos da disputa política, inclusive como forma de desqualificar e ridicularizar os
adversários.
165
Em paralelo, para diversas questões em pugna, especialmente as socialmente
mais explosivas, facções ditas liberais e conservadoras discursaram em uníssono. No
entanto, é mais difícil, por inúmeras razões, acessar as bússolas ético-políticas dos
movimentos populares no período. Seu caráter sincrético e socialmente enraizado tem
sido desvelado por autores que, em contextos diferentes, tem trabalhado sobre as
noções de uma “sociologia moral plebeia” (SANIN, 1999), de um “liberalismo
popular” (ANNINO, 1999; YOUNG, 2008) e mesmo de uma “guerra de raças”
(THIBAUD, 2011). Resumir essas interpretações da sociedade, com seus sensos
subjacentes de justiça, a uma ação política “tradicional” parece arbitrário e simplista.
Em poucas palavras, em um contexto de esvaziamento da legitimidade
monárquica e de instabilidade das hierarquias sociais, a abertura do confronto político
extrapolou as balizas do binômio liberal-conservador, este mesmo um recurso
tipológico a que não se deve aferrar. Em sociedades em que geralmente menos de 1%
da população era alfabetizada, é ingênuo achar que a política passaria unicamente
pelos canais letrados das elites europeizadas. Como nos mostrou o exemplo da
conspiração de Gual e España (1797), essa disputa política não se fez só com armas,
mas também com canções; as fidelidades políticas não se manifestaram só com
panfletos, mas com escolhas cotidianas de vestuário e linguagem; da mesma forma, a
antipatia contra os espanhóis não foi cevada só com impostos exorbitantes, mas com
peças de folclore antigachupín, por exemplo, que os que ridicularizavam83. Usando o
exemplo algo extremado dos revolucionários franceses, percebemos que eles
“conseguiram politizar todo aspecto imaginável da vida cotidiana, dos nomes das
crianças à medida do tempo (calendário revolucionário) e espaço (sistema métrico)”
(HUNT, 2010: 32). A análise do confronto político e seus repertórios de ação abre
interrogações sobre as dimensões simbólicas e performáticas das lutas sociais durante
a independência.
Por fim, a aproximação à conjunção crítica 1770-1840 na América Latina
resgata, como terceiro movimento teórico, a dimensão imperial da prática política do
período, uma consequência direta do que se disse na seção anterior84. Ao contrário da
83
Para dados sobre alfabetização, ver Xavier-Guerra (2000). Para a cisão de vestuário na polarização
entre unitários e federais no Rio da Prata, há um comentário breve em Sábato (1999). Para a relação
entre o folclore antigachupín com as tensões intrarregionais transferidas da metrópole, há menções em
Chaunu (1972).
A recuperação da dimensão imperial da das revoluções atlânticas é o cerne do livro de Jeremy
Adelman (2006), que explora e renova indicações de Pierre Chaunu (1972) no contexto atual da
84
166
mitologia das nacionalidades in nuce, a referência principal para a articulação de
fidelidades, linguagens e reivindicações políticas no Atlântico ibérico foram os
procedimentos fundadores do império, inclusive nos casos que redundaram em
estados independentes. Como bem apontou Frederick Cooper,
“Dentro dos impérios, o pensamento iluminista, o liberalismo e o republicanismo não eram
intrinsecamente coloniais nem anticoloniais, racistas nem antirracistas, mas eles forneciam
linguagens para fazer e responder reivindicações, cujos efeitos eram moldados menos por
grandes abstrações do que por lutas complexas em contextos específicos, desdobradas no
tempo” (COOPER, 2005: 24).
Em janeiro de 1812, os indígenas de Buriticá elaboraram um memorial de
protesto contra a legislação recém proclamada pela Junta Governativa de Antioquia,
que determinava a liberdade total dos índios. Alegando perdas econômicas com a
dissolução de sua condição corporativa, eles pretendiam conservar as isenções
condizentes com o estatuto de “índios” (“a nosso entender úteis segundo nossa
pobreza”) tal qual previsto na legislação colonial sem, com isso, deixar de cumprir
suas obrigações como “patriotas” e “cidadãos”, “não recusando nenhuma expedição
que se projete” (SALGADO HERNÁNDEZ, 2015: 36-48). Há uma manobra de
sincretismo entre o “antigo regime” e a “modernidade” que só é inteligível se situada
em seu contexto, em que o recurso ao imaginário imperial é atualizado como
estratégia de proteção cultural frente ao ativismo do governo revolucionário. Este
último, cabe acrescentar, rechaçou a demanda dos indígenas de Buriticá com base nos
“princípios de liberdade e justiça” consagrados na Constituição de Cádiz, o que ainda
reforça as conexões imperiais do litígio local.
O tema da apropriação criativa da linguagem política imperial também
repercute no já citado episódio das abdicações forçadas de Fernando VII em 1808. A
reação imediata foi a formação de Juntas nas províncias e cidades do reino com o
objetivo de resistir, em nome do rei deposto, ao invasor estrangeiro e ao ateísmo
francês. Esse movimento se desenvolve tanto na América quanto na Península. Com
isso, cria-se uma situação inédita em que as autoridades locais se reivindicam
depositárias da soberania sequestrada, ou seja, o espaço imperial se afirma
independentemente da autoridade régia. Isso é ainda mais relevante na medida em que,
historiografia global e atlântica. Outros pesquisadores que merecem crédito pela originalidade no
resgate da dimensão imperial da política moderna são Frederick Cooper (2005) e C. A. Bayly (2004:
cap. 6-7).
167
desde 1796, a manutenção de ligações efetivas da metrópole com as periferias
imperiais americanas esteve sujeita ao bloqueio naval britânico em situação de guerra
(1796-1802 e 1804-1808).
Ao mesmo tempo em que reacendia as linhas de fidelidade ao império, a
ocupação estrangeira e o vácuo régio colocaram dilemas quanto ao que significava ser
súdito de um rei ausente e ao que correspondia a comunidade política responsável
pela resistência. Por um lado, o movimento juntista desvencilha-se das doutrinas
absolutistas porque não encontra ali base alguma para a ação (XAVIER-GUERRA,
2000). Por outro, o resgate de instituições imperiais (como a convocação das Cortes
do reino) e de doutrinas políticas de sua fundamentação (pactismo, jusnaturalismo,
constitucionalismo histórico) ocorre em um movimento que extrapola, no plano da
prática e do discurso, as referências pregressas do próprio império espanhol. Nesse
movimento, abre-se a possibilidade não só de apropriação das referências de
“cidadão” e “nação” inspiradas na França e contra ela, mas especialmente de
reinterpretações diversas e conflitantes dos compromissos políticos válidos aos
súditos do reino diante da conjuntura. No famoso Grito de Dolores (1810), marco da
independência novo-hispana, Hidalgo convoca os mexicanos a erguer-se em armas
contra os espanhóis em nome do rei espanhol deposto.
Dessa forma, a dimensão imperial da política durante a crise não se reflete
simplesmente na luta restauracionista das Juntas, mas especialmente no recurso a
princípios, convenções e práticas do reino para dar sentido a uma situação
radicalmente nova. Do propósito de situar bases não-absolutistas para uma curiosa
monarquia sem rei, entrecruzam-se nos debates referências ao pactismo espanhol de
Suárez e Vitoria, ao jusnaturalismo de Vattel, Puffendorf e Grócio, sem faltar
denúncias à deturpação da autoridade real pelos três últimos séculos de absolutismo,
em alusão aos comuneros derrotados em Villalar (1521).
Desse revolver de compromissos pactados, memória histórica e direitos
naturais, por deslizamentos de sentido e injunções práticas, consolida-se o que ficou
conhecido como “primeiro liberalismo espanhol”. Embora sua origem remonte a fins
do século XVIII85, seu ponto de culminância será a Constituição liberal e centralista
85
Com os olhos postos nos eventos franceses, a monarquia espanhola se entrincheira no reacionarismo
após 1789, expulsando do governo os baluartes das reformas iluministas e proscrevendo o ensino do
jusnaturalismo nas universidades (instituído na década de 1770). Forma-se então uma aliança de
oposição entre monarquistas reformadores e liberais, campo em que será cevado o ideário de liberdades
e prerrogativas individuais consagradas em 1812 (CHIARAMONTE, 2004).
168
adotada pelas Cortes de Cádiz em 1812, que reconhece pela primeira vez a figura do
cidadão dotado de direitos inalienáveis (BREÑA, 2011). Na América, como veremos
adiante, não foi unívoca a premissa de que fidelidade ao monarca se transferiria para
os órgãos provisórios (Junta Suprema, Conselho de Regência e depois as Cortes).
Cria-se assim a ironia pela qual a Constituição de 1812 atravessa o oceano junto com
reforços militares contra a sublevação independentista iniciada em 1810 no México
(BERNAND, 2016: 75-82). A rigor, o liberalismo político peninsular, tal qual o
incipiente nacionalismo contra o invasor francês, não se forma exatamente contra o
império, mas nasce em seu seio, sustentado por seus recursos e comprometido com
sua manutenção.
É um equívoco equivaler, portanto, a dimensão imperial ao absolutismo
monárquico espanhol, acoplando essa imagem à metrópole enquanto às colônias se
reputa um progressismo liberal ou nacionalista. Em seu lugar, a representação geral a
que precisamos formar é de uma situação de soberania múltipla (ver seção 1.3) nos
limites do espaço imperial espanhol86, com pretensões políticas concorrentes como a
reunificação sob tutela francesa com a Constituição de Bayona (1808), o movimento
das juntas peninsulares que redundará nas Cortes de Cádiz e, não menos importante,
as diversas juntas formadas na América, com posições próprias entre a adesão e a
autonomia com relação aos governos vigentes na Espanha. É dessa perspectiva que se
percebe o ciclo das independências como uma sequência de “guerras civis do
Atlântico espanhol” (CHAUNU, 1972: 133).
No extremo, as independências (como rupturas definitivas de colônias
convertidas em repúblicas) não surgem claramente no horizonte até o desenrolar da
guerra após 1814, quando o aguardado retorno de Fernando VII é acompanhado de
um ímpeto violento de restauração do governo absoluto e da submissão colonial. Ou
seja, a separação da metrópole se torna a saída possível quando a adesão do império
equivalia ao absolutismo reacionário pós-1815. Dessa forma, o encadeamento entre a
luta emergencial contra os franceses, a organização de Juntas de Governo, a busca por
fundamentos políticos para além do rei (sequestrado pelos invasores) e o retorno desse
mesmo rei em bases reacionárias vai criando sucessivos pontos de não-retorno para
Essa perspectiva já foi explicitamente sinalizada por Fernando López-Alves (2000b): “desde as
guerras de independência, as primeiras guerras revolucionárias abrangentes vividas pela América
Latina, a maior parte do processo de formação do estado no Novo Mundo pode ser interpretado como
uma cadeia de situações revolucionárias similares ao descrito por Tilly (LÓPEZ-ALVES, 2000b: 162).
86
169
uma situação inicial de soberania múltipla, desenlaçada enfim pela separação da
maior parte do império em repúblicas. Com o fracasso das tentativas de reintegrar as
ex-colônias pela força no século XIX, o Império Espanhol na América fica limitado a
Cuba e Porto Rico.
Embora a trajetória da monarquia portuguesa pareça uma narrativa oposta, não
o é de todo, como buscaremos demonstrar na terceira parte da tese (ver capítulo 10).
De fato, sua longeva aliança com os britânicos e a migração para o Rio de Janeiro em
1808 fechou precocemente o espectro de possibilidades da crise imperial. É verdade
que um golpe preemptivo como esse não era uma possibilidade absurda para a própria
Espanha: cabe lembrar que, frente à ofensiva francesa de Madri à Andaluzia em
1809-1810, a Junta Central espanhola esteve também prestes a embarcar para a
América, o que não aconteceu. O fato de a família Bragança tê-lo feito paralisou a
política imperial portuguesa até o desfecho da guerra anglo-francesa. A independência
brasileira em 1822 se encadeia na sequência de situações de soberania múltipla que se
abriram no império com a Revolução Liberal do Porto (1821).
4.4. Localismo e soberania
O último passo deste capítulo é perceber uma tendência de reassentamento da
vida política nas esferas locais e regionais, tendência cuja formulação depende da
dimensão imperial da política, do alargamento do horizonte de possibilidades e do
percurso contingente da disputa política. Esse localismo se desenvolve de forma
revolucionária no caso do Império Espanhol após 1808, e, desde então, o esforço de
contrarrestar seus efeitos será um dos marcos da conjunção crítica no caso
luso-brasileiro. Como ponto de partida, convém recordar que o colapso da monarquia
bourbônica não deu vazão a uma série de estados nacionais, mas sim uma profusão de
reivindicações territoriais de soberania. A forma predominante dessas reivindicações
foi o município ou a província, subitamente desamarradas das instituições coloniais
com base na doutrina de retroversão da soberania (CHIARAMONTE, 2003; 2004;
2016; XAVIER-GUERRA, 2000).
Com origem no pensamento pactista ibérico, sobretudo a chamada
Neoescolástica, essa doutrina previa que, na ausência da figura régia a unificar o
corpo do reino, o exercício da soberania seria reassumido pelas províncias, nações,
170
reinos e municipalidades de que aquele era composto. As autoridades locais e os
vizinhos reconhecidos ficariam responsáveis por estipular mecanismos de governo até
que a monarquia pudesse ser reconstituída. Como vimos, a legitimidade das
abdicações de Bayona (1808) é contestada pela tradição da “antiga constituição” do
reino, segundo a qual a soberania não poderia ser alienada sem consentimento dos
súditos (CHIARAMONTE, 2016: 77-78). Mesmo que oficial, a transferência de poder
aos franceses não se sobrepõe, portanto, aos direitos naturais dos pueblos. É pelo
recurso às práticas usuais do império que uma situação nova é instalada, na medida
em que, em função da vacância real, os espaços locais se autonomizam como
depositários legítimos de soberania.
Havia duas formas principais pelas quais se interpretou a retroversão da
soberania na América espanhola. Na maior parte dos casos, ela se traduziu em
pretensões autonômicas de localidades, cujas instituições coloniais (cabildos e
ayuntamientos) se converteriam em poder soberano, apontando, ou não, para uma
disposição
confederal.
Essa
disposição
confederal
demarcava,
por
um
pronunciamento municipal ou uma constituição provincial, a intenção de unir-se às
províncias vizinhas por uma delegação consentida de soberania em prol de interesses
compartilhados. Em outros casos, a retroversão de soberania subentendia a hierarquia
administrativa das colônias, com a precedência de uma cidade capitolina como
depositária legítima da soberania no extinto vice-reino ou na capitania-geral como um
todo. O conflito entre essas interpretações da doutrina talhou a situação de soberania
múltipla tanto quanto os intentos de manutenção do império projetados desde a
metrópole.
Com a crise da monarquia não emergiram entidades nacionais chamadas
Argentina, Equador ou Guatemala, e sim um emaranhado de antigas autoridades
vice-reinais com juntas e cabildos abertos espalhados pelo continente, como em Coro,
Tucumán, Socorro, Maracaibo, Concepción, Corrientes, Assunção, Santa Fe de
Bogotá, entre outras. Premidas pelas circunstâncias, essas localidades extrapolavam a
autonomia que a estrutura imperial já lhes reconhecia para uma condição inédita que
não era nem nacional, nem colonial. O imperativo da resistência contra os invasores
franceses, a importância do autogoverno municipal para o império e a doutrina
contratualista da retroversão de soberania são os suportes dessa tendência à
localização da vida política no contexto revolucionário.
171
Dessa proliferação de espaços municipais ou regionais relativamente
autônomos nasce o primeiro “federalismo” latino-americano, que, a rigor, não
aspirava a um estado federal com jurisdição direta e limitada sobre os governados.
Tratava-se mais bem de uma pretensão confederal, no sentido de estabelecer uma liga
de defesa e cooperação com governo indireto pelo consentimento de estados
independentes e soberanos (CHIARAMONTE, 2016).
“O que emergia da independência não era um ‘federalismo’ baseado em ‘particularismos
regionais’, e sim as tendências autonômicas de cidades, estados ou ‘províncias’ soberanas,
buscando afirmar sua independência ou, em caso de considerar isso inviável, unir-se aos
pueblos vizinhos em uma organização política nova” (CHIARAMONTE, 2016: 202).
Para entender esse horizonte confederal basta lembrar de uma de suas
expressões mais célebres, o movimento liderado por José Artigas na Banda Oriental.
Quando eclode a Revolução de Maio (1810) em Buenos Aires, Artigas alia-se à junta
bonaerense contra os regalistas de Montevidéu, tornando-se figura-chave da
independência uruguaia. Por ocasião da Assembleia Constituinte de 1813, quando
representantes de todas as cidades do antigo Vice-Reino são enviados a Buenos Aires,
o movimento artiguista estabelece os princípios de sua adesão ao novo corpo político
constitucional através do que ficou conhecido como as “Instruções do Ano XIII”. No
segundo artigo dessas Instruções, lê-se: “não se admitirá outro sistema que o de
Confederação para o pacto recíproco com as províncias que formem nosso Estado”,
no qual cada província “entra separadamente em uma firme liga de amizade com cada
uma das outras”87.
O projeto constitucional artiguista se tornou, em meados da década de 1810, a
principal referência de resistência ao centralismo de Buenos Aires no Rio da Prata.
Conforme os intentos unificadores fracassam ao longo da década de 1810, o marco de
autonomia provincial vai sendo formalizando na sequência de constituições criadas
pelas novas repúblicas, como Santa Fe (1819), Tucumán (1820), San Juan (1825) ou
Santiago del Estero (1830)88. No território da atual Argentina, quatorze províncias
autônomas se formam a partir das três originais do regime de intendências (Buenos
Aires, Córdoba de Tucumán e Salta de Tucumán), algumas mais afeitas à adesão
O texto das Instruções é apresentado em tradução livre da versão castelhana apresentada em Padoin
(2013: 04-06). Veja-se também López-Alves (2000a: cap. 2).
87
Sobre a trajetória constitucional das províncias rio-platenses, ver Alonso e Ternavasio (2001) e
Chiaramonte (2016: especialmente pp.118-137).
88
172
constitucional aos portenhos (como Entre Ríos, 1823), enquanto outras sequer
mencionam um poder superior à própria província (como Corrientes, 1824). Em
paralelo, a Junta de Assunção declara sua independência com relação a Buenos Aires
já em 1811, rechaçando o exército portenho e transformando em república a antiga
Intendência do Paraguai.
A relevância do movimento artiguista não se resume à queda de braço sobre a
territorialidade da soberania. No bojo de sua mobilização militar, ele se torna líder de
um movimento popular amplo no interior organizado como Liga dos Povos Livres.
Em 1815, os orientais proclamam o “Regulamento Provisório”, que previa uma
reforma agrária radical em favor dos pobres rurais, mestiços, indígenas e negros,
distribuindo entre eles as terras de “emigrados, maus europeus e piores americanos”
(art. 12º). A disputa sobre a territorialidade da soberania estava envolta no conflito
agrário e sociorracial. Como em várias partes do continente, a mobilização militar
multiétnica nas guerras de independência causaria abalos mais gerais nas hierarquias
coloniais, no horizonte de expectativa dos subalternos (LOVEMAN, 1999: 32-43). O
movimento artiguista, ao armá-los, também flexionava o idioma constitucional do
período em direção a um horizonte confederal com justiça redistributiva, uma
possibilidade que, no desenrolar da soberania múltipla no Prata, acabaria sufocada
pela guerra.
Não se deve supor que a doutrina de retroversão da soberania ensejasse
necessariamente apropriações democratizantes. Na margem oposta do Prata, por
exemplo, a reivindicação de autonomia provincial foi o esteio para a deposição do
jacobinismo portenho de Mariano Moreno e Juan José Castelli pelos líderes
conservadores do interior. Na Nova Espanha, o direito natural das municipalidades
serviria tanto para ao contágio inicial da insurgência rural de 1810 como para sua
repressão, quando o general Iturbide consegue angariar apoio dos municípios
constitucionais com base nas três garantias (ver capítulo 8). A abertura do horizonte
de possibilidades históricas se expressava também nas projeções espaciais da política,
da utopia bolivariana de união federal da América Espanhola à soberania reivindicada
pelos vizinhos em um cabildo aberto. Ao fim e ao cabo, a tendência à localização da
vida política desenharia uma geografia política avessa aos projetos emergentes de
unificação e centralização nacional.
173
Na Capitania Geral da Venezuela, a proclamação soberana da Junta de Caracas
encontra resistência por parte de juntas formadas em Cumaná, Barcelona, Barinas,
Angostura e Coro, enquanto constituições independentes são avançadas em diversas
províncias (URIBE-URÁN, 2006). A pretensão de criar um estado federal sediado em
Caracas pela Constituição de 1811 esbarra na força dos poderes locais. Em Nova
Granada entre 1811 e 1812, a formação de dois governos em separado (um centralista
em Cundinamarca e outro federalista em Cartagena) foi acompanhada de uma
“explosão de múltiplas soberanias locais nas cidades, vilas, paróquias e sítios que
reclamavam o direito de autogoverno” (SALGADO HERNÁNDEZ, 2015: 27). Na
prática, as juntas provinciais deram lugar a doze estados, declarados independentes e
soberanos, com suas próprias assembleias legislativas.
Mesmo depois do processo revolucionário, a denúncia da tirania remetia
frequentemente à violação desse substrato natural de soberania local. Em 1845, ao
destituir o governo do general Flores de seu terceiro mandato na presidência do
Equador, Antonio Elizalde o declara, em nome da província de Guayaquil, um
usurpador por arrebatar os direitos políticos dos pueblos e extingue sua autoridade por
ter “reassumido a província seus direitos políticos por meio das armas” (apud
DEMELÁS, 2003: 599). A justificativa ressoa a doutrina neoescolástica do direito à
insurgência. Dois anos antes, os representantes de Guayaquil haviam se mantido em
silêncio na ocasião de juramento da Constituição apoiada por Flores. Por esses
procedimentos, argumenta Marie-Danielle Demelás (2003), sobrevivia o imaginário
pactista de construção da soberania como contrato entre pueblos, mediado por
pronunciamentos litúrgicos de lealdade coletiva.
Ainda, o apelo dos direitos originários das localidades também se expressa por
mecanismos que funcionam em um espaço subterrâneo às instituições liberais, sem
necessariamente desafiá-las frontalmente. No México, o reconhecimento da cidadania
nas municipalidades manteve até o século XX um atrelamento informal com a
condição de vizinho, que “se determinava localmente a partir de um juízo valorativo
que inseria o indivíduo em suas comunidades” (CARMAGNANI & CHÁVEZ, 1999:
385). Como também mostrou Demelás (2003) para o contexto andino, as práticas
pactistas arraigadas nos pueblos permitiam ampliar a participação política com
relação às restrições legais ao sufrágio. Fenômenos como os pronunciamentos
públicos das cidades a favor ou contra um governante, as petições feitas em nome da
174
cidade, ou ainda as assembleias de apoio e abaixo-assinados que antecediam uma
eleição legislativa, sinalizavam a vitalidade da política local, que funcionava
priorizando o consenso e o mandato imperativo para a representação. Graças a esses
mecanismos subterrâneos, preserva-se práticas comunitárias de todo alheias ao
liberalismo, como a “assembleia de vizinhos cujas deliberações não podem terminar
senão com uma unanimidade, da qual a eleição é a manifestação a posteriori”
(DEMELÁS, 2003: 610).
A tendência ao assentamento da vida política em âmbitos locais e regionais não
foi inventada no ciclo das independências nem o resume. Enquanto processo, ela é
uma extrapolação da vida política colonial, centrada nos municípios e intendências
provinciais. Embora suas raízes remontem às reformas bourbônicas, essa extrapolação
foi possível graças a um gatilho contingente, a vacância real. Uma vez em movimento,
ela se imiscuiu com as inúmeras questões em pugna na construção da ordem política
pós-colonial, então maleável a projetos alternativos de futuro. No próximo capítulo,
nossa atenção se voltará para as forças por trás do desenraizamento das diferentes
modalidades de cotidiano político local, da dinâmica de desencaixe por trás da
formação de um estado centralizado.
175
5.
CAPITALISMO, TRIBUTAÇÃO E VIOLÊNCIA: AS FORÇAS DE
DESENCAIXE DA POLÍTICA DE SEUS CONTEXTOS LOCAIS (1810-1930)
“Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural à existência
de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e pressentimentos
do porvir”89
Simone Weil
Reduzido a uma sombra melancólica do que fora, o cacique Inacayal dos
tehuelches da Patagônia vagava pelos corredores do portentoso Museu de Ciências
Naturais da recém-inaugurada cidade de La Plata, erigida em 1882 para ser a nova
capital da província de Buenos Aires. Magro, curvado e silencioso, o cacique vivia
nos porões do museu como parte de sua “coleção viva”, prestando-se a inúmeras
medições, testes e questionários com que os cientistas buscavam decifrar aquele
parente primitivo. Com tal propósito fora ele transferido da prisão de Martín García,
graças à mercê de Francisco Moreno, aristocrata com inclinações científicas que
conhecera Inacayal em 1879, ainda em liberdade. Em seu novo confinamento, o
cacique convivia com as ossadas expostas de seus parentes e ancestrais insepultos.
Os tehuelches povoavam aquilo que o estado argentino chamava então de
“deserto”, toda a região ao sul do Rio Salado que desde a colonização fora interditada
aos europeus. Além de tehuelches, nesse deserto sul-americano viveram boroganos,
pehuenches, pampas, ranqueles e grupos araucanos, estabelecendo com os colonos
europeus relações de troca, guerra e amizade. Nas presidências de Nicolás Avellaneda
(1874-1880) e de seu ministro da guerra Julio A. Roca (1880-1886), o estado
argentino declarou uma guerra de extermínio contra as populações patagônicas,
premiando
assassinatos,
separando
famílias,
roubando
terras,
torturando
e
aprisionando mesmo aqueles que, como Inacayal, eram tidos até pouco como índios
“amigos”. Boa parte dos espólios desse genocídio foi acolhida no ambicioso Museu
de Ciências Naturais de La Plata, planejado para ser o maior da América Latina. Em
1888, um ano após a morte de sua mulher nas dependências do museu, o cacique
Inacayal tirou a própria vida. Segundo os registros oficiais, jogou-se de uma escada.
Ainda hoje alguns funcionários do Museu atribuem certos ruídos, bater de portas e
89
Extraído de Weil (1949: 36).
176
ranger de madeira ao espírito do cacique, cujos restos mortais foram restituídos em
2014 ao território tehuelche às margens do Rio Limay na província de Chubut90.
Definitivamente não se tratava de um caso isolado: a era dos reconhecidos
caciques indígenas – como haviam sido Calfulcurá, que confederara nos anos 1830 os
pampas, ranqueles e tehuelches, ou Juan Catriel, pivô do “negócio pacífico dos
índios” estabelecido à época de Rosas – estava terminando de forma brutal, e não só
na Patagônia. Observado panoramicamente, o “longo século XIX” representou uma
avassaladora investida para converter os povos indígenas em “camponeses sem terra
ou trabalhadores rurais” (BERNAND, 2016: 307; ver cap. 10). Partindo do caso
peruano nos anos 1920, Juan Carlos Mariátegui (2007: 26-34) promoveria uma
pequena revolução no chamado “problema do índio” ao constatar que a questão
indígena correspondia, no fundo, à questão da terra91. A “campanha do deserto” de
Roca, que repartiu as terras roubadas entre generais, fazendeiros e políticos, não
poderia ser melhor ilustração para o argumento.
Ainda assim, assumir uma “questão da terra” já é traduzi-la em termos de
mercado, e portanto percebe a história do ponto de vista dos que a expropriaram. Para
os que foram expropriados, a “terra” correspondia aos laços de parentesco e
ancestralidade, ao contato cosmogônico com o sagrado, à vida de riachos, cerros e
vales, a uma fauna e flora e seus espíritos, a um senso de espaço e de tempo, ao
autogoverno de sua tribo. Toda essa expropriação está por trás da melancolia da
“coleção viva” do Museu de Ciências Naturais. Ao rebater o que ele considerava uma
forma de economicismo, Polanyi afirmou que a degradação causada pela
proletarização em uma sociedade de mercado não advinha unicamente da pobreza
A história da despossessão dos tehuelches e demais tribos patagônicas é tratada na extraordinária
obra de antropologia política “Los indígenas y la construcción del Estado-Nación: Argentina y México,
1810-1920”, de Carmen Bernand (2016). O caso de Inacayal é especificamente tratado nas páginas 175
a 179. Além disso, houve algumas reportagens na mídia que resgataram a história por ocasião da
controvérsia envolvendo a restituição de sua ossada (1995) e de seu crâneo (2014) para território
patagônico. Ver, por exemplo, “Las historias ocultas del Museo” (Diario Hoy, 23/07/2007); “Los
restos de un cacique emblemático ya descansan en su pueblo” (Clarín, 11/12/2014); “Fantasma del
museo” (Revista Critica de la Argentina, 03/11/2008); “de cacería con Inakayal” (Revista Anfíbia,
03/06/2018).
90
91
A referência a Mariátegui se justifica pela influência do pensador marxista sobre as gerações
posteriores, mas não necessariamente reflete um pioneirismo inconteste nesse argumento. Em 1909 em
Cuzco, Luis Valcárcel publica sua tese de doutorado entrecruzando a questão agrária e a questão étnica,
o que se tornará o epicentro do chamado “indigenismo cusquenho” nas décadas posteriores (ver
capítulo 7). Informado por essa corrente, Mariátegui tenta moderar suas ambições étnicas para
compatibilizar indigenismo e marxismo.
177
material, mas sobretudo da “desintegração do ambiente cultural da vítima”
(POLANYI, 2012: 176).
Mais do que sobre indígenas em particular, esse capítulo é sobre o desencaixe
massivo que envolveu a expansão do sistema interestatal capitalista na América
Latina sob a hegemonia britânica, como ele foi possível e quais os conflitos
resultantes. Não raro, o estudo sobre a “formação do estado” ou sobre o
desenvolvimento capitalista na região pressupõe uma espécie de vazio análogo ao
“deserto” patagônico. Disserta-se sobre a evolução cumulativa de “capacidades
estatais”, “poder infraestrutural” ou “integração nacional”, contrastando isso com a
falta de controle sobre o território, a precariedade da tributação, o governo indireto, a
inacessibilidade do interior ou a ausência de um sentimento nacional arraigado e
coeso92. O deserto está lá para ser desbravado, conquistado, catalogado, tributado e
integrado. Contra essa narrativa colonial, o que precisa ser restituído à análise é sua
dinâmica de conflito, ou seja, o processo intrusivo e violento que subentende a
dissolução de múltiplos espaços políticos pela formação de um estado nacionalizado.
Em termos conceituais, nossa tarefa será decifrar esses processos de
desenraizamento como contraface da expansão do ciclo extrativo-coercitivo dos
estados pós-coloniais latino-americanos, impulsionados pelas oportunidades da nova
geoeconomia atlântica. Iniciaremos o percurso pela formação de um ciclo econômico
expansivo no século XIX ao redor da industrialização inglesa. Na segunda seção,
observaremos esse ciclo desde suas periferias atlânticas, onde se forma uma ligação
estreita entre soberania e comércio. Em seguida, o tema será a emergência, nesses
estados na periferia, de um pensamento liberal que traduz o progresso como propulsão
do mercado. Para que essa propulsão superasse as múltiplas resistências sociais à
mercantilização, o fator decisivo é a concentração do controle político da violência, o
que será tratado na quarta seção. No último apartado se propõe uma síntese do
mecanismo de ganhos mútuos entre estadistas e capitalistas, cuja reprodução tem
como subproduto o desenraizamento humano em grande escala.
92
Michael Mann (2006), por exemplo, faz justamente esse argumento, valendo-se de seu conceito de
“poder infraestrutural” para se perguntar sobre os “estados-nação bem-sucedidos” (MANN, 2006: 165),
chegando à insólita conclusão de que “o maior desafio, portanto, para os Estados latino-americanos
permaneceu inalterado por duzentos anos, desde a independência” (MANN, 2006: 190). Ele se inspira,
por sua vez, nos trabalhos de Centeno (1997; 2002; 2009; 2014). Um exemplo de análise na chave das
capacidades estatais se encontra em Cárdenas (2010).
178
5.1. Os atores e bastidores do liberalismo mundial
A emergência da hegemonia britânica corresponde, por um lado, à construção
de um horizonte de futuro que acomodasse seletivamente os impulsos da Era das
Revoluções e, por outro, ao estabelecimento de um novo arranjo econômico que
arrefecesse a competição intercapitalista e interestatal em nome do ganho
generalizado. Nesse sentido, consegue erguer à condição de bem comum, de aspiração
geral ou interesse universal o que eram, no mundo pós-1815, os interesses imediatos
do Império Britânico como sinergia particular entre estadistas e capitalistas. Ao
contrário da imagem comum de uma “longa paz” ou da pax britannica entre 1815 e
1914, o período foi de fato coalhado de guerras, genocídios e protesto social, seja na
Europa Ocidental ou fora dela.
Se chegasse à época aos ouvidos de uma tehuelche na Patagônia, de um
comunista alemão, de um soldado malaio, de um sábio sioux, ou de uma ativista negra
norte-americana, a insígnia da “longa paz” soaria como um escárnio dos poderosos.
Como observaremos mais adiante, para muitos povos do mundo não houve momento
mais brutal e belicoso do que esses mesmos cem anos. Descartando, portanto, a
hipótese genérica de “paz”, o que resulta surpreendente é como se combinaram,
contra a tendência até então dominante, vetores de expansão capitalista com
mecanismos de apaziguamento de conflito, combinação essa que teve a Grã-Bretanha
como principal líder. De ferrenha mercantilista ela se converte em bússola de uma
ordem mundial liberal, articulada pela industrialização capitalista.
O que se convencionou chamar de “revolução industrial” significa na prática
um salto produtivo proporcionado pela junção explosiva entre trabalho assalariado,
fontes inanimadas de energia e o uso de máquinas em um ambiente fabril. Essa
combinação já está consagrada na memória social pelo alvoroço de fumaça e ruído
repetitivo, trabalho extenuante, poeira, poluição e iluminação precária. Sem dúvida,
não haverá outro lugar para buscar esse cenário em fins do século XVIII senão na
Inglaterra, mas especificamente nos arredores de Manchester (HOBSBAWM, 2003).
É também na Inglaterra do século XIX que uma camada de intelectuais reformistas
tentou usar o mercado como referência máxima para a regulação racional da vida
social, inspirados por uma teoria do interesse individual como via para a harmonia e o
179
progresso social. Essa ambição de fazer da sociedade um apêndice do funcionamento
espontâneo do mercado foi objeto do trabalho clássico de Karl Polanyi (2012).
O argumento central de Polanyi é que um mercado autorregulado – em que a
vida humana, a natureza e a moeda são tratadas como mercadorias como quaisquer
outras – não surge pelo desenvolvimento evolutivo de mercados locais e sazonais. Em
outras palavras, uma sociedade de mercado não é a culminância das formas
recorrentes que as trocas mercantis assumiram nas mais diferentes culturas humanas.
Há uma ruptura a ser explicada, e fazê-lo implica por em evidência o chamado deus
ex machina do mercado autorregulado: o estado. É pelo frenesi legislativo dos
reformadores que as amarras do mercado à comunidade vão sendo arrancadas, ou seja,
o encaixe social e cultural das pessoas, da natureza e dos meios de pagamento vai
sendo desenraizado ao ponto de que unicamente sua condição de mercadoria presida
seu futuro.
Na Grã-Bretanha, os momentos-chave dessa transformação ocorreram com a
revogação do Estatuto dos Artesãos (1813), das Leis dos Pobres (1834), bem como a
instituição da Lei de Bancos (1844) e a revogação das Leis dos Cereais (1846). Com
essa legislação, suprimiam-se as restrições à mobilidade de mercadorias e à flutuação
de preços, criando um novo tipo de sociedade baseada em um mercado de trabalho
livre, no padrão-ouro e no livre-comércio exterior. Essa conjunção levou a um
progresso material nunca antes visto, acompanhado de uma “avalanche de
desarticulação social” (POLANYI, 2012: 42).
O argumento de Polanyi é indispensável para revisar a imagem corrente de que
o liberalismo econômico se constituiu ao redor da contração da ação do estado, ou que
essa deveria ser sua agenda em circunstâncias normais. Ele permite também decifrar
uma gama variada de resistências concretas às consequências do reformismo liberal,
que o próprio Polanyi (2012) chamou de “movimentos autoprotetores da sociedade”.
A importância dessas ideias para iluminar o “longo século XIX” na América Latina
percorre toda esta tese, e voltará à cena ainda neste capítulo. Mas antes precisamos
lidar com um problema de outra natureza: a extrapolação do que ocorreu na Inglaterra
para o que consideramos um ciclo sistêmico de acumulação, no qual tanto a
industrialização como a utopia de mercado autorregulado foram, sem dúvida, centrais.
A seguir, rediscutiremos brevemente a incubação das indústrias de Manchester como
a ponta de um iceberg composto por processos mundiais, isto é, cadeias internacionais
180
de valor que produziam lucros extraordinários perante seu entorno econômico
imediato. Com isso, podemos iluminar o fato de que o dínamo do ciclo de acumulação
não é, rigor, a mecanização fabril unicamente, mas uma divisão internacional do
trabalho esculpida por ela e posta em movimento pelo chamado “imperialismo de
livre comércio”.
Senão vejamos: do capítulo anterior, sabemos que as condições de
possibilidade da industrialização na Inglaterra remetem a conexões econômicas mais
amplas gestadas no século XVIII, como o tráfico de escravos no Atlântico, a
mineração no Brasil português, as plantations caribenhas e a financeirização do
capital nas Províncias Unidas. De resto, o controle sobre essas conexões atlânticas foi
objeto da corrida interimperial anglofrancesa, que atingiu seu clímax destrutivo na Era
das Revoluções. Rompendo os limites do mercado interno das Ilhas Britânicas, um
circuito potente e promissor vai se articulando nas duas décadas após 1782,
interligando a mecanização têxtil na Inglaterra, o aumento de suas exportações
liderado por esse setor, a predominância dos mercados consumidores americanos e,
não menos importante, um novo papel assumido pelo comércio exterior para
alavancar o crescimento econômico britânico em geral (BLACKBURN, 1998:
522-524). Por essa razão, firmar um horizonte de expansão produtiva em tal contexto
dependia de um alargamento geográfico da divisão internacional do trabalho, um dos
aspectos de governabilidade proporcionados pela hegemonia ascendente. Ao
desenvolver condições de expansão produtiva e combiná-las com um alargamento da
escala espacial da acumulação, essa hegemonia, no caso a britânica, descortina
oportunidades de ganho que atraem tanto capitalistas como estadistas concorrentes.
Essa é a senha para a liberalização mundial subsequente.
O marco da adesão britânica ao livre-cambismo foi a revogação em 1846 das
Leis dos Cereais, que até então asseguravam certa proteção aos produtores rurais
britânicos para o abastecimento interno. É no contexto do acalorado debate sobre essa
lei que David Ricardo formula sua lei das vantagens comparativas, como respaldo
intelectual à liberalização comercial e à especialização produtiva. Como Wallerstein
(1974) e Abu-Lughod (1989) nos lembrariam, essa não era a primeira experiência de
divisão internacional de trabalho. O que há de novo é a especialização presidida pela
indústria urbana, com periferias rurais produzindo em escala para um mercado
mundial de commodities. O algodão vindo do Egito, de Coromandel ou do Alabama, a
181
lã do pampa platino ou da Austrália, as tinturas da Guatemala, o trigo da Romênia ou
da Rússia, o óleo de palma do vale do Níger, o chá da China, o ouro da Califórnia e da
Austrália, a carne da Nova Zelândia ou do Cabo integravam e azeitavam uma
economia mundial que distribuía bens industriais a baixo custo (WOLF, 1982: cap. 9).
A viabilidade dessa nova divisão internacional do trabalho tinha dois pilares,
ambos muito distantes dos operários exauridos em Manchester e arredores. O
primeiro deles corresponde ao que Dale Tomich (2004) chamou de “segunda
escravidão” atlântica, o aparente paradoxo pelo qual o trabalho escravo negro
readquire ímpeto econômico no século XIX quando os discursos políticos da época,
pautados pela liberdade e da igualdade universal, pareciam tê-lo tornado
irremediavelmente obsoleto e infame. Discernir os contornos do ciclo sistêmico em
formação exige dissolver essa oposição. Segundo Tomich (2004), o notável
crescimento do trabalho escravo estava associado a mudanças mais amplas na
economia mundial: (1) a dissolução dos exclusivos imperiais do século XVIII fez com
que as relações entre centros e periferias não mais se articulassem pelo controle
político direto, mas por fluxos internacionais de mercadorias regidos por preços
relativos. Ao invés de restrições, monopólios e padrões ditados pela metrópole, o
controle sobre a divisão internacional do trabalho significava um poder econômico
sobre esses fluxos, que encadeavam os núcleos industriais à produção primária
periférica.
Ademais, a “segunda escravidão” dependeu também da (2) reinvenção da
escravidão associada à expansão do trabalho assalariado, isto é, como polo
subordinado de abastecimento do novo proletariado industrial. O significado da
escravidão se transforma conforme seus produtos de exportação – café, açúcar,
tabaco – entravam na cesta de consumo dos trabalhadores europeus, barateando seu
custo de reprodução. “Na medida em que a relação de trabalho capital-salário se
tornou amplamente estabelecida”, afirma Tomich (2004: 70), “um imperativo
sistêmico de elevar a mais-valia pela redução do valor da força de trabalho emergiu, o
que requeria que os produtores escravocratas provessem bens cada vez mais baratos
para o consumo da classe operária”. Em outras palavras, a reinvenção da escravidão
estava calcada em uma estratificação da força de trabalho a nível sistêmico, em que a
extração de excedente do trabalho livre no centro era subsidiada pelo trabalho escravo
182
na periferia, nomeadamente em Cuba (açúcar), no Brasil (café) e no sul dos Estados
Unidos (algodão).
Por fim, a “segunda escravidão” também foi possível graças a uma (3)
relocalização fundamental da produção no espaço atlântico, na qual perderam força os
antigos centros caribenhos controlados por Inglaterra e França, como a Jamaica e o
Haiti. Esses centros estavam associados ao comércio triangular de corte mercantilista.
A Revolução Haitiana e o abolicionismo inglês desferiram golpes sucessivos nesse
circuito econômico, que já demonstrava sinais de desgaste e saturação. No entanto,
conforme os ganhos ali obtidos eram reinvestidos na indústria, criava-se uma
demanda mundial enorme por produtos tropicais, que seria ocupada por novos
espaços escravocratas politicamente desvencilhados dos centros industriais. Fruto
dessa relocalização, o Império Britânico abandonaria seu protagonismo no tráfico de
escravos para assumir centralidade nas operações de transporte, crédito e investimento
direto que inseminariam os novos polos escravocratas do outro lado do Atlântico. Por
meio de adiantamentos e promissórias, os papeis londrinos circulam no que se tornava
um espaço econômico subsidiário à industrialização inglesa, subordinado e
indispensável a sua decolagem.
Havia um impressionante ganho de escala associado à “segunda escravidão”. Já
na década de 1830, a produção cubana de açúcar já havia sobrepujado o que se extraía
do Haiti em 1790. À mesma época, a produção de café no Vale do Paraíba já
ultrapassara largamente a soma do que se exportava em 1790 de Santo Domingo,
Martinica, Jamaica, Java e Suriname (MARQUESE, 2013: 295-304). Ainda em 1850,
Cuba e Brasil continuavam como os principais exportadores da América Latina
(Tabela 5.1). Já o chamado “reino do algodão” norte-americano (Geórgia, Alabama,
Mississipi) foi o grande provedor para a indústria têxtil inglesa, que chegou a importar
250 mil toneladas em meados do século XIX enquanto, em 1790, não consumia mais
de 2 toneladas de algodão importado (TOMICH, 2004: 65). A relocalização, portanto,
estava ligada à expansão produtiva a um novo patamar. Para além da “segunda
escravidão” essa divisão internacional do trabalho dependia de novos mercados
compatíveis com sua escala. A construção dessa ordem econômica livre cambista tem
uma história de bastidores que vai além dos debates parlamentares sobre a extinção
das Leis dos Cereais inglesas.
183
Já tivemos oportunidade de adiantar que o liberalismo econômico do século
XIX não se efetivou exatamente como mero laissez-faire, mas sim como a ativa e
deliberada fabricação pelo estado de um mercado integrado e livre, onde tudo pudesse
ser comprado e vendido, usando como pagamento uma moeda que é ela própria
também uma mercadoria. O mesmo vale para uma ordem econômica internacional
baseada no livre comércio. Sem dúvida esteve em sua construção o trabalho político
dos cobdenitas, como ficaram conhecidos os fervorosos proselitistas da crença liberal
pela abertura unilateral do comércio britânico. Nos bastidores dessa militância,
contudo, havia o que John Gallagher e Robert Robinson (1953) chamaram de
“imperialismo de livre comércio” para representar o uso do poder político para impor,
proteger e integrar uma ordem econômica internacional afeita à expansão britânica,
por meio de uma espécie de “império informal” (GALLAGHER & ROBINSON,
1953). A importância do termo, como seus autores chamam a atenção, é dissolver a
contradição aparente entre uma política de controle imperial e um regime de liberdade
comercial.
A mecanização inglesa e o ciclo de acumulação a ela associado não são um
novo ciclo de prosperidade após um de turbulência: do ponto de vista das civilizações
e povos do resto do mundo, trata-se uma descontinuidade brutal em termos de sua
capacidade de resistir, barganhar e impor as condições de sua relação com o
expansionismo europeu. Enquanto a China tinha seus portos abertos pelo Tratado de
Nanking (1842), um já vulnerável império turco-otomano assinava os acordos de
liberalização comercial em Balta Limani (1838), os persas assinavam um acordo
bilateral em 1836 e o porto de Buenos Aires era bloqueado duas vezes contra a
política rosista de resguardar os mercados interiores. No auge do liberalismo vitoriano,
marinhas europeias e norte-americanas estavam impondo abertura comercial e
pagamento de dívidas do México ao Japão, do Irã à China. Em 1846, por ocasião do
debate sobre as Leis de Cereais, um parlamentar britânico em defesa da revogação
argumentava que, com a liberalização comercial, as “nações estrangeiras se tornariam
valiosas colônias para nós, sem nos impor a responsabilidade de governá-las” (apud
WALLERSTEIN, 2011: 120).
Assim como uma ordem política não se afirma pela inexistência de coerção,
mas pelo controle dos termos de seu emprego, a hegemonia britânica não se confunde
com a paz, mas com a canalização, razoavelmente bem sucedida, da violência à
184
expansão sistêmica. Em lugar das guerras avassaladoras do período 1789-1815, o
“imperialismo de livre comércio” era um vetor de abertura e disciplina de novos
mercados, de acumulação por desposessão, de extroversão de poder contra os povos.
As novas fronteiras de expansão permitem arrefecer a belicosidade intestina do
sistema. As independências na América Latina, combinadas à abertura comercial e
referendadas pelo poder naval britânico, já insinuam a primazia desse “imperialismo
de livre comércio” sobre a mentalidade recolonizadora capitaneada pela Espanha e
seus aliados.
O ciclo de acumulação britânico é comandado pela industrialização urbana sem
depender de um mercado de massas. A demanda por produtos industriais, não
atendida pela classe operária no limiar da subsistência, é completada pela
liberalização comercial mundial, convertida em interesse generalizado. Quando a
industrialização desponta, na primeira fase desse ciclo, o comércio tem duas
características que reforçam sua atração. A primeira é que a mecanização acarreta um
desnivelamento do tempo socialmente necessário para produzir mercadorias antes
muito custosas, como os têxteis. O efeito imediato desse desnivelamento é favorecer
conjunturalmente os termos de troca das periferias primário-exportadoras. Além do
crescimento do volume exportado por essas periferias, há potencialmente um ganho
relativo em termos da entrada de bens industriais baratos. Como veremos adiante, esse
influxo de produtos importados tem efeitos colaterais a mais longo prazo: ao incidir
diretamente sobre os circuitos econômicos pré-existentes, desarticulando-os pela
competição de mercado, ele acaba aumentando a fatia da sociedade dependente de
produtos industrializados e, consequentemente, das flutuações do mercado capitalista.
Além da tendência conjuntural dos termos de troca, a segunda característica do
comércio internacional na arrancada do ciclo que imiscui interesse e persuasão é o
déficit comercial crônico da Grã-Bretanha. Isso significava na prática que, ao
concatenar as pontas de uma nova divisão internacional do trabalho, o Império
Britânico pagava mais do que recebia, “distribuía superávits” compensando-os com
“créditos invisíveis” de serviços bancários, atuariais e marítimos (até a metade do
século) e depois com lucros e dividendos de seus investimentos no exterior (BEAUD,
1994; HOBSBAWM, 2003; WALLERSTEIN, 2011). É óbvio que esses superávits
eram distribuídos entre um ramo restrito de parceiros comerciais, mas não há razão
para pensar que fosse diferente. Ao controlar o sistema nervoso das trocas, os
185
britânicos podiam atrair parceiros a um comércio expansivo e, em geral, superavitário
para estes. O volume do comércio mundial cresce 260% no período entre 1850 e 1870,
ápice da hegemonia britânica (ver Gráfico 2.2).
Dessa forma, o império britânico esteve no epicentro de uma nova ordem
mundial que ele não havia premeditado nem era capaz de impor simplesmente pela
força, mas que efetivamente produziu uma conjuntura efêmera de “liberalismo
global” no terceiro quartil do século. Como diz Arrighi, “ao apresentar sua
supremacia mundial como encarnação dessa entidade metafísica [o mercado], o Reino
Unido logrou ampliar seu poder no sistema interestatal muito além do que era
justificado pela extensão e eficiência do seu aparelho coercitivo” (ARRIGHI, 1996:
55). Por um período breve de duas décadas e meia, cria-se uma configuração especial
de prosperidade material e estabilidade política, com capital barato, inflação
moderada e rápida redução dos custos de transação. É o momento em que as estradas
de ferro operam uma auspiciosa síntese entre industrialização, atração do capital
circulante à produção capitalista e redução assombrosa dos custos de transporte
(HOBSBAWM, 1977, cap. 3; O’ROURKE & WILLIAMSON, 2006: cap. 3). A
locomotiva britânica parecia desbravar um terreno de crescimento econômico mundial,
costurado pelas oportunidades da “segunda escravidão” e do imperialismo de livre
comércio.
5.2. Soberania e comércio
Do recém exposto, sabemos que a industrialização inglesa, ao desnivelar o
tempo socialmente necessário na produção de certos setores e depois no transporte de
longa distância93, foi criando em cadeia oportunidades especiais de lucro para
proprietários de fábricas, empresas de fretes, bancos, firmas de importação, varejistas,
bem como fornecedores de matérias-primas industriais e alimentos. Irrigada pelo
valor excedente extraído do trabalho em cada ponta do processo, era uma economia
que crescia não só na Inglaterra mas nos segmentos a ela conectados. Assim, o
capitalismo industrial como nível superior à economia mercantil foi interligando
Os têxteis ingleses, durante décadas o principal setor em transformação, experimentaram uma
redução de custos de produção de cerca de 70% entre 1780 e 1812 (GÓMEZ-GALVARRIATO, 2005).
Uma redução equivalente do índice de preços dos fretes britânicos ocorreria entre 1840 e 1910.
93
186
cidades fabris, portos e regiões agrícolas em vários continentes em uma divisão
hierárquica de trabalho.
Na América Latina colonial, esse segmento de lucros extraordinários se
conformou, de forma intermitente, nos interstícios dos espaços econômicos imperiais,
ganhando novo ímpeto conforme os estados recém-independentes foram abrindo seus
portos ao comércio e às finanças. Das frestas e aberturas emergenciais que se
produzem no exclusivo colonial, o ciclo das independências cria uma situação nova,
marcada pela reciprocidade entre soberania política e abertura econômica. As elites
latino-americanas veem nela a chave para o reconhecimento diplomático dos novos
estados, no que coincidem com a linha adotada pelos britânicos após 1822 (WADELL,
2009; ZORAIDA VÁZQUEZ, 2003). É sobre essa estratégia que se refere o famoso
discurso de George Canning na Câmara dos Comuns em que, com uma indisfarçável
empáfia imperial, ele reivindica ter ele dado “vida ao Novo Mundo para reestabelecer
o equilíbrio do Velho”94.
Nas primeiras décadas do século XIX, a entrada de produtos industriais na
região ocorria através do que Halperín Donghi (2009) chamou de “comércio
aventureiro” de alguns atravessadores britânicos. Excetuando-se casos extremos,
estima-se que a venda de têxteis produzisse, pagas devidas comissões, taxas, frete e
seguro (cujo valor estava ainda elevado pela instabilidade política), um lucro líquido
entre 6 e 12% sobre o capital investido, próximo, portanto, da remuneração do tráfico
de escravos no século anterior95. Já muito cedo, o comércio britânico se concentra
desproporcionalmente em alguns mercados consumidores, nomeadamente o Brasil, o
Rio da Prata, Chile e, em menor escala, os antigos centros coloniais no Peru e do
As primeiras referências que encontrei ao discurso de 1826 foram em Boersner (1996) e Waddell
(2009: 253). No contexto de formulação, a citação se vê assim: “Se a França ocupasse a Espanha, seria
necessário, em lugar de evitar as consequências dessa ocupação, que nós bloqueássemos Cádiz? Não.
Eu olhei em outra direção (...). Contemplando a Espanha, tal qual nossos ancestrais a conheceram, eu
resolvi que se a França tivesse a Espanha, não deveria ser a Espanha ‘com as Índias’. Eu dei vida ao
Novo Mundo para reestabelecer o equilíbrio do Velho”. A íntegra do discurso está disponível online no
sítio: http://www.historyhome.co.uk/polspeech/portugal.htm. Último acesso em 23/03/2017.
94
Roger Anstey estima uma taxa média de lucro líquido de 9,5% para o tráfico de escravos no período
1761-1807 (apud BLACKBURN, 1998: 389). O cálculo do lucro líquido do comércio britânico na
América Latina é feito por Platt (1972) a partir do testemunho de mercadores britânicos no Comitê de
Manufaturas, Comércio e Transporte do Parlamento, em relatório do ano de 1831, que reportam como
satisfatórias expectativas de lucro entre 5% até 20%. Segundo o autor, um capitalista mercantil no
começo da era vitoriana esperava uma remuneração padrão de 4% sobre o investimento, de modo que
se pode supor que o comércio atlântico ainda oferecia sobrelucros. A título de extraordinário, há relatos
do período das guerras e bloqueios que reportam ganhos tão espantosos como 200% (Lima, 1806),
400% (Lima, 1821) e até quase 2000% (México, início dos anos 1820), todos por mercadores
britânicos (PLATT, 1972: 47-61).
95
187
México. Logo após a abertura dos portos no Rio de Janeiro, mercadores da cidade
registram sua inconformidade com “a convulsão geral no universo que nos condenou
à total decadência, e reduziu nosso comércio à importação de mercadoria inglesa”
(ADELMAN, 2006: 321). Em Valparaíso, Buenos Aires ou Santiago, grandes
casarões
da
elite
colonial
eram
comprados
por
comerciantes
europeus
recém-chegados, atraídos pela expectativa incerta de lucros no Novo Mundo (PLATT,
1972: cap. 3).
Por um lado, a distribuição desigual do novo comércio atlântico se explica pela
diferença considerável no custo dos fretes entre diferentes regiões do continente,
algumas praticamente inacessíveis no começo do século. A aludida “convulsão geral”,
nesse sentido, tinha um escopo geográfico limitado pela própria logística disponível.
Além disso, havia outro fator que explicava essa concentração: a capacidade de pagar
pelas importações. As primeiras décadas do século XIX foram particularmente
desastrosas para o setor mais tradicional de exportações do continente, a mineração96.
Enquanto isso, a demanda por produtos americanos se concentrava sobremaneira no
espaço econômico da “segunda escravidão”, relativamente apaziguado nos
turbulentos anos 1810 e 1820. Para a maior parte das repúblicas recém-proclamadas,
as oportunidades de exportação eram restritas, o que se agravava pelos efeitos da
guerra. A abertura ao comércio internacional vinha acompanhada, nesse caso, de um
desequilíbrio crônico causado pelo estrangulamento da capacidade de importar, e
consequentemente das oportunidades fiscais do comércio exterior.
Esse quadro se transpôs para a vulnerabilidade das moedas nacionais, em geral
fartamente depreciadas no período e/ou substituídas informalmente por outros meios
de pagamento (MARICHAL, 2008). O movimento centrífugo da soberania na crise
imperial tinha, por assim dizer, uma expressão monetária: a perda de controle político
sobre o meio circulante. É nesse contexto que transcorre o primeiro ciclo de
endividamento internacional da América Latina pós-colonial, impulsionado pela
emissão de títulos dos novos estados na praça de Londres na primeira metade da
A crise da produção mineira durante o ciclo das independências se mistura com a desarticulação do
sistema imperial. A pior queda ocorre no México, epicentro da sobrecarga fiscal das Reformas
Bourbônicas. A produção física cai pela metade nos anos 1810, o que agrava com a concomitante
queda de seu valor de mercado. Assim como na Bolívia, a produção se recupera nos anos 1830 sem
nunca alcançar os níveis do “século de ouro” espanhol ou das reformas bourbônicas (ver MARICHAL,
2006; TANDETER, 2008). No Brasil e no Peru, a perda relativa de importância da mineração se revela
mais longeva. Para as consequências da crise mineradora e as dificuldades de recuperação econômica
pós-independência, ver Bulmer-Thomas (2003: cap. 2).
96
188
década de 1820 (MARICHAL, 1989: cap. 1). Com efeito, tratava-se de uma fronteira
nova para as elites políticas pós-coloniais, aberta pelo alargamento do perímetro de
validade da soberania durante a conjunção crítica. A solução emergencial de contrair
empréstimos estrangeiros para contrapesar a saída de divisas teve vida curta. A
euforia dos papéis latino-americanos daria lugar ao pânico com a quebra da bolsa de
Londres em dezembro de 1825, que secou por vinte anos o fluxo de capital
estrangeiro à região, à exceção do Brasil (MARICHAL, 1989: cap. 2). Nos anos que
se seguiram, surgem relatos de lojas e galpões cheios de produtos importados sem
comprador no Rio de Janeiro, Lima ou Valparaíso (PLATT, 1972: 24-26).
Após a primeira crise da dívida latino-americana, a garantia da capacidade para
importar, e indiretamente para levantar empréstimos e sustentar o valor da moeda, foi
decididamente transferida para o segmento exportador inserido no mercado mundial
capitalista. Com isso, o peso desproporcional do Cone Sul (Brasil, Uruguai, Argentina
e Chile) no comércio britânico do século XIX se ancorava não só em fretes baratos e
em conexões mercantis pré-estabelecidas, mas também na contra-oferta de produtos
primários, inicialmente lã, café, prata, trigo, couro, açúcar e cacau, posteriormente
dilatada com a carne, os nitratos e o cobre97. A demanda mundial crescente permitia
arrefecer as pressões competitivas sobre essas periferias primário-exportadoras.
Assim, inseridos nessas novas cadeias internacionais de valor, esses setores
primário-exportadores adquirem um ritmo econômico discrepante com relação a seu
entorno social, incubando bolsões de riqueza. Por meio da expansão do perímetro do
mercado nas décadas seguintes, esse desenvolvimento associado atingiria força para
sufocar e subordinar circuitos e espaços pré-existentes de reprodução da vida material.
Para nosso raciocínio, o enlace fundamental se estabelece entre o emergente
capitalismo industrial e a cobrança de impostos indiretos por quem pretendia governar.
Com efeito, o fim dos monopólios ibéricos não implicou “livre-comércio” nos portos
americanos nas primeiras décadas do século XIX. De forma geral, impostos nas
aduanas se revelaram a forma mais factível de arrecadar moeda forte, após o
redemoinho social das independências e seu forte viés anti-fiscal. O que é
extraordinário notar é que, visto em sua totalidade, esse novo comércio atlântico não
foi paralisado pela tributação aduaneira na América; como uma corredeira, seu fluxo
Sobre a inserção primário-exportadora, ver Bértola e Ocampo (2010: cap. 3), Bulmer-Thomas (2003:
cap. 3-5), Furtado (1970: cap. 4), Glade (2009), Halperín Donghi (1975: cap. 4).
97
189
foi se adaptando às linhas de menor resistência. De outro ponto de vista, podemos
notar que a redução do tempo socialmente necessário para produzir e transportar
têxteis no centro vinha sendo tão drástica que proporcionava excedentes suficientes
não só para reproduzir bancos, mercadores e seguradoras na esfera da circulação, mas
também, e cada vez mais, aparatos de estado dependentes de suas aduanas na
periferia.
Para os estudantes da história latino-americana o crescimento puxado pelas
exportações no século XIX é um velho conhecido. Sem repisar a descrição dos ciclos
de commodities exportadas, o que convém sublinhar aqui é a relação disso com a
chamada “transição fiscal” pós-independência, isto é, a reconstrução de um aparato
fiscal após a crise dos impérios ibéricos98. Na América Hispânica, o problema não se
limitava à destruição causada pela guerra: de um lado, o sistema de compensações
interprovinciais (situados) havia sucumbido junto com a monarquia; de outro, os
sustentáculos da fiscalidade imperial (a alcabala, o quinto e o tributo indígena) já não
podiam ser recuperados no período republicano senão sob elevado custo político. Do
ponto de vista fiscal, o cálculo do dissenso se alterara. As elites políticas republicanas
sabiam quais impostos rechaçar mas não exatamente como substituí-los.
A possibilidade de arrecadar com importações e exportações representou um
ganho decisivo para a solvência dos aparatos de estado, e implicitamente para a
delimitação de uma ordem política ao seu redor. Há mesmo uma tendência à redução
nominal de tarifas a partir de meados do século, uma vez que o aumento do fluxo de
comércio mais que compensaria na arrecadação total (BULMER-THOMAS, 2003:
72-78). No Brasil e no Chile, que são geralmente tomados como exemplos de
centralização precoce ou pacificação bem-sucedida no pós-independência, as rendas
alfandegárias foram um esteio invisível dessa estabilidade relativa. Na Colômbia, a
escassez de oportunidades fiscais equivalentes está umbilicalmente ligada à
dificuldade do governo central de rotinizar seu controle sobre a violência (DEAS,
1982). Panoramicamente falando, há um ciclo fiscal na América Latina que se
O tema da transição fiscal foi competentemente proposto por Garavaglia (2010) de forma
panorâmica, completando-se bem com os comentários de Gelman (2010) e Carreras (2010) no mesmo
volume. Ainda nesse âmbito panorâmico, o texto de Marichal (2008) é de extrema valia. Um esforço
meticuloso fora feito por Halperín Donghi há quase trinta anos para o erário das Províncias Unidas do
Rio da Prata (HALPERIN DONGHI, 2005 [1982]), completando a análise de Oscar Oszlak sobre a
chamada “organização nacional” (OSZLAK, 2015). Nessa linha, análises monográficas sobre a
transição fiscal são abundantes, vide, por exemplo, Abreu e Lago (2001), Deas (1982), Jaramillo,
Maisel & Urrutia (2001), Marichal e Carmagnani (2001) e indiretamente Rodrigues (2016).
98
190
combina à formação, apogeu e crise da hegemonia britânica e sua nova divisão
internacional do trabalho.
Por outro lado, a conformação política, o ritmo e a magnitude desse ciclo fiscal
expansivo é variável em cada caso, arbitrada pela disputa política em torno do fardo
fiscal. Não se pode generalizar a partir de algumas situações de rápida e unívoca
transição para a arrecadação aduaneira, como o Uruguai ou o Chile, onde uma
inserção primário-exportadora acelerada criou oportunidades excepcionais. Na
Bolívia, por exemplo, as poucas importações e o refluxo da mineração fizeram com
que a elite política forçasse a reinstituição dos tributos indígenas. No Peru, é só com
as enormes rendas do guano que o peso dos antigos tributos é aliviado, enfraquecendo
os chefes do interior que os extraíam e unificando a aristocracia limenha ao redor do
presidente Ramón Castilla nos anos 1840. A força dos governos provinciais no
México foi decisiva para a manutenção de impostos de circulação, que mantinham sua
autonomia financeira em detrimento da integração econômica nacional. Na Colômbia,
o crescimento relativo das receitas aduaneiras já se percebe nos anos 1820 e 1830,
mas seu volume não é capaz de suplantar os estancos sobre o sal e o tabaco senão em
finais do século XIX, com a cafeicultura (JARAMILLO; MAISEL & URRUTIA,
2001). Comparar as trajetórias fiscais no período sob um índice de “desempenho” ou
“eficiência” é escamotear o caráter desigual da expansão capitalista da qual essas
trajetórias dependiam.
A tendência foi uma transição fiscal em que impostos como o dízimo, o tributo
indígena e a alcabala, taxas sobre o abate de gado, sobre as bebidas alcoólicas ou
sobre a extração de minério em espécie (quintos), taxas sobre a venda de cargos
públicos ou sobre a impressão de dinheiro tivessem sua força diminuída ao longo do
século99. O ocaso desses impostos é também a história da derrota política dos setores
sociais que deles dependiam, fossem governos provinciais, encomendeiros, guildas
mercantis, cobradores venais de impostos ou a corporação eclesiástica. Essa transição
Trata-se de uma generalização grosseira, mas não equivocada (para detalhes, ver nota anterior).
Conforme Garavaglia (2010), os tributos indígenas tiveram vida mais longa nos Andes (Bolívia, Peru e
Equador), na Guatemala e em províncias do sul mexicano e da Argentina (Jujuy). O mesmo se pode
dizer dos dízimos e da cobrança pelo abate animal, ainda importante na segunda metade do século na
Colômbia (ver DEAS, 1982). Os estancos, renda de monopólio ligada à exploração de um setor, eram
fortemente sensíveis ao empuxo exportador, então o mais prudente seria englobá-los aos impostos
aduaneiros na análise da transição fiscal. Empiricamente, seu papel foi longevo na Colômbia e na
Guatemala, onde o empuxo exportador foi tardio, mas também no Chile e na Costa Rica, onde as
rendas alfandegárias eram volumosas desde a década de 1820.
99
191
tampouco obedeceu rigorosamente aos desígnios das elites liberais100. Mesmo que
muitos reformadores se inclinassem por princípio à tributação direta e progressiva, ela
se revelara praticamente impossível no período, ora pelas exigências administrativas,
ora pela indisposição dos possíveis tributados (PINTO BERNAL, 2012).
Partindo então de um circuito que conecta a solvência governamental com o
fluxo aduaneiro, por uma parte, e a capacidade de importar com o vigor do setor
primário-exportador, por outra, podemos fazer algumas observações. A primeira é que
havia uma tendência nitidamente pró-cíclica na margem de ação dos governos: sua
capacidade de arrecadar e contrair empréstimos se alargava no momento de
prosperidade, ao passo que, no revés do mercado mundial, não havia alternativas à
mão para contrarrestar seus déficits. O diagnóstico se reforça na dinâmica do mercado
internacional de crédito, cujos momentos de desorganização (1825-1827, 1873-1878,
1890-1891, 1929-1933) coincidem com o travamento generalizado do comércio101.
Como veremos no capítulo 7, esse caráter pró-cíclico é importante para entender o
caos sistêmico dos anos 1920 e 1930, quando o gasto público contracíclico entra na
ordem do dia por força das circunstâncias.
A segunda observação é que, ao pesar especialmente sobre as importações de
consumo popular, tratava-se de uma arquitetura fiscal nitidamente regressiva. Os
produtos consumidos pela população urbana (têxteis, alimentos, utensílios metálicos,
etc.) eram desproporcionalmente tributados, o que era feito sem o ônus político da
extração direta. Como constatara o ministro da fazenda uruguaio em 1858, “o caráter
particular dos impostos indiretos é que sua captação é fácil e oportuna,
confundindo-se quase sempre com o valor dos objetos que os pagam” (apud
Em muitos casos, a convicção no liberalismo econômico esbarrou em realidades fiscais difíceis de
contornar. Na Colômbia recém independente, a pressão política pela extinção do monopólio do tabaco,
fortemente identificado com o governo colonial, esbarrava na dependência do governo com as rendas
obtidas com sua exploração. Um comerciante britânico com destaque na Colômbia, William Willis,
registrou essa contradição de forma clara em 1831: “ainda que a aplicação geral dos princípios da
economia política deva ser colocada em prática sempre que possível, o fim do monopólio do tabaco
não deve ser precipitado, porque, sob as circunstâncias presentes, em vez de obter resultados positivos,
essa medida poderia produzir um desastre” (apud JARAMILLO; MAISEL & URRUTIA, 2001: 436).
100
101
O tratamento pró-cíclico das finanças internacionais no período é o tema central do meticuloso
estudo de Marichal (1989). Haveria para o autor uma inconstância nesse padrão dada pelo Primeira
Guerra Mundial, que contorna a crise da dívida que se delineava após a expansão financeira dos
primeiros anos do século XX. A possibilidade de exportar no esforço de guerra e a excepcionalidade no
mercado financeiro interditaram a detonação da crise, que, no entanto, ocorreria de forma trágica após
1929.
192
GARAVAGLIA, 2010: 163). A nova massa urbana, resultado sedimentar de
múltiplos desencaixes promovidos no longo século XIX, acaba pagando com
impostos indiretos pelo aparato estatal que basicamente lhe vigia e reprime. Esse é
outro aspecto desse ciclo fiscal que seria posto em xeque na primeira metade do
século XX. Àquela altura, a crise fiscal e a contestação social abririam então uma
janela de oportunidade na qual se experimentaram diversas iniciativas de reforma do
sistema tributário (BULMER-THOMAS, 2003, cap. 6).
Uma terceira observação é que a estabilidade da solvência governamental foi
condição para a rotinização da dívida pública e para o controle unificado sobre os
meios de pagamento. Após as independências, a tendência predominante foi cada uma
dessas condições repelirem-se entre si, especialmente na América Espanhola. Foi
prática corrente das facções beligerantes fundir moeda de baixo valor e emitir
dinheiro ou promissórias pelas requisições de guerra, o que estimulava a concorrência
entre diversos meios de pagamento, incluindo moedas de prata, ouro e cobre, além de
falsificações e moedas estrangeiras obtidas pelo comércio exterior.
Após a euforia e colapso do ciclo de crédito externo entre 1825 e 1828, o mais
comum expediente da dívida pública era emitir mais títulos de baixo valor,
aumentando os compromissos futuros com a elite local em uma espiral de juros altos e
amortizações. Tanto a rolagem administrada da dívida pública como a garantia do
valor da moeda oficial dependiam de uma base fiscal regular e de algum equilíbrio no
comércio exterior, condições que, naquele contexto, estavam intimamente ligadas. A
transição fiscal encetada pelo empuxo exportador-importador resultou, no longo prazo,
em uma pressão de centralização monetária. As economias latino-americanas com
inserção mais dinâmica na economia mundial, a começar pelo Brasil em 1846, fariam
incursões ao regime de câmbio fixo, aderindo parcial ou temporariamente ao padrão
libra-ouro até seu colapso em 1931 (CORTÉS-CONDE, 2008).
Em suma, para compreender as linhas mestras da construção da ordem na
América Latina independente, há que se firmar inicialmente esse elo sistêmico entre o
desenvolvimento do capitalismo industrial como nova divisão internacional do
trabalho e as oportunidades fiscais descortinadas com essa expansão. Isso permite
entender o crescimento material dos estados pós-coloniais como parte de uma
expansão, mais ampla e desigual, em curso no sistema interestatal capitalista. Ao
propor um mecanismo interdependente entre exportações e tributação regular, esse elo
193
coloca em cena um terreno de benefício recíproco entre, grosso modo, quem exporta e
quem governa. Em outros termos, a associação fiscal ao segmento de lucros
extraordinários permitia desequilibrar os meios pelos quais se disputavam concepções
discrepantes de uma sociedade bem ordenada. Dessa forma, a solda dessa
reciprocidade entre capital e coerção foi crucial para a conformação de uma ordem
política hegemônica nos estados latino-americanos do longo século XIX.
5.3. A utopia de mercado na periferia
Uma das salutares constatações de Giovanni Arrighi sobre a formação da
hegemonia britânica é que ela inaugura um apelo normativo à precedência dos direitos
de propriedade dos governados sobre as prerrogativas soberanas de governantes
(ARRIGHI, 2009: 48-59). A riqueza privada dos súditos seria o esteio da “riqueza das
nações” em lugar do engrandecimento do tesouro do monarca. Tratava-se de um
princípio atraente não só para os súditos da Coroa britânica, mas aos proprietários de
forma geral – munidos com ele para denunciar o que lhes parecia tirania ou
despotismo. Ao fundir propriedade e liberdade, o apelo permitia segmentar a
contestação social em uma Europa convulsionada, ou seja, oferecia um horizonte de
ordem pós-revolucionária. O manuseio do idioma constitucional fora parte essencial
da polarização política na Era das Revoluções, mas há uma tendência ao estreitamento
de seus potenciais significados políticos. O constitucionalismo liberal, no rescaldo da
disputa, prova-se capaz de capturar a ideia de soberania popular sem endossar suas
acepções radicais, normalizando o léxico político aos seus termos.
Como vimos no capítulo anterior, o apaziguamento sistêmico articulado pela
hegemonia ascendente teria uma pedra fundamental na promoção do princípio das
nacionalidades sobre o ímpeto de reconquista colonial, do comércio livre nas
periferias americanas. No centro do espectro ético-político dos processos de
independência se consolida justamente a precedência dos direitos de propriedade dos
governados sobre as prerrogativas soberanas dos governantes. Em seu cerne, esse
apelo modelava a sociedade como um conjunto de indivíduos, iguais porque
proprietários e livres enquanto privados. Após a desarticulação das hierarquias sociais
resultantes da crise dos impérios ibéricos, o constitucionalismo liberal adquire
194
progressivamente condição de centro sobre o qual a luta política se organiza, isto é, o
terreno privilegiado para sustentar a autoridade ou formular a oposição.
O objetivo dessa seção é analisar a utopia de modelar a sociedade ao
funcionamento espontâneo do mercado como horizonte de harmonia social e
progresso material. A ideia não é que havia uma defesa uníssona nem uniforme dessa
utopia por dirigentes e publicistas; pelo contrário, sua consecução foi atravessada por
inúmeros conflitos. Antes, o que acontece é que esses conflitos vão mudando de perfil.
Enquanto a fabricação estatal de uma sociedade de mercado se afirma como
imaginário hegemônico de futuro, a oposição social aos efeitos da mercantilização se
torna cada vez mais uma reação prática, concreta e provisória. No arco do longo
século XIX, o constitucionalismo liberal opera as alavancas do desenraizamento da
vida econômica. A partir dos conflitos e mediações decorrentes, é possível estabelecer
um gabarito de inteligibilidade para a construção da ordem, isto é, descritores para o
processo pelo qual um determinado sentido de ordem política é imposto e barganhado
sobre suas alternativas. Ou, também, seguindo ainda os passos de Polanyi, pode-se
perceber como as reações à mercantilização da vida e da natureza, movidas por sensos
de justiça contrários à utopia de mercado, interferem efetivamente no curso e no ritmo
com que essa utopia é convertida em práticas e instituições.
Uma das vantagens de aproximar o problema através de Polanyi é dissolver de
saída a falsa polêmica sobre a preferência do pensamento liberal latino-americano por
um estado “forte” ou “fraco”, interventor ativo ou simples “guarda-noturno” (JAKSIC
& POSADA-CARBÓ, 2011). Ora, a propulsão de uma sociedade de mercado era
intrinsecamente uma agenda de reforma social: uma plataforma legislativa e executiva
destinada a titular direitos de propriedade e formalizar sua troca, extinguir privilégios
corporativos, construir vias de circulação, uniformizar a moeda, regulamentar o
crédito, mensurar o território, criar instâncias judiciárias ou subordiná-las ao saber
jurídico oficial, abolir a servidão e fomentar um mercado de trabalho livre,
frequentemente pela atração subsidiada de imigrantes. Não havia propriamente uma
contradição entre esse ativismo estatal e a crença no liberalismo. Melhor dizendo, o
próprio liberalismo colocava a exigência de mobilizar meios crescentes para que o
estado executasse a reordenação da vida social aos parâmetros de mercado. Esse
apetite por recursos passava pela ampliação do ciclo extrativo-coercitivo, ao que
voltaremos adiante.
195
No plano legislativo, uma série de constituições e códigos civis, criminais e
comerciais pretenderam desenraizar as práticas legais ancoradas no pluralismo
jurídico colonial, ou ainda na chamada “constituição material” do reino, de inspiração
pactista (DYE, 2008; URIBE-URÁN, 2006). Na nova cultura jurídica, a imposição de
uma
pessoa
jurídica
individual
e
independente,
ancoragem
primeira
do
constitucionalismo liberal, seria geminada ao reconhecimento da propriedade
exclusivamente nesses termos. Em outras palavras, firma-se como tarefa pública
extinguir as formas de apropriação e usufruto baseadas em figuras jurídicas coletivas,
corporativas ou hereditárias, como meio para desobstruir a circulação de mercado. O
emblema legal disso era a separação rigorosa entre uma “esfera pública” e uma
“esfera privada”, o que Victor Uribe-Urán (2006) chamou, em alusão direta a Polanyi,
da “grande transformação” operada na prática jurídica na América Latina dos
oitocentos (Tabela 5.2). Assim, como observou Norbert Lechner em outro contexto,
“o constitucionalismo, que inicialmente defende o comércio contra a coroa, logo
defende o mercado contra a sociedade” (LECHNER, 2013: 116)
O desenraizamento da economia de mercado passa, em Polanyi (2012), pela
produção política de três mercadorias fictícias: a terra, o trabalho e o dinheiro,
resultado da conversão mercantil da natureza, da vida humana e dos meios de
pagamento, respectivamente. Grosso modo, ele identificava esse processo na
destruição das propriedades feudais, na formação do proletariado e na autorregulação
da moeda pelo padrão ouro. Com isso, renda da terra, salário e juros constituiriam o
preço, a ser regulado pela oferta e demanda, dessas mercadorias. Seu caráter “fictício”,
é importante lembrar, se justifica pelo fato de que não se aplica a elas a condição
fundamental da produção orientada para o mercado, a de que tudo é produzido para
ser comprado e vendido. A ficção envolvida é a de supor que a força de trabalho é
separada da vida humana, que as propriedades econômicas da terra são separadas da
natureza, e que a rentabilidade do capital é separada da rede social de trocas materiais.
Para institucionalizar a regulação de mercado, seria preciso supor que essas
separações são possíveis. Como utopia, que não deixa de ter um papel organizador no
ciclo expansivo do capitalismo industrial, o credo liberal ambicionava substituir o
poder pessoal pelo espontâneo movimento de preços relativos (POLANYI, 2012).
Há boas razões para pensar que esse desígnio utópico não se limitou à
Inglaterra, de cuja história o autor extraiu o cerne de seu argumento. Sua repercussão
196
ético-política está associada, como já antecipamos, ao ciclo sistêmico de acumulação
do século XIX, tal qual a indústria florescente nos distritos de Manchester na década
de 1770. Por si só, isso não significa que as ideias de Polanyi possam ser “facilmente
extrapoladas para encaixar as realidades latino-americanas” (TOPIK, 2000: 87)102. O
desenvolvimento de uma utopia de mercado na América Latina como horizonte de
progresso social não é indiferente à sua condição periférica, o que à primeira vista
parece uma frase feita. Para dar-lhe conteúdo, o melhor caminho não é assinalar
reiterações e diferenças entre o “estado liberal” inglês e os casos periféricos, mas
antes de repensar a própria teoria a partir de conexões mundiais relevantes, na linha
do que já fez Holmwood (2016). Segundo esse autor, a negligência com a categoria de
“raça” faz com que Polanyi não perceba como, na gênese do capitalismo, a escravidão
atlântica contradiz precisamente o caráter fictício da mercadoria “trabalho”, uma vez
que o trabalho humano não é separado da vida para ser livremente comprado e
vendido (HOLMWOOD, 2016).
Com efeito, o raciocínio de Polanyi é insensível à estratificação internacional
da força de trabalho subjacente à proletarização na Inglaterra, e depois na Europa
Ocidental como um todo. A sobrevivência da escravidão em Cuba ou no Brasil não se
explica pela difusão precária do liberalismo vitoriano nos trópicos. Como vimos
acima, essa sobrevivência se ampara nas conexões comerciais entre as plantations
escravocratas e o desenvolvimento do operariado fabril que Polanyi estava
observando. Desde as periferias, os proprietários dessas plantations inclusive
reposicionaram sua defesa da escravidão por meio de noções individualistas de
interesse e propriedade, assentando um “liberalismo escravista” impensável na
Inglaterra (BERBEL & MARQUESE, 2010; MARQUESE, 2003). Eles não eram
avessos à síntese entre mercado, razão e progresso que inspirava o estado liberal, mas
a interpretavam contra o trabalho livre.
Na América Espanhola, a produção primário-exportadora recorreu a inúmeros
arranjos informais de trabalho coagido no período republicano, como os colonos,
concertados e huasipungueros nos Andes, os peones acasillados nas fazendas no
México, os inquilinos no Chile (BAUER, 1995; 2009; BULMER-THOMAS, 2003:
102
Embora Steven Topik apresente inicialmente a ideia de que há uma transição imediata a fazer,
algumas páginas mais tarde ele mesmo aponta que “a Grande Transformação é um documento
fundamentalmente eurocêntrico que toca apenas lateralmente no colonialismo e nos povos “primitivos”,
assim como nos camponeses da Europa Ocidental. Somente no fim da vida Polanyi se ocupou da
questão do subdesenvolvimento (...)” (TOPIK, 2000: 95).
197
86-91; KATZ, 1974). Eram trabalhadores que viviam em sistemas de barracão ou em
servidão agregada nas terras dos senhores, ou ainda sob uma escravidão por dívidas.
O grau de coação extraeconômica sobre o trabalho variava conforme a situação, mas
definitivamente não eram relações assalariadas de produção. Por um lado, esses
arranjos podem ser vistos como estratégias por parte dos proprietários de antecipar e
proteger suas empresas das possíveis consequências negativas de um mercado de
trabalho livre, como o encarecimento, a indisciplina e a escassez de trabalhadores. Por
outro, em maior ou menor grau, esse controle sobre os trabalhadores dependia da
cumplicidade
das
autoridades,
de
ilegalismos
práticos
operando
sob
o
constitucionalismo liberal.
Há algo importante sobre essas franjas da mercantilização do trabalho na
periferia. As elites proprietárias dessas fazendas e minas não reivindicaram ter
descoberto um sistema de trabalho superior ao assalariamento vigente na Europa. Nos
debates públicos, constitucionais inclusive, sobre o trabalho compulsório, havia um
apelo recorrente à importância econômica dele para o país, que se completava dizendo
ser impossível obter o mesmo resultado com o trabalho livre (BERBEL &
MARQUESE, 2010). A seu modo, parece que essas elites percebiam justamente o que
de alguma forma escapara a Polanyi: que o trabalho coagido em periferias agrícolas
era então um expediente prático para girar o mercado mundial do qual o
assalariamento era apenas uma parte. É como se percebessem que, dentre as
circunstâncias do assalariamento irrestrito na Inglaterra estava um “subsídio” externo
com que elas próprias não poderiam contar. Ou ainda, que o caráter utópico do
reformismo liberal britânico presumia implicitamente sua posição privilegiada na
divisão internacional do trabalho.
Há uma situação desigual também com relação à mercantilização da moeda,
que atinge forma definitiva na década de 1870 através do padrão ouro. A libra
esterlina já era conversível em ouro desde a primeira metade do século, mas a partir
da década de 1870 se estabelece um circuito de paridade em ouro entre Grã-Bretanha,
EUA, Alemanha e França. Do ponto de vista da doutrina, o padrão-ouro previa que o
volume de moeda circulando em cada país se autorregularia na medida em que todos
os governos se mantivessem comprometidos com o câmbio fixo. A credibilidade do
sistema dependia da confiança de que a paridade seria mantida mesmo que com
198
sacrifícios no nível de atividade econômica doméstica103 (EICHENGREEN, 2000). A
solidez do regime internacional dependia da coesão entre as moedas fortes do centro
do sistema, que funcionavam como reservas internacionais104. Ao redor desse núcleo,
as demais moedas estabeleciam relações de associação, como satélites mais ou menos
próximos das exigências de conversibilidade (ver EICHENGREEN, 2000: 46).
A conversibilidade das moedas periféricas era menos crível aos financistas
internacionais, o que significava que o padrão-ouro era mais complicado, mais
exigente, mais árduo para aqueles com menos capacidade de sustentá-lo. Os abalos de
confiança prontamente impeliam a uma fuga de capitais que obrigava o governo a
suspender a conversão. Em geral, havia ampla adesão doutrinária das elites
latino-americanas pós-1870 ao padrão ouro, o qual, além de facilitar as negociações
internacionais, era uma espécie de ícone de pertencimento ao seleto clube de nações
civilizadas.
O fato de ser considerado desejável não significava que fosse factível. Os
problemas financeiros da ordem do dia exigiam decisões para as quais não servia
comungar da simples convicção teórica na superioridade do padrão ouro. Assim, ao
longo do século, os estados pós-coloniais latino-americanos foram concentrando
controle político sobre os meios de pagamento, mas isso não significava
necessariamente conseguir fazer parte do circuito internacional de autorregulação da
moeda. Ao observarmos desde a periferia a ambição utópica de transformar os meios
de pagamento em uma simples mercadoria, como propôs Polanyi, encontramos um
fenômeno diferente, qual seja, a assimetria existente do sistema financeiro
internacional.
Resta observar, ainda de forma panorâmica, a produção da terceira mercadoria
fictícia, a terra. Como veremos na terceira parte da tese, o horizonte liberal de
formalizar um mercado de terras perpassa iniciativas cruciais como a Lei de Terras no
Brasil (1850), a Lei Lerdo (1856) e a Constituição de 1857 no México, as leis sobre
103
Para Barry Eichengreen (2000), o padrão-ouro entre 1870-1914 não funcionava pelo automatismo
da teoria quantitativa da moeda; havia, para seu sucesso, movimentos coordenados e preemptivos dos
bancos centrais através de suas taxas de redesconto, antecipando e compensando déficits e superávits
externos sem a saída física de ouro (EICHENGREEN, 2000). O esteio desse funcionamento era, de um
lado, a ausência de pressões políticas sobre os objetivos da política monetária e, de outro, a
credibilidade de que os demais bancos centrais fariam valer seu compromisso com o câmbio fixo.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial 40% das reservas internacionais eram mantidas em libras
esterlinas, outros 40% em marcos e francos e os 20% restantes em metal ou moedas secundárias
(EICHENGREEN, 2000: 48).
104
199
arrendamento de terras públicas (1822/1857) e sobre hipotecas fundiárias (1864) na
Argentina, para não falar do radicalismo liberal e das expropriações do governo
Mosquera em 1861 na Colômbia. Como disse o próprio general Mosquera, “um dos
maiores obstáculos para prosperidade e crescimento da nação é a falta de movimento
e circulação livre de grande parte dos imóveis, que são uma base fundamental da
riqueza pública” (apud KNOWLTON, 1969: 389). É seguramente a partir da metade
do século que esse processo de mercantilização adquire maior escopo e estridência
social, em certos casos no limiar da guerra civil. Observando com maior
distanciamento histórico, é no arco temporal do “longo século XIX” que se firma
como horizonte hegemônico que a regulação do usufruto da terra, salvo quando se
justifique o contrário, haveria de ser organizado pelo direito individual de comprá-la e
vendê-la.
No primeiro liberalismo espanhol já se entrevê a ideia norteadora de que a
natureza deveria ser convertida em direitos exclusivos de propriedade sobre uma
mercadoria uniforme e mensurada. Em janeiro de 1813, as Cortes de Cádiz haviam
expedido uma decisão bastante radical sobre o tema, estipulando que todas as terras
consideradas “baldias” em todos os reinos espanhóis seriam privatizadas e repartidas
entre os habitantes da região, excluindo-se os ejidos de uso comunitário. A decisão,
que proibia a transferência dessas terras à Igreja pela extinção legal dos bens
inalienáveis, seria revertida um ano depois com a restauração de Fernando VII
(BERNAND, 2016: 44). Naquele contexto, a iniciativa respondia aos anseios
doutrinários do liberalismo anticlerical, sem muita ressonância fora dos recintos
legislativos. A balança começa a se inverter com a expansão exportadora nas décadas
seguintes. Por exemplo, Acuña e Molina (1991), ao agregar as transações de compra e
venda de terras no Vale Central da Costa Rica, mostram uma impressionante
aceleração em número e valor provocada pela expansão da cafeicultura na região.
Enquanto o número de transações anuais vai da casa de 10 em 1800 a cerca de 140 em
1850, o valor delas é quase mil vezes maior no mesmo intervalo de tempo (ACUÑA
& MOLINA, 1991: 117).
Os estudos liderados por Garavaglia e Gautreau (2011) mostram outras faces da
mercantilização da terra após a independência. Observando as planícies pecuaristas do
Rio da Prata na primeira metade do século, eles mostram como a titulação e
regulamentação das propriedades rurais exigiam métodos mais rigorosos de
200
mensuração e cartografia da região. Os diversos melhoramentos adotados para
delimitar o espaço (varas, grafômetro, teodolito, corrente metálica, fita metálica)
respondiam aos incentivos dados pelo aumento da renda da terra, isto é, à valorização
da terra como mercadoria entre 1820 e 1850 (GARAVAGLIA, 2011). Sem isso, esses
avanços de agrimensura seriam implausíveis, já que “durante quase dois séculos, os
preços da terra estiveram ‘achatados’, as estâncias e fazendas valiam o que
albergavam: gado, escravos e pouco mais” (GARAVAGLIA & GAUTREAU, 2011:
54). Os avanços cartográficos, por sua vez, envolviam agências especializadas e um
novo corpo de funcionários com conhecimento técnico. O conhecimento oficial do
espaço, que permitia delimitar e titular propriedades fundiárias, também abria
oportunidades fiscais até então exíguas, como o aluguel e venda de terras públicas, ou
o imposto direto sobre a propriedade rural. Controle político, empuxo exportador e
regulação de mercado se respaldavam.
À primeira vista, do ativismo legislativo à violência sistemática para reordenar
o espaço, o processo de privatização da terra não parece apresentar contraste
substantivo como descreve Polanyi para o campo inglês. Ressalvas empíricas feitas, a
imposição da condição de mercadoria ao ambiente natural é uma tendência ampla o
suficiente para englobar a subordinação das formas políticas nativas pelos estados do
sistema mundial. Como dito antes, o ciclo industrial de acumulação do “longo século
XIX” tem um de seus apelos hegemônicos em oferecer condições de fortalecimento
material do sistema como um todo. Esse fortalecimento coletivo significava a
capacidade de quebrar resistências sociais nas margens do sistema, subjugando povos
até então autônomos.
A essa altura, percebemos que não é coincidência que, enquanto os argentinos
moviam práticas genocidas na Patagônia, os britânicos venciam a guerra contra a
confederação guerreira dos zulus no sul da África. Ou ainda, que enquanto os chilenos
reiniciavam sua conquista militar do sul indígena, os russos derrubassem o último
imanato independente do Cáucaso sob a liderança de Shamil (1839-1859). A segunda
metade do século XIX assistiu demonstrações da superioridade militar ocidental em
toda parte, da América do Norte à Australásia, da Indochina ao Egito. Sucumbem as
últimas resistências dos Santals de Bengala, dos Maoris na Polinésia, dos Sioux no
alto Mississippi e dos Ndebele na África Austral (BAYLY, 2004: cap. 12). Tratava-se
de um desmoronamento em dominó das formas nativas de vida política simultâneo ao
201
saque desenfreado de terras e riquezas. Por trás do alargamento do perímetro da
divisão internacional do trabalho, o liberalismo vitoriano liderava uma ofensiva
imperial
contra
o
mundo
não-europeu,
possibilitado
particularmente
pela
industrialização da guerra, pelo transporte a vapor e pela profilaxia de doenças
tropicais (HEADRICK, 2011: cap. 5 a 7).
O estudo sobre a mercantilização da terra na América Latina, dessa forma,
obriga a lidar com o colonialismo interno das elites eurodescendentes. Originalmente,
o conceito se prestava a demarcar, nos debates sobre a descolonização dos anos 1960,
que o colonialismo não era um fenômeno unicamente “internacional”, e que portanto
não se esgotava com a independência política (CASANOVA, 2006: 185-206). Aqui é
possível enquadrar uma acepção específica do colonialismo interno. Do outro lado da
ligação dinâmica entre empuxo exportador, regulação de mercado e controle político
do espaço, estava uma multiplicidade de povos americanos sofrendo uma
desintegração de seu ambiente cultural. Como observou Salvatore (1999: 33), “em
nada é mais evidente a continuidade entre os reformadores Bourbon e os liberais
oitocentistas do que no tratamento dos americanos nativos”. Como processo sistêmico,
a mercantilização da natureza no arco do ciclo industrial de acumulação tinha íntimas
relações com a expansão colonial sobre o espaço.
Cabe resumir o que foi dito acima. O que se pretendeu nessa seção foi, em
poucas linhas, demonstrar a potência da produção estatal de mercados como eixo ao
redor do qual se sedimenta a ordem política pós-colonial. De um lado, demonstramos
a vitalidade do argumento de Polanyi para lidar com o sentido de progresso
hegemônico na América Latina oitocentista, traduzido pelas inúmeras tarefas
subsidiárias ao alargamento da vida social regulada pela lógica de mercado. A utopia
de mercado perseguida na periferia, ao mesmo tempo que embebida nas referências
ético-políticas do século, não é por isso uma replicação mais ou menos perfeita do
reformismo vitoriano.
A rigor, o estudo de seu desenvolvimento periférico revela dimensões novas,
que obrigam a situar o reformismo britânico em uma posição relativa. Por exemplo, a
adesão doutrinária ao livre comércio após 1846 não pode ser separada da singular
força econômica da Inglaterra naquele contexto, que ensejava vantagens competitivas
com a perspectiva de liberalização do comércio internacional. As elites
latino-americanas, mesmo quando genuinamente convencidas dos benefícios da
202
liberalização, precisavam dar conta de desequilíbrios fiscais e cambiais que
obrigavam a refratar ou modular sua doutrina. A rigor, eram instâncias desiguais de
um mesmo regime internacional de liberalização, que atingiu seu ápice em meados
dos oitocentos pelo aríete do “imperialismo de livre comércio”.
Nesse espírito, apontamos como a discussão sobre as mercadorias fictícias em
Polanyi acaba naturalizando os privilégios implícitos da Inglaterra na economia
mundial. Ao observar a proletarização desde a periferia, encontramos determinados
arranjos de trabalho não-livre que não são anomalias arcaicas, mas polos
subordinados inseridos no mercado mundial, cuja divisão de trabalho permitia
baratear o trabalho livre nos centros industriais. Por trás da utopia de autorregulação
do mercado de trabalho estava a estratificação internacional da exploração do
trabalho. Ao observar a mercantilização do dinheiro desde a periferia, percebemos
como a autorregulação da oferta de moeda era um horizonte também restrito pela
assimetria do sistema financeiro internacional, independente de quão veemente fosse
a preferência das elites latino-americanas pelo câmbio fixo. Por fim, a análise da
mercantilização da terra na periferia esbarra em um fenômeno qualitativamente novo,
qual seja, o liberalismo como colonialismo interno protagonizado por uma elite
eurodescendente.
5.4. As escalas da violência e seu controle
Essa seção completa o quadro anterior ao discutir uma mudança relativa na
topografia da disputa política ao longo do século, dada pela concentração relativa do
controle sobre a violência. Por esse ponto de vista, retoma a discussão do capítulo
anterior sobre a tendência à localização da vida política durante as crises imperiais
(seção 4.4). No fim do período colonial, as autoridades imperiais não detinham um
monopólio da força, mas eram capazes de controlar razoavelmente os termos de seu
emprego no perímetro que lhes era relevante. Naquele contexto, a geografia política
do continente estava centrada nas três submetrópoles sediadas no México, no Peru e
no Rio de Janeiro. O poder imperial irradiava por núcleos subordinados e concêntricas
desses centros em direção às fronteiras, onde se estabeleciam vastas regiões de
contato intercultural até espaços onde a reivindicação de autoridade dos colonizadores
era inconsequente. Essa geografia, como vimos, sofreu sucessivas fissuras na Era das
203
Revoluções, gerando situações de soberania múltipla e uma pulverização dos meios
de mobilização da força. Nosso tema então é a dinâmica da violência política após as
crises imperiais, sinalizando a emergência processual de um desequilíbrio e buscando
sistematizar suas razões.
A primeira metade do século XIX é usualmente descrita como um período
caótico dominado por guerras civis, desencadeadas por caudilhos ávidos por poder e
glória (SAFFORD, 1992). Essa narrativa tece um contraste implícito entre o caráter
dissipativo dessas guerras e o que seria a trajetória positiva de afirmação nacional da
segunda metade do século. A virulência dos conflitos políticos do século XIX
adquiriu, em interpretações como a de Centeno (2002) e Loveman (1999), a
capacidade analítica de explicar problemas profundos na constituição das
comunidades políticas latino-americanas. Cria-se um viés negativo no sentido em que
a violência política no período é entendida pelo que não está presente, nomeadamente
um estado nacional e suas derivações institucionais.
Para ir além disso, o primeiro passo é perceber que a implosão dos espaços
imperiais continentais produz uma geografia de subsistemas regionais competitivos,
com reivindicações de poder sobrepostas no tempo e no espaço. Como extraímos do
capítulo anterior, o conflito não advinha de litígios territoriais entre autoridades
formalmente iguais. Essas reivindicações sobrepostas imbuíam apelos ético-políticos
e imaginários espaciais incompatíveis, de municipalidades livres a impérios dinásticos,
de repúblicas nacionais a confederações de estados independentes. Em uma palavra,
havia subsistemas heterogêneos do ponto de vista de organizações políticas
envolvidas, em que não são estanques nem claras as fronteiras entre repressão política,
luta insurgente, guerra interestatal e banditismo social.
Essas diferenças se refletiam na base de organização das forças armadas que
tomavam parte na competição pelo controle político da violência em cada um desses
subsistemas. Uma municipalidade podia mobilizar seus vizinhos para defender sua
autonomia, mas dificilmente teria condições de contratar mercenários especializados
para lutar a seu lado. Eventualmente uma liderança regional podia recrutar, a partir de
seus recursos e carisma, forças suficientes para derrotar o exército regular a serviço de
um governo desacreditado. Por seu turno, uma confederação de tribos indígenas podia
ir à guerra sob a direção de um cacique mais para defender seu território histórico, do
que para impor seu jugo formal sobre ele. Já os ricos proprietários de terra podiam
204
contar com jagunços privados para manter sob controle os camponeses e aldeões de
sua região, que, por força das circunstâncias, poderiam servir também como
combatentes em uma guerra regional.
No desenrolar das lutas pela independência, especialmente após a restauração
de Fernando VII em 1814, a escala dos exércitos aumenta. Em 1815, os comerciantes
de Cádiz peticionam ao rei que restabeleça a ordem nas colônias. Com vitórias
sucessivas os regalistas reconquistam o Chile, Quito e a Venezuela com brutais
demonstrações de força, enquanto as tropas imperiais portuguesas invadiam a Banda
Oriental artiguista. O teor absolutista da reconquista espanhola após 1814 criou um
importante ponto de não-retorno na crise, criando um campo secessionista amplo na
América contra a recolonização. Se até 1814 o conflito tinha um caráter mais difuso,
multiforme e imprevisível, ligado às conexões revolucionárias no mundo atlântico,
com a restauração monárquica na Europa a guerra civil na América adquire um
caráter mais polarizado, com um campo mais nitidamente secessionista, militar e
anticolonial.
Fazer frente ao absolutismo e ao colonialismo se torna a senha para o ganho de
escala das forças independentistas na contraofensiva crucial de 1818-1820. Na
diplomacia europeia, as grandes potências decidiram abster-se da intervenção nas
guerras americanas durante a Conferência de Aix-la-Chapelle (1818), para frustração
espanhola (BLAUFARB, 2007: 757; BOERSNER, 1996: 73; WADELL, 2009).
Enquanto isso, a sanha punitiva dos generais espanhóis havia influenciado a balança
das fidelidades políticas na América. Em 1818, o novo Vice-Rei do Peru, Joaquín de
la Pezuela, lamentava que “a opinião dos cholos e índios não é especialmente
favorável ao Rei, e entre a multidão de escravos eles estão abertamente apoiando os
rebeldes de cujas mãos esperam sua liberdade” (apud ADELMAN, 2010: 418).
Enquanto as deserções aumentavam no lado regalista, os exércitos rebeldes ganhavam
terreno na coluna sul-andina aberta por San Martí e na frente norte sul-americana
liderada por Bolívar e Sucre. Com as vitórias em Maipú no Chile (1818) e Boyacá na
Venezuela (1819), além da invasão do Peru (1820), a iniciativa da guerra havia
decididamente passado ao lado dos insurgentes, instalando, por sua vez, a crise de
1820 na península. As tropas regalistas que estavam então prestes a embarcar para a
América eram estimadas em 10 mil soldados (LOVEMAN, 1999: 32)
205
No desenlace da soberania múltipla em direção à independência, o crescimento
da escala da guerra é inegável: na decisiva batalha de Ayacucho em 1824, cerca de 15
mil soldados se encontraram no campo de batalha, comandados por generais com
formação militar. A cifra pode parecer reduzida se comparada às Guerras
Napoleônicas, mas é consideravelmente superior à escala dos conflitos armados do
período 1808-1815, quando o contingente raramente atingia quatro dígitos. O
fortalecimento dos exércitos patrióticos insinuava pela primeira vez seu potencial
como contratendência à localização da soberania descrita no capítulo anterior.
A partir das guerras de independência, a competição militar tem dois efeitos
distintos. O primeiro é constituir uma porta sempre aberta para a suspensão da
linguagem constitucional pelo voluntarismo de chefes e generais. Como disse Simón
Bolívar no Congresso de Angostura (1819), “quanto mais admiro a excelência da
Constituição Federal da Venezuela, tanto mais me persuado da impossibilidade de sua
aplicação a nosso estado” (apud STRAKA, 2011: 105). A concessão de faculdades
extraordinárias a um poder executivo de extrato militar está por trás da discussão
sobre o caudilhismo (LOVEMAN, 1999: cap. 2) ou da militarização das sociedades
latino-americanas no período (HALPERÍN DONGHI, 1975). Para uma geração
marcada pelo estremecimento das hierarquias sociais, econômicas e raciais, a
disciplina militar sob generais vitoriosos se oferece como resposta imediata de ordem
pós-revolucionária.
O segundo efeito da competição militar diz respeito às bases sociais do
recrutamento e manutenção das forças. Desnecessário dizer, o ganho de escala
durante as guerras de independência multiplicou as exigências logísticas da guerra,
bem como os custos políticos da desmobilização subsequente. Em certos casos, a
janela de empréstimos internacionais nos anos 1820 foi aproveitada quase que
exclusivamente para cobrir os gastos militares das repúblicas recém proclamadas.
Finda a situação de emergência patriótica, não havia sustentação possível para aquela
concentração conjuntural de forças. Sua desmobilização transfere a competição pelo
controle da violência para os subsistemas regionais de guerra irregular, como o que se
forma nas planícies do Rio da Prata, nas zonas fronteiriças da América do Norte ou na
Nova Granada em desagregação. Em tal contexto, “os exércitos nacionais eram pouco
mais fortes do que as forças que se podiam reunir em bases emergenciais nas
províncias” (SAFFORD, 2009: 331).
206
No longo prazo, as mudanças na base de mobilização se revelaram mais
potentes do que o voluntarismo dos generais. Ao longo do século XIX, a topografia
desses subsistemas regionais vai cada vez mais se verticalizando e discernindo a
primazia de estados centralizados e suas forças regulares. Os ganhos de escala e
logística destas se revelam mais letais que o despotismo para as pretensões
autonômicas de províncias, cidades, aldeias e tribos. A partir da década de 1860 até a
primeira metade do século XX, a profissionalização dos militares e sua formação
especializada permite distinguir as forças regulares não só pelo tamanho relativo, mas
também por seus procedimentos, tecnologia e doutrina (LOVEMAN, 1999: cap. 3).
Conforme uma sociedade “nacional” é envolvida em um arranjo coeso de proteção
mediante extorsão, a separação prática entre a proteção e a ameaça adquire contornos
mais definidos, isto é, os usos da violência são mais claramente subordinados aos
termos da ordem vigente.
Essa tendência à verticalização não ocorreu espontaneamente, mas tinha raízes
no aparato de extração regular, que, para repetir a expressão de Gabriel Ardant,
funciona como um “transformador” de infraestrutura econômica em estruturas
políticas. O processo subsidiário à verticalização do controle sobre a violência é o
entrelaçamento dos estados pós-coloniais com as oportunidades fiscais associadas ao
ciclo sistêmico de acumulação analisado nesse capítulo. Como tendência de longo
prazo, os centros políticos que conseguiram controlar e tributar os nós críticos dessa
economia periférica obtiveram uma vantagem desproporcional frente a seus
competidores. O desequilíbrio progressivo dos subsistemas competitivos tem, em suas
condições de possibilidade, a capacidade de endividar-se e cobrar impostos pelas
conexões a uma economia monetarizada em expansão.
Em cada circunstância específica, esse engate expansivo entre aduanas e
exércitos precisa ser analisado empiricamente, a fim de contornar o determinismo
econômico que vincula genericamente o “crescimento voltado para fora” aos “estados
nacionais” na segunda metade do século XIX. Nem a “guerra” nem o
“desenvolvimento capitalista” são fatores explicativos abstratos para explicar a
prevalência de estados centralizados na América Latina pós-colonial. Os elos
decisivos da fiscalidade e do crédito dependem de trajetórias em boa medida
contingentes, o que voltará à tona na terceira parte da tese. Por ora, é possível apontar
207
de forma genérica alguns exemplos do peso das commodities na balança regional de
poder, ou ainda, da concorrência armada pela ampliação do metabolismo fiscal.
No subsistema formado pela desagregação do vice-reinado do Peru, a primazia
militar do Chile, demonstrada nas guerras de 1836-1839 e 1879-1883 contra Peru e
Bolívia, tem relação clara com a superioridade de sua musculatura fiscal, organizada
precocemente ao redor das exportações primárias do Vale Central. Esse desfecho
favorável ao Chile acentua o desequilíbrio ao transferir, na década de 1880, as regiões
de exploração salitreira no deserto para o território chileno. Já a Guerra do Chaco
(1932-1935) entre Bolívia e Paraguai tem como acicate as pretensões dos dois estados
de controlar a exploração de campos petrolíferos na região. Na rivalidade militarizada
entre Bolívia e Brasil na Amazônia sobre o controle do Acre, o subtexto do conflito
era a exploração da borracha, então muito cobiçada no mercado internacional.
A Guerra do Paraguai (1864-1870) foi a culminância de uma rivalidade secular
pelo controle da circulação hidrográfica entre o interior agropecuário e o Atlântico,
que até então tivera a Banda Oriental como principal teatro de operações105. A
ofensiva de Solano López em fins de 1864, que desata a guerra, é uma reação
preventiva diante da perspectiva do Paraguai tornar-se refém de sua posição
mediterrânea, em função do apaziguamento da guerra civil uruguaia e do alinhamento
nacional-liberal entre Brasil e Argentina na década de 1860. A reação paraguaia
congregava os brancos uruguaios, derrotados na guerra civil, e as províncias
argentinas de Entre Ríos e Corrientes, cujas reações mediterrâneas já haviam
derrubado governos em Buenos Aires em 1820 e 1852. No conflito de 1864-1870, as
receitas alfandegárias e a elasticidade do crédito doméstico e internacional pesaram
decisivamente para o lado da Tríplice Aliança.
Desse ponto de vista, é possível identificar que a escalada da guerra estava
associada às condições, imediatas ou no futuro esperado, de proteção e de ampliação
do ciclo extrativo-coercitivo girado pelos estados pós-coloniais. É certo que inúmeros
determinantes e contingências atravessam cada episódio militar, e nem todos se
desenvolvem na mesma direção. Ainda assim, o vetor tendencial do controle político
da violência, que acarreta uma mudança da topografia do confronto político,
estabelece um estímulo recíproco com o alargamento da base fiscal, que, por seu
Vale observar também o peso desproporcional do Uruguai como potência agroexportadora a
meados do século, quando a guerra civil ainda estava em seu auge (ver Tabela 5.1).
105
208
turno, depende do comércio exterior e suas ramificações internas. Nesse sentido, o
desenvolvimento desigual do ciclo sistêmico de acumulação incide sobre a correlação
de forças nos subsistemas interestatais competitivos gerados pelo desmoronamento
dos impérios ibéricos. Para usar outra expressão de Ardant, é por essa razão que a
mudança na “fisiologia dos estados”106 por trás da guerra tem efeitos mais profundos
e duradouros que o cesarismo dos heróis da independência e seus herdeiros.
A maior escala de emprego da violência teve outra consequência fundamental
ao determinar, enrijecer, afiar os termos da ordem política emergente. De um
entrechoque relativamente horizontalizado entre projetos discrepantes de ordem, a
disputa se torna mais assimétrica: contestações e barganhas retroagem sobre uma
concepção axial e hegemônica do que a política é e deve ser. Recuperando o que foi
dito neste capítulo, uma série de deslizamentos estavam implícitos: o bem comum ser
traduzido como progresso; o progresso ser dimensionado em termos nacionais; o
progresso nacional ser um vértice da política; e a direção da violência nessa política
consistir em romper certos diques e debelar resistências sociais à mercantilização da
vida material. As resistências a esse projeto axial se tornam cada vez mais reações
episódicas e imediatas. O discernimento rotinizado entre o campo da proteção e o da
ameaça tem como pano de fundo a canalização do uso da força contra o que é tido
como entrave ao progresso nacional.
É nesse contexto que coletividades tão díspares como a corporação eclesiástica,
as tribos indígenas autônomas, as municipalidades e as coalizões de base provincial se
situam em um heterogêneo campo das resistências à desobstrução e à formalização de
uma sociedade de mercado. Em conjunturas específicas, uma aliança era forte o
suficiente para tomar as rédeas do estado com um horizonte de restaurar as
sociabilidades dilaceradas pelo reformismo liberal, reconstruindo diques institucionais
e culturais à “avalanche de desarticulação social” descrita por Polanyi. A conversão
dos imaginários alternativos de ordem em simples reações autoprotetoras os reduz ao
imediato: a autonomia provincial se traduz na defesa dos impostos à circulação
interior; a Igreja faz de sua política basicamente contra a desamortização de seus
imóveis e terras; o autogoverno local de municipalidades e comunidades rurais fica
reduzida a represar a proletarização de seus membros. A construção da ordem
A ideia de fisiologia dos estados foi cunhada por Gabriel Ardant para designar “os processos pelos
quais [os estados] adquirem e alocam os meios para levar a cabo suas atividades principais” (TILLY,
1990: 54). Seu emprego foi difundido por Charles Tilly (1990: 54-58)
106
209
hegemônica, ao retirar as demais alternativas do horizonte de possíveis, também
subtrai delas a dimensão utópica de ordenamento social. Por consequência, o
imaginário de futuro fica colonizado pelo progressismo liberal, que concebe quaisquer
coletividades que não a empresa privada e o estado como um atavismo do antigo
regime, um corporativismo a ser extirpado.
5.5. O desencaixe como processo autoestimulante
A chamada “conquista do deserto” pelo estado argentino foi uma investida
violenta contra as formas autônomas de vida na Patagônia, das quais o cacique
Inacayal fora um exemplo sem dúvida notável. Ao contrário do que esperavam os
cientistas da época, não se tratava de formas arcaicas congeladas no tempo. Os povos
indígenas americanos eram, em maior ou menor grau, desdobramento das sociedades
de conquista que se implantaram no continente, com seus intercâmbios e suas
violências. Na Patagônia, os povos nativos desfrutavam de autonomia para regular
tanto seus rituais políticos e suas formas de dominação, como o lugar das trocas
materiais na vida coletiva. Os imensos espaços de movimento humano tinham
enraizados pontos de referência para o encontro ecumênico e o intercâmbio físico,
como a ilha de Choel Choele e o entorno do forte bourbônico de Carmen de
Patagones. Ao se estudar a formação dos estados modernos na América Latina – ou a
expansão do sistema interestatal capitalista na região – é necessário considerar o
contínuo e agonístico embate contra suas alternativas. Só assim é possível substituir a
imagem do “deserto” pela de uma disputa política propriamente dita, em que a
expansão desses estados não se faz mediante a régua normativa do analista, mas
contra os grupos sociais que efetivamente resistiram ao desenraizamento de seu
ambiente cultural.
O argumento desenvolvido até aqui é que, independente das ambições mais
despóticas que nutriram um líder ou uma lei, a ultrapassagem efetiva das autonomias
locais pelo estado pós-colonial dependia, no longo prazo, da reprodução ampliada do
ciclo extrativo-coercitivo. Em outras palavras, isso significa mobilizar dinheiro,
pessoas, armas e materiais para o governo, garantir com isso as condições sociais para
essa extração, de forma regular. Em segundo lugar, a reprodução ampliada do ciclo
210
extrativo-coercitivo foi impulsionada pelas oportunidades fiscais do ciclo sistêmico de
acumulação cujo núcleo era a Inglaterra industrial.
Se bem entendida, essa proposição não se confunde com um “choque externo”.
O capitalismo industrial não emanava do centro para o resto do mundo, mas era
gestado pela nova divisão internacional do trabalho que organizava nessa escala
mundial. Conforme esta se desenvolvia, floresciam na paisagem latino-americana
segmentos de lucros extraordinários, associados às cadeias de valor da expansão
industrial. É pelo estreitamento de sua relação com esses segmentos que os estados
pós-coloniais conseguem, de forma geral, desatar o nó fiscal criado pelas
independências, contornando a resistência social pelo caráter indireto da extração.
O argumento se completa quando percebemos que esses estados não foram
meros parasitas acoplados às aduanas. Eles foram ativos responsáveis pelo
esgarçamento do escopo social do sistema econômico que lhe auferia as principais
receitas. Enquanto o comércio exterior dependia da extensão interior dos mercados, a
mercantilização como política de estado empurrava suas bordas, desarticulando
mercados locais e circuitos independentes de autoabastecimento e reciprocidade. Ao
revolver a vida material à condição de mercadoria desenraizada, os estados
pós-coloniais desobstruíam as vias para a integração com o mercado mundial. Quanto
mais intensa ela fosse, em tese, maiores seriam as oportunidades fiscais para quem
controla seus gargalos de circulação. Forma-se, nesse sentido, um terreno possível de
ganho recíproco entre elites econômicas ligadas à especialização produtiva e elites
políticas ligadas ao controle dos meios de violência (ver Gráfico 5.1).
O crescimento material do aparato e o reformismo liberal não são percebidos
como concomitantes e independentes, mas como dois processos encadeados, cuja
dinâmica tende a reforçar-se mutuamente. De certa forma, a armadilha do argumento
do estado como o deus ex machina do mercado autorregulado no século XIX é tomar
como dada a própria existência desse estado como um aparato administrativo capaz de
reordenar a sociedade com sucesso. De fato, as capacidades para fazê-lo, do
conhecimento especializado ao controle sobre a violência, estavam sendo acumuladas
em movimento, legitimadas pelo horizonte de progresso social dado pelo
desenvolvimento da economia de mercado. A utopia liberal só é bem compreendida
quando se tem em conta a ambiguidade entre seu apelo universalista e o interesse
imediato de quem a promove. Uma economia monetarizada é uma economia
211
tributável, e uma economia tributável é um espaço politicamente controlado; ora, um
espaço politicamente controlado é onde prevalece os códigos mínimos do
constitucionalismo liberal; logo, nesse espaço a vida material é regida pelo intercurso
entre indivíduos e mercadorias, o que significa uma economia monetarizada e
tributável.
O arranque desse mecanismo explica o estreitamento do horizonte de
possibilidades após a conjunção crítica das crises imperiais. Na periferia do ciclo
hegemônico britânico, as fronteiras e linguagens da ordem e seu contrário vão se
sedimentando ao redor da alimentação recíproca entre estado liberal e economia de
mercado. O constitucionalismo, outrora emblema da soberania popular, foi
desbotando como normas de civilidade em uma sociedade de contratos. O federalismo
perdeu após a década de 1850 a polissemia com que abrigara as reivindicações
autônomicas de pueblos e províncias. Neutralizado seu potencial de ativação popular,
o reformismo liberal se convertia na possibilidade de fabricar mercadorias fictícias
pela lei e pela força, bem como nas condições para aplainar sua livre circulação no
mercado por códigos civis e comerciais, ferrovias, unificação tributária, tribunais e
polícias, etc. A expansão do mercado retroalimentava a base fiscal sobre a qual esses
estados se sustentavam.
Gráfico 5.1. Reciprocidade causal na expansão de estados e mercados
Fonte: elaboração própria.
212
Podemos entender o desencaixe da política de seus contextos locais como um
subproduto tendencial da operação continuada do mecanismo descrito no Gráfico 5.1.
Ali observamos que o fortalecimento do aparato de estado é um desdobramento das
oportunidades de extração resultantes do fluxo de comércio exterior e de sua
contrapartida financeira. Esse fortalecimento, por sua vez, potencializa as políticas de
mercantilização social, que fabricam a terra, o trabalho e o dinheiro como insumos da
produção orientada para o mercado.
Agora, no Gráfico 5.2, o fortalecimento do aparato de estado é colocado no
contexto do conflito com soberanias e rotinas políticas territorializadas. Podemos
refinar a ideia do desencaixe da política do seus contextos locais a partir de uma
espiral entre (1) o estado adquirir maiores capacidades materiais, (2) o aumento do
escopo de interferência da ação estatal na vida dos governados, ou das mediações
estatais no cotidiano, (3) a disrupção, mais ou menos violenta, nas autonomias locais,
provinciais ou corporativas pela autoridade central, e (4) o direcionamento das
pressões sociais e da ação coletiva ao aparato de estado, o qual cria (5) os pretextos e
contextos para o aumento de suas capacidades materiais, para barganhar e reprimir o
dissenso. Esse circuito está representado no Gráfico 5.2. O motor dessa espiral de
desencaixe é a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, e seu combustível,
as oportunidades fiscais do ciclo sistêmico de acumulação. Ao longo do tempo, o
resultado do processo é uma tendência à nacionalização da disputa política, com
consequências imprevisíveis.
Gráfico 5.2. Desencaixe da vida política como resultado tendencial
Fonte: elaboração própria.
213
6. OS SINAIS DO OUTONO: PROGRESSO E DESDEMOCRATIZAÇÃO NA
FINANCEIRIZAÇÃO DA HEGEMONIA BRITÂNICA (1873-1931)
“Já nos últimos anos liquidamos muitas ilusões sobre nossa aparente prosperidade e
os pretensos elementos dela: vimos ao que serve e ao que pode servir o guano, o
salitre, as ferrovias, os bancos, a imigração, as grandes fazendas e as empresas, e
estamos vendo que, apesar de tantos telégrafos e barcos a vapor, e um movimento
comercial imenso, um mal-estar novo, profundo, inexplicável nos devora, nos
desconcerta, nos desanima e nos ameaça de um porvir ainda mais triste; e esta
situação nenhuma revolta faria mais do que agravá-la e piorá-la, porque ela não vem
da natureza dos homens, mas das coisas, não deriva dos homens do presente, mas dos
homens do passado, ou seja, de todo o ocorrido nos últimos trinta anos, e dos erros
econômicos que formaram nosso modo de ser e de viver”
Juan Copello e Luis Petriconi107
Juan Copello e Luis Petriconi, médicos italianos que fizeram do Peru sua
“pátria adotiva”, produziram em 1876 uma série de artigos polêmicos em El Nacional
sobre a crise vivida no país. Defendiam que a independência econômica do país,
“seguramente tão importante e tão difícil como sua independência política”, não seria
atingida enquanto não se rompesse a “prosperidade fictícia artificial” oriunda das
exportações de guano, fertilizante natural sedimentado na costa sudoeste da América
do Sul pela corrente de Humboldt. Por ser leve e solúvel, o guano se tornou um
fertilizante muito cobiçado na agricultura europeia e estadunidense, então pressionada
pelo aumento demográfico e pela urbanização. Copello chegou ao Peru em 1846,
mesmo ano da extinção das Leis do Trigo inglesas, que protegiam a agricultura
britânica do mercado mundial; em sua estadia, portanto, o médico da Ligúria fora
testemunha ocular da decolagem, apogeu e colapso desse ciclo exportador.
Desde 1841, quando o primeiro carregamento atravessara o atlântico, o estado
peruano já impusera seu monopólio sobre os depósitos, distribuindo vultosos
contratos de exploração comissionados a grandes comerciantes locais (Domingo Elías,
irmãos Barreda, Andrés Alvarez), que por sua vez se associavam a casa mercantis
Extraído de Copello e Petriconi (1971: 08). Cheguei aos “Estudios sobre la independencia
económica de Peru” através da obra de Gregorio Weinberg (1988), que os menciona especificamente
na página 62. A reedição de 1971 da Biblioteca Peruana de História Econômica conta com um precioso
prefácio do ilustre historiador Jorge Basadre (1971), que ajuda a contextualizar a obra na “literatura de
crise” do Peru pré-Guerra do Pacífico. Os autores dos Estudios reivindicam o estudo da “Economia
Política no sentido do imortal Sismondi”, sinalizando de saída “o fomento da indústria nacional como o
único meio de salvar pouco a pouco a crise comercial que atravessamos, de resolver o problema de sua
independência econômica” (COPELLO & PETRICONI, 1971: 03).
107
214
internacionais (Anthony Gibbs & Sons)108. Enquanto isso, o mercado financeiro
peruano desabrocha com os títulos secundários do guano e com a dívida pública,
consolidada na década de 1850 graças às novas receitas fiscais. A dependência do
orçamento peruano às rendas de monopólio se tornou tão marcante que, em 1855,
quando as exportações peruanas superaram 500 mil toneladas, um informe ministerial
admoestava: “desgraçada a República se, chegado o momento de sua desaparição [do
guano], não encontra já arraigado nos costumes o meio de fazer frente aos gastos
nacionais”109.
A crise financeira mundial de 1873 foi devastadora para a economia peruana.
O centro inicial de irradiação dos maus tempos foram os bancos alemães, fragilizados
pela incerteza da indenização de guerra francesa e pela ressaca do boom das
ferrovias110. Como se tratava à época de um sistema bancário bastante descentralizado,
o contágio da crise foi rápido na Alemanha e na Áustria, e as falências dos bancos
independentes logo criaram uma crise de solvência internacional. Para o Peru, a
rolagem da dívida externa já era um problema antes de 1873, em função dos gastos
com a guerra de 1864-1866 contra a Espanha.
Em 1869 assinou-se o chamado Contrato Dreyfus, pelo qual o governo de José
Balta entregava uma cota de exportação de guano à empresa francesa de Auguste
Dreyfus em troca do pagamento do serviço da dívida externa e de adiantamentos. Até
o cumprimento dessa cota, o governo ficava impedido de consignar novas exportações
ao mercado europeu e de suas colônias. Graças à cobertura de sua dívida, o governo
de Balta contraiu novos empréstimos para um ambicioso plano ferroviário, além de
sediar uma suntuosa exposição internacional em 1872. Quando a crise de 1873 abalou
o sistema financeiro internacional, o Peru não só tinha a maior dívida externa da
108
Rory Miller e Robert Glenhill (2006) aplicaram a abordagem das cadeias de produção (commodity
chains) à indústria dos nitratos (guano e salitre), o que é de grande valia para discernir as diferentes
conformações entre estado, capital estrangeiro e firmas locais em cada situação. Há inclusive um
esquema ilustrativo para a conformação da indústria do guano no Peru c.1855 e a centralidade da
Anthony Gibbs & Sons para a propulsão desse mercado (MILLER & GLENHILL, 2006: 232)
109
O relatório é citado no prefácio de Jorge Basadre aos Estudios (BASADRE, 1971: ii).
O longo momento de deflação da economia europeia entre 1873 e 1896 já foi objeto de inúmeras
análises, embora em geral debruçadas unicamente sobre o centro do sistema. Há controvérsia a respeito
da designação de “Longa Depressão” em função do enorme desenvolvimento industrial do período.
Arrighi (1997: cap. 1) ajuda a colocar o período em perspectiva, na fase B do segundo ciclo de
Kondratieff. Hirst e Thompson (2001: especialmente cap. 2 e 3), além de boa história econômica, usam
o período 1870-1914 para escrutinar o debate sobre globalização. Para um esclarecimento geral sobre a
“longa depressão”, são recomendáveis os trabalhos de Michel Beaud (1994), Eric Hobsbawm (1989;
2003) e, de forma mais geral, Giovanni Arrighi (2009: cap. 3).
110
215
América Latina e outros compromissos futuro empenhados, mas também uma
saturação de seu principal trunfo exportador. Após décadas de exploração intensiva, a
disponibilidade e a qualidade do produto caíam enquanto novos concorrentes, o salitre
e os fertilizantes sintéticos, lhe roubavam compradores.
O ápice da crise internacional correspondeu às moratórias consecutivas do
Império Otomano (1875), Egito (1875) e Peru (1876), afora outros quinze países
periféricos que foram levados a suspender os pagamentos (MARICHAL, 1989: 110).
Observemos rapidamente a situação do Egito, antes de voltar ao desenlace da crise
peruana. Desde o longo governo de Mehmet Ali, de 1805 a 1849, a província usufruía
uma independência de facto com relação à Sublime Porta, lançando-se em um
audacioso projeto de obras públicas, reorganização da propriedade agrária e
modernização militar que o tornaria modelo de reforma para seus vizinhos, do Reino
da Abissínia a outros vassalos otomanos no Magreb (BAYLY, 2004: 261). Com a
drenagem das planícies do baixo Nilo e um sistema de canais e represas para irrigação,
a área cultivável aumentou 60% entre 1813 e 1877 (DARWIN, 2015: 333). A
produção de grãos para o Império e para o sul da Europa foi suplantada pela
exportação intensiva de algodão para a industrialização de Inglaterra e França. Em
meados do século, a prosperidade egípcia passou a se projetar sobre a construção do
Canal de Suez, que poria o país no controle da principal rota comercial do mundo e
selaria sua independência com relação ao Império.
A abertura do canal em 1869 chegou tarde demais para que seus benefícios
pudessem compensar seus custos, e a dívida contraída para sua construção foi envolta
pelo redemoinho financeiro de 1873-1876. O que fora desenhado como um consórcio
com participação de capital britânico se tornou, com a venda emergencial da
participação egípcia no Canal em 1875, um empreendimento ultramarino controlado
em Londres. Na década de 1870, o governo do Egito dependia tanto ou mais das
exportações de algodão quanto o do Peru, dos fertilizantes; a retomada da produção
algodoeira no Sul dos EUA, em “reconstrução” após a Guerra Civil, comprometeu as
receitas egípcias. Nesse contexto, a garantia do pagamento das dívidas se tornou uma
porta aberta à ingerência externa: os credores constituíram em 1876 um órgão
colegiado dentro do governo egípcio com poderes extraordinários para supervisionar
as finanças, enquanto cresciam na população local apelos nacionalistas de um “Egito
216
para os egípcios!” (BAYLY, 2004: 207). A pressão de ambos os lados acabou
depondo em 1879 o último dos herdeiros do projeto de Mehmet Ali, Ismail Paxa.
Em um momento de fragilidade do Império Otomano e ingerência massiva de
funcionários e capitalistas europeus no Egito, a deposição de Ismail gestou entre os
militares um movimento nacionalista liderado pelo coronel Ahmed Urabi, que abriu
confrontação com o novo quediva (vice-rei) em 1881. O fortalecimento dos
nacionalistas egípcios, por sua vez, espalhou pânico no Império Britânico: só o The
Times publica mais de 700 reportagens sobre a crise egípcia entre 1881-1882
(DARWIN, 2015: 353). Na geopolítica imperial britânica, o controle do Canal de
Suez era o controle da Índia, cuja imensa revolta anticolonial de 1855-1857 ainda
estava na memória. Em setembro de 1882, o governo de Gladstone procede a invasão
total do Egito, que resulta em um protetorado que duraria mais de setenta anos. A
iniciativa britânica de converter a crise egípcia em ocupação efetiva causará comoção
internacional e será um dos precedentes decisivos para a convocação, pela Alemanha
de Bismarck, da Conferência de Berlim (1884-1885), responsável pela “partilha da
África”111.
Em agosto de 1875, o Banco Nacional do Peru, entidade privada mas com
fortes conexões governamentais, declara-se insolvente. Com a maior dívida externa da
região, o Peru fora definitivamente arrastado para o centro da crise: os pagamentos
foram suspensos pelo governo em janeiro de 1876, quando os papéis dos empréstimos
de 1870 e 1872 já eram negociadas a menos de 20% de seu valor de face112. Para fazer
frente à constrição fiscal, o governo peruano tenta nacionalizar o emergente setor de
nitratos em 1876, além de firmar outro acordo (Pardo-Raphael) de concessão de
monopólio do guano em troca do pagamento da dívida externa. O regime de
exploração dos nitratos, em que o monopólio estatal no Peru se opunha ao regime de
propriedade privada impulsionado no Chile, esteve na raiz das escaramuças que
terminaram na Guerra do Pacífico (1879-1883). Com sólidas relações com o capital
Segundo Godfrey Uzoigwe (2010), os antecedentes imediatos da convocação da Conferência de
Berlim teriam sido, em sequência, o interesse pelo Congo do rei Leopoldo I da Bélgica, coroado em
1865, expresso pela conferência geográfica de Bruxelas (1876) e a criação do chamado Estado Livre do
Congo no ano seguinte; as expedições coloniais portuguesas na África Austral; e, finalmente, o
expansionismo imperial francês no Magreb e inglês no Egito na década de 1880.
111
112
Marichal (1989: tabela 6) tabulou a série histórica das cotações dos títulos peruanos, o que ajuda a
visualizar a quebra abrupta de seu valor na crise. Para se ter um parâmetro de comparação, na crise
financeira grega pós-2010 o valor de transação dos títulos da dívida pública grega se manteve ao redor
de 70% do valor de face, graças à intervenção do Banco Central Europeu e do FMI para salvar os
bancos europeus. Ver Toussaint, Eric. El BCE, como fondo buitre. Público (Espanha), 18/10/2017.
217
estrangeiro, a elite chilena tinha especial receio com relação às “reivindicações dos
credores do governo peruano, incluindo os detentores de certificados de nitratos, onde
um mercado secundário se desenvolveu, e a ameaça de intervenção estrangeira para
respaldá-los” (MILLER & GREENHILL, 2006: 245; grifo adicionado). O dramático
enredo egípcio ecoava no Pacífico sul.
Tendo vencido a guerra e se assenhorado das províncias salitreiras, o governo
chileno permite que os detentores dos títulos assumam a propriedade dos campos de
produção, abrindo um novo campo ao capital estrangeiro e fechando outro às
marinhas de guerra. Por volta de 1900, aproximadamente metade da arrecadação
chilena era oriunda de impostos sobre os nitratos (CENTENO, 2002: 135). Sem sua
receita de monopólio, o Peru retoma o pagamento da dívida externa somente em 1886,
por meio de um arranjo com um consórcio de capitalistas britânicos, em contrapartida
do qual se transferia os direitos de exploração do guano, dos depósitos minerais e das
ferrovias Sul e Central do país (CORTES-CONDE, 2008: 213).
Não há dúvida que os contextos e as trajetórias históricas do Peru e do Egito
são diversos em inúmeros aspectos. O propósito dessa excursão inicial é trazer à luz,
justamente pela aproximação dessas experiências tão distantes, uma transformação
mais ampla em curso no sistema mundial a partir dos anos 1870, pela qual se opera
uma transferência relativa das pressões competitivas do centro para a periferia. Sem
dúvida, os exemplos acima mostraram um ponto extremo da vulnerabilidade causada
pela conjugação entre desequilíbrio comercial, endividamento externo e ausência de
dissuasão militar. Com o desenvolvimento das finanças mundiais – com sede em
Londres e unidade do padrão-ouro –, o endividamento acumulado na periferia durante
o boom econômico de 1846-1873 criou uma delicada situação em que solvência e
soberania se tornaram virtualmente sinônimos. A soberania como “hipocrisia
organizada” foi sendo esgarçada para acomodar interesses imperiais concorrentes –
cada intervenção reduzia os custos políticos da seguinte, fazendo da exceção regra.
Como mostrou a ocupação britânica no Egito, a iniciativa colonial era recompensada
enquanto que o respeito à soberania se revelava inócuo. Dessa forma, a rivalidade
interestatal no centro do sistema foi novamente extrapolada como competição colonial
no resto do mundo.
O desfecho imperialista do “longo século XIX” é a face mais visível de um
novo momento na periferia do sistema mundial, em que a janela de oportunidade do
218
“liberalismo mundial” vai se estreitando a cada nova crise113 (1873, 1896, 1919,
1929). Isso se realiza na América Latina de forma certamente heterogênea, e não se
pode generalizar a partir do caso da estrondosa quebra do Peru em 1876; no Chile,
Brasil ou na Argentina, os pagamentos da dívida foram mantidos ao preço de
austeridade e recessão (FILOMENO, 2006). Ainda assim, olhando o período
1873-1930 como um todo, o enxugamento pró-cíclico das oportunidades fiscais
ligadas às exportações primárias foi um combustível de instabilidade política.
O argumento central dessa seção é que, pelas pressões verticais do sistema e
por novas formas de contestação social vindas de baixo, há uma tendência de
enrijecimento das linhas de exclusão política, com o adensamento dos pactos entre
elites forjado pelo empuxo exportador. Conceitualmente, defende-se que o
desenvolvimento dessa coesão elites não decorre de uma identidade de classe
pré-formada, como é comum nas alusões à “oligarquia”, mas que ela se forma por
acordos contingentes, amparados no acesso das elites regionais ao aparato de estado e
no desencaixe de autonomias locais. Em termos do cálculo do dissenso, a distribuição
de benefícios através do aparato de estado foi um cimento para a coesão das camadas
dirigentes, enquanto o efeito regressivo da tributação indireta continuaria dissipando
socialmente o ônus da manutenção desse aparato.
Desse argumento geral derivam três processos correlatos para a construção da
ordem política, mas que apontam em direções diferentes: primeiro, como
sobrevivência entrincheirada do passado, as elites políticas abraçam-se como um
“anel burocrático” aos setores exportadores e às suas ramificações urbanas,
suportando-os e suportando-se neles para manter uma reprodução ampliada do ciclo
extrativo-coercitivo. Segundo, como indicação incipiente do futuro, ocorre a
germinação de novas subjetividades políticas por fora dessa ordem entrincheirada, o
que é visível sobretudo pela ativação de operários sindicalizados, de depauperados
urbanos, de organizações de mulheres e mesmo de um corpo de intelectuais críticos,
muitos com formação universitária. Terceiro, como uma estratégia política realizada
no presente, há uma intensificação de mecanismos ideológicos e institucionais de
restrição da comunidade política, endurecendo exclusões com base na raça, na
Victor Bulmer-Thomas (2003: cap. 3-6) desenvolve precisamente o argumento de que o
crescimento econômico por especialização em exportações primárias teria uma espécie de janela
histórica de sucesso, que não fora igualmente aproveitada pelas economias latino-americanas, por
diversos fatores, inclusive de caráter aleatório (“loteria de commodities”).
113
219
afiliação política, no gênero, na classe, no letramento formal, na língua falada. As
elites cercam uma arena política para elas próprias, escudando-se em teorias sociais
demofóbicas então correntes e dominantes, como o positivismo, o racismo, a eugenia,
o darwinismo social e suas sinergias com o pensamento liberal.
O resultado desses três processos é uma tendência à desdemocratização da
ordem como forma de autodefesa dos estados pós-coloniais latino-americanos,
fragilizados por uma turbulência mundial que não podiam controlar. O meio século
que segue a crise de 1873 compreende o desgaste e colapso do ciclo hegemônico
britânico, enquanto que, em suas fissuras, despontam alternativas de governabilidade
para o que virá a ser um novo ciclo sistêmico no “longo século XX”. Sabidamente, o
terremoto político generalizado na América Latina entre 1910 e 1945 será uma
espécie de ebulição das referências, utopias e atores que permaneceram represados
sob o liberalismo de elites proprietárias do século XIX. A partir da década de 1910, a
contraposição aos efeitos sociais da regulação de mercado se tornaria enfim mais
plural e poderosa que os apóstolos em sua defesa.
6.1. A crise de 1873 como inflexão mundial
Da teoria das transições hegemônicas, sabemos que a janela histórica de ganhos
generalizados é uma situação instável, uma vez que produz as contratendências para
sua própria erosão. Essas contratendências têm duas formas principais: novos
concorrentes e contestação social (ver Gráfico 2.1). Os novos concorrentes se inserem
no padrão de acumulação do centro, aproveitando-se dos “bens públicos
internacionais” da ordem liberal ancorada na liderança britânica, mas replicando
internamente a industrialização que é vista como sustentáculo de seu poder
hegemônico. Assim, em ondas sucessivas a partir de 1870114, Estados Unidos,
Alemanha, Japão e, em menor escala, Itália e Rússia, acirram a concorrência
interestatal e intercapitalista no “núcleo orgânico” do sistema.
O acesso a crédito barato em Londres, o regime livre-cambista pós-1846, a
libra como moeda internacional e a transferência de tecnologia, por meio das
exportações britânicas de bens de capital, criariam um ambiente favorável para
No caso de Estados Unidos e Prússia, o deslanchar da industrialização é seguramente anterior à
década de 1870, mas seus efeitos sobre a economia internacional, pelo acirramento da competição
intercapitalista, são sentidos especialmente após a crise de 1873.
114
220
estratégias territorializadas de industrialização fora da Inglaterra. Em poucas palavras,
as condições de governabilidade hegemônica são aproveitadas contra a própria
potência hegemônica, minando assim a ordem cosmopolita nela centrada. Em termos
de geografia econômica, os novos centros industriais insinuam linhas de
regionalização comercial, como a que se delineia ao redor dos EUA (na América do
Norte e orla do Caribe), do Japão (na chamada zona de co-prosperidade) ou da
Alemanha (na Europa continental)115. Quando enfim o ciclo hegemônico britânico
colapsa, essa regionalização demarca importantes linhas de fratura da economia
mundial em desintegração.
Para a política internacional, a emergência de potências desafiantes à pax
britannica tem um aspecto distintivo: uma espécie de “degrau estratégico” formado
pela capacidade de conduzir a industrialização da guerra, em terra e mar, a partir de
uma base industrial de defesa territorializada. Com a produção em escala de
armamento e munição padronizados, com o advento das peças intercambiáveis do
“sistema americano de manufaturas”, com a sofisticação dos navios de guerra a vapor
(encouraçados) e o emprego de ferrovias para a logística militar, o estatuto de grande
potência passou a exigir não simplesmente um exército numeroso e disciplinado, mas
uma infraestrutura industrial e tecnológica para manter o esforço de guerra116.
Historicamente, esse degrau estratégico vai se solidificando nas vitórias da aliança
anglo-francesa na Criméia (1855-1856), da União nos EUA (1860-1865), da Prússia
bismarckiana contra Áustria (1866) e França (1870), do Japão contra a Rússia
(1904-1905). Com o desenlace desses conflitos, era nítido que novas credenciais
estavam sendo exigidas para aceder ao seleto clube das grandes potências.
Esse degrau estratégico tinha consequências políticas notáveis. De saída, a
sustentação dessa base industrial de defesa, que englobava transporte, comunicação,
produção em massa e inovação tecnológica em sigilo, foi um vetor de territorialização
da competição intercapitalista, de entrelaçamento, por assim dizer, entre estadistas e
capitalistas sob um imaginário nacional (MANN, 1992: cap. 4-5). A economia
Como diz Platt (1972: 226), “era inescapável que as indústrias de aço da Alemanha e dos Estados
Unidos, baseadas em um mercado interno forte e protegido, haveriam de tomar os mercados vizinhos
assim que atingissem o nível de desenvolvimento em que seus custos de produção fossem comparáveis
aos britânicos”. Antes da Primeira Guerra, a Alemanha já detinha 62,8% do mercado de importações da
Europa Ocidental, restando 16,6% para o Reino Unido e 3,7% para os EUA. Na América, por outro
lado, os EUA detinham 85,7% do mercado canadense e 84,5% no México, Cuba e Panamá.
115
Sobre o tema da industrialização da guerra, ver Buzan e Lawson (2013), Giddens (1989; 1991),
Headrick (2011) e sobretudo McNeill (1982).
116
221
nacional integrada estava se tornando um pilar logístico da guerra de ponta. Essa
territorialização produziu, nas palavras de O’Neill (1983), um “keynesianismo antes
de Keynes” ao coligar o investimento militar, o estímulo econômico contracíclico e a
proteção ao emprego, atraindo os sindicatos como grupo de pressão por
contramercados para a industrialização da guerra. Em suma, a preparação militar
rendia lucros e empregos para quem se mantivesse em ação na fronteira tecnológica.
Inevitavelmente, por sua natureza, esses contramercados agravariam o “dilema de
segurança” no centro do sistema, especialmente na Europa.
A segunda contratendência gerada pelo próprio sucesso do ciclo de acumulação
é a ativação de novas formas de contestação social, que o pressionam pela relação
capital-trabalho. Seguramente, já havia luta sindical e operária em curso desde o
começo do século, especialmente na Inglaterra, mas é após a década de 1870 que a
organização dos trabalhadores se torna massiva no capitalismo central, interferindo
diretamente no conflito distributivo (BEAUD, 1994: cap. 4; SILVER, 2005). Essa
organização logra conquistas cumulativas na proteção dos trabalhadores contra as
pressões competitivas do mercado de trabalho, como a regulamentação da jornada de
trabalho, da exploração infantil ou do direito de greve – para usar apenas alguns
exemplos que afetam diretamente a margem de extração de excedente do trabalho
assalariado. O padrão de acumulação industrial encontraria progressivamente um
limite político pela resistência de classe, de onde emerge uma delicada barganha por
salários reais, representação política e proteção social.
Frente a essas duas contratendências, que constringem a acumulação produtiva,
a liderança britânica se volta às finanças, onde reina soberana: Londres e a libra
esterlina passam a orquestrar o capitalismo cosmopolita via padrão-ouro, enquanto a
vantagem na indústria está sendo disputada encarniçadamente por formas aspirantes
de capitalismo dirigido117. Lembrando o argumento de Arrighi (2009), após
desabrochar na esfera produtiva e galgar a supremacia comercial, o ciclo hegemônico
se financeiriza em sua fase terminal, fazendo da própria volatilidade do capital uma
condição inicial para o arranque de um novo ciclo (ver seção 2.3).
Vide Hobsbawm (1989: 42): “A concorrência se dava não só entre empresas, mas também entre
nações. Daqui em diante, os leitores britânicos se horrorizariam com os relatos jornalísticos da invasão
econômica alemã – Made in Germany (1896), de E. E. Williams, ou American Invaders (1902), de
Fred A. Mackenzie”.
117
222
A crise mundial de 1873 marca a inflexão do momento de expansão sistêmica
ou governabilidade hegemônica para a tendência declinante de financeirização do
“longo século XIX”. Grosso modo, se a expansão entre 1846 e 1873 se assentou na
conformação de complementaridades na divisão internacional do trabalho, sua
deterioração se manifesta como incremento da pressão competitiva. Nesse contexto, é
fundamental perceber como os mecanismos de proteção a salários e lucros no núcleo
orgânico operam uma transferência relativa dessas pressões competitivas para a
periferia do sistema. A proteção do trabalho, como dito antes, é obtida sobretudo
através da organização sindical, que respalda um movimento de elevação dos salários
reais dos trabalhadores europeus nas décadas após 1873. A nível sistêmico, isso foi
possível graças ao barateamento dos bens-salário e à transferência unilateral de força
de trabalho excedente na Europa, através da migração em massa.
Enquanto isso, verifica-se nos países centrais uma tendência sem precedentes
de deslocamento do gasto público para fins não-militares, o que franqueava à classe
trabalhadora uma interação não meramente repressiva com a autoridade instituída. Em
um momento de ampliação do sufrágio no centro, adquirem relevância orçamentos
vinculados à educação, aos transportes e telégrafos, às aposentadorias e pensões118
(MANN, 1993: cap. 14). Um dos agudos intérpretes da época, Vladimir Lênin ligaria
em 1916 o surgimento do capital monopolista à “possibilidade econômica de subornar
as camadas superiores do proletariado” a fim de induzi-los ao conformismo na luta de
classes (LENIN, 2011: 238).
A tendência à oligopolização do capital é, por sua vez, um mecanismo central
de proteção dos lucros no centro. Através da progressiva integração vertical e/ou
horizontal das firmas surge um novo ambiente empresarial, burocratizado na forma de
corporações, trusts e cartéis. Ao contrário das empresas familiares que catapultaram a
industrialização britânica em um ambiente concorrencial, a forma corporativa
Michael Mann (1993) explorou extensivamente a estrutura orçamentária dos países centrais no
período (França, Reino Unido, Estados Unidos, Prússia/Alemanha e Áustria-Hungria). A partir da
comparação dos dados sugere o seguinte: “Esse aumento percentual nos gastos civis – de cerca de 25%
nos anos 1760 para cerca de 75% nos 1900 – indica uma segunda mudança profunda no escopo do
estado moderno, essa sem nenhum paralelo na história. Esse crescimento foi bastante consistente de
meados do século XIX em diante. (...) emergiram políticas para a saúde pública, iluminação pública,
saneamento, padrões mínimos de moradia, assistência médica rudimentar, uma força policial, a
supervisão das prisões e das Leis dos Pobres, a regulação das horas e condições de trabalho, e a
educação primária e eventualmente secundária para as crianças. Comunicações eficientes, boa saúde
pública, e alfabetização em massa eram vistos como funcionais para o capitalismo, o poder nacional e o
desenvolvimento humano em geral” (MANN, 1993: 482).
118
223
emergente nos Estados Unidos, na Alemanha e no Japão era talhada para aproveitar
ganhos de escala, incorporar tecnologia e aproveitar-se de conexões privilegiadas com
o poder político (ARRIGHI, BARR & HISAEDA, 2001). Os métodos de trabalho
começam a ser repensados e adequados à produção em massa mesmo antes da
publicação do manual de Taylor ou do primeiro Ford T sair da fábrica em Detroit
(NORCLIFFE, 1997)119. A possibilidade de proteger os lucros através da
oligopolização e da cartelização era, sem dúvida, análoga em seus efeitos à
sindicalização dos trabalhadores. Para ambos, a reemergência do protecionismo
aduaneiro após a crise de 1873, inicialmente na Europa Central e difundindo-se nas
décadas seguintes, representava uma estratégia interclassista de contenção do
excedente em chave territorial (WALLERSTEIN, 2011: cap. 3).
Nesse contexto, a transferência relativa das pressões competitivas para a
periferia estreita os ganhos relativos de sua especialização produtiva. Graças ao
trabalho da primeira geração da CEPAL, uma forma muito conhecida dessa
transferência é a reversão dos termos de troca entre produtos primários e industriais120.
Até 1870, como vimos anteriormente, os termos de troca foram genericamente
favoráveis aos produtos primários no mercado mundial, basicamente pelo
barateamento dos maquinofaturados (Tabelas 6.1 e 6.2). Essa situação se reverte
tendencialmente no período 1870-1930, como o trabalho de Prebisch (1949), não
obstante suas limitações empíricas, pôs em evidência. Na formulação original de
Prebisch, além da distribuição desigual do progresso técnico, são exatamente a
oligopolização do capital e a sindicalização do trabalho no centro que resguardam, no
conflito
distributivo
internacional,
o
poder
de
compra
dos
produtos
É importante observar que a experiência de Taylor na indústria siderúrgica norte-americana na
década de 1880 já apresenta diversos aspectos de sua “administração científica”, que chega na Europa
na década seguinte. O desenvolvimento de um “sistema norte-americano de manufaturas” após a
Guerra Civil (O’NEILL, 1982) indica componentes do que virá a ser a produção padronizada em larga
escala. Como disse Hobsbawm, “Assim como a concentração econômica, a ‘administração científica’
(...) foi filha da Grande Depressão (HOBSBAWM, 1989: 44)
119
Há diversas formas de inferir os termos de troca do comércio internacional, em função de como se
contabiliza o valor das importações (FOB ou CIF, preço no porto de saída ou no de entrada) ou as
diferenças de poder de compra pelo câmbio. O que parece certo é que, ao contrário do que propunha
Prebisch (1949), não se pode inferir um diagnóstico comum de deterioração secular dos termos de troca
para o continente como um todo, ou mesmo para os produtos agrícolas em geral (BÉRTOLA &
OCAMPO, 2010: cap. 3; BULMER-THOMAS, 2003: cap. 3). O que parece mais seguro afirmar é há
um estancamento da tendência positiva da primeira metade do século,
120
224
maquinofaturados121. No momento de crise, essa aglutinação do capital e do trabalho
acolchoaria a flutuação para baixo dos preços no centro, o que na periferia ocorreria
em toda a extensão da autorregulação de mercado. Assim, as periferias
primário-exportadoras compensariam essa deterioração com a elevação das
quantidades exportadas, com isso saturando ainda mais a competição nos mercados
que participavam (para a evolução das exportações por país, ver Tabela 6.3).
Em certa medida, ocorria nas periferias uma contratendência análoga à que, no
centro do sistema, as industrializações tardias produziram ao perseguir a posição
inglesa de “fábrica do mundo”. Com o barateamento do transporte, o imperialismo e a
maior circulação de capitais, novas províncias, regiões, países e colônias estavam
sendo mobilizadas para o mercado mundial. Ao contrário dos centros industriais,
pouco ou nada havia para contrarrestar os efeitos dessa oferta sobre os preços. As
tendências de oscilação e deterioração dos termos de troca obrigava a uma “fuga para
frente”. Enquanto a industrialização/urbanização na Europa e nos EUA mantivessem
a demanda por primários em expansão122, os lucros ainda podiam crescer em termos
absolutos123, e com eles se fez a belle époque dos grandes teatros, dos passeios
públicos, dos cafés e dos clubes literários. Essa ampliação da oferta de bens primários,
que envolvia a exploração intensiva do trabalho da costa açucareira no Peru à
agropecuária nas pradeiras australianas, era a contraface sistêmica dos ganhos de
salários reais no centro124.
Paralelamente, a financeirização liderada pela City de Londres elevava a
massa de capital flutuante e sua circulação internacional na forma de investimentos
Esse argumento foi revisitado no marxismo pela discussão sobre troca desigual de Arghiri
Emmanuel (1968), que substitui a ênfase nos produtos (industrias versus agrícolas) pelas condições de
produção dos mesmos.
121
Ganha relevo aqui a expansão do leque de produtos primários atraídos ao mercado mundial pela
industrialização, uma vez que, além dos bens-salário (sobretudo agrícolas), se despertava a necessidade
de novos insumos industriais (estanho, borracha, petróleo, cobre).
122
Aqui há uma simplificação do processo cíclico pelo qual os momentos de expansão econômica
puxam para cima os preços dos produtos primários, favorecendo temporariamente os termos de troca
da periferia na forma de uma euforia exportadora. No reverso, contudo, os estoques sobem e os preços
despencam. No saldo dessa flutuação se conforma a deterioração dos termos de troca dos produtos
primários, que é uma generalização que não se aplica a todas, nem da mesma forma a, as commodities
no período.
123
124
Daí nasce a célebre discussão de Ruy Mauro Marini (1991) sobre o papel da América Latina na
passagem da exploração de mais-valia absoluta para relativa no centro, em função da inserção de
economias dependentes para rebaixar o valor da força de trabalho industrial. O barateamento dos
produtos primários, o câmbio afixado ao ouro metálico e o acirramento da concorrência industrial fez
com que as últimas décadas do século XIX apresentassem uma forte tendência deflacionária, em
função da qual o período 1873-1896 é frequentemente referido como a “longa depressão”.
225
diretos e em portfólio (Tabela 6.4). Embora marginal na dinâmica dos fluxos
financeiros da época, a América Latina recebe um considerável influxo de capitais,
concentrado sobremaneira em ferrovias, serviços urbanos e na exportação. Nesse
contexto, a expansão da malha ferroviária se torna uma espécie de índice da atração
de capitais e do dinamismo comercial (Tabela 6.5)
O estoque acumulado desse capital estrangeiro começava então a pressionar a
balança de pagamentos na forma de juros, amortizações e dividendos, engessando a
conta de capital. Ocorre aqui outra “fuga para frente”: se e enquanto novos
investimentos continuassem entrando, era possível manobrar as obrigações em moeda
conversível; nos momentos de crise internacional, como 1873-1879, 1890-1894,
1918-1924 ou 1929-1934, a escassez de divisas era duplamente agravada. Nesse
sentido, tanto a elevação de quantidade das exportações quanto a atração de novos
investimentos geravam prosperidade aumentando a vulnerabilidade cíclica das
economias periféricas. Quando a demanda mundial de primários e o mercado de
capitais colapsasse definitivamente na década de 1930, o descarrilamento seria
trágico.
Como vimos, o padrão-ouro reforçou a hierarquia monetária internacional,
formando também uma espécie de “degrau”, só que na pirâmide de moedas (ver seção
5.3). Os países latino-americanos orbitaram o círculo restrito do câmbio fixo, e suas
tentativas de abraçar a conversibilidade foram muito vulneráveis às flutuações cíclicas
(CORTES CONDE, 2008). Com a consolidação de um sistema financeiro a duas
velocidades125, o esforço pela proteção do valor da moeda oficial, que percorre a
história independente da região, se transforma em luta pelo acesso ao seleto clube das
moedas conversíveis. Como demonstrou Eichengreen (2000), muito do sucesso do
padrão-ouro como regime financeiro internacional dependia da coesão e da
credibilidade entre o pequeno grupo de nações ricas, cujos capitalistas se
beneficiavam com a mobilidade de capitais e a estabilidade cambial a ponto de
blindar a política monetária de outras pressões sociais. Para os países
latino-americanos, como já foi dito a propósito do México porfirista, fixar a
conversibilidade era um símbolo do ingresso no “concerto das nações civilizadas”
(MARICHAL & CARMAGNANI, 2001: 319) .
A rigor não se tratam simplesmente de “duas velocidades”, mas uma gama mais ampla de
associação (via diferentes arranjos de proporcionalidade das reservas, moeda fiduciária, bimetalismo,
etc.) ao padrão-ouro puro que jazia no núcleo do sistema financeiro internacional.
125
226
De todas as pressões verticais para o disciplinamento da periferia, a mais
explícita foi a ameaça de invasão, ocupação ou outras formas de supressão de
soberania pela força das armas. Embora nunca de todo descartada, essa hipótese foi
amplamente alavancada pela corrida imperialista de fins de século. Após as
malfadadas tentativas espanholas entre 1861 e 1866, Robert Smith registra nas três
décadas seguintes pelo menos dezesseis situações de intervenção, ou ameaça de uso
da força, por potências estrangeiras na América Latina (Inglaterra, da França, da
Espanha, da Alemanha, da Itália, da Dinamarca e da Rússia), envolvendo a Venezuela,
a Nicarágua, a Colômbia, Santo Domingo e Haiti (SMITH, 2009: 610).
Em 1898, no zênite da corrida imperial em escala mundial, os Estados Unidos
debutariam como potência de ocupação fora de seu território continental,
estabelecendo um perímetro geopolítico no hemisfério ocidental e uma zona de
intervenção direta na orla do Caribe (Cuba: 1898-1901, 1906, 1912; no Haiti: 1914,
1915-1934; República Dominicana: 1916-1924, 1965; Nicarágua: 1912, 1927-1933;
Panamá: 1908, 1912, 1918, 1925; Honduras: 1911, 1912, 1924)126. Afora os casos de
efetiva intervenção, é preciso considerar a atmosfera mais geral, por eles alimentada,
de desconfiança e imprevisibilidade quanto ao uso da força por parte do núcleo
industrial do sistema. Na era da diplomacia das canhoneiras, dos tratados desiguais e
das reivindicações extraterritoriais, a ameaça imperialista recortou, em maior ou
menor medida, a margem de decisão das elites políticas na América Latina.
Essa extroversão imperial da virada do século tem estreita conexão com a
interdição política à guerra no próprio continente europeu após os eventos de
1870-1871. Sabidamente, o desfecho da guerra franco-prussiana deu vazão à primeira
experiência radical de governo popular no coração do Ocidente, a Comuna de Paris,
revivendo a “sexta potência”127 do concerto europeu que parecia hibernar desde
1848-1849. Frente aos riscos políticos de uma nova escalada de guerra na Europa, a
conquista ultramarina abria terreno para a flexão da musculatura militar-industrial das
grandes potências. A interdição da guerra intraeuropeia pós-1870 é um tiro de largada
da corrida imperial.
126
Ver Ansaldi (2014: 68).
A “sexta potência” é uma alusão de Marx à revolução social, ausente no Concerto Europeu firmado
pelas cinco potências em Viena (1815), Inglaterra, França, Rússia, Prússia e Áustria. A expressão foi
recuperada por Fred Halliday para uma crítica à disciplina de Relações Internacionais (HALLIDAY,
2003: cap. 6).
127
227
Além disso, a industrialização da guerra oferecia dois catalisadores para essa
extroversão: de um lado, a territorialização das condições de acumulação produtiva
estimulava a circunscrição de espaços econômicos imperiais. De outro, o salto
qualitativo na condução da guerra industrial garantia aos invasores uma grande
vantagem (ou, novamente, um degrau estratégico) sobre as resistências armadas ao
colonialismo ao redor do mundo, como não se criara possivelmente desde o “longo
século XVI”128. O resto do mundo ficara subitamente mais vulnerável às
idiossincrasias dos que dispunham de metralhadoras, encouraçados e ferrovias. As
rivalidades intraeuropeias então se projetaram mundialmente como corrida imperial e
armamentista de capitalismos dirigidos.
Embora o mapa político das Américas tenha sofrido poucas mudanças no
período se comparado com o da África ou da Ásia129, o frenesi de partilha do mundo
na virada do século se manifestou também ali como crescente desmaterialização
prática do princípio de soberania, contornado não só pela ocupação militar punitiva,
mas também pelos direitos de extraterritorialidade dos cidadãos europeus, pelo
controle das aduanas, portos ou outros órgãos públicos pelos credores e seus
representantes. Na dura renegociação da dívida externa na década de 1880, o Paraguai
acordou a transferência de 2,5 milhões de acres (mais ou menos a área do Líbano
atual) de terras públicas aos investidores britânicos para obter uma redução do
montante principal de sua dívida. A Costa Rica, no mesmo contexto, transferiu aos
credores a companhia ferroviária estatal e 600 mil acres de terra, o equivalente a
4,75% do país (MARICHAL, 1989: 123-125). Como pano de fundo dessas formas
mais desmesuradas de rendição ao capital estrangeiro está o ambiente de insegurança
criado pela reciprocidade entre solvência e soberania, que arrastara, como visto, o
Egito ao protetorado britânico em 1882-1883. Não à toa, são dois juristas
latino-americanos que desenvolvem as primeiras contraposições normativas à
Existem inúmeras fontes secundárias sobre o desenvolvimento tecnológico aplicado à guerra no
período: sobre as inovações em si, ver McNeill (1982); sobre do ataque sobre a defesa no final do
século XIX, ver Mann (1993: cap. 12 e 21); sobre o impacto das novas tecnologias no salto vertiginoso
do imperialismo europeu, ver Headrick (2011: cap. 5-7).
128
É importante a ressalva para não tomar o rumo algo superficial pelo qual Hobsbawm, ao constatar a
continuidade da geografia política pós-independência, considera que as Américas permaneceram
incólumes ao avanço imperial do período. “Só uma das regiões principais do planeta não foi afetada
substancialmente por esse processo de divisão. As Américas eram, em 1914, o que haviam sido em
1875 ou, neste sentido, nos anos 1820” (HOBSBAWM, 1989: 58).
129
228
cobrança de dívidas com força armada (“doutrina Drago”) e à proteção extraterritorial
de cidadãos e empresas estrangeiros (“doutrina Calvo”)130.
A hegemonia britânica declinava e financeirizava-se. As mudanças em curso no
sistema deslanchavam novas pressões de disciplinamento das periferias, da força
bruta ao regime de comércio internacional. A janela de ganhos relativamente
generalizados aberta na década de 1840 se fechava de modo mais ou menos dramático,
fazendo das dívidas acumuladas um vetor em direção à austeridade, à ingerência e
eventualmenteà ocupação imperial. Como foi anunciado ao princípio do capítulo, o
movimento geral das periferias latino-americanas nesse contexto será de
endurecimento da ordem pela solidificação de pactos de elites. Essas elites não
temiam simplesmente as canhoneiras ou os banqueiros estrangeiros; temiam cada vez
mais uma indecifrável e imprevisível entidade política: as massas.
6.2. A política dos governados131
Afeito que era às analogias militares, Antonio Gramsci certa vez comparou o
efeito das crises econômicas a uma espécie de “artilharia de campanha” capaz de abrir
brechas na defesa da ordem estabelecida, sem ser por si suficiente para devassá-la.
Em seu longo combate contra o economicismo, Gramsci brandia, com a analogia, o
papel insubstituível da ação política consciente para as rupturas revolucionárias. Da
mesma forma, para nosso tema, as crescentes constrições sistêmicas às periferias após
1870 não pressionam a ordem vigente sem que para isso concorra a ativação política
dos subalternos. Nessa chave, podemos sinalizar a emergência incipiente de uma nova
ecologia política no período 1870-1930, simbolizada pela agitação trabalhista, pela
aglutinação urbana de massas, pela formação de partidos políticos de base popular,
pela pressão organizada por igualdade de gênero, pelo surgimento do movimento
130
Veja-se o comentário de David Mares (2001: 47-50) sobre o esforço da diplomacia
latino-americana em deslegitimar o uso da força.
Partha Chatterjee (2004) usa esse termo, “política dos governados”, para descrever a política dos
subalternos frente à governamentalização do estado, ou seja, a “política emergindo das políticas
desenvolvimentistas de governos em direção a grupos populacionais específicos” (CHATTERJEE,
2004: 40). Fora da sociedade civil ancorada na soberania popular e na cidadania formal e universal,
grupos populacionais específicos negociariam suas condições de vida frente às agências
governamentais, no que se formariam critérios e práticas avessas às que vigoram na sociedade civil das
elites ocidentalizadas.
131
229
estudantil ou indígena como os conhecemos132. É evidente que as características,
temporalidades e desdobramentos desses novos atores mudam muito conforme o
contexto específico que estamos observando. Não obstante essas especificidades, é
possível perceber como as mudanças sociais alimentadas no “longo século XIX”
foram engendrando fontes de pressão desde baixo sobre o jogo político institucional.
O epicentro dessas mudanças foram as cidades, cujo salto de escala e
concentração no período está bem documentado (SCOOBIE, 2009). No começo dos
anos 1930, havia dezenas de cidades latino-americanas com mais de 100 mil
habitantes, incluindo algumas aglomerações urbanas que à época já superavam um
milhão (Buenos Aires, Rio de Janeiro, Cidade do México). Essas cidades passaram a
abrigar um novo ambiente associativo popular, com a emergência de associações
mutualistas, clubes de bairro, organizações profissionais, centros comunitários de
identidades migrantes e diaspóricas, logo acrescidos dos primeiros sindicatos de
classe (Tabela 6.6). Ademais, essas cidades em expansão se tornaram núcleos de
insalubridade, segregação e miséria, espaços densamente povoados com condições
precárias de habitação. Para a contestação política, tornava-se um espaço mais
imprevisível em termos de contágio, consequências e radicalidade da insatisfação
popular. As cidades viraram então o habitat das “massas”, coletivo irracional e
disforme que passou a inspirar a ojeriza dos intelectuais e a atenção das forças de
ordem.
Como processo, essa urbanização estava intimamente relacionada ao triunfo do
liberalismo. A fabricação da terra, do trabalho e do dinheiro como mercadorias
fictícias gerava como subproduto a ejeção de pessoas em larga escala, muito além do
que o mercado de trabalho era capaz de transacionar. Assim, as cidades
latino-americanas foram alimentadas pela proletarização em escala mundial, fosse
pela migração internacional de trabalhadores expelidos da Europa e da Ásia, fosse
pelo êxodo de comunidades rurais vizinhas. O resultado dessa desenfreada deposição
humana nos aglomerados urbanos não tardaria a se fazer sentir nas formas de ação
coletiva, como bem descreveu José Luis Romero:
Uma das tentativas mais abrangentes que conheço de cobrir empiricamente a emergência de novas
subjetividades políticas na América Latina nesse período foi feita por Waldo Ansaldi e Verónica
Giordano (2012).
132
230
“Os comícios de milhares de pessoas reunidas em praça pública, o orador
exaltado, as inflamadas palavras de ordem reformistas ou revolucionárias
comoveram as cidades e retiraram a política das tertúlias e dos cenáculos
onde tradicionalmente se urdia com uma prudente descrição” (ROMERO,
2009: 326)
Nesse contexto, a ação sindical combativa foi seguramente a grande novidade
nas décadas que seguiram a crise de 1873-1879, embora com focos de eclosão bem
delimitados. No México, onde a agitação trabalhista fora bastante precoce,
registraram-se doze greves entre 1865 e 1874, sendo oito na maquinofatura têxtil e
quatro nas minas (COLLIER & COLLIER, 2002: 77). Na década de 1870, é criada a
primeira central sindical no país, com inspiração anarquista. Na década de 1890,
ocorrem confrontos trabalhistas de grandes proporções no México, na Argentina e no
Chile. A primeira greve geral argentina ocorre em 1902, logo após a criação da
Federação Operária Argentina (FOA) em 1901. No final da década, uma marcha em
Buenos Aires mobilizou a cifra impressionante de 220 mil pessoas no Primeiro de
Maio, resultando em brutal repressão e uma nova greve geral.
No Chile, as associações de apoio mútuo se convertem em agremiações
sindicais na década de 1890, com primazia dos enclaves exportadores do norte do país,
onde a força de trabalho era numerosa e concentrada. No período 1902-1907, há uma
escalada de luta trabalhista com cerca de 200 greves no país, culminando na
paralisação geral de Santiago. De forma geral, a organização dos trabalhadores, seja
nas cidades, seja nos enclaves exportadores, foi respondida com violência irrestrita,
perseguição de lideranças, fechamento de jornais e gráficas, leis marciais, deportação
e vigilância.
De forma panorâmica, a crise desencadeada com a Primeira Guerra
(1914-1918), quando os salários perdem poder de compra abruptamente, ensejou um
impulso notável para a luta sindical. O encarecimento dos alimentos se soma às
condições de trabalho e à repressão política como fermentos de indignação popular.
Nesse contexto, a atividade sindical extrapola os contextos onde já estava enraizada
(os antes citados, o sudeste brasileiro, Montevideo), eclodindo também nas cidades
cubanas, nos enclaves colombianos, nos portos e ferrovias do Equador, na
maquinofatura peruana (HALL & SPALDING JR., 2009: 316-320). Em pouco mais
de três décadas, a difusão de pautas e repertórios de classe adquiria dimensões
continentais, com consequências à época ainda difíceis de divisar.
231
Se observada em escala mais ampliada, a proletarização não foi um processo
unívoco em direção ao trabalho assalariado, disciplinado e sindicalizado, cuja
emergência atrai mais atenção por suas imediatas consequências políticas. As
reclamações recorrentes à época entre os proprietários de que havia escassez de
trabalhadores para as atividades exportadoras sinaliza respostas à exploração
capitalista que não a organização sindical: como Langer (1997) demonstra para o caso
da mineração na Bolívia, para os trabalhadores, “manter suas opções abertas
retornando ao campo quando o emprego desaparecia podia manter suas famílias
vivas” (LANGER, 1997: 39). Ou seja, os trabalhadores que mantinham alternativas de
vida fora do mercado formal de trabalho poderiam contornar o desemprego e a
inanição, tornando-se um proletariado sazonal, cíclico, modulado. Além disso, essas
alternativas permitiam, conforme a injunção, evadir o cotidiano do trabalho
assalariado nas minas ou nas fábricas, com a coação, a disciplina e o sobretrabalho
exasperante que ele implicava. A proclamada escassez de empregados refletia que
essas pessoas, embora não fossem estranhas ao trabalho assalariado, não haviam sido
completamente arrancadas de seu universo cultural para se tornarem mercadorias
dispostas a e repostas pela acumulação capitalista.
Isso obviamente dependia da remanescência de espaços rurais independentes,
desde o acesso à terra por partição em latifúndios às aldeias camponesas, territórios
indígenas autônomos, fronteiras agrícolas abertas e, por vezes inseridos nas cidades,
circuitos de produção simples de mercadorias. A luta sindical, por esse ponto de vista,
se torna a saída dos que já não tem saída. A proletarização se move sobre um
gradiente conforme, de um lado, se comprimem os espaços econômicos de
sobrevivência fora do assalariamento capitalista, ou se resguarda, de outro, alguma
autonomia material com relação à venda de força de trabalho. Há situações de maior
ou menor exposição às pressões competitivas do mercado de força de trabalho.
A resistência popular contra a proletarização que atravessou o “longo século
XIX” se intersecta, em seu declínio como ciclo, com a nova agitação trabalhista e
sindical, resultado do próprio sucesso acumulado da proletarização. De sua parte, a
resistência à proletarização luta por preservar espaços autônomos de produção e
circulação da vida material, ameaçados pela acumulação por despossessão em larga
escala. A agitação sindical, por seu turno, começa a se organizar em função da
autoproteção dos trabalhadores e trabalhadoras frente às inseguranças e abusos do
232
mercado de trabalho, isto é, pela oposição ao sobretrabalho ou às condições insalubres,
pelo resguardo na infância, na velhice e na doença, pela proteção do poder de compra
do salário. Dessa nova subjetividade política surgiriam, como projeção de futuro,
utopias radicais de refundação da sociedade pelos próprios trabalhadores, que, direta
ou indiretamente, destruiriam a ordem hegemônica do liberalismo oitocentista.
A constituição de uma intelectualidade independente é também aspecto
distintivo das cidades florescentes da virada de século, da qual são exemplo os
mesmos médicos ítalo-peruanos que abriram este capítulo. A crítica social adquiria
novas linguagens, novos veículos e novos horizontes. Com efeito, as cidades eram
mais cosmopolitas: pessoas e publicações do mundo atlântico circulavam com mais
facilidade, as universidades readquiriam peso como usinas intelectuais desvencilhadas
da teologia, e os aparatos de estado, conforme seus recursos, passam a investir em
espaços de pesquisa científica – como o Museu em que o cacique Inacayal fora
confinado em La Plata (ver capítulo 5).
Como subproduto, a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo vai
elevando o peso social do funcionalismo público, o núcleo difusor de uma classe
média urbana e letrada. Em particular, a profissionalização das Forças Armadas
favorece uma intelectualidade militar sem ligação direta com as elites proprietárias.
Em certos casos, esse segmento militar abre um novo flanco de dissenso à ordem,
gestando um civismo cada vez menos liberal. Entre funcionários civis e militares, a
racionalização administrativa se torna um ícone de progresso contra um passado de
prebendalismo e corrupção.
A proliferação de dissidências intelectuais não está distante do que se disse
sobre a formação uma classe trabalhadora urbana, de modo que também ganham
circulação também ideias socialistas, libertárias, anti-imperialistas e mesmo
indigenistas. Com efeito, é pelo trabalho de intelectuais progressistas como González
Prada, Luis Valcárcel e Manuel Gamio que novas referências vão sendo erguidas para
entender a situação dos povos originários. Como subjetividade política específica,
pode-se argumentar que o movimento indígena se constitui, a essa altura, pela fusão
entre o próprio protagonismo político – para o qual a Revolução Mexicana de 1910 é
um divisor de águas – e o pensamento indigenista de esquerda, antirracista e
233
demofílico133. Como disse González Prada em 1904, “o índio se redimirá graças ao
seu esforço próprio, não pela humanização de seus opressores. Todo o branco é mais
ou menos um Pizarro, um Valverde ou um Arreche” (apud FUNES, 2006: 131). A
subversão da questão racial se torna, em perspectiva mais ampla, uma questão de
definição nacional, desvelando um tema candente para as vanguardas modernistas a
partir dos anos 1910, em um momento em que a arte, a política e a ciência não se
separam nitidamente como campos de intervenção social.
Na mesma conjugação entre formação de classe trabalhadora e fermentação
intelectual, as reivindicações de igualdade de gênero começam a adquirir as primeiras
expressões organizadas no período 1870-1930, na forma de publicações e
suplementos específicos, associações de mulheres, sufragismo e sindicalismo
feminino. A conformação das mulheres como movimento autônomo por pautas de
gênero teve origem dupla: por um lado no movimento operário, como no caso dos
sindicatos femininos da indústria do nitrato no Chile, das professoras primárias em
Yucatán ou nas publicações operárias argentinas, e por outro na intelectualidade
urbana de classe média, conectada ao feminismo liberal e humanista do movimento
sufragista internacional.
Com o risco de soar repetitivo, é bom lembrar que a emergência desses
movimentos não obedece a uma estrutura temporal uniforme, a uma sincronia
empírica em escala continental. Não obstante, seja agitada por publicistas liberais, por
operárias organizadas, por professoras primárias ou artistas, a questão da igualdade de
gênero se torna uma questão pública na primeira metade do século XX, mais
propriamente no sistema mundial como um todo. Tal qual com as massas urbanas, os
novos trabalhadores sindicalizados no campo e na cidade, o movimento indígena ou
as agremiações partidárias de base popular, as elites políticas tinham para com as
reivindicações feministas o mesmo dilema entre a repressão e a barganha, entre a
imposição da ordem e as tentativas incertas de sua atualização pela cooptação dos
insatisfeitos.
É notório que a conformação desse encontro entre a muito longeva luta política indígena, que
remonta necessariamente às resistências contra a conquista espanhola, e um polo intelectual antirracista
é muito variável conforme a situação política. No caso do México pós-1910, a força do
assimilacionismo étnico-cultural na antropologia oficial é inseparável da busca de legitimidade
pós-revolucionária, ao passo que no Peru, por contraste, o indigenismo surge como movimento político
por fora e contra da esfera estatal, adquirindo maior radicalidade (FUNES, 2006: 137-204).
133
234
Em suma, na análise do confronto político nas décadas posteriores à crise de
1873, é fundamental discernir a emergência de novas subjetividades políticas
pressionando as linhas de inclusão e exclusão da ordem liberal, que triunfara
hegemônica após a Era das Revoluções. Em boa medida, essas subjetividades
políticas haviam sido engendradas pelo próprio sucesso do padrão de acumulação
liberal, competitivo e industrial em escala mundial. Ao perseguir uma utopia de
mercado na periferia, as elites latino-americanas produziram consequências sociais
que seu próprio liberalismo era incapaz de administrar. A “questão social” surgia
como heterogênea ameaça dos governados, daqueles que arcavam com os ônus da
transição fiscal ancorada em tributos de importação, recebendo em troca repressão,
vigilância e disciplina estatal. Com a proletarização acelerada das unidades familiares,
o arrocho dos circuitos locais de produção e consumo e a urbanização massiva, o
cobertor da ordem política ficara cada vez mais curto para os dissensos que precisava
cobrir.
6.3. Intransigência e rotina: o liberalismo em desdemocratização
Na história convencional da América Latina, o período do caudilhismo é
frequentemente sucedido pela consolidação oligárquica, um momento de pujança
restrita a poucos. Do personalismo militarista, do caos das guerras civis atinge-se uma
etapa de estabilidade política ligada à modernização econômica, conduzida por
oligarquias oriundas das exportações primárias. Ainda que funcione como descrição
mínima para a iniciação ao tema, sua transposição à sociologia histórica põe em
primeiro plano as incongruências do uso do termo “oligarquia”, ao mesmo tempo
muito genérico e muito específico.
Por um lado, é demasiado genérico no sentido em que subsume a política a uma
unidade de classe pré-estabelecida, pressupondo uma determinação bastante imediata
entre capitalismo e estado. A figura do “estado oligárquico” captura genericamente
quaisquer configurações políticas do período sem explicar os mecanismos pelos quais
se produziu esse resultado. Oligarquia se torna um termo literalmente auto-explicativo.
Por outro lado, no plano da análise política, parece demasiado específico: tal qual
caudilhismo, é um conceito referido quase que unicamente à América Latina, como se
a singularidade da região encerrasse de antemão a possibilidade de comparação ou
235
abstração. A rigor, as duas fragilidades apoiam-se uma à outra, como duas cartas de
baralho: é porque o termo está automaticamente conectado a uma região e um período
que ele não precisa de elaboração conceitual própria, e é pela falta dessa elaboração
que ele intuitivamente encaixa bem àquela realidade específica.
Assim como as elites “oligárquicas” depreciaram o período que lhes antecedeu
como o caos e a barbárie dos caudilhos, os movimentos nacional-populares do século
XX firmariam a imagem pejorativa das oligarquias como ícones do passado: com
aversão ao povo e submissas ao capital estrangeiro, elas sequestrariam o estado para
seus estreitos interesses de classe. Útil como discurso de propaganda, como sociologia
política rende pouco134. O objetivo dessa seção é traduzir o conceito intuitivo de
“estado oligárquico” a partir de operadores conceituais mais firmes.
De
forma
resumida,
isso
significa
entendê-lo
como
tendência
de
desdemocratização da política institucional conforme se solidificam acordos
interregionais de elites, acossadas pelas pressões verticais do sistema mundial e pelo
risco emanado da “questão social”. Os períodos de estabilidade política relativa
apoiados nesses pactos de elites possuem conformações específicas conforme o caso
observado: o latorrismo no Uruguai (1876-1899), o autonomismo nacional argentino
(1880-1916), o Porfiriato no México (1876-1910), o liberalismo amarelo (1870-1899)
e a ditadura Gómez na Venezuela (1908-1935), o republicanismo civil no Brasil
(1894-1930),
a
chamada
república
aristocrática
no
Peru
(1895-1919),
o
parlamentarismo no Chile (1891-1925), a Regeneração conservadora na Colômbia
(1886-1930) ou a geração do Olimpo na Costa Rica (1870 a 1914 ou 1940). Salvo
exceções, como o Brasil ou o Chile, se tratavam de arranjos políticos de inédita
longevidade na história independente desses países.
Com uma enunciação conceitual em uma mão e os casos empíricos em outra,
tentaremos destrinchar as razões mais amplas para essa “oligarquização” ou
Alguns dos trabalhos que se apoiaram mais sistematicamente na ideia de oligarquia para pensar a
formação dos estados latino-americanos são os de Enrique Gomariz-Moraga (1977), Jorge Graciarena
(2014) e Marcos Kaplan (1974; 1996). Recentemente, Waldo Ansaldi (2017) buscou renovar o debate
conceitual sobre a ideia de oligarquia, tendo como base seu extensivo conhecimento histórico sobre o
período (ver também ANSALDI & GIORDANO, 2012: 465-480). Nesse curto artigo, ele considera
que oligarquia é uma forma de dominação, e não uma classe social, que perdurou na América Latina no
período 1880-1940, engendrando uma forma de estado que se contrapõe conceitualmente ao estado
democrático. A meu juízo, o autor estipula demasiadas caracterizações empíricas do que seria
oligarquia sem explicações substantivas para sua existência ou sua superação histórica. Embora
pretenda uma categoria analítica, sua análise é antes de tudo descritiva, demarcando um período, um
momento específico da história política latino-americana, e não me é muito claro como ela descola das
análises anteriores em termos conceituais.
134
236
desdemocratização da política no período. O ponto de partida é a tendência de
acomodação das elites regionais e dissidentes, absorvidas, cooptadas ou tuteladas pelo
governo central após um longo processo de desencaixe da política de seus contextos
locais. Ao final do “longo século XIX”, após trajetórias diversas de disputa política
em torno das autonomias locais e regionais, o triunfo do estado centralizado se costura
pela cooptação seletiva de elites a um acordo nacional, que lhes assegure acesso aos
bônus do ciclo extrativo-coercitivo. A ideia comum de que as “oligarquias” se
apoiavam na violência por não construir hegemonia ou consenso é algo anacrônica,
pois desconsidera que, sob a estabilidade política, havia uma ativa construção de
consentimento e coesão, por meio do estado, entre os que eram tidos então como
politicamente relevantes. A exclusão das maiorias iletradas não era uma deficiência
dessa estratégia de consenso, mas seu próprio conteúdo. Se tomamos em conta a força
centrífuga que essas reivindicações autonômicas, de base local ou provincial,
representaram ao ímpeto centralizador dos estados desde a independência, a
consolidação desses pactos é uma saída conservadora de adesão à ordem do que antes
haviam sido plataformas independentes de oposição.
Se a decolagem do ciclo extrativo-coercitivo havia produzido, ao longo do
século, uma assimetria fundamental em favor dos centros que afunilavam o comércio
exterior, sua reprodução ampliada agora é condição de possibilidade para a
reacomodação dos efeitos disruptivos dessa decolagem. Isso implicava recolocar os
interesses regionais e setoriais em uma disputa política centrada no estado. Essa
reacomodação é uma forma de produzir rotina institucional em torno do revezamento
controlado de elites, apoiando-se na capacidade de construir consentimento com o
orçamento dependente do comércio exterior. A clivagem “liberalismo versus
conservadorismo tendia a se enfraquecer”, apontou Safford (1992: 97), “e dar lugar a
Ordem e Progresso”.
Do ponto de vista da coerção, o desenvolvimento de musculatura material pelos
estados torna, a essa altura, os exércitos centrais decididamente mais poderosos que
quaisquer milícias organizadas regionalmente. Mais do que isso, o crescimento e
diferenciação do aparato de estado assegura uma margem maior de distribuição de
posições, orçamento e prerrogativas às figuras proeminentes de localidades,
províncias e setores econômicos marginais. A rigor, a expansão material desses
aparatos podia se adequar a inúmeros esquemas de governo indireto, de quid pro quo
237
com autoridades locais. Assim, o corolário do desencaixe da política de seu contexto
local é seu reencaixe como pacto contingente de elites, azeitado pelo controle sobre a
seletividade inerente ao ciclo extrativo-coercitivo.
Essa expansão acumulada do poder de estado sobre o território se combina a
um processo importante: a supressão ou encurtamento de práticas, formais ou
informais, de engajamento de um maior número na disputa política institucional. A
forma mais inequívoca disso é a redução do sufrágio eleitoral, que é uma tendência
comum na região desde a independência (POSADA-CARBÓ, 2000: 623). Em alguns
casos, isso se opera pela explícita mudança das normas qualificativas ao voto, como
no Brasil pela Lei Saraiva de 1881 (ver capítulo 10). Não obstante, a ideia de
desdemocratização da política no período não deve se resumir às regras explícitas do
jogo eleitoral. Como é sabido, e o Porfiriato mexicano seria o exemplo inequívoco,
existem formas extralegais de controle sobre as eleições que neutralizar sua força.
Mais do que isso, o avanço administrativo permite dissipar práticas informais,
gestadas à margem ou no silêncio da lei, que ampliavam o acesso público às decisões
em nível local. Recuperando os exemplos do capítulo anterior, a chamada “cidadania
orgânica” no México rural (CARMAGNANI & CHÁVEZ, 1999), assim como as
práticas pactistas dos municípios andinos (DEMELÁS, 2003), foram se dissolvendo
na virada do século, substituídas por critérios mais formais e mais restritivos de
participação.
Outras formas de engajamento político para além dos “notáveis” locais – como,
em diferentes contextos, haviam sido os conselhos municipais, as petições públicas ou
as milícias armadas – estavam soçobrando ao peso dos exércitos profissionais, das
assembleias legislativas e do poder da propriedade. De forma geral, a subordinação de
vida política local às injunções da política nacional implicava que o senso comum e as
regras não-escritas de convivência perdiam espaço para o conhecimento das leis, dos
regramentos, dos termos em voga no debate erudito da capital. O adensamento do
aparato reforçava seu poder simbólico e a capacidade dos que leem e manuseiam a lei
se beneficiarem disso. O recurso à lei e à racionalidade administrativa, dessa forma,
sufocava práticas menos elitistas que se valiam das margens de indefinição entre o
texto legal e sua efetivação prática.
É óbvio que não se deve idealizar o aspecto democrático dessas instituições
em declínio. Para o raciocínio presente, o que é mais importante é o descompasso
238
relativo que se cria entre o maior peso ou presença do estado sobre a vida das pessoas
comuns e o enxugamento concomitante de acesso por essas pessoas – através da lei,
contra ela ou em suas margens – às disputas pelas decisões concretas desse estado.
Esse descompasso tinha origem no fortalecimento da “fisiologia dos estados” pela
reprodução continuada da cobrança de impostos, do recrutamento de funcionários, da
interiorização da força armada ostensiva, na proliferação de novos códigos civis e de
legislação ordinária. A dissolução de arranjos políticos de menor escala, por
reciprocidades comunitárias, manobras extralegais de inclusão, vínculos carismáticos
ou personalistas, produzia uma tendência à desdemocratização de forma menos
explícita que uma lei censitária, e mais gradual que a manipulação eleitoral. O
desencaixe da política de seu contexto local só comportava eventual reencaixe para as
minorias privilegiadas dessas localidades, na medida em que elas lograssem adesão,
desarmada, ao pacto inter-regional que amparava o poder central. O desarmamento do
regionalismo, dessa forma, almejava a que os subalternos não seriam mais
mobilizados em coalizões regionais contra o poder central.
Desdemocratizar a política acaba por rotinizá-la normalizando seus
protagonistas, seus métodos e seus objetivos, reduzindo assim a imprevisibilidade, a
fricção, o potencial incendiário da disputa. O argumento para seu sucesso não se
encerra na força centrípeta produzida pela distribuição seletiva do orçamento. No
plano ético-político, essa coesão foi erigida a partir de linhas mais amplas de consenso
em torno ao que o estado deveria fazer, de onde deveriam vir os recursos para tal,
quem estava sujeito à repressão política ou que tipos de símbolos podiam ser
invocados.
Era um momento de crença na ciência aplicada, na hierarquia racial, na
evolução pela competição, no papel civilizador do colonialismo europeu, na
irreversibilidade da história humana (WEINBERG, 1988). Acima de tudo, as elites
eurodescendentes comungavam o desejo de participar do que era moderno: a abertura
de caminhos de ferro, de linhas telegráficas, a reforma dos portos e alfândegas, a
abertura de grandes vias públicas nas cidades, o ordenamento da dívida pública e
externa, a iluminação pública, os bondes, as fábricas, as universidades, o comércio, as
belas artes. Havia um perturbador sentimento de que o atraso imperava, de que havia
ainda muito por fazer.
239
O imperativo de progresso reforçava a solidariedade de elites na medida em
que excluía como parte ativa o resto da sociedade, ou seja, na medida em que elas se
percebiam como motor, consciente e único, responsável por esse progresso.
Desdemocratizar a política institucional, oligarquizá-la, rotinizá-la eram formas de
manter as tarefas do progresso nacional separadas das contestações sociais desde
baixo, das novas ideias, organizações e lutas que mobilizavam os subalternos. A
oportunidade de costurar laços de consenso entre as elites regionais e setoriais
reforçava e naturalizava o fosso que separava essas elites eurodescendentes dos
pobres urbanos, homens e mulheres grevistas, ex-escravos, analfabetos, indígenas,
artesãos, nômades e trabalhadores rurais. Com o uso da força para assegurar essa
separação, a desdemocratização enrijecia as linhas de inclusão e exclusão da
comunidade política, por critérios de gênero, de classe, de etnia, de língua, de
nacionalidade, de raça. Na linha de Silvia Federici (2004), intensificavam-se as
formas de divisão e estratificação da classe trabalhadora. Desnecessário dizer, essas
linhas não estavam sendo criadas no final do século XIX; elas estavam simplesmente
se tornando tendencialmente mais intransigentes e uniformes conforme as utopias
hegemônicas, oriundas do contexto revolucionário de 1770-1840, neutralizavam seu
apelo popular sob a insígnia da marcha da civilização.
Graças ao trabalho de Mara Loveman sobre os censos latino-americanos,
sabemos até que ponto a própria noção de progresso se tornou racializada, com os
órgãos técnicos oficiais recorrendo a formas mais ou menos sutis de equiparar a
evolução nacional com o embranquecimentodo povo pela miscigenação ou imigração
(LOVEMAN, 2014: cap. 4 e 5). A difusão institucional do racismo é parte da
argamassa de um espírito de corpo entre as elites políticas, que serve de esteio
ético-político para estabilidade de seu pacto. De certa forma, o europeísmo, que
perpassava as reformas urbanas135, a política migratória136 ou a profissionalização das
forças armadas137, obedece a uma dupla entrada: por um lado, aspirava aproximar
Há muita discussão profunda sobre a relação entre o novo urbanismo inspirado em Haussman e a
segregação urbana e as políticas sanitaristas contra os pobres. Para uma apresentação ao problema, vide
José Luis Romero (2009: 309-317) e Scoobie (2009). Teoricamente falando, David Harvey é referência
obrigatória para o aprofundamento crítico dessa problemática.
135
O preconceito racial embutido nas políticas migratórias latino-americanas, que expressamente
privilegiavam a entrada de europeus, são bem documentadas por Mara Loveman (2014: sobretudo
145-153)
136
O recurso às missões estrangeiras (i.e. europeias) para a profissionalização das Forças Armadas é
parte importante da história militar latino-americana, inclusive como vetor para situar os alinhamentos
137
240
simbolicamente os estados latino-americanos das nações imperialistas, em um
momento em que o pertencimento à civilização europeia modulava o risco que
credores, encouraçados e diplomatas estrangeiros impunham à soberania nas
periferias. Por outro lado, o europeísmo permitia estratificar as sociedades
pós-coloniais, circunscrevendo o domínio da política e do progresso ao perímetro das
elites eurodescendentes.
A afinidade das instituições ao pensamento social demofóbico no período
possui diversas tonalidades. Na Colômbia, Rafael Núñez louvava o liberalismo
evolucionista de Herbert Spencer sem abdicar do conservadorismo católico e
patriarcal. No México sob o Porfiriato, os chamados científicos acolheram o
positivismo comtiano, corrente que se difundiria também no Brasil, no Chile e na
Argentina.
“O
progresso”,
nas
palavras
de
Comte,
“constitui
apenas
o
desenvolvimento da ordem” (apud DUPAS, 2012: 19). Aliás, o próprio termo
“científicos” é eloquente da estratificação baseada no conhecimento do que se lia e
escrevia nos países europeus, isto é, da interligação entre ciência e hierarquia. A
criminologia positivista de Lombroso e Ferri é também emblemática desse ambiente
intelectual, na medida em que oferecia terreno científico para o controle e a repressão
das populações já segregadas.
Por fim, observa-se essa desdemocratização desde uma perspectiva de gênero.
Como mostrou Arlene Díaz (2001), o programa de “regeneração moral” da Venezuela
sob Guzmán Blanco incorporava, pela primeira vez na república, uma doutrina oficial
de papeis de gênero, inscrita na esfera jurídica e na imprensa oficial. Baseada na
família patriarcal, ela desenhava o país em uma “cadeia de comando hierárquica que
ia do poder do presidente ao pai de família” (DÍAZ, 2001: 57).
O próprio liberalismo, outrora gatilho de agitação popular no continente,
caminhava decididamente em direção às suas conotações mais elitistas, fosse pela
economia neoclássica e pela escola austríaca, fosse pelo evolucionismo spenceriano,
ou ainda pela teoria das elites de Pareto e Mosca. De outra parte, as premissas de
engenharia social se imiscuíam com o desenvolvimento do conhecimento médico. A
ação racional do governo permitiria, nessa chave, tanto o controle epidemiológico das
doenças físicas como a profilaxia das “enfermidades morais”, expressão muito
geopolíticos que polarizavam a região (LOVEMAN, 1999: cap. 3). Assim, enquanto a Argentina e
Chile recorrem sobretudo aos alemães, também bastante influentes na América Central, países como
Brasil, México, Bolívia e Peru, por exemplo, acordam a vinda de missões francesas.
241
difundida no período138. Nesse sentido, o cientificismo das elites políticas e a
disponibilidade de excedentes fiscais são as duas balizas decisivas para contextualizar
os primeiros movimentos consistentes de “governamentalização”139 dos estados
pós-coloniais latino-americanos, para reaplicar a célebre expressão de Foucault (2008).
Objeto central de suas preocupações, a “questão social” estava sendo criada como
problema de governo das populações, como patologia do corpo social que demandava
um conhecimento aplicado específico.
Conectando as pontas do nosso raciocínio, o enrijecimento da ordem política
não respondia unicamente à tensão social desde baixo, mas igualmente a uma
conjuntura mundial em mudança durante a financeirização da hegemonia britânica.
Frente ao acirramento das pressões verticais do sistema, a intransigência e a rotina
representavam
artifícios
extrativo-coercitivo,
que,
para
sob
proteger
esse
a
reprodução
padrão
de
ampliada
acumulação,
do
ciclo
dependia
fundamentalmente dos tributos sobre o comércio exterior. A aspiração ético-política
de progresso – e de todas as suas realizações materiais – dependia dessa reprodução
ampliada. Desse ponto de vista, a crise de 1873 não interrompe a sinergia entre
aduanas, exércitos e constituições. Pelo contrário, a estabilidade institucional, quando
ocorreu, se sustentou pela aceleração dessa sinergia. No longo prazo, os estados
pós-coloniais permaneciam como deus ex machina de uma sociedade de mercado que
eles equivaliam ao progresso nacional e de cuja expansão suas receitas dependiam.
Como ilustração, veja-se a eloquente coletânea de títulos de livros feita por Patricia Funes (2006):
“Manual de Patología Política” (Juan Álvarez, Argentina, 1909), “Continente Enfermo” (César
Zumeta, Venezuela, 1899), “Enfermedades Sociales” (Manuel Ugarte, Argentina, 1905), “Pueblo
Enfermo” (Alcides Arguedas, Bolívia, 1909), “La Enfermedad de Centroamérica” (Salvador Mendieta,
Nicarágua, 1912), “Parasitismo Social e Evolução na América Latina” (Manuel Bonfim, Brasil, 1903),
“Nuestra Inferioridad Económica: sus causas, sus consecuencias” (Francisco de Encina, Chile, 1912),
“La Hampa Afrocubana: los negros brujos. Apuntes para uma etnología criminal” (Fernando Ortiz,
Cuba, 1906)
138
Sobre o conceito de “governamentalidade”, Foucault define como o “conjunto constituído pelas
instituições, pelos procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer
essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população,
por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de
segurança. Por governamentalidade entendo a tendência, a linha de força que em todo o Ocidente, não
parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência deste tipo de poder que podemos chamar de
governo sobre todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento
de uma série de aparelhos específicos de governo e (de outro lado), o desenvolvimento de toda uma
série de saberes. Enfim, por governamentalidade, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o
resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se
tornou o estado administrativo, viu-se pouco a pouco governamentalizado” (FOUCAULT, 2008:
143-144).
139
242
A nova conjuntura mundial impunha, por oposição, duas questões candentes e
imbricadas: a internalização do excedente econômico e a solvência dos empréstimos
internacionais. A resolução específica dessas duas questões em cada caso empírico
ajuda a discernir o desenvolvimento de trajetórias semiperiféricas no período
1870-1930, como o foram os casos de Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, México e
Costa Rica140. Com relação à internalização do excedente econômico, é preciso
lembrar que não era um problema exclusivo das economias periféricas, do que não
deixa dúvida a rivalidade então em curso a nível mundial entre capitalismos dirigidos.
A luta por internalização do excedente, não obstante, colocava outras questões nas
periferias exportadoras, em geral especializadas em uma ou duas commodities141
(Tabela 6.7).
Observando a atuação do estado colombiano após o triunfo da Regeneração na
Guerra dos Mil Dias (1899-1902), Bucheli e Sáenz (2014) defenderam o uso do termo
“protecionismo de exportação” para capturar suas diferentes estratégias institucionais
de alento aos setores exportadores (café, petróleo e banana). Cada setor receberia um
agenciamento diferenciado de capital por parte do governo. No sudeste do Brasil, a
política de valorização do café acordada em 1906 desenvolveria, nas palavras de
Florestan Fernandes, os “meios estratégicos que permitiam explorar economicamente
a própria dependência” (FERNANDES, 1976: 125). Ambas as formulações refletem
um fenômeno comum: os estados primário-exportadores não permaneceram passivos
frente ao novo ambiente internacional, de maior protecionismo e instabilidade de seus
termos de troca. Surgem, com efeito, as primeiras políticas de estado arquitetadas para
aliviar as pressões competitivas na periferia, pela incorporação de tecnologia, pela
manipulação de mercado, pelo favorecimento fiscal.
Sem dúvida, a margem com que esses estados conseguiam manobrar esses
contramercados dependia de fatores que escapavam ao controle das elites políticas
que os governavam. O escrutínio sistemático desses fatores tem rendido um bom
O melhor tratamento que conheço para a noção de semiperiferia foi desenvolvida por Giovanni
Arrighi (1997: cap. 4 e 5), na medida em que relaciona renda nacional com a capacidade de aliviar as
pressões competitivas do sistema. Bringel e Domingues (2015) recentemente destacaram a urgência de
resgatar o sentido substantivo da estratificação centro-periferia na discussão sociológica.
140
Uma aproximação quantitativa razoável para a internalização de excedente nas economias
exportadoras latino-americanas é feita por Victor Bulmer-Thomas a partir da taxa de crescimento das
exportações e da taxa de exportações per capita. Segundo o autor, encontrar-se-ia aí indicadores para o
sucesso do modelo centrado nas exportações para o desenvolvimento de mercado interno, de
capacidade de investimento, o que posteriormente seriam condições para a diversificação econômica
(BULMER-THOMAS, 2003: cap. 3 e 5).
141
243
debate na história econômica142. Aqui podemos nos ater ao seu resultado final. A
maior ou menor capacidade de aliviar as pressões competitivas do mercado mundial
tinha impacto na retenção do excedente produzido, e consequentemente na margem
disponível para os estadistas como gasto fiscal e para os capitalistas como capital
circulante.
O sucesso relativo em internalizar excedente impactava também no potencial
de expansão do mercado consumidor doméstico. A partir da década de 1870, a
demanda interna estimula uma industrialização contracíclica, em substituição aos bens
importados. O brotamento dessas fábricas remonta à conjugação não-intencional de (1)
a proletarização massiva, relacionada à urbanização e à imigração, que constituiu uma
força de trabalho dependente do mercado de bens-salário para sua subsistência; (2) a
reprodução de um ciclo fiscal baseado na tributação de importação sobre bens de
consumo, que nas crises estrangulava a capacidade de importá-los; (3) a resposta dos
capitalistas como classe às flutuações do mercado mundial, através do investimento
alternativo em setores substitutivos de importação. Afloram polos fabris em Medellín,
São Paulo, Monterrey e na grande Buenos Aires, responsáveis pela produção de
têxteis, bebidas, papel, sabão, cigarros, e alimentos processadas como bolachas,
conservas, chocolates, massas, azeites para o mercado local. O desenvolvimento
dessas maquinofaturas, coligado que estava à acumulação no setor exportador, foi
decisivo para fazerem divergir as trajetórias semiperiféricas na região conforme as
crises se sucediam no período pós-1873. No clímax de devastação posterior à crise de
1929, seria justamente esse gume que dividiria as saídas ora pela industrialização de
substituição de importações, ora pela agricultura de substituição de importações
(BULMER-THOMAS, 2003: cap. 7).
Na formulação clássica de Cardoso e Faletto (1970), uma distinção fundamental se estabelecia em
termos do controle nacional ou estrangeiro do setor exportador, e consequentemente da capacidade de
desenvolver um mercado interno. Essa divisão os levou ao termo de “economia de enclave” e da
comparação entre agricultura e mineração em termos de sua potencialidade para o desenvolvimento
dependente. Essa chave de leitura foi desenvolvida por Ciro Flamarion Cardoso e Héctor Brignoli
(1983). Celso Furtado (1970: 61-65) atribui ênfase às mercadorias exportadas diante dos competidores
em cada mercado, separando a agricultura temperada da agricultura tropical, e ambas da mineração.
Mais recentemente, o tema ganhou nova injeção com a discussão de Bulmer-Thomas (2003) sobre a
“loteria de commodities” e os estímulos criados por cada produto exportador em seu entorno, como
indução de maior complexidade econômica. Usando o instrumental da economia neoclássica, por sua
vez, Bértola e Ocampo (2010: cap. 3) deslocaram o problema para o mercado de trabalho,
argumentando que as zonas especializadas em produtos temperados tendiam a nivelar salários com a
agricultura dos países ricos, criando maior poder de compra do que nas regiões especializadas em
produtos tropicais.
142
244
6.4. Sobre a possibilidade de oligarquias em meio à turbulência global
“Enquanto o guano com seus produtos, seus empréstimos e adiantamentos”,
escreviam Copello e Petriconi nas páginas de El Nacional em 1876, “sustentou esse
equilíbrio de poder pagar uma enorme soma de importação (...), ninguém viu,
ninguém podia ver o abismo que tínhamos aos nossos pés” (COPELLO &
PETRICONI, 1971: 27). Algumas décadas depois, Carlos Calderón, figura central da
Regeneração e constituinte em 1886, ainda lamentaria o grave estado das finanças
colombianas lembrando “essa época de prosperidade universal, devida aos altos
preços das coisas, que terminou em 1873 e nunca mais voltou” (apud DEAS, 1982:
312). Com efeito, as sucessivas crises sistêmicas que seguiriam o redemoinho de
1873-1876 poriam à prova a resiliência dos arranjos periféricos entre estados
pós-coloniais e empuxo exportador. Nesse capítulo, tentamos mostrar a repercussão
dessa inflexão sistêmica sobre as trajetórias de construção da ordem política na
América Latina. Através da formação de pactos contingentes e inter-regionais de
elites, os estados latino-americanos tentaram fortalecer suas muralhas contra a
artilharia de campanha das crises fiscais e do risco de insolvência. Favores, segurança
e progresso funcionariam como moedas de troca para solidificar esses pactos,
repelindo o temor maior da ingerência externa e da guerra civil interna.
A essa altura, é conveniente perguntar: se há certos interesses e mesmo
linguagens em comum entre essas elites eurodescendentes, em que medida faz sentido
dizer que se tratam de acordos contingentes? Começando a resposta pelo empírico, os
episódios de dilaceramento desses acordos, inclusive com violência, são recorrentes.
Observemos dois exemplos contemporâneos. A queda dos preços do café cortou em
40% as receitas do estado colombiano em 1899, ao ponto de Carlos Calderón, já
Ministro do Tesouro, constatar “a impossibilidade absoluta de seguir governando com
as obrigações que gravam o tesouro nacional, sem mais rendas que as que hoje se
tem” (apud DEAS, 1982: 313). Com efeito, naquele mesmo ano, eclodiria uma
sangrenta guerra civil instigada pela insurgência liberal, que denunciava o centralismo,
a corrupção e o reacionarismo do governo da Regeneração. Após três anos de
confrontos faccionais, a vulnerabilidade do estado colombiano abriu a brecha na qual
os Estados Unidos urdiriam a independência do Panamá (1902), iniciativa de
consequências maiúsculas não só para a história colombiana.
245
Na vizinha Venezuela, a mesma baixa de preços pôs abaixo o “liberalismo
amarelo” dos herdeiros de Guzmán Blanco, derrotados em 1899 pela insurreição
andina liderada por Cipriano Castro. Com o estado afundado em dívidas, o novo
governo propôs-se a enfrentar os credores internacionais e suspender pagamentos. O
voluntarismo de Castro resultou em uma escalada de ameaças na primeira década do
século XX, tendo como clímax o bloqueio da costa venezuelana pelas marinhas de
guerra europeias em 1902. Esse movimento seria, a propósito, fonte imediata de
inspiração para a elaboração por Luis María Drago da doutrina que leva seu nome.
A derrocada do governo de Castro abriria espaço para uma das mais longas
ditaduras da América Latina. Assumindo em 1908, o general Juan Vicente Gómez
apaziguaria as relações com o capital estrangeiro, franqueando acesso às
recém-descobertas jazidas de petróleo. Apoiado nas receitas desse florescente setor, o
regime autoritário de Gómez seria uma relevante exceção na vaga de quedas de
governos e regimes após 1929: governaria até sua morte em 1935.
À primeira vista, esses casos ilustram como os acordos de elites estavam
sujeitos à fratura, e outros exemplos poderiam ser perfilados para reforçar o ponto. A
ideia mais importante, contudo, não é matizar o retrato de estabilidade institucional ou
separar as exceções que destoam do padrão. Para perceber o significado da
contingência no raciocínio, precisamos observar a estabilidade política pelo prisma de
sua fratura, da mesma forma que observamos a fratura em relação às condições de
estabilidade. Assim, em ambos os casos, o recesso do empuxo exportador induz à
crise fiscal e à insolvência; as elites políticas perdem margem de manobra para
acomodar interesses por meio do aparato de estado, e o caráter pró-cíclico do gasto
público aprofunda a crise econômica para a população. No extremo, a força centrífuga
dos interesses insatisfeitos, interna e externamente, conduz à guerra civil e à violação
externa de soberania. O desfecho da crise, nos dois contextos, esteve amparado na
retomada do ciclo extrativo-coercitivo pela fiscalidade do comércio exterior, que
permitiria distribuir novamente favores, segurança e progresso.
Em última instância, o argumento é que não há razão intrínseca ou estrutural
para a estabilidade política durante o período 1870-1930, mas que ela foi possível a
partir da reprodução continuada de mecanismos contingentes. Em 1890 na Argentina,
a crise do Banco Baring disparou enormes greves e protestos populares contra o
presidente Juan Celman até conquistarem sua renúncia. Embora fosse uma conjuntura
246
de fortalecimento do radicalismo argentino, a crise não interrompeu o domínio
institucional do Partido Autonomista Nacional. Não há causa necessária para que o
desfecho da crise de 1890 fosse diferente na Argentina do que fora na Colômbia ou
Venezuela. A rigor, a possibilidade de rotinizar a política pelo controle e acomodação
de elites setoriais e regionais era só isso: uma possibilidade, que estava
constantemente à prova e cujo sucesso dependia decisivamente dos meios materiais
disponíveis.
A discussão sobre oligarquias, em geral, tende a suprimir esse hiato de
indefinição ao acoplar elites, interesse de classe e estado em um todo compacto.
Dispensa com isso a preocupação sobre como foram “condensados”, para usar a
expressão de Nicos Poulantzas, os diferentes interesses particulares em um bloco de
poder no estado. Diante do desafio empírico em lidar eventualmente com a fricção e a
fratura dessas oligarquias, tem à disposição somente a explicação que essas próprias
oligarquias ofereciam: a guerra civil é o retorno do passado, a irrupção de um
caudilhismo atávico.
O problema não é o uso ou não da palavra “oligarquia”, o que é de menor
importância. A questão de fundo é conseguir recuperar uma explicação que comporte
processos e contingências, na qual os acordos oligárquicos estão suscetíveis às
injunções da disputa política, e, no limite, à sua própria derrocada. Desse ponto de
vista, é possível observar os estados ditos oligárquicos não como unidades
espontâneas e auto-explicativas, mas como uma gama de arranjos políticos inseridos
diante de pressões sistêmicas e sociais nitidamente definidas, mas com duração,
abrangência e resiliência variáveis conforme o caso em observação. Suprimir a
indeterminação da negociação política desses arranjos seria conceder aos objetivos de
exclusão e rotinização que eles próprios almejaram impor.
247
7. AS GUERRAS EUROASIÁTICAS E O COLAPSO DA CIVILIZAÇÃO DO
SÉCULO XIX (1910-1945)
“Fora para nós um magnífico dia, aquele 8 de setembro de 1943, quando lançamos
as nossas armas e as nossas bandeiras não só aos pés dos vencedores, mas também
aos pés dos vencidos. Não só aos pés dos ingleses, dos americanos, dos franceses,
dos russos, dos poloneses, e de todos os outros, mas também aos pés do rei, de
Badoglio, de Mussolini, de Hitler. Aos pés de todos, vencedores e vencidos. Mesmo
aos pés daqueles que nada tinham que ver com isso, que estavam ali sentados, a
gozar o espetáculo. Mesmo aos pés dos que passavam, e de todos aqueles que tinham
o capricho de assistir ao insólito, divertido espetáculo de um exército que lançava as
próprias armas e as próprias bandeiras aos pés do primeiro que chegasse. Não que o
nosso exército fosse pior ou melhor do que tantos outros. (...) Não havia um exército
no mundo que, naquela esplêndida guerra, não tivesse tido o gosto de lançar as
próprias armas e as próprias bandeiras na lama”.
Curzio Malaparte143
Na primeira metade do século XX, o sistema mundial moderno entrou em uma
espiral autodestrutiva, que arrasou definitivamente os pilares do ciclo de acumulação
que rastreamos desde a Era das Revoluções. Junto com as cidades, as indústrias e as
pessoas, as guerras exterminaram também certas convicções que haviam organizado a
política internacional até então. O funcionamento do capitalismo foi acidentado a tal
ponto de que seu relançamento exigia novas ferramentas. Algo do espírito do século
XIX parecia ter ficado nos escombros da guerra e da crise. Com efeito, a partir da
década de 1910, descortina-se a nível mundial uma situação em que a obsolescência
do ciclo anterior convive com a encarniçada disputa pelos rumos do futuro. Um dos
primeiros epicentros onde essa conjunção crítica ribomba é o México em 1910.
Não é demais lembrar: a Revolução Mexicana eclode a partir de um processo
eleitoral, mecanismo que por décadas havia sido símbolo da rotinização política do
Porfiriato. A partir do lançamento da candidatura oposicionista de Francisco Madero,
em si moderada, constitucionalista e liberal, as linhas de fissura do regime vão se
expondo. Contra o que parecia um exemplar pacto de elites, são atiçadas expectativas
de mudança sob o amplo rechaço à reeleição presidencial. Com um senso de injustiça
que ultrapassava o programa maderista, a indignação popular se alimentava pela
galopante concentração fundiária e pelas perdas acumuladas dos salários reais, além
143
Extraído de Malaparte (1972: 68-69)
248
de uma estrutura política autoritária mais permeável ao capital estrangeiro que à
oposição interna. A renúncia de Porfirio Díaz em maio de 1911 é mais que a queda de
seu longo governo; é o desmoronamento da marcha em direção ao progresso por ele
representada.
Na década que se segue, um duplo movimento reabriria radicalmente o
espectro de possibilidades da história mexicana: de um lado, o arrombamento da
arena política por grupos subalternos, o que irremediavelmente leva a crise para fora
das cumplicidades palacianas; de outro, a proliferação de demandas, imaginários e
novos projetos políticos para a disputa pela ordem. Do universo tutelado e centrípeto
do regime porfirista eclodem, no intervalo de uma geração, o agrarismo radical do
Plan de Ayala zapatista, o reacionarismo militar do Plan de la Soledad, a experiência
socialista yucateca, o movimento magonista, o novo constitucionalismo social da
Convenção de Aguascalientes, o corporativismo pós-revolucionário da tríade
sonorense, a contrarrevolução cristera, o projeto nacional-popular de Cárdenas e seus
opositores. Estes são mais do que episódios ou momentos da história da revolução
mexicana, são tentativas práticas de disputar seu significado, são alternativas em
conflito a um passado já proscrito.
Dessa forma, não estava em questão apenas quem governaria, mas em que
bases governar era possível: o que significava ser mexicano? Quem tem direito à
terra, à propriedade, aos meios de produção? Como se distribuiria a carga fiscal? Ao
que deve apelar simbolicamente o estado mexicano? Quais movimentos políticos
merecem interlocução e contrapartidas e quais devem ser unicamente reprimidos? De
certa forma, o desenrolar da revolução evidenciava a obsolescência das respostas
referenciadas no século XIX, no constitucionalismo liberal, no mercado autorregulado,
no europeísmo cientificista, na tributação alfandegária sobre os bens de consumo, no
racismo institucional.
Por ora, o tema não é a revolução mexicana em si, mas um processo em maior
escala do qual ela é um elo decisivo. Com diferentes epicentros em diferentes
momentos ao redor do mundo, com acelerações e reações, o período c.1910-1940
desagrega o que havia sido a “civilização do século XIX”, para usar novamente uma
expressão de Polanyi (2012). Assim, demarca uma descontinuidade fundamental na
formação do sistema interestatal moderno. Na América Latina, o mecanismo de
mobilização de capital e coerção que permitira o arranque de estados pós-coloniais
249
centralizados acabara engendrando, entre seus efeitos, uma situação em que sua
reprodução envolvia riscos políticos proibitivos.
As fissuras nos pactos de elites repercutiam como movimentos novos na cena
política, contrapostos ao que eles próprios passaram a qualificar de oligarquia. Com
um olhar empírico, é possível identificar como esses movimentos produzem pontos de
não-retorno na política institucional: desde o surgimento pioneiro do battlismo no
Uruguai na virada do século, sucedem-se as experiências do radicalismo na Argentina,
do alessandrismo no Chile, da formação da APRA no Peru, das sublevações rurais
lideradas por Sandino e Farabundo Martí na América Central, da radicalização do
liberalismo colombiano, da “geração de 1928” na Venezuela, do tenentismo no Brasil,
do velasquismo no Equador, do peronismo na Argentina, das frentes populares em
várias partes. Mesmo que sem a estridência dos eventos mexicanos da década de 1910
e 1920, havia uma pressão generalizada sobre as bases em que governar era possível.
Observando a ascendente de lutas operárias no começo da décade de 1910,
Astrojildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro, afirmaria que
“já o movimento revolucionário popular mexicano de 1910-1912, o advento da
república portuguesa de 1910 e bem assim a extraordinária revolução chinesa de 1912,
repercutiam entre nós como um estímulo vivo ao espírito combativo do nosso povo”
(PEREIRA, 1952: s/p). A exemplaridade da Revolução Mexicana extrapola em muito
seu contexto nacional na medida em que “o agrarismo, o indigenismo e o
nacionalismo de caráter revolucionário e anti-imperialista, ainda que venham de bases
distintas, são então ressignificados em e desde o México para o resto da América
Latina e da periferia mundial” (BRINGEL, 2017: 148).
Em 1927, Luis Valcárcel, intelectual proeminente do indigenismo radical da
chamada escola de Cuzco, fazia um chamado deliberadamente provocativo: “a
ditadura indígena”, segundo ele, “procura o seu Lênin” (apud FUNES, 2006: 56).
Germinada nos cinquenta anos anteriores, uma nova leitura da sociedade peruana
advogava então uma inversão das hierarquias coloniais, enaltecendo o índigena sobre
o branco, a serra sobre a costa, Cuzco sobre Lima. O indigenismo cusquenho era um
plano de ação de reorientação dos propósitos e dos símbolos do estado peruano, que
aspirava suplantar o servilismo das elites hispanófilas do país (FUNES, 2006: 80-85).
Essas elites, que haviam capitaneado o liberalismo hegemônico, haviam encontrado
inúmeras resistências indígenas contra a política de estado e a economia de mercado.
250
A conjectura de que esse substrato indígena seria a base vital e autêntica para a
reorganização da sociedade peruana como um todo era algo novo que, por assim dizer,
transbordava as balizas da política oitocentista. Com a efervescência da questão
nacional na América Latina, o indigenismo se converte em uma massa de modelar
para projetos políticos discrepantes no Peru, como o paternalismo dos primeiros anos
do governo de Augusto Leguía, o humanitarismo da Associação Pró-Indígena, ou a
integração entre liberação indígena e revolução socialista pelos comunistas, como
Juan Carlos Mariátegui. Nos anos 1920, as lutas dos povos indígenas peruanos
adquirem ressonância nacional: a contraposição à usurpação de terras e à violência
paraestatal se expressam por organizações próprias, como o Comitê Pró-Direito
Indígena Tawantinsuyo, fundado em 1919 (FUNES, 2006: 149).
Nesse contexto, o imaginário geopolítico de uma Indoamérica para além dos
estados nacionais criollos, cultivado por Mariátegui, forma parte de um revisionismo
mais amplo da espacialidade das “estórias de povo” no período, em que se identificam
termos como a “Nossa América” anti-imperialista de José Martí, a “Euríndia”
nacionalista de Ricardo Rojas, ou o Inkario de Luis Varcárcel, para não falar do
pan-americanismo propagado pelos Estados Unidos e seus simpatizantes (FUNES,
2006). Em outras partes do mundo, a espacialidade do pertencimento era também
tensionada por imaginários pan-islâmicos, pan-eslavos ou pan-germânicos, bem como
do internacionalismo proletário e da negritude afrocentrada inspirada por Marcus
Garvey e Aimé Césaire. A efervescência cultural e política latino-americana era parte
de um abertura mais ampla das possibilidades para ordenar o lugar da política, o
espaço do pertencimento.
É importante resgatar de nossa análise da Era das Revoluções as dinâmicas
mais gerais de contágio e circulação de ideias, exemplaridade e contraexemplaridade,
que aqui se reproduzem mutatis mutandi. O mesmo vale para o tema das “origens
multicentradas da produção ideológica”: a decadência do determinismo racial, por
exemplo, se deve rastrear tanto no México revolucionário como no Japão militarista,
ao mesmo tempo em que atingia uma espécie de paroxismo na Alemanha nazista. O
sequenciamento histórico também recobra importância: é traiçoeiro, por exemplo,
considerar que o socialismo soviético e o fascismo italiano são simplesmente dois
horizontes concorrentes de reordenamento social no pós-primeira guerra, se não
situarmos o segundo como reação direta ao contágio do primeiro na Europa. Da
251
mesma forma, a estratégia de “classe contra classe” adotada Terceira Internacional é
uma resposta, em seu contexto, à traição nacionalista observada na China em 1927,
assim como a política de “frentes populares” adotada na década de 1930 não é uma
plataforma abstrata, mas um reposicionamento estratégico diante do nazifascismo.
Do ponto de vista dos processos que identificamos nos capítulos anteriores, a
conjunção crítica do período c.1910-1940 na América Latina se situa na extrapolação
das forças centrífugas que o ciclo anterior produzira. Em primeiro lugar, isso
significou o transbordamento para fora da ordem das resistências protetivas contra a
regulação de mercado, dando vazão a utopias alternativas de refundação social. Esse
transbordamento implicava a conversão de resistências práticas em horizontes de
superação do liberalismo hegemônico como terreno ético-político do bom, do justo e
do necessário. Essa superação podia mover-se por relações ético-políticas de matriz
nacionalista ou anarcossindicalista, comunista ou indigenista, fascista ou outras e
híbridas.
Em segundo lugar, a ignição da conjunção crítica também representava o
transbordamento para fora da ordem das fissuras dos pactos políticos inter-regionais
e intersetoriais tecidos nas décadas anteriores. Observamos no capítulo passado como
esses pactos não eram capazes de anular a fricção política, e, nos momentos mais
agudos de crise, estavam sujeitos a serem desmantelados e reconstruídos por uma
facção desafiante, como vimos no caso da Venezuela sob Vicente Gómez. A situação
se altera quando as elites dissidentes se aliam a grupos subalternos fora do perímetro
de negociação dos pactos oitocentistas. Na Colômbia, por exemplo, o Partido Liberal
recobra energia e abrangência ao acolher a agitação trabalhista e camponesa nas
décadas de 1920 e 1930, reinventando-se com um cunho popular e anti-imperialista.
No Brasil, as elites periféricas insatisfeitas com o controle de São Paulo sobre a
política nacional aliaram-se aos militares tenentistas para mudar o regime em 1930.
Assim, o capítulo completa o arco histórico que perfazemos desde a crise dos
impérios ibéricos, delimitando uma nova conjunção crítica. É óbvio que não se trata
de uma série de “revoluções mexicanas” se replicando pelo continente, assim como a
Era das Revoluções não fora uma sequência de Haitis ou Franças. Tampouco havia,
em meio à crise, um relógio mundial para sentenciar o fim do “longo século XIX”.
Mais que uma coincidência empírica, o que estava em jogo era a irreversibilidade que
se produziu pelo descarrilamento das bases de reprodução ampliada e recíproca de
252
estados e capitais. Havia uma ruptura em curso na governabilidade mundial, que
afetava as condições de possibilidade da dominação política. Trata-se de uma
conjunção crítica também no sentido em que as saídas para o impasse adquirem maior
duração histórica, ao normalizar a política em um novo ciclo expansivo.
7.1. Os giros da bússola do progresso
Para situar essa conjunção crítica em nível sistêmico, é preciso entender três
dimensões interligadas: (1) o fim do ciclo sistêmico de acumulação liderado pelo
Império Britânico, (2) a crise dos fundamentos ético-políticos que serviam de esteio
para a política do século XIX, (3) o declínio do poder imperial europeu sobre o resto
do mundo. Iremos examinar em seguida cada uma delas para perceber seu impacto
para a imaginação política na América Latina e, mais especificamente, para
reprodução dos estados pós-coloniais e periféricos na região.
(1) A derrocada definitiva da governabilidade mundial sob a hegemonia
britânica é provocada, de um lado, pela saturação do padrão concorrencial de
acumulação capitalista, e, de outro, pela beligerância crescente do sistema interestatal.
Abre-se uma espiral de conflitos mundiais (1914-1945) que Immanuel Wallerstein
aglutinou como “Guerras Euroasiáticas”, análoga ao que haviam sido, do ponto de
vista das transições hegemônicas, as guerras de 1791-1815 e 1618-1648
(WALLERSTEIN, 2000: 258). Em movimentos sucessivos a partir de 1914, vão se
esfacelando as condições de complementaridade, estabilidade e soma-positiva
herdadas do ciclo hegemônico anterior: a divisão internacional do trabalho, a
estabilidade financeira internacional, o contrabalanceamento entre as grandes
potências, a circulação internacional de capitais, os mecanismos gradualistas de
compensação à classe trabalhadora. O acirramento do conflito sistêmico (interestatal e
intercapitalista) atinge o limite crítico de emperrar a economia internacional após
1929, jogando-a em um precipício de entesouramento, desemprego, superprodução e
guerra.
Individualmente para os estados do sistema, ora de forma mais aguda ora mais
gradual, as condições de reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo minguam
em função da deriva econômica. Como tendência, a constrição fiscal produzia
adversidades políticas: os estados distribuíam maiores ônus a um maior número, na
253
forma de repressão, fardo fiscal, exclusão política, em alguns casos levado ao extremo
pelas exigências humanas e econômicas da mobilização militar. Embora a derrocada
da governabilidade ocorra em escala sistêmica, as rupturas políticas concretas se
desencadeiam e desenvolvem em escalas, direções e ritmos específicos aos contextos
nacionais. Na América Latina, a sustentação material dos pactos interregionais de
elites foi se comprimindo junto com as oportunidades fiscais do comércio
internacional e a hostilidade do mercado mundial de capitais. Se na Era das
Revoluções a região esteve entre os últimos epicentros da crise mundial nas décadas
de 1810 e 1820, na conjunção crítica 1910-1945 ela figura já nos primeiros
movimentos de demolição da ordem hegemônica no século XIX.
(2) uma implosão do edifício ético-político que vertebrara as práticas,
horizontes e agentes da ordem política hegemônica no “longo século XIX”. Diante da
profundidade da crise sistêmica, vê-se contrair a capacidade de produzir
consentimento e ordem a partir de um imaginário de individualismo abstrato, de
parlamentarismo aristocrático e da primazia do direito positivo; de um pensamento
econômico baseado na autorregulação de mercado e no livre comércio internacional;
de uma geografia imaginária baseada na missão civilizadora europeia sobre o resto do
mundo. Perdem produtividade como apelos ético-políticos por não atingir resultados
concretos, mas também por serem ultrapassados por fundamentos novos de
organização do justo e do injusto na disputa política.
Por sua radicalidade e sua irradiação mundial, a Revolução de Outubro de
1917 na Rússia é um ponto de inflexão incontornável. Com incrível ímpeto, o
governo revolucionário move-se em direto confronto aos limites do possível na
política oitocentista: extingue a propriedade privada e afirma a igualdade oficial entre
homens e mulheres, promove uma reforma agrária e expropria o capital estrangeiro,
compromete-se com a autodeterminação dos povos sob jugo colonial e com o
internacionalismo proletário. Era uma avalanche de pautas oriundas do movimento
operário e das duas Internacionais que aterrissam à prática concreta de governo,
pondo na ordem do dia o que até então era marginal, interdito ou inimaginável para o
jogo político institucional. O fato de a URSS empiricamente não realizar, e mesmo
trair abertamente, os horizontes de futuro que descortinou não diminui a
descontinuidade que essa experiência revolucionária representou, como exemplo e
254
contra-exemplo, do ponto de vista dos imaginários políticos do século XX em
formação.
(3) por fim, as Guerras Euroasiáticas marcam também uma crise do poder
imperial europeu sobre o resto do mundo, dessacralizando hierarquias sociais por ele
produzidas. Com a guerra industrial nas trincheiras da Europa ocidental entre 1914 e
1918, a mais aterradora barbárie aflorava onde se imaginava o coração da civilização.
Com o desenvolvimento do conflito, não só os estados imperiais da Europa tinham
estirado suas capacidades fiscais e militares à beira da exaustão, mas adernava o
próprio imaginário oitocentista de que os europeus brancos constituíam a ponta de
lança da civilização humana. O que era símbolo do progresso universal se convertia
em instrumento da mais flagrante irracionalidade: as ferrovias e telégrafos
impulsionavam a logística de uma carnificina inconclusiva, sem vitorioso nem épico,
enquanto a produção em massa permitia vestir e armar soldados que seriam
exterminados pelos mais novos desenvolvimentos da indústria química, mecânica e
balística (ADAS, 1990: 365-380). Em tal cenário, aos olhos dos “povos sem história”,
os europeus pareciam incapazes de controlar as forças que haviam liberado.
Nas décadas de 1910 e 1920, o decadentismo da civilização ocidental se
tornou um tema da época, da filosofia acadêmica às vanguardas artísticas, do
arquiconservadorismo aos estrategistas revolucionários. É mote nos escritos de
Osvald Spengler a Victor Haya de la Torre, de Aimé Césaire a Paul Valéry. As
rachaduras na supremacia europeia vinham de lados distintos: artistas de vanguarda
como Picasso e Matisse descobririam, no começo do século XX, a originalidade da
arte africana saqueada pelo imperialismo, enquanto a ascensão japonesa despertava o
espectro de uma futura superioridade industrial e militar da Ásia contra a Europa. De
outra parte, uma onda de ceticismo ao materialismo ocidental encontraria abrigo na
fascinação pela transcendência e pela espiritualidade das civilizações milenares da
Ásia (ADAS, 1990: cap. 6).
Em 1913, o dirigente bolchevique Vladimir Lênin, em um artigo no Pravda
intitulado “Atrasada Europa, progressiva Ásia”, denunciaria a disposição da burguesia
europeia em apoiar tudo o que fosse “retrógrado, moribundo, medieval” em defesa da
escravidão assalariada, ao passo que na Ásia “um robusto movimento democrático
está crescendo, espalhando-se e ganhando força” (LENIN, 1913: s/p). O nacionalismo
emergente na Revolução Chinesa e na Mexicana, ou mesmo no mundo árabe dos anos
255
1910, ebule um sentimento anticolonial que é o outro lado da retração do poder
europeu sobre o resto do mundo. “Uma civilização que se revela incapaz de resolver
os problemas que seu funcionamento suscita”, diria Aimé Césaire na abertura de seu
Discurso sobre o Colonialismo, “é uma civilização decadente” (CÉSAIRE, 1978: 13).
A conjugação entre (1) o colapso da hegemonia britânica, (2) a descrença nas
utopias organizadoras do “longo século XIX” e (3) o descentramento da Europa no
mundo produziram um terremoto no sistema mundial análogo, então, à Era das
Revoluções no ciclo anterior. Em ambas as conjunções críticas, um gatilho decisivo
da crise é a implosão, mais ou menos controlada, de grandes estruturas imperiais
premidas pela escalada da competição sistêmica. Em dominó a partir da década de
1910, desmantelam-se a China Qing, vulnerável e impotente à ingerência ocidental, e,
sufocados pela pressão da guerra industrial, a Rússia czarista, a monarquia Habsburgo,
o império Turco-Otomano e, de forma muito mais controlada, os impérios
ultramarinos ocidentais. Contra a teia de partilhas coloniais, prerrogativas
extraterritoriais, privilégios comerciais e arranjos de governo indireto que os europeus
teceram até 1914, foram se levantando reivindicações soberanas contra o domínio
estrangeiro.
Em tal contexto, o princípio de autodeterminação dos povos vertebra as
expectativas de autonomia e de ruptura com o passado, ao mesmo tempo em que é
apropriado por diferentes projetos de futuro. A nova geração de radicais pan-islâmicos
que emerge no Magreb francês olhava para a revolução turca de 1908 como modelo
(BAYLY, 2004: 463). Os chineses exilados no Japão desenvolveriam um imaginário
pan-asiático anticolonial, apropriando-se do significado da Restauração Meiji contra o
domínio ocidental (KARL, 1998). Mais do que novos estados independentes, havia
uma utopia de autogoverno pelo rompimento das amarras do passado colonial, o que
teria enorme ressonância mesmo entre as sociedades já formalmente independentes na
América Latina. O imperativo de levar a autonomia nacional para além dos limites
das elites europeístas é ponto incontornável para entender o momento na América
Latina. Como dizia um dos cânticos da resistência sandinista na Nicarágua, na década
de 1930, “Somos los libertadores / que con sangre y no con flores / Venimos a
256
conquistar / la segunda independencia / Que traidores sin conciencia / han querido
profanar”144.
A ideia de que a luta anticolonial se enganchava com a superação dos
mecanismos sistêmicos de subordinação da periferia foi base para uma nova
solidariedade horizontal entre as sociedades pós-coloniais. Essa solidariedade é parte
do surto de criatividade social que identificamos nesses anos conturbados.
Inicialmente sob os auspícios da Comintern, cria-se em 1927 a pioneira Liga contra o
Imperialismo, com delegados de 37 estados ou colônias, representando diversos
movimentos e partidos de esquerda do que viria a ser chamado posteriormente de
Terceiro Mundo (CABALLERO, 2002: cap. 1; PRASHAD, 2007: 16-30). Com efeito,
a esquerda organizada já não era uma exclusividade ocidental nem seria naturalmente
controlada por dirigentes europeus.
Os participantes latino-americanos da conferência de Bruxelas, como o cubano
Juan Antonio Mella, o peruano Victor Haya de la Torre e o mexicano José
Vasconcelos, são figuras-chave das mudanças de horizonte em curso na região. Em
1938, o intelectual argentino Guillermo Francovich registra, em tom crítico, a
devoção a “ídolos europeus que, conquistando os homens a partir de seu interior,
perpetuam simbolismos intelectuais que implicam, quase sempre, imperialismos
econômicos ou políticos" (apud DEVÉS-VALDEZ, 1997: 327). Moldado muito
diretamente pelo intervencionismo estadunidense, o latino-americanismo adquire
ímpeto como projeto político amplo de solidariedade anti-imperialista, combinado a
um movimento de afirmação e criatividade cultural.
A autodeterminação era um terreno ético-político que as potências europeias
tinham poucas chances de disputar. Ocasionalmente, os britânicos podiam ter sucesso
em acalentar a autodeterminação árabe sob o jugo otomano, como fizeram na
Primeira Guerra, mas suas incongruências logo aflorariam como repressão imperial
não só no Oriente Médio, mas na Irlanda e no Sul da Ásia. Com efeito, a
autodeterminação operava justamente contra as potências ocidentais e elas não
poderiam disputar suas consequências sem deixar de serem potências. Esse paradoxo
irreconciliável comprime a história da península europeia no século XX: manter sua
Há diversos registros dessa canção disponíveis na Internet. Ver por exemplo o seguinte:
http://prensairreverente.cl/sandino-maestro-del-anti-imperialismo/. Último acesso em 29/01/2019.
144
257
posição geopolítica sem abdicar de seu imaginário iluminista era um esforço fadado a
fracassar em ambas as frentes.
Enquanto o europeísmo esvaziava-se após a Primeira Guerra Mundial, duas
utopias contrapostas protagonizaram a disputa pelo horizonte de autodeterminação
dos povos: o marxismo-leninismo da URSS/Comintern e o liberalismo multilateralista
dos 14 Pontos de Wilson. Diante do descongelamento do poder imperial europeu, elas
se alçavam como alternativas políticas concorrentes no pós-guerra, inclusive para
refratar as reivindicações de soberania no mundo colonial. Por certo, não eram
“alternativas” abstratas, já que ancoradas no peso geopolítico de estados concretos.
Também na geopolítica do sistema interestatal as Guerras Euroasiáticas haviam
soterrado o longo século XIX.
7.2. A crise do liberalismo latino-americano
No capítulo 6, vimos como o mecanismo que conectava os estados
pós-coloniais ao mercado mundial gerava subprodutos que se acumularam como
oposição política, como novas subjetividades que se formavam à parte da rotina
institucional. Vimos também que o trunfo da estabilidade passara pela capacidade de
acomodar elites regionais e setoriais por meio da maquinaria estatal, com cargos,
recursos e proteção. Essa concertação fora o eixo da tendência de nacionalização da
disputa política. Contudo, quanto mais se reproduzisse a alimentação recíproca entre
estado pós-colonial e capitalismo periférico, maior era o resíduo acumulado na forma
de população humana desencaixada, sedimentada no mercado de trabalho ou em suas
bordas. Com isso, o processo de desencaixe redirecionava demandas, expectativas e
afiliações em direção a organizações políticas cuja estabilidade dependia justamente
da exclusão das maiorias.
Essa contradição explica a vulnerabilidade crescente da política institucional à
“artilharia de campanha” das crises econômicas internacionais. A austeridade fiscal
acarretava a distribuição social aguda e regressiva de ônus e, consequentemente, um
acirramento das pressões políticas sobre a seletividade da extração e do gasto. O
emprego da força e da vigilância contra a contestação social alimentava o dissenso
sobre a seletividade da proteção e da ameaça. Dessa forma, a disputa ao redor da
seletividade do ciclo extrativo-coercitivo era, inevitavelmente, uma controvérsia sobre
258
as fronteiras do pertencimento político, suas linguagens e suas consequências
institucionais.
Em casos extremos, essa disputa extrapolou para situações de soberania
múltipla, como o exemplo inicial do México não deixa dúvida. De forma geral, as
reivindicações alternativas de soberania não tinham o caráter autonômico e localista
que prevaleceu no ciclo das independências. A verticalização do confronto político, já
consumada pela concentração de capital e coerção, fazia com que os projetos
alternativos de ordem fossem colocados perante o aparato de estado, isto é,
referenciados nele. Isso valia tanto para os movimentos que lhe negavam qualquer
forma de legitimidade, como os anarquistas, até aqueles que pretendiam salvá-lo por
um regime autoritário e nacionalista.
Nesse cenário, a formação de um novo arranjo hegemônico não se resolveria pela
simples adesão do maior número ou pela reaglutinação do controle político sobre a
violência. Seu arranque dependia de rearticular, em bases nacionalizadas, (1) um
destravamento do ciclo extrativo-coercitivo, encontrando novos trilhos para sua
ampliação em meio à crise; e em paralelo, (2) uma reordenação do imaginário de
pertencimento político, produzindo deslocamentos consistentes de suas linhas de
inclusão e exclusão política. Nessa seção, iremos observar o desenlace desses dois
fatores pensados na escala de estados individuais. Em seguida, como fim do capítulo,
iremos mostrar como as condições de possibilidade para essa nova ordem hegemônica
transcorriam em escala sistêmica. Da sequência de guerras mundiais emergia uma
reorganização expansiva da relação entre estados e capitais, assentando, sob liderança
dos Estados Unidos, condições sistêmicas de complementaridade econômica e
segurança internacional.
(1) O reimpulso da capacidade fiscal e coercitiva dos estados, em uma
conjuntura internacional adversa, era condição para sua estabilidade. Esse reimpulso
não poderia apresentar as mesmas características em todas as repúblicas americanas.
Por razões várias, a começar pelo desenvolvimento desigual do ciclo de acumulação
anterior, as oportunidades fiscais não estavam dispostas de forma homogênea, o que
definia condições iniciais distintas na crise. Diante da desintegração da divisão
internacional do trabalho, as alternativas políticas disponíveis sofriam influência
dessas condições iniciais. Nos casos que detalharemos nesta tese, México, Argentina e
Brasil, forma-se claramente uma estratégia de transformação produtiva, na qual a
259
fiscalidade se molda às necessidades da industrialização induzida e às oportunidades
fiscais do mercado interno (WHITEHEAD, 2009). Nestes casos, a trajetória
semiperiférica precedente já ensejara um circuito entre consumidores locais e
industrialização substitutiva antes da Primeira Guerra, capaz de responder aos
estímulos de preço dados pelo colapso do comércio exterior.
Como mostraram Cardoso e Brignoli (1983), Bulmer-Thomas (2003: cap. 6-7) e
Furtado (1970), não se pode generalizar essa inflexão industrialista para a região
como um todo. Mesmo na década de 1930, quando a crise mundial atinge sua maior
estridência, há casos em que a retomada das exportações recupera o metabolismo
fiscal sem encaminhar uma estratégia de transformação produtiva. Essa recuperação
passa por estratégias de fomento institucional às exportações, como as que Bucheli e
Sáenz (2014) detalharam para o caso colombiano. Na Costa Rica, é criado em 1933 o
Instituto de Defesa do Café com o propósito de proteger e alentar a exportação-chave
do país, mediando a tensão social entre produtos e beneficiadores (ACUÑA &
MOLINA, 1991: cap. 5). Em paralelo, o colapso do comércio exterior também
impactava positivamente a agricultura de substituição de importações, que foi capaz
de drenar o mercado de trabalho ocioso onde a industrialização não ocorria. “Talvez
pela última vez em sua longa história”, constatou Alan Knight em uma analogia
exemplar, “o México rural serviu como uma esponja para absorver o desemprego e
compensar a contração da economia urbana, industrial e exportadora” (KNIGHT,
2014: 220).
De forma geral, a relação entre estado e economia estava sendo reinventada sob a
pressão das circunstâncias. O peso do comércio exterior, como seria de esperar, recua
em todas as economias da região, em alguns casos de forma drástica (Tabela 7.1).
Mesmo os setores exportadores tradicionais passaram a ser cada vez mais envolvidos
por políticas específicas de indução, proteção e planejamento estatal. O desemprego
ocupou forçosamente o cerne das preocupações de qualquer governo. Com isso, a
estabilidade social passou a se vincularar ao sucesso da gestão macroeconômica,
mesmo que à revelia dos princípios do liberalismo vitoriano. A gestão e o
planejamento econômico envolviam informações agregadas e conhecimentos de
estado que ainda estavam por se desenvolver. Essa é uma face econômica da
nacionalização da política: ao colocar a subsistência, o trabalho e os lucros cada vez
mais em função de decisões e resultados da política econômica de quem governa, uma
260
série de pressões sociais se direcionaram para essas decisões e seus resultados.
Quanto mais a flutuação da “economia nacional” afetava o cotidiano das pessoas,
mais elas projetavam sobre a política nacional as saídas para seus problemas.
Frente ao naufrágio da autorregulação de mercado, surgem iniciativas mais ou
menos consequentes de um novo ativismo estatal: reformas fiscais com o intuito de
interiorizar, redistribuir e elevar a extração regular, bem como investidas de
centralização da moeda e do crédito. Surgem experimentos de estatização setorial e de
controle de preços, além de órgãos especializados para o planejamento econômico, a
pesquisa e o fomento econômico. Acima de tudo, há mudanças significativas na
relação do estado com a força de trabalho, seja porque a crise enseja políticas
emergenciais de manejo e controle dos trabalhadores, seja porque a reconstrução da
ordem passa por estratégias institucionais de mediação estatal entre grandes
organizações de empresários e trabalhadores.
Nos anos 1920 e 1930, as chamadas missões Kemmerer (em alusão ao
professor de economia que as liderava) prestaram assessoria a diversos governos
latino-americanos para reorientar as práticas tributárias e financeiras, o que resultou
em uma onda de criação de bancos centrais e de instituições de supervisão bancária.
Com a crise de 1929, a banca livre praticamente deixou de existir na América Latina,
decididamente substituída pelo monopólio legal da emissão e, logo, da decisão de
política monetária (BULMER-THOMAS, 2003: 176).
O enxugamento das oportunidades fiscais ligadas ao comércio exterior
pressionava por novos mecanismos de extração, em geral mais sofisticados do ponto
de vista administrativo (Tabela 7.2). Além da tributação sobre o mercado interno, a
terra ou mesmo a renda, os estados em crise também recorriam a subterfúgios
heterodoxos como o ágio cambial, isto é, imposto informal obtido sobre a diferença
entre taxas oficiais de câmbio. A política fiscal contracíclica, que se tornaria
emblemática da economia keynesiana, foi praticada, por assim dizer, já “antes de
Keynes” por vários governos latino-americanos premidos pelas circunstâncias
(DRINOT & KNIGHT, 2014). O imperativo macroeconômico do emprego e da renda
abria uma imensa via adensamento e coordenação interna do aparato administrativo,
de suas capacidades de governo. No pós-Segunda Guerra, essas múltiplas iniciativas
ativismo estatal se galvanizariam em torno da agenda do desenvolvimento, enquanto
261
pretensão de um capitalismo estável e progressivo, dirigido pela ação racional do
governo.
(2) A reordenação social dependia da construção de formas de adesão política
que conseguissem capturar as expectativas e subjetividades revolvidas naquela
conjunção crítica. A crise de regulação do laissez-faire era também uma crise do
arranjo político elitista que blindava o credo liberal de uma contraposição efetiva,
mantendo esta última em um terreno amplo de criminalização política. Frente à crise
social instalada no período c.1910-1940, a reconstrução de um edifício ético-político
para governar não poderia ser um movimento intangível, uma manobra retórica, um
jogo de novos discursos. A construção de uma ordem hegemônica dependia de
remodelar as bases de sustentação do governo, o que não se faz sem política concreta
para tal.
Essa política pode adquirir inúmeras formas empíricas, da reforma agrária ao
financiamento sindical, da educação pública ao sufrágio universal, da reorganização
fiscal aos direitos trabalhistas, das associações paraoficiais de juventude à propaganda
de massa. O enraizamento de um novo imaginário de pertencimento político
correspondia a novas e vastas searas de política pública. Mais profundamente, a
produção dessas políticas implicava um recálculo da distribuição seletiva de coerção e
proteção, de extração e gasto em uma sociedade em mudança. Por conseguinte, como
forma de restabelecer as hierarquias sociais em abalo, a ordem emergente movia as
linhas de inclusão e exclusão política com relação ao século XIX em colapso,
redefinindo na prática o apelo à nação, ao povo, à pátria.
Para observar de forma menos abstrata esse movimento, tomemos o caso da
formação da classe operária, de indiscutível importância para a falência da ordem
oitocentista e para a eclosão de novos projetos políticos em seus escombros. É comum
considerar que a primeira metade do século XX representa o processo de
“incorporação” da classe trabalhadora ao jogo político institucional, sobre o qual Ruth
Collier e David Collier discriminaram trajetórias comparadas (COLLIER &
COLLIER, 2002). A detalhada investigação dos Colliers se pauta por um dilema
posto ao estado e aos trabalhadores: para quem governa, havia a decisão entre represar
o poder operário ou tentar mobilizá-lo, fantasiá-lo, evocá-lo em seu favor; para as
organizações de classe, a escolha se daria entre denunciar o caráter opressor do estado,
enfrentando a repressão e resguardando sua autonomia, ou negociar vantagens e
262
garantias para os trabalhadores junto à política institucional, adequando-se a suas
possibilidades e limites. Não há um modelo de equilíbrio que explique os resultados
ótimos dessa interação, mas se pode observar as consequências da “incorporação”
quando ela ocorreu.
No começo dos anos 1920, o México foi possivelmente o primeiro
experimento de conformação corporativa do trabalho ao estado, com a CROM
reformista e o PLM de Luis Morones sustentando o bloco de Obregón (ver capítulo 8).
Segundo Morones, o estado não deveria tomar o lado nem dos empresários, nem dos
trabalhadores, mas encarnar um “juiz da vida social” (apud COLLIER & COLLIER,
2002: 212). Antes disso, o battlismo uruguaio e o radicalismo argentino haviam
franqueado espaço legítimo à organização sindical moderada, eventualmente
arbitrando conflitos em favor dos trabalhadores. No entanto, sob efeito da pioneira
constituição de 1917, o México dos anos 1920 permite ver em primeira mão “a
emergência, face às induções [postas pelo estado], de um setor dominante dentro do
movimento operário desejoso de colaborar com o governo” (COLLIER & COLLIER,
2002: 211).
As tendências anarquistas e libertárias, que haviam sido decisivas para a
organização dos trabalhadores à margem das instituições no meio século anterior,
atraíam redobrada repressão a suas organizações, eventos e militantes. O
estreitamento do espaço ao sindicalismo autônomo correspondia a abertura de espaços
ao sindicalismo atrelado ao estado ou a um partido específico. Relativamente
resguardado do aparato repressivo e dispondo de canais de interlocução, ele podia
retribuir conquistas trabalhistas imediatas a seus partidários se contasse com a
disposição de elites políticas em fortalecê-los. Com o fim do chamado “terceiro
período” da Comintern, e a revisão da política de “classe contra classe” em 1935,
mesmo os partidos comunistas latino-americanos se inclinaram a uma política de
alianças mais abrangente, sustentando governos capitalistas e barganhando projetos
reformistas. Nos anos 1940, os partidos comunistas compuseram a base governista em
países como Equador, Cuba e Chile (CABALLERO, 2002).
Ressalvadas por ora as particularidades de cada caso, essa possibilidade de que
elites políticas e organizações de trabalhadores redefinissem os termos de sua
interação nos ilustra bem alguns pontos do argumento anterior. Primeiro e mais
evidente, ilustra um movimento de captura da oposição por um projeto de ordem
263
política em formação, através da institucionalização do conflito. Se a emergência da
classe operária havia disparado utopias radicais de refundação social, essa tentativa de
captura não transplanta uniformemente esse imaginário para o estado, mas sim o
recorta, modula e recria para conformá-lo a uma nova rotina institucional, da qual os
trabalhadores como classe são um sustentáculo. Para tal, a assimilação de suas
expectativas é acompanhada de uma neutralização do potencial explosivo da ativação
operária em uma sociedade capitalista.
Em segundo lugar, esse exemplo permite entender a movimentação das linhas
de inclusão e exclusão política como parte da circunscrição de uma nova ordem
hegemônica. Se os pactos de elite colocavam toda a organização política dos
trabalhadores em um terreno de criminalização política, a possibilidade de
atrelamento institucional desloca a linha divisória para dentro do movimento operário,
segmentando-o. Ao invés da repressão indistinta, as elites políticas interessadas em
angariar apoio sindical passam a organizar uma nova seletividade prática em função
desse apoio. Enquanto as correntes radicais são mantidas na zona de criminalização,
tidas como elementos antinacionais, terroristas ou subversivos, cria-se um segmento
de organização dos trabalhadores que pode ser trazido, grosso modo, para dentro do
escopo de proteção, reconhecimento e barganha por políticas públicas. A seletividade
inerente do ciclo extrativo-coercitivo é redimensionada para tornar plausível a captura
dessa subjetividade política, a classe trabalhadora, ao universo ético-político da ordem
em formação, enquanto expressão profunda da nacionalidade.
Em terceiro lugar, essa nova seletividade da coerção e da fiscalidade altera a
fisionomia do estado tanto quanto induz uma mudança nas organizações de classe.
Essa transformação recíproca aparece esmaecida na ideia de “incorporação”, que à
primeira vista sugere uma assimilação de um ator externo a uma arena política
pré-existente. Do ponto de vista da organização operária, o atrelamento ao estado
esteve ligado ao declínio das grandes federações autônomas, da organização local nos
distritos operários, das associações mutuais independentes, além de ações diretas e
espaços organizativos em que a identidade de classe não estava claramente discernida.
Em seu lugar, ganhavam maior peso as centrais sindicais de amplitude nacional,
legalizadas, mais duráveis, com maior burocratização de seu funcionamento interno, e
com prerrogativas para negociar as induções estatais à adesão política dos
trabalhadores.
264
A produção dessas induções, por sua vez, representava um dínamo de
transformação do aparato de estado como apaziguador do conflito de classe. Para
apoiar-se no trabalho organizado para governar, era necessário produzir realidades de
que os estados latino-americanos até então desconheciam os meandros: legislação
trabalhista, educação em massa e propaganda política, por exemplo, não ocorriam sem
ministérios específicos, fiscalização, estatísticas, arquivos, órgãos judiciários
especializados e orçamento disponível. A institucionalização da barganha, para atingir
resultados políticos, impulsiona uma transformação recíproca nas partes envolvidas, o
que exemplifica o raciocínio apresentado ainda no capítulo 1.
É lógico que essa “incorporação” é apresentada aqui de forma esquemática,
com o intuito de elaborar conceitualmente o processo. Empiricamente o “movimento
operário” corresponde a uma miríade de insurgências, organizações e suas orientações
ideológicas, assim como o estado é na prática uma constelação de agências e
tomadores de decisão sem coerência monolítica. Ora, entre esses dois grupos se
produz uma fricção infinitesimal de greves, arbitrariedade policial, peças legislativas,
eleições para os sindicatos e para o governo, marchas, discursos públicos, decisões
judiciais, intervenção sobre certos sindicatos, reuniões de líderes, Primeiros de Maio,
propaganda de rádio, recrutamento para o aparato de estado, conflito entre agências, e
assim indefinidamente, de eventos maiúsculos a atritos pontuais. Para cada contexto
concreto que se observe, o movimento possui uma densidade que só a pesquisa
empírica pode reconstituir com nitidez.
Agora, a organização conceitual do processo nos mostra que há uma
imbricação os dois fatores apresentados inicialmente: de um lado, a reconstrução de
um edifício ético-político para governar, que implica algum movimento das linhas
divisórias da proteção/repressão e do bônus/ônus fiscal diante de subjetividades
políticas emergentes; e, de outro lado, o destravamento do ciclo fiscal para o estado
manobrar essa sustentação política por induções materiais, o que resulta em uma
ramificação do aparato de estado. Essas subjetividades políticas não se resumem
certamente ao movimento operário, usado aqui como ponto de observação.
A crise da ordem política oitocentista ensejou uma desnaturalização das
hierarquias que ela havia consagrado, abrindo flanco a questionamentos políticos
sobre o gênero, a etnia, a história, a cultura. Como quadro geral, o movimento das
linhas de inclusão política acata às três características mencionadas: a mudança
265
organizativa das partes envolvidas, um impacto correspondente na seletividade do
ciclo extrativo-coercitivo e uma apropriação seletiva das utopias alternativas e de seus
sensos de (in)justiça, como meio de acomodá-las à ordem em formação. Em tese,
quanto mais radical foram esses movimentos, mais discerníveis hão de ser essas
características. Para os propósitos dessa tese, é certo que a cristalização dessas
mudanças institucionais permite divisar o fim do ciclo que adotamos como recorte.
7.3. O magnetismo dos Estados Unidos
Em 1900, os Estados Unidos já despontavam por qualquer indicador de
desenvolvimento capitalista, com a maior produção siderúrgica mundial e novas
tecnologias aplicadas à gestão corporativa. A famosa imagem acalentada por Thomas
Jefferson de uma nação de pequenos proprietários rurais já havia sido ultrapassada por
uma economia de mercado de proporções continentais. Pelo que se podia entrever na
virada do século, é tentador afirmar que já estavam ali postas as condições para o que
seria o “século americano”, isto é, os passos de sua “marcha para a hegemonia”
(TEIXEIRA, 1999). Munido dessas cifras, somos tentados a sobrecarregar uma
imagem de excepcionalismo estadunidense, de certa predestinação histórica de sua
supremacia.
A imprecisão dessa imagem advém, em primeiro lugar, do fato de que não era
inequívoco em 1900 que os Estados Unidos efetivamente triunfariam sobre seus
competidores; e tampouco seria sob as bases dadas em 1900, apogeu dos chamados
robber barons, que eles lograriam reorganizar o sistema mundial. Para um observador
sensato em meados de 1940, com a Eurásia dividida entre o nazifascismo e a URSS, a
evolução dos EUA como locomotiva do século XX pareceria mais uma aposta que
uma constatação. Ao invés de ser a universalização de uma situação prévia, a
conformação da hegemonia estadunidense corre no eixo central da conjunção crítica
que estamos observando. A formação dos pilares dessa hegemonia, pois, segue a
266
dinâmica multicêntrica de circulação de ideias e práticas, de interação recíproca e
sequenciamento que mostramos anteriormente de forma mais geral145.
Para manter o fio explicativo do capítulo, iremos observar esse processo a partir
de (1) o papel do estado na organização do capitalismo, o que significava refundar o
liberalismo, (2) a criação de novos parâmetros ético-políticos para balizar a política,
erguendo a democracia e o desenvolvimento como utopia universalista contra o
marxismo-leninismo, (3) a criação de mecanismos de arrefecimento da competição
interestatal e intercapitalista.
Em um ensaio chamado “Sou um liberal?” de 1925, John M. Keynes reclamava
que os interesses empresariais eram “incapazes de distinguir novas medidas para
salvaguardar o capitalismo do que eles chamam de Bolchevismo” (KEYNES, 1968:
327). Para ele, enquanto os governos, inspirados pela autorregulação de mercado,
permanecessem passivos frente ao desemprego e a fome dos trabalhadores, o
comunismo continuaria uma alternativa imediatamente mais atraente. Sua defesa da
intervenção estatal está amparada nesse duplo apoio: a coincidência entre interesse
particular e bem público não pode ser pressuposta pela teoria econômica, e a
experiência de socialização total da produção, nos moldes soviéticos, era a maior
ameaça posta ao liberalismo como filosofia social. O “longo século XIX” havia
embalsamado uma doutrina econômica que traduzia a aspiração de liberdade e
igualdade em uma microeconomia da livre concorrência, com unidades racionais
produzindo involuntariamente o progresso social. Já o “longo século XX” precisava
responder à aspiração de segurança material em uma sociedade de massas regulada
pelo mercado.
Para “salvaguardar o capitalismo”, então, ganhou forma entre intelectuais e
políticos uma macroeconomia do pleno emprego, um saber econômico novo que
pretendia responder às expectativas sociais relacionadas ao investimento, ao emprego
e à renda que o mercado autorregulado frustrara. Em lugar de Smith e Marshall,
abre-se o século de Keynes e Kalecki: o estado manipula alavancas de uma economia
nacional em função de seus resultados agregados. O governo passaria a ser
Em um sentido profundo, o que conhecemos como “século americano” é resultado de uma corrida
fiscal-militar entre capitalismos dirigidos (Alemanha, EUA, Japão) e suas periferias regionais,
atravessada pelos epicentros revolucionários do período 1910-1940 e seus movimentos de reação.
Como resultado de processos e contingências nessa corrida, os Estados Unidos prevalecem como
potência hegemônica, extrapolando seu interesse particular como governabilidade mundial em um
novo ciclo de acumulação. Para uma análise das estratégias concorrentes de desenvolvimento, ver os
estudos organizados por José Luis Fiori (1999).
145
267
responsável pelo desenvolvimento econômico, e a garantia de demanda efetiva
entrava no cotidiano da disputa política. Por isso o planejamento estatal,
desembaraçado de sua origem soviética, o controle do crédito, a política fiscal
contracíclica e o monitoramento das contas nacionais ganham espaço dentro de um
“novo liberalismo” (a expressão é usada por Keynes), premido pelas circunstâncias e
pelo contrafactual comunista (ARRIGHI, 2009: cap. 4).
A indústria norte-americana foi o nó principal da gênese da produção em massa,
desde o armamento da Guerra Civil (1860-1865) até os automóveis da Ford. Como já
foi muito investigado, essa transformação acarretou mudanças no perfil da firma que
liderava o capitalismo estadunidense: emergem grandes corporações com integração
vertical de sua cadeia produtiva, com novas técnicas administrativas e acesso a
contramercados no estado. Em um ensaio outrora famoso, o economista keynesiano
Kenneth Galbraith intuíra uma consequência disso: “o poder de um lado do mercado
cria tanto a necessidade de como a prospectiva de recompensa para o exercício de um
poder contrabalanceador no outro lado” (GALBRAITH, 1993: 113). No mercado de
trabalho, então, os ganhos das corporações ao contratarem proletários pulverizados e
desorganizados impulsionaria sua aglutinação em sindicatos e associações de classe,
contrabalançando o poder de mercado das primeiras. A livre concorrência de agentes
independentes fora substituída pela negociação de colossos, na qual a ação do estado
seria não só benéfica, mas necessária146.
Tal qual Keynes se empenhara em separar, aos olhos dos liberais, o
intervencionismo estatal do Bolchevismo, o argumento de Galbraith busca
desvencilhar a atuação sindical da militância revolucionária comunista. Por força de
um mecanismo de mercado, os trabalhadores adquiriam espaço na arena política como
classe (poder contrabalanceador), não meramente como indivíduos ou cidadãos. Disso
se desmembra uma plataforma de atuação do estado sobre essa topografia de grandes
aglutinações de capital e trabalho, tomadas por princípio como simétricas. Além de
revogar o laissez faire abstrato em nome da gestão macroeconômica concreta, o
Isso é explicitamente postulado por Galbraith (1993: cap. 10): “De fato, o apoio ao poder
contrabalanceador se tornou nos tempos modernos talvez a principal função para o governo federal em
tempos de paz” (GALBRAITH, 1993: 136). O trecho é seguido de diversos exemplos dessa atuação
(em favor dos trabalhadores organizados, dos fazendeiros, do setor carvoeiro, etc.) situados em geral no
bojo do New Deal. O autor não deixa dúvida de que pretende convencer de que a regulação econômica
e a legislação social não são aberrações antiliberais, mas um funcionamento perfeitamente normal de
uma economia concorrencial: “a ação do governo apoia ou suplementa um processo econômico
normal” (GALBRAITH, 1993: 151).
146
268
“novo liberalismo” abandonava a suposição de uma sociedade de indivíduos para
reposicionar o estado como legislador e árbitro em uma sociedade de interesses
corporativos, como mediador em uma concorrência imperfeita. Separando o trabalho
organizado das utopias anticapitalistas, era possível normalizá-lo na disputa política
através da barganha em cima do poder de compra do salário e das garantias de
reprodução da força de trabalho.
Usados aqui como demonstração do ponto, Keynes e Galbraith são
observadores, partícipes e ideólogos de uma reinvenção do liberalismo como utopia,
com a pretensão de acomodar o sismo produzido pelo triunfo bolchevique após 1917.
O sucesso de 1917 produz uma reação imediata no sistema interestatal para conter seu
contágio, isto é, um realinhamento contrarrevolucionário (HALLIDAY, 2003: cap. 5).
O argumento aqui é que o anticomunismo é tão importante quanto a produção em
massa para entender a emergência da hegemonia estadunidense. A urgência
anticomunista produziu
uma
refração
de
duas
tendências
precedentes:
o
fortalecimento político da classe trabalhadora organizada e a industrialização da
guerra.
Com relação à pressão do trabalho organizado, a refração contrarrevolucionária
produz experiências substantivamente novas de incorporação das massas sob o
desenho corporativo dos fascismos europeus. Contra o potencial revolucionário de um
movimento operário independente, ganha ímpeto uma estratégia antiliberal e
nacionalista de tutela estatal. Na Itália, pioneira na reação pelo vigor de sua ofensiva
operária no pós-guerra, passa-se do gradualismo liberal das reformas de Giolitti, um
intelectual cosmopolita, para uma política de massas militarista, efusiva e nacionalista
sob Mussolini. O apelo ético-político de que os trabalhadores são protagonistas da
história é refraseada por uma estrutura unitária de potência da nação, pela qual esses
trabalhadores seriam incorporados politicamente. A pressão do trabalho organizado
sobre o estado é, dessa forma, refratada para arranjos de enquadramento corporativo
de base nacional, em que a ameaça comunista internacional funciona como chave
principal de exclusão política, como semântica da exceção e da emergência.
Com relação ao processo de industrialização da guerra, a existência de um
estado autoproclamado socialista engendra a base sobre a qual se estabelece uma
ameaça permanente. Já no fim do século XIX, forma-se um elo incipiente entre o
gasto militar, a garantia de empregos e os dividendos políticos dessa promoção
269
setorial. Ao se observar o curso da industrialização da guerra em direção ao conflito
europeu de 1914 e 1918, entrevê-se essencialmente uma tendência de aniquilação
exaustiva dos beligerantes, uma guerra industrial autofágica. Com a refração
anticomunista,
foi
possível
incorporar
o
keynesianismo
militar
ao
ciclo
extrativo-coercitivo de forma continuada, promovendo uma ameaça incessante que
permitia o gasto em defesa como fomento macroeconômico e tecnocientífico. O ponto
de culminância disso é o complexo militar-industrial criado nos Estados Unidos
durante a Segunda Guerra e mantido sob a rotinização do anticomunismo.
Os Estados Unidos se tornaram pivôs da reorganização do sistema mundial
após c.1940 não simplesmente porque venceram a corrida militar das Guerras
Euroasiáticas. Ao fazê-lo, abriram vias de expansão recíproca entre estado e capital
que serviram de horizonte hegemônico em meio à crise. Essas vias de expansão
implicavam um intercurso entre a acumulação de capital e a reconstrução
ético-política da ordem. Com isso transferem sua vantagem produtiva, cujo símbolo
era o fordismo, para uma supremacia comercial em um novo interregno de
liberalização mundial (1945-1973).
A posição privilegiada galgada pelos EUA após as guerras entre 1914 e 1945
perpassa fatores em certa medida contingentes, como sua insularidade geopolítica, o
rompimento do pacto Ribbentrop-Molotov ou o fracasso relativo do ataque japonês à
Pearl Harbor. Correndo por trás dessas condições acidentais, havia processos
consistentes de mudança no sistema mundial que foram sendo enfeixados pelos
Estados Unidos nessa conjunção crítica, na forma de seu “novo liberalismo”
keynesiano, corporativo e anticomunista. O “século americano” é, ao mesmo tempo, o
triunfo dos EUA na competição entre capitalismos dirigidos e seu protagonismo na
reação sistêmica contra a URSS.
Pela persuasão de sua exemplaridade, pelo magnetismo de sua economia e
pela força armada organizada, esse reposicionamento dos EUA sedimentava um
imaginário hegemônico para as sociedades capitalistas que esmaece os resquícios do
“longo século XIX”. Em poucas palavras, esse novo imaginário combina: (1) o
desenvolvimento como objetivo macroeconômico de progresso com harmonia social,
(2) a democracia como gramática de atrelamento institucional de subjetividades
políticas emergentes e, transversalmente, (3) o anticomunismo como argila para
moldar ameaças e justificar a exceção a qualquer norma. Enquanto isso, um novo
270
ciclo de acumulação capitalista era organizado pela produção fordista, pelo mercado
de massas e pelo duplo emprego (civil e militar) da pesquisa tecnológica. Dessa forma,
assentam-se trilhos para uma nova divisão internacional do trabalho que superasse o
protecionismo, para uma nova arquitetura financeira que superasse a volatilidade do
entreguerras, para um novo setor de lucros extraordinários que atraísse o capital
circulante à produção.
Essa combinação entre balizas ético-políticas e decolagem econômica possui
suas expressões institucionais no pós-guerra, como a Organizações das Nações
Unidas (ONU), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o Acordo
Geral de Tarifas e Comércio (GATT, em inglês), além do Fundo Monetário
Internacional (FMI) e do Banco Mundial, originalmente desenhado como um banco
de reconstrução. Essas instituições são expressões da governabilidade sistêmica
reconstruída em marcos distintos do que havia sido o século do imperialismo de livre
comércio e do mercado autorregulado.
Na América Latina, a atração para a órbita geopolítica e geoeconômica se
desenvolve já o século XIX, em parte como resultado do processo de regionalização
produzido pelos desafiantes à hegemonia britânica (Tabela 7.3). Em muitos sentidos,
a região sedia avanços precoces do que posteriormente adquiriu escala mundial: as
Conferências
Pan-Americanas
realizadas
a
partir
de
1889
prenunciam
o
multilateralismo das Nações Unidas; o imperialismo de T. Roosevelt sinaliza o que
seria a “guerra fria” no Terceiro Mundo; o magnetismo do mercado consumidor
estadunidense, que é pivô da reconstrução europeia após 1945, já atraíra a maior parte
das economias do continente após a Primeira Guerra Mundial (Tabela 7.4). A crise
internacional que seguiu a guerra de 1914-1918 produziu o surto de endividamento
que “jogou as elites políticas latino-americanas nos braços dos banqueiros de Nova
Iorque” (MARICHAL, 1989: 179). Após a crise de 1929, que derrubou
definitivamente o padrão-ouro, há na região um movimento consistente em direção ao
dólar como esteio cambial, que após 1945 se generalizaria com os acordos de Bretton
Woods (BULMER-THOMAS, 2003: 198-199).
Em suma, ao final da conjunção crítica, a América Latina se encontrava na
órbita estratégica dos Estados Unidos e da constelação institucional com que se
reconstruiu o sistema mundial após as Guerras Euroasiáticas. Como conjunto de
processos que rastreamos desde a corrida interimperial no século XVIII, o “longo
271
século XIX” havia sido definitivamente ultrapassado. A autoconstrução dos estados
latino-americanos
encontrava
novos
trilhos
de
expansão,
balizados
pelo
desenvolvimento como utopia e pelo anticomunismo como ameaça.
272
PARTE III: ESTADOS PÓS-COLONIAIS EM PERSPECTIVA COMPARADA
Esta parte está composta por três capítulos que correspondem a três estudos de
caso: México, Brasil e Argentina. Sua análise está justaposta transversalmente a partir
das duas conjunções críticas que delimitam o chamado “longo século XIX”, o que
permite contrastar a dinâmica de cada caso e seus vetores resultantes. Se a Parte I da
tese adotou um sequenciamento lógico, do mais abstrato para o mais concreto, e a
Parte II, uma sequência cronológica, na qual os capítulos se encadeavam no tempo,
esta parte tem uma índole mais comparativa, no sentido em que é possível cotejar
pontos de vista particulares dentro de tendências mais amplas que foram traçadas
anteriormente.
O raciocínio se inverte, portanto, com relação à Parte II, cuja ênfase estava em
mostrar que era possível discernir, a despeito das especificidades empíricas,
tendências mais amplas na América Latina durante o “longo século XIX”. Através
dos estudos de caso, podemos observar que, a despeito dessas tendências, ligadas à
retroversão da soberania aos espaços locais, ao processo de desencaixe impulsionado
pelo ciclo sistêmico de acumulação, elas se efetivam e resolvem de forma heterogênea.
É justamente porque cada trajetória encadeia processos e eventos de maneira
particular que a análise empírica é insubstituível. Cada capítulo constitui um
experimento de incrementar a densidade histórica da discussão anterior.
Por fim, uma perspectiva comparada sobre as trajetórias permite historicizar as
categorias com que desdobramos a hipótese de um desenvolvimento desigual da
política moderna como processo macro-histórico. Nesse sentido, a repercussão para a
análise política da posição periférica na economia mundial tem significados diferentes
em cada contexto. Da mesma forma, a dimensão imperial da política não tem
conotação homogênea no México, no Brasil e na Argentina, de modo que a situação
pós-colonial de formação de estados também precisa ser elaborada historicamente, ao
invés de aplicada como uma regularidade empírica. Além de concertar diferentes
escalas de análise, os três capítulos da Parte III reforçam duas linhas de argumentação
anteriores: de um lado, a relevância da contingência para rastrear processos de longo
prazo, e, de outro, a implausibilidade de padronizar o recorte latino-americano em um
todo coeso e sincrônico.
273
8. MÉXICO: CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA NO “LONGO
SÉCULO XIX”
“São os mesmos que se opuseram a Hidalgo e a Morelos, os que traíram Vicente
Guerrero, são os mesmos que venderam mais da metade do nosso solo ao invasor
estrangeiro, são os mesmos que trouxeram um príncipe europeu para governar-nos,
são os mesmos que formaram a ditadura dos científicos porfiristas, são os mesmos
que se opuseram à Expropriação Petroleira, são os mesmos que massacraram os
trabalhadores ferroviários em 1958 e os estudantes em 1968, são os mesmos que hoje
nos tiram tudo, absolutamente tudo”
Declaração da Selva Lacandona/EZLN (1994)
Na noite do dia 15 de setembro de 1808, um grupo de cerca de 300 soldados
invadiu o Palácio Nacional na Cidade do México para destituir o então vice-rei José
de Iturrigaray. Aos olhos dos conspiradores, cujo principal mandante era o abastado
proprietário Gabriel de Yermo, Iturrigaray colocara o vice-reino em uma trajetória
perigosamente próxima à independência. Alguns meses antes, sob a tutela das tropas
invasoras francesas, as abdicações de Bayona na Espanha haviam posto o reino no
limiar de seu desmoronamento. A notícia de que Murat fora imposto como governante
da Espanha pelos ocupantes chegou ao México em julho daquele ano, causando furor
e inquietação. Diante da formação de juntas provisórias nas províncias metropolitanas,
a municipalidade do México jurou lealdade à Fernando VII em princípio de agosto e
decidiu que, até a restauração da monarquia na península, as Juntas seriam
depositárias legítimas da soberania.
O convocação de uma assembleia geral das Juntas novo-hispanas foi o acicate
para a reação. Os conspiradores temiam que ali fosse sumariamente declarada a
independência por artifício do vice-rei. Com o golpe preventivo contra Iturrigaray em
setembro, o poder foi entregue ao marechal espanhol Pedro Garibay e a subordinação
dos americanos à Junta de Sevilha (Junta Suprema de Espanha e Índias), imposta à
força. Embora dirigido pela aristocracia colonial, era um movimento fora da rotina
política do vice-reino, uma vez que depunha à força uma autoridade nomeada pelo rei.
As doutrinas e práticas usuais do reino seriam, então, interpeladas por uma sequência
acelerada de situações que romperiam irreversivelmente os limites da ordem política
colonial.
274
8.1. Conjunção crítica I (1808-1824): revolução agrária e municipalismo
No rescaldo da eleição geral para a Junta Central, conduzida em toda a América
Espanhola no ano de 1809, irrompe o primeiro movimento independentista,
denunciado e reprimido na cidade michoacana de Valladolid (hoje Morelia). Como
em outras partes da América Espanhola, onde movimentos similares afloraram
naquele contexto, a afirmação da independência se justificava pela lealdade à
Fernando VII e à monarquia (RODRÍGUEZ, 2008). Em Querétaro, da tertúlia literária
animada pelo corregedor local, onde se debatiam ideias da Ilustração, se forma uma
conspiração liderada pelo padre Miguel Hidalgo, que, na missa de 16 de setembro de
1810, convoca a paróquia a lutar contra o “mau governo”. Como um rastilho de
pólvora a rebelião contagia a plebe rural e indígena do chamado Bajío no México
central, região economicamente importante do vice-reino, então em grave crise
agrícola147.
A violência rural então escala: da rebelião contra as instituições coloniais como
o tributo indígena, os insurgentes deslizam, em algumas localidades como Zapotlán
em dezembro de 1810, ao extermínio sumário da população branca. Em finais de
outubro, os rebeldes liderados por Hidalgo derrotam um destacamento de cerca de mil
soldados realistas em Monte de las Cruces, nas imediações da capital, onde estancam
seu avanço e sofrem um revés no dia seguinte. Sem condições de tomar a cidade do
México, e sofrendo reveses subsequentes os insurgentes voltam ao interior onde a
guerra civil transcorreria nos próximos dez anos (ZORAIDA VÁZQUEZ, 2008).
Esse capítulo identifica a crise do regime colonial no México como momento
decisivo para compreender a ordem política pós-colonial no “longo século XIX”, no
âmbito do que anteriormente dissemos sobre a Era das Revoluções. Para compreender
melhor os componentes decisivos dessa conjunção crítica, convém situar a posição
singular da Nova Espanha no fim do ciclo anterior, quando a espiral ascendente da
rivalidade interestatal gerou um estiramento fiscal dos impérios atlânticos (seção 4.1).
Como mostrou Carlos Marichal (2007), a monarquia espanhola funcionava por um
vasto sistema de transferências internas do qual o México era uma espécie de
“submetrópole” na América, assegurando pagamentos regulares para regiões em
Uma lista completa dos pueblos sublevados, com seus respectivos chefes e datas de revolta, foi
compilada por Escamilla Ortiz com base na seção Operações de Guerra do Arquivo Geral da Nação
(ESCAMILLA ORTIZ: 1997: 179-183 e 211-217).
147
275
déficit, especialmente na orla do Caribe (Cuba, Puerto Rico, Santo Domingo,
Louisiana). O volume das transferências em prata mexicana para outras partes do
império americano começa a subir rapidamente em meados do século XVIII em
função das maiores exigências militares, passando de menos de dois milhões de pesos
anuais até 1740 para mais de 6 milhões anuais na década de 1780 (Tabela 4.2). Na
década de 1770, os valores enviados para a metrópole europeia já haviam dobrado
com relação a meio século antes. O excedente fiscal da Nova Espanha era
indispensável para azeitar o ciclo extrativo-coercitivo do império espanhol diante de
seus competidores.
Por trás disso, havia alguns fenômenos dignos de nota: primeiro, como
resultado das reformas bourbônicas, a produção mineradora mexicana cresceu de
forma espetacular nas últimas décadas do período colonial, opulência registrada,
inclusive, por Alexander Humboldt em sua visita à América em 1804. Alguns
melhoramentos técnicos, o monopólio sobre o mercúrio e o cerceamento ao
contrabando favoreceram esse crescimento. Além disso, de forma geral, os súditos da
Coroa na Nova Espanha arcavam com uma extração regular elevada: cerca de 40%
mais impostos por habitante do que na metrópole, nível também muito superior ao
praticado em outras colônias americanas, espanholas ou não (MARICHAL, 2007:
13-15). Essa extração dependia principalmente de impostos sobre a mineração,
alcabalas, tributos indígenas e o monopólio sobre o tabaco (Tabela 8.1).
Um último aspecto decisivo foi a arrecadação de sucessivos donativos e
empréstimos emergenciais na sociedade mexicana em função do esforço de guerra,
dentre os quais a Igreja foi o mais amplo e constante dos credores. Inicialmente, essa
arrecadação se deu como donativos por decreto régio (1781, 1793, 1795 e 1798), que,
a despeito do nome, eram obrigatórios a todo o domicílio do reino. Durante o mandato
do vice-rei Martín de Mayorga (1779-1783), o tesouro começou a levantar recursos
mediante a emissão de títulos a juros, além da obtenção de crédito em praças
europeias (nomeadamente Amsterdã) lastreados na prata americana. Uma medida
chave na descapitalização forçada da colônia foi decretada em 1804, a Consolidação
dos Vales Reais (isto é, títulos da dívida pública), que atingiu particularmente a Igreja.
A colaboração das corporações coloniais foi um sustentáculo para esse ímpeto
extrativo (MARICHAL, 2007: cap. 3 e 4).
276
Durante a crise, a Nova Espanha era, ao contrário das demais colônias
americanas, uma provedora do império como um todo e de sua capacidade de travar a
guerra, mesmo que defensiva. Quanto mais o governo espanhol era rechaçado a sul
pelo exército napoleônico, até seu desterro em Cádiz, mais a resistência dependia de
suas conexões transatlânticas. Entre outubro de 1808 e fevereiro de 1811, foram
oficialmente enviados uma média mensal de quase um milhão de pesos de prata
mexicana à metrópole, aproximadamente metade de toda a prata amoedada no
vice-reino nesse período (MARICHAL, 2007: 234). Sem esse subsídio a própria
sobrevivência da Junta Central e das Cortes de Cádiz seria improvável. Nos bastidores,
a prata mexicana esteve, então, nas condições de possibilidade do primeiro
liberalismo espanhol.
A consagração da Constituição liberal de Cádiz ocorre no México em setembro
de 1812 com a expectativa de que suas provisões pudessem aplacar a força da
insurgência, ao instituir legalmente a autonomia municipal e o direito às terras
comunitárias. O tributo indígena fora suspenso em 1810. Em um decreto das Cortes
de 9 de novembro de 1812, determinava-se a extinção de qualquer serviço pessoal
devido pelos índios, como a mita ou o repartimento, além de prever “outras medidas a
favor dos índios”, como a garantia de terras aos casados com mais de 25 anos, em
terreno vizinho ao pueblo de residência sem prejuízo das terras comunais148.
Ademais, a constituição consagrava direitos individuais inalienáveis aos
cidadãos na linguagem corrente do Iluminismo, como a liberdade de expressão e
reunião, a presunção de inocência e a propriedade privada. Ato contínuo à
promulgação, esses direitos foram suspensos em função da necessidade de combater a
insurgência, para o que se reservava o estado de exceção (URIBE-URÁN, 2006). O
liberalismo gaditano não fora só sustentado em escala imperial em um momento de
crise, mas também recortado nos imperativos políticos concretos dessa crise.
O entrecruzamento entre constitucionalismo liberal e ativação política rural no
México conferiu um dos traços centrais da conjunção crítica, nomeadamente, a
apropriação pelos pueblos da figura do município constitucional como estratégia para
148
Decreto CCVII de 9 de novembro de 1812: “Abolición de las mitas. Otras medidas a favor de los
indios”. O texto completo do decreto pode ser consultado na Colección de los Decretos y Órdenes que
han expedido las Cortes Generales y Extraordinarias, acessado em 15/08/2018 no sítio eletrônico:
http://www.cervantesvirtual.com/portales/constitucion_1812/obra/coleccion-de-los-decretos-y-ordenesque-han-expedido-las-cortes-generales-y-extraordinarias-desde-24-de-mayo-de-1812-hasta-24-de-febre
ro-de-1813-tomo-iii--0/. Cheguei ao documento graças à menção de Andrés Lira (LIRA, 2003: 387).
277
assegurar sua autonomia, traduzindo a cidadania liberal em termos de vizinhança à
localidade (vecindad)149. Em uma conjuntura de abalo profundo da estrutura
centralizada
do
império,
os
povoados
indígenas
novo-hispanos
lograram
multiplicar-se como municípios eletivos, assegurando prerrogativas para administrar
as questões concernentes à vida local (uso da terra e dos rios, festas, feiras e
cerimônias, resolução de conflitos, etc.). Como disse o historiador Antonio Annino,
ao fazer do município um espaço de virtual autogoverno, os pueblos novo-hispanos
“forçaram as normas com suas práticas” (ANNINO: 2003: 400).
A formação de um liberalismo popular no México revolucionário esteve
originalmente ligada a esse sincretismo entre liberalismo e neopactismo que servia de
dispositivo para repelir a pretensão de governo desde fora da localidade. Segundo Eric
van Young (2008: 284), as rebeliões rurais no México entre 1810 e 1821 constituíram
“esforços abreviados por parte de comunidades rurais aparentemente cortarem seus
laços políticos e de outras naturezas com o mundo exterior e de governarem numa
independência utópica”.
No novo quadro constitucional, uma vez que todo vizinho era cidadão e eleitor,
esse reconhecimento foi franqueado aos indígenas, que representavam cerca de 60%
da população da Nova Espanha, enquanto o mesmo não ocorria com as castas (22%) e
negros (0,5%). Diante da ativação insurgente do mundo rural da colônia, produzia-se
um alargamento relativo das linhas de inclusão política no novo sistema
constitucional. Esse alargamento se ligava à tendência de localização da vida política
a partir da doutrina de retroversão da soberania via municípios constitucionais. Em
paralelo, um sistema eleitoral indireto, estratificado em quatro níveis, interpunha
sucessivas mediações entre a participação no cabildo local e a elegibilidade às
legislaturas provinciais. Ao assumirem estes a posição de depositários últimos da
soberania, ou de constituintes da “nação natural” na linguagem jusnaturalista,
criava-se uma situação nova em termos da disputa pelo poder político. De um lado, a
abolição do tributo indígena e dos serviços pessoais retirara as autoridades coloniais
instaladas nos povoados; de outro, a nova constituição reforçava as autoridades
eletivas a nível local. O primeiro movimento político a saber aproveitar-se dessa nova
O principal proponente dessa interpretação, que ficou conhecida como a tese da “revolução
territorial dos pueblos”, é o historiador Antonio Annino (1999; 2003).
149
278
topografia foi justamente o exército de Iturbide, que arbitrou a soberania múltipla
vigente na colônia em direção à independência contrarrevolucionária.
A migração de um general realista como Agustín de Iturbide para o campo
independentista era parte de um novo alinhamento em que setores da elite econômica
e das corporações coloniais passaram a ver na independência a saída mais segura para
a longa crise do império. A proclamação do Plano de Iguala (1821) baseado nas três
garantias (fé católica, independência e união) era uma tentativa de mediação entre
insurgentes e realistas, respondendo às novas condições vigentes na metrópole após a
revolução liberal de 1820. O plano original de Iturbide, segundo relata um de seus
colaboradores próximos, era executar um golpe militar na cidade do México, mas foi
dissuadido dessa estratégia. Em suas memórias, o general Gómez Pedraza revela ter
persuadido o líder de que o caminho mais seguro seria “começar da circunferência ao
centro e que a ocupação da capital seria o último passo da empresa” (apud ANNINO,
2003: 430).
Esse movimento pela circunferência significava angariar respaldo formal dos
pueblos ao Plano de Iguala e ao Exército Trigarante, arraigando-se nas bases políticas
locais150. Se a facção pró-espanhola havia controlado a colônia em setembro de 1808
com um único golpe de força sobre a capital, a realidade era claramente outra em
1821: na guerra civil a lealdade dos pueblos fora objeto de disputa por realistas e
insurgentes, e contra ambos se mobilizou a prerrogativa de autonomia local
(ESCAMILLA ORTIZ, 1997). O apaziguamento da polarização política se efetiva
pela tessitura de acordos com as entidades municipais e seus representantes, resultado
da ativação política rural nessa conjunção crítica.
Em um pacto centrípeto entre pueblos e exército, o movimento independentista
de 1821 buscou reunificar monarquia e Igreja através de um novo rei europeu, e, na
falta deste, coroou imperador o próprio Iturbide. Seu projeto revelou-se claramente
restauracionista, fortalecendo a posição da elite capitolina, dissolvendo o Congresso e
tentando sobrepor o exército regular às milícias (BAZANT, 1991). A brevidade de
seu governo demonstra o reverso da trajetória neopactista que lhe constituiu: sem
novas eleições para o Congresso Nacional, há um descumprimento do mandato
Como chama a atenção, Antonio Annino o “pacto da independência” se baseia em uma campanha
política “dos territórios periféricos ao centro capitolino, que conseguiu em poucos meses apoio dos
novos municípios constitucionais”. Essa articulação deixou “à margem as câmaras de deputados das
províncias” (ANNINO, 2003: 409-410).
150
279
imperativo inscrito no Plano de Iguala, o que esvazia o respaldo conferido pelo
exército e pelos pueblos.
Além disso, as câmaras legislativas provinciais haviam sido alijadas da
coalização ao redor do Plano de Iguala, ganhando expressão como foros de oposição à
solução monarquista centrada na capital. A agregação entre a insatisfação das
lideranças provinciais com a oposição dos pueblos forma o quadro geral de adesão ao
Plano de Casamata (1823), formulado no seio da oficialidade militar, para destituição
definitiva de Iturbide e convocação de uma Constituinte. De um pacto formado entre a
capital e as localidades, surgia um novo alinhando províncias e localidades, mudando
o centro de gravidade da política pós-independência.
Com o triunfo de Casamata desaparece a ligação entre o exército e o poder
central, fazendo com que a violência organizada seja controlada fundamentalmente no
nível das províncias e das municipalidades. O estabelecimento de milícias cívicas
subordinadas aos ayuntamientos em 1823 seria então o pilar da pretensão autonomista
dos pueblos, tornando-se presença recorrente nos levantes federalistas das décadas
seguintes. No caso dos governos provinciais, sua força remetia ao momento
centrífugo da crise imperial. Vale lembrar que a fiscalidade colonial se baseava em
um sistema descentralizado de 24 tesouros regionais, que faziam compensações entre
si similares aos situados enviados regularmente às outras regiões do império. A
desarticulação desse sistema fez com que o ciclo fiscal se encerrasse nas províncias, o
que se conectava com o financiamento das milícias responsáveis pela segurança no
interior. Durante a guerra civil, esse circuito foi decisivo para virar a situação em
desfavor dos insurgentes: o indulto a figuras de relevo que haviam simpatizado com o
movimento era seguido de incentivos para organizar milícias a nível local e regional
para combatê-lo.
Essa era a base social por trás da primeira constituinte do México independente,
assentada sobre uma federação de províncias que se percebiam na prática como
estados independentes, agregada ao redor de um liberalismo termidoriano que
preservava os foros privilegiados do Exército e da Igreja (AGUILAR RIVERA, 2011).
Como na metrópole, o constitucionalismo liberal mexicano se constitui como
programa pós-revolucionário de ordem, em oposição ao jacobinismo, à guerra de
castas e à ação política popular. No primeiro levante de Hidalgo e Allende, em 1810,
estava posta a urgência de expelir completamente os peninsulares do país. No Grito de
280
Dolores se alça também a necessidade de devolver as terras roubadas aos povos
indígenas, o fim da escravidão e o cancelamento dos tributos indígenas. No discurso
lido na abertura da Constituinte insurgente em Chipancilgo, Morelos conclamara não
só à igualdade política, mas também à moderação das desigualdades materiais, como
funções das boas leis151. Com efeito, a constituição de Apatzingán (1814) é a primeira
a abolir os foros privilegiados no México, ainda que nunca tenha entrado em vigor.
Da crise da ordem colonial revolvem-se inúmeros vetores de radicalização política
que são neutralizados, apropriados e modulados no desfecho da guerra civil.
O liberalismo termidoriano era compartilhado pelo que fora a facção
monarquista (favorável à consagração de um rei europeu, que se tornaria nos anos
1840 o Partido Conservador) e o que era a facção republicana e federalista, que se
tornaria posteriormente o Partido Liberal152. Não obstante suas diferenças, tanto José
Luis Mora como Lucas Alamán depreciavam a insurgência e a violência rural dos
anos 1810, acreditando no constitucionalismo como forma de pacificá-las. No entanto,
o espírito pós-revolucionário do liberalismo mexicano nos anos 1820 e 1830
esbarraria na enorme dificuldade de reassentar hierarquias sociais e normalizar
procedimentos políticos a nível nacional após a experiência de ativação popular por
imaginários radicais.
Para honrar as obrigações orçamentárias do novo governo, o México contrairia
dois empréstimos em Londres antes mesmo de ter sua independência reconhecida:
assumindo uma dívida externa de 32 milhões de pesos entre 1824-1825, o país
receberia apenas um terço disso após as deduções bancárias. Esse dinheiro foi
rapidamente absorvido pelas despesas correntes do governo, infladas pelo pagamento
de soldos militares após a guerra de independência. Com a crise financeira de
1825-1827, os pagamentos da dívida seriam suspensos e novos empréstimos
governamentais não seriam firmados no exterior até a década de 1840. Ainda assim, a
dívida pública total, que se tornaria responsabilidade do governo federal pela nova
Neste discurso, conhecido como Sentimentos da Nação, Morelos defende que boas leis, entre outras
coisas, são aquelas que “moderem a opulência e a indigência, e dessa maneira se aumente o soldo do
pobre, que melhore os costumes, afastando a ignorância, a rapina e o furto”. Mais adiante, retrata um
horizonte em que “estando todos iguais, só distinguirá um Americano do outro o vício e a virtude”
(MORELOS, 2013: 117).
151
152
Os conservadores são identificados com a tradição centralista da monarquia de Iturbide, com o
Plano de Jalapa (1829) e a reforma constitucional de 1836, conhecida como Sete Leis. A facção liberal
remonta à Constituição de Cádiz e à Constituição Federal de 1824, que fortalecia a autonomia dos
estados. A cisão se transpôs para dentro da maçonaria, com o “rito escocês” apoiando os conservadores
e o “rito yorkino”, os liberais (AGUILAR RIVERA, 2011; ZORAIDA VÁZQUEZ, 2008).
281
constituição, cresceu de 20 milhões de pesos em 1808 a 35 milhões em 1814,
chegando a 45 milhões após a independência (BAZANT, 1991).
Os mecanismos de extração típicos do período colonial haviam sido suprimidos
durante o período revolucionário. Limitado pela nova constituição, o governo federal
dependia fundamentalmente de impostos aduaneiros para financiar-se, o que contrasta
com a posição relativamente secundária do México no arranque do novo ciclo
sistêmico de acumulação. Para obter recursos, elevou-se a alíquota sobre as
importações a ponto de criar um surto protecionista no país entre 1824 e 1827
(PLATT, 1972). Nesse contexto, não obstante a expansão exportadora da indústria
têxtil britânica, a entrada de tecidos importados é marginal diante da fabricação local
até finais do século XIX.
Além dos impostos alfandegários, essa proteção se efetivou pelo alto custo de
transporte de mercadorias dos portos aos territórios montanhosos do interior,
dependendo de carretas de mulas e estradas precárias. A atração da nova economia
atlântica é, pois, relativamente fraca uma vez exaurido o pico minerador no período
colonial (TANDETER, 2008). Assim, as oportunidades fiscais do comércio exterior,
único flanco de extração politicamente aberto naquele contexto, eram muito estreitas
para reconstruir o governo central, enquanto que os estados federados e as
municipalidades constitucionais saíam sobremaneira fortalecidos do processo
revolucionário.
Isso dito, podemos condensar agora alguns aspectos principais sobre essa
conjunção crítica, reforçando suas ligações com o debate conceitual precedente. De
saída, em termos do ciclo longo organizado pelas transições hegemônicas mundiais,
cumpre dizer que o México colonial esteve em posição de relevo na espiral sistêmica
de guerras interestatais e contestação social que caracterizou o período de
financeirização da hegemonia holandesa após 1740. A mobilização de capital e
coerção no período não corresponde a um “estado colonial” mexicano, mas a uma
parte do movimento da engrenagem imperial espanhola, que então sofria para
acompanhar a concorrência anglo-francesa.
Essa competição aguça as pressões sociais sobre o ciclo extrativo-coercitivo na
medida em que implica requisições forçadas e aumento de contribuições, em sua
maioria enviados para atender exigências fora da colônia. “Que se acabe a infinidade
de tributos, pechos e imposições que nos sufocam”, dizia o discurso constitucional de
282
Morelos em 1813, propondo uma exação limitada “que não nos oprima como a
alcabala, o Estanco, o Tributo e outros” (MORELOS, 2013: 118). Esse estiramento da
ordem política colonial irá extravasar em uma abertura do horizonte de possibilidades
a partir da crise iniciada em 1808.
Com a supressão da ancoragem ético-política na figura monárquica, o reino
polariza-se em diversas linhas de fratura. Aflora, por exemplo, uma tensão sobre o
tema da representação política das colônias ultramarinas na Junta Central em 1809,
que pressionava a o equilíbrio entre diferenciação e integração no império. Pioneira
para a época, a prerrogativa de representação para as colônias seria admitida, mas em
patamar desigual com relação às províncias metropolitanas do reino. De outro lado, a
convocação das Cortes do reino abre um conflito entre seu significado histórico,
ligado à representação estamental das monarquias medievais (Cortes, Estados Gerais,
Dietas, etc.), e seu deslizamento ao significado de uma assembleia soberana,
representativa de cidadãos individuais.
Inseparável desta, fica em aberto a compatibilidade ou não entre a visão
iluminista de nacionalidade comungada entre elites liberais e o horizonte localista de
autogoverno pelos pueblos. A tensão entre ordem legal e emergência política também
aparece em primeiro plano, dado o avanço das tropas de ocupação na metrópole e a
insurgência rural na colônia. Na luta contra os franceses, o Conselho de Regência
comunica aos ayuntamientos do reino aludindo à “luta pela independência” e pela
liberdade usurpada pelos invasores153, que no México adquire o sentido de separação
definitiva da metrópole. Em cada uma dessas linhas de fratura, os escorregamentos de
sentido das palavras se ligam ao conflito por parâmetros ético-políticos instáveis.
A insurgência de 1810 demarca uma inflexão crucial na história mexicana, não
simplesmente pela proclama independentista, mas pela ativação política do mundo
rural de forma mais geral. Como mostra Coatsworth (1990), o vice-reino da Nova
Espanha fora um espaço relativamente apaziguado do império, se comparado com o
conflito intermitente entre colonizadores e povos indígenas nos Andes. A partir de
1810, a possibilidade de camponeses, indígenas, trabalhadores rurais e rancheiros se
mobilizarem contra a autoridade instituída, e de estabelecerem recorrentes alianças
com facções desafiantes, torna-se um traço indelével da construção da ordem política
O documento datado de fevereiro de 1810 faz um apelo grandiloquente à resistência espanhola,
dizendo que “a Providência quis que nesta crise terrível não pudessem [os espanhóis] dar um passo à
independência sem dar também um à liberdade” (apud RODRÍGUEZ, 2008: 24).
153
283
no México independente. Lembrando Gómez Pedraza, o movimento “da
circunferência ao centro” será a via mais assídua de alternância política até o século
XX, com os levantamentos oposicionistas associados a planos de ação, que, para
ganhar corpo, congregavam as atas de adesão de estados e municípios154. O
entendimento desses levantes como rupturas ilegais e informais na disputa política
perde de vista, como argumenta Annino (1999), o rito jusnaturalista pelo qual esses
vínculos de fidelidade política se formavam da base ao centro.
Por fim, é possível distinguir aspectos centrais da conjunção crítica que
conferem substância histórica à condição de um “estado pós-colonial” e de um
“estado na periferia” do sistema mundial. Com relação ao caráter pós-colonial, como
retroação dos impérios ultramarinos europeus, há pelo menos três aspectos que
merecem destaque. Em primeiro lugar, quando a independência é conquistada, ela
ocorre no ápice de uma tendência à descapitalização forçada e a exaustão fiscal da
sociedade mexicana pela extração colonial. Em outras palavras, o ciclo
extrativo-coercitivo fora pressionado ao limite de sua ruptura, e, no período
pós-revolucionário, as elites políticas não encontram oportunidades fiscais que já não
tenham sido esgotadas politicamente no ciclo anterior.
A insurgência rural, afinal, fora também uma rebelião fiscal, não contra o
colonialismo em abstrato, mas contra a espiral extrativa ascendente que se desatou no
império espanhol, e na Nova Espanha em particular, após a tomada de Havana pelos
ingleses em 1763. A resistência social e o reformismo iluminista coincidiam na
necessidade de abolir os impostos e tributos coloniais, mas não havia alternativa
imediata. Para as elites políticas havia, nesse sentido, uma estreita margem de
manobra disponível sobre a seletividade do ciclo extrativo-coercitivo. É impossível
entender o travamento recorrente da fiscalidade mexicana pós-independência se essa
conexão imperial não é refeita, o que vale também para a dificuldade de acesso ao
crédito.
A segunda dimensão importante é que o advento do constitucionalismo liberal
ocorre não em oposição a uma monarquia absolutista, mas no marco de um império
pactista em crise e de uma sublevação rural e indígena. O liberalismo não se posta
Os exemplos desse tipo de pronunciamento público (que funciona também como ato de delegação
de um mandato imperativo) seriam muitos, mas para demarcar os mais importantes teríamos: Plano de
Iguala (1821), Plano de Veracruz (1822), Plano de Casamata (1823), Plano de Jalapa (1829), Plano de
Coalizão (1833), Plano de Ayutla (1854), Plano de Tacubaya (1857), Plano da Noria (1871) e o Plano
de Ayala (1911).
154
284
como uma ideologia anticolonial, mas é evocado no esforço desesperado de resgatar o
império de seus dissensos internos e externos. O resultado é um processo
particularmente intenso de arraigamento da vida política nas esferas locais em
detrimento da cúpula imperial, combinado com uma flexibilidade das linhas de
inclusão e exclusão pelo vínculo entre cidadania e vizinhança. Essa flexibilidade foi
negociada sobretudo a nível local, enquanto, nas esferas institucionais superiores, não
se abre brecha no domínio dos eurodescendentes brancos e mestiços. O liberalismo,
que foi apropriado ao léxico popular para a defesa da autonomia municipal, também
servia de linguagem para a exclusão da maioria indígena dos fóruns parlamentares da
nação ou dos estados federados.
Em tal cenário, a imposição de um projeto nacional de ordem encontraria
veemente resistência local porque as instituições centrais haviam perdido o vínculo
prático de governo com os pueblos autonomizados durante a crise do império. A
aspiração de liberdade dessas instâncias municipais podia ser mobilizada muito mais
facilmente para derrubar um governo do que para sustentar um. A estrutura
ético-política do poder colonial, uma vez erodida pelo vacatio regio de 1808, serviria
de referência para a inconformidade e a dissidência contra o governo pós-colonial.
Por um lado, este representava uma nítida continuidade com o poder colonial, ao
conservar o controle das elites brancas sob o “liberalismo termidoriano”; por outro,
esse mesmo liberalismo, ao rechaçar os laços corporativos que ancoravam a
estabilidade social pré-revolucionária, fazia com que o governo pós-colonial fosse
incapaz reassumir o mesmo poder de convencimento e adesão que as antigas
estruturas tinham na base rural da sociedade.
Por fim, é no processo de luta contra a metrópole que se constitui a base do
poder das províncias como ciclos independentes de extração e coerção, o que também
ficou conhecido depreciativamente como caudilhismo155. A figura mais emblemática
desse fenômeno, o general Sant’Anna, por três décadas usou seu controle sobre
Veracruz como plataforma de projeção de seu poder nacional. O estado minerador de
Zacatecas foi longevo defensor do federalismo e da descentralização política em
Tal qual no caso das municipalidades, no argumento de Annino (1999; 2003), nas províncias
também o poder dos caudilhos foi caricaturado pela historiografia, reforçando sua discricionariedade e
personalismo. Não obstante, existem bases para pensar que a raiz de sua força “se baseava no respeito a
um conjunto de regras formais e informais que lhes asseguravam não só o consentimento de suas
hostes, mas também a adesão ou a tolerância das instâncias institucionais do poder local
(CHIARAMONTE, 2016: 251).
155
285
estreita ligação com seus recursos fiscais e sua milícia própria. Em Yucatán as
exportações de agave garantiram a pujança do erário regional na primeira metade do
século, inclusive para sustentar a revolta secessionista de 1839. Em províncias de
forte presença indígena, como Chiapas e Oaxaca, houve uma reintrodução, sob nova
roupagem, do tributo de casta pela legislação estadual. A federalização fiscal da
Constituição de 1824 coroou o processo de autonomização dos tesouros provinciais
durante a crise do império e a luta contrainsurgente. Uma vez ruído o sistema
piramidal que interligara as regiões à Cidade do México, elas se declaram soberanas
nos termos detalhados por Chiaramonte (2016), funcionando como retaguarda do
federalismo mexicano pós-independência.
Em conexão com a situação pós-colonial, há que equacionar o sentido empírico
do processo estar na periferia da economia mundial, mais especificamente do novo
ciclo sistêmico de acumulação que arranca nessa conjunção crítica. Em contraste com
sua posição de submetrópole no fim de ciclo anterior, por assim dizer uma
semiperiferia, o México acaba em uma posição secundária na economia atlântica
orquestrada pelos centros industriais emergentes. Os principais sinais do novo ciclo
capitalista que desponta (as importações têxteis, as exportações primárias, as filiais
das casas mercantis, atuariais e financeiras europeias, o crédito em Londres) aparecem
muito timidamente na paisagem econômica pós-revolucionária, ainda mais em
proporção à escala demográfica e urbana.
Em parte, isso se explica pela própria exaustão do principal setor econômico do
país, a mineração, que só recuperaria os níveis de produção colonial na segunda
metade dos oitocentos. Nos antigos centros coloniais hispânicos, México e Peru, a
abertura comercial se realiza só na década de 1820, muito depois de Buenos Aires
(1806), Montevideo (1807), Brasil (1808), Venezuela (1810), Chile e Colômbia
(1811). Além de tardia, essa liberalização não encontrou as oportunidades de
complementaridade comercial encetadas com outras periferias latino-americanas no
período, o que se reflete na relativa introversão da economia mexicana.
Ainda assim, da independência em diante, cerca de 50% ou mais das receitas
do governo federal dependiam das taxas alfandegárias (Tabela 8.2). Diante de suas
duas principais obrigações constitucionais, a ordem interna e a rolagem da dívida
nacional, os recursos eram cronicamente insuficientes, fazendo com o que o governo
central fosse, na maior parte do século, um poder inconstante e vulnerável à
286
dissidência interna e à intervenção externa. Ademais, com a guerra civil, o
contrabando se tornou prática corrente: entre 1821 e 1860, pela estimativa de
Marichal e Carmagnani (2001), cerca de até 50% da prata que deixou o México o fez
ilegalmente. Conforme crescia os impostos nominais sobre as importações no período
republicano, a evasão foi largamente praticada para entrada de têxteis e tabaco no
país.
Em suma, uma vez extinta a estrutura fiscal da colônia, a transição para um
novo padrão de extração foi conflitiva e vagarosa porque, por um lado, as
oportunidades de tributação do comércio exterior eram relativamente pequenas e
escorregadias e, de outro, porque a independência fora alimentada por uma ampla
mobilização antifiscal. Diante da força com que se produziu a retroversão da
soberania na crise imperial, a força de desencaixe da política foi relativamente fraca
em função dessa posição secundária no ciclo de acumulação que começava. Em
outros termos, a nova divisão internacional de trabalho não ofereceu empuxo de
exportações que alavancasse um ciclo extrativo-coercitivo com força suficiente para
desencaixar a política mexicana para a escala nacional. Esse cenário, como veremos
adiante, só se altera definitivamente com a emergência econômica dos Estados Unidos
nas últimas décadas do século XIX.
8.2. A formação de um liberalismo hegemônico no México (1810-1910)
Na narrativa de seus eventos, a história mexicana no século XIX é repleta de
descontinuidades e guinadas que demandam olhar minucioso. Nesta seção,
enquadramos uma escala alargada sem o objetivo de resumir esses eventos, nem os
reduzir à operação subterrânea das mesmas causas. Com esse olhar macroscópico
parece possível discernir, no desenrolar irregular, contingente e contraditório desses
eventos, alguns processos de mais longo prazo, cuja concatenação circunscreve
progressivamente a ordem política pós-colonial. Conforme apontamos anteriormente
na tese, há uma causalidade recíproca entre o fortalecimento político e administrativo
do governo central, a produção estatal de mercadorias fictícias e a inserção periférica
no ciclo sistêmico de acumulação capitalista. Os atores, o ritmo e as disputas que
efetivam esse processo no caso mexicano tem direta relação com as circunstâncias
produzidas na conjunção crítica analisada acima.
287
Escolhendo um lado para aproximar-se do problema, observemos inicialmente
a questão da mercantilização da natureza sob o prisma do fortalecimento do governo
central. É sabido que a privatização da terra já fora ventilada pelos regulamentos das
Cortes liberais espanholas, que definiram a conversão do terreno baldio em
propriedade privada, ainda que sem maiores consequências práticas em função da
restauração de Felipe VII em 1814. O processo começa a adquirir forma jurídica no
período republicano mesmo antes das reformas liberais de meados do século. A rigor,
a Lei Lerdo (1856) é a culminância de diversas iniciativas em âmbito estadual que
pressionavam pela desinstitucionalização dos pueblos indígenas e pela parcelização
da terra, recorrendo para tal à mudança jurídica e à gestão de ilegalismos156. A pressão
sobre as terras comunitárias é causa de uma onda de petições nas décadas de 1830 e
1840 encaminhadas pelos pueblos às autoridades estaduais/provinciais157 e nacionais,
mobilizando apelos em uma linguagem política sincrética, ancorada ainda na tradição
corporativa e pactista do império. Percebendo-se desamparadas na nova ordem
jurídica, as comunidades rurais recorreram também à rebelião, por vezes por meio de
alianças com frações da elite política.
Em um levantamento feito por John Coastworth sobre as rebeliões rurais no
México após 1819, das 102 ocorrências registradas constam informações sobre as
causas de apenas 54. As queixas por impostos foram importantes em apenas oito
casos, enquanto que, em quarenta deles, a origem da revolta estava relacionada com a
invasão violenta de terras, a usurpação de espaços comunitários e uso indevido de
recursos naturais158 (COATSWORTH, 1990: 50-51). O próprio autor aponta um
contraste claro com relação ao período colonial, em que os protestos contra impostos
sobrepujavam largamente as disputas fundiárias. Determinadas lutas rurais de maior
escala ou duração conseguiram inclusive pôr em xeque a autoridade do governo
nesses espaços, como se verifica na duradoura resistência dos Yaquis em Sonora, na
revolução na Sierra Gorda (1847-1849), na rebelião zapoteca de Oaxaca (1847-1850)
e na guerra de castas em Yucatán. Em Nayarit, o mestiço Manuel Lozada, saído do
Para uma aproximação empírica a essas iniciativas, ver os comentários de Carmen Bernand sobre a
Lei de Colonização em Chihuahua em 1825, bem como as decisões sobre a terra dos congressos
estaduais de Jalisco em 1825 e Chiapas em 1826 (BERNAND, 2016: cap. 3).
156
A razão do duplo termo é que, em 1836, a reforma constitucional conservadora altera o estatuto dos
estados novamente para províncias, em uma tentativa de centralização do desenho federativo de 1824.
157
Em outro levantamento, citado por Katz (1990: nota 12, p.255), se enumeram 55 sublevações entre
1821 e 1855, sendo 44 delas relacionadas à questão da terra.
158
288
banditismo social na década de 1850, constitui uma aliança com os indígenas com
base na redistribuição e na proteção de suas terras comunais contra as intrusões dos
latifundiários, tornando-se um dos mais importantes chefes regionais até seu
fuzilamento em 1873 (BERNAND, 2016: cap. 3).
A resistência social à mercantilização da natureza tinha, então, como atores
centrais os pueblos que, dispondo de direitos pactuados no período imperial,
conquistaram instrumentos de luta durante o ciclo independentista. O segundo ator
importante foi a maior proprietária rural do país, a Igreja Católica. Após a decisiva
participação do baixo clero na insurgência de 1810-1820, a corporação cerrou fileiras
com os centralistas conservadores. Tendo sido fragilizada desde a extorsão fiscal do
período bourbônico, a Igreja estava particularmente vulnerável como bastião da velha
ordem. A derrota militar para os Estados Unidos em 1848 deslegitimara os
conservadores, imagem agravada pela guinada autoritária do general Sant’Anna no
começo dos 1850 e pelo golpe liderado por Félix Zuloaga em 1857.
Por seu turno, não obstante as lutas travadas, as comunidades rurais e indígenas
estavam também perdendo terreno: não havia nas elites políticas, fossem liberais ou
conservadoras, qualquer respaldo doutrinário para a preservação da autonomia e das
terras comunais159. A reforma constitucional encaminhada pelos conservadores em
1836 reduzia o número de municípios àquele existente em 1808, um golpe direto às
pretensões autonomizantes dos pueblos. Ademais, Marino (2011) chama a atenção
para a progressiva ocupação de posições de poder por brancos nas municipalidades do
centro do país, ocupação que repercutia contra os reclames indígenas nas jurisdições
locais. A debilitação política desses dois atores, a Igreja e os pueblos, criará o
momento para a reforma liberal de 1855, a primeira transformação profunda no
regime fundiário mexicano desde a conquista espanhola. Sua consecução se entrelaça
É preciso fazer certas mediações para não homogeneizar exageradamente a imagem. A ausência de
endosso doutrinário à autonomia territorial e à propriedade comunitária não significa que não
houvessem medidas politicamente orientadas nessa direção. O próprio general Sant’Anna acenou à
proteção dos “terrenos de origem comunal” por meio da participação de subintendentes e padres nas
municipalidades. Contudo, a suposta afinidade dos conservadores com as comunidades indígenas não
passava, nas palavras de Andrés Lira, de “intentos desesperados para atrair os pueblos revoltados que
se somavam a caudilhos seguidores dos liberais nas disputas políticas. Mas o certo é que, fosse qual
fosse o bando político, ninguém estava disposto a colocar um limite no processo de apropriação
individual da terra a favor das comunidades. Para os homens públicos, conservadores ou liberais, a
propriedade comunal dos indígenas era um obstáculo ao processo da economia política” (LIRA, 2003:
390).
159
289
com o ímpeto de liberalização mundial pós-1846, no zênite hegemônico de expansão
material sob liderança britânica.
A Lei Lerdo de 1856 extinguia a propriedade rural corporativa, reconhecendo
legalmente somente a propriedade individual e desamortizada160. Em sua defesa, o
então presidente Ignacio Comonfort partia do diagnóstico de que “um dos maiores
obstáculos à prosperidade e o crescimento das nações é a falta de movimento ou livre
circulação de grande parte de seus imóveis, uma base fundamental da riqueza
pública” (apud KNOWLTON: 1969: 389). A interligação entre o anticorporativismo,
a autorregulação de mercado e a prosperidade nacional era um apelo ético-político
conformado já na Era das Revoluções, mas sua força foi por décadas refreada no
México.
Em 1823 o padre e publicista Severo Maldonado considerou o direito de
possessão hereditário e perpétuo como causa da ruína das sociedades, defendendo a
livre circulação de mercadorias e a parcelização da terra entre as famílias indígenas
(BERNAND, 2016: 103). Na reforma tributária conduzida pelos conservadores em
1836, a substituição das alcabalas pela tributação direta e proporcional estava
amparada nos mesmos preceitos. O então Ministro da Fazenda, Manuel Gorostiza,
chegou inclusive a ligar os tributos sobre a circulação de mercadorias, como a
alcabala, à conveniência das “monarquias despóticas”, em oposição às “Repúblicas,
onde os vínculos que ligam o cidadão ao seu governo nascem e se sustentam no
cumprimento recíproco dos deveres” (apud PINTO BERNAL, 2012: 57).
Nas décadas de 1850 e 1860, as reformas liberais assentam definitivamente
esse imaginário como ordem hegemônica. Como resultado da Lei Lerdo, da
Constituição de 1857 e das Leis da Reforma de 1859, a Igreja Católica foi coagida a
vender suas propriedades rurais e urbanas a preço de mercado, sendo estas, na
ausência de compradores, leiloadas sumariamente pelo governo. Em janeiro de 1861,
quando Juárez retoma a Cidade do México, a execução dos bens eclesiásticos,
estimados em 150 milhões de pesos, se torna também uma fonte fundamental de
arrecadação para o governo (BAZANT, 1991). Buscando conciliá-la com uma
redistribuição fundiária que lhe alargasse a base social, o governo liberal flexibilizou
as formas de pagamento, aceitando variados tipos de títulos públicos e promissórias.
Concretamente, na lei de 1856 havia previsão legal de resguardo para os ejidos, isto é, as terras
comunitárias, qualificadas como indispensáveis à sobrevivência dos povoados. Essa garantia se torna
ambígua na Constituição liberal de 1857 e praticamente sem consequências legais depois dela.
160
290
Como resultado, afirma Ian Bazant, os bens confiscados em 1861 no Distrito Federal
em um valor de 16 milhões de pesos geraram somente um milhão em prata aos cofres
federais. A mobilização emergencial de recursos para encerrar a guerra civil, aliada ao
anticlericalismo doutrinário dessa geração de liberais, fez com que a Igreja fosse o
alvo principal das reformas.
Com relação aos povos indígenas, deslancha um intenso processo de
desinstitucionalização dos ayuntamientos, pueblos e comunidades, reforçados pelos
códigos civis da década de 1870 e, em 1882, pela decisão da Suprema Corte relativa
aos direitos de propriedade da terra como exclusivamente individuais (MARINO,
2011). Curiosamente, ao detalhar as corporações que deixariam de ter prerrogativas
legais, a Lei Lerdo incluía os municípios constitucionais ainda que estes não fossem, a
rigor, uma corporação ou estamento colonial. Isso se justifica na medida em que eles,
em função da torção do liberalismo que operaram nas décadas de 1810 e 1820,
funcionavam na prática como diques corporativos à economia de livre mercado.
Conforme o governo faz da mercantilização social um objetivo político, a pauta da
autonomia municipal tende a perder força com relação às lutas populares pela terra.
Como seria de esperar, o triunfo da autorregulação de mercado nas altas esferas
políticas não significou sua efetivação, nem imediata, nem uniforme, no país como
um todo. Em primeiro lugar, a mercantilização da natureza esbarrava em um cenário
legal complexo, com diversas formas de titulação ligadas ao usufruto não-exclusivo
do espaço (caçar, coletar lenha, recolher água, atravessar a propriedade
periodicamente, etc.), concedidos por instâncias políticas discrepantes, do antigo
monarca ao município. Além disso, a circunscrição das propriedades era
frequentemente ambígua e sujeita a contenciosos. Uniformizar a propriedade
individual sobre o pluralismo jurídico colonial significava desencaixar certas práticas
consuetudinárias arrazoadas a nível da comunidade, enfraquecê-la como referência de
regulação da vida política e garantir a operação coerente de instituições estatísticas,
judiciárias e cartoriais para impor o novo regime.
Tal qual ocorrera após 1812, o novo quadro legal encetava estratégias
adaptativas por parte das comunidades, nomeadamente para proteger-se dos efeitos
disruptivos da mercantilização. Assim, em 1916, quando os constituintes fizeram um
extensivo levantamento da situação fundiária do país, encontraram uma miríade de
formas legais descoladas da propriedade privada individual, pelas quais as
291
comunidades indígenas faziam um “uso estratégico da lei” através de condueñazgos
(copropriedades), repartições, ranchos e ejidos (MARINO, 2011). Essa modulação da
lei nas localidades também se relaciona com mudanças na forma de contestação rural,
assinaladas por Katz (1990). Desafiando a visão convencional da pax porfiriana, Katz
aponta que as lutas camponesas de fato ocorreram, mas se tornaram menores e mais
localizadas nas últimas décadas do século, em contraste com o acelerado e recorrente
contágio regional que marcara as lutas no pós-1810 (KATZ, 1990). Voltaremos
adiante ao tema da desativação política do campo, mas é importante lembrar que as
múltiplas estratégias populares de resistência no transcurso do século, como as
sublevações armadas, as petições ou as adaptações jurídicas, não foram
inconsequentes porque derrotadas, mas, enquanto concepção alternativa de ordem,
incidiram efetivamente sobre o ritmo, o modo e a intensidade do desenraizamento
cultural à economia de mercado.
Contrariamente às expectativas de que a desamortização se completasse pela
redistribuição das terras a pequenos produtores independentes, nutrida pelo próprio
ministro Miguel Lerdo de Tejada, a tendência à concentração fundiária foi notável. “O
desafortunado resultado, então, foi substituir uma forma de concentração de
propriedades – a eclesiástica – por outra, nova, o latifúndio” (KNOWLTON, 1969:
400). De saída, havia considerável indisposição entre a população comum à aquisição
de bens confiscados da Igreja por sua conotação herética e anticlerical, o que
favorecia compradores estrangeiros. Além disso, a urgência com que o processo foi
conduzido após 1861 fez com que, por força da obtenção de recursos, se transferissem
grandes lotes a um mesmo comprador. Aliada à entrada de capitais estrangeiros, a
introdução do transporte ferroviário germinaria o mercado imobiliário no fim do
século, contribuindo decisivamente para que a rota das reformas liberais se
distanciasse de seus objetivos iniciais (COATSWORTH, 1974). No censo de 1910,
registra-se que 57% de toda a terra do país estava titulada a apenas 11 mil
proprietários, o equivalente a 0,1% da população (BULMER-THOMAS, 2003: 93).
A aliança dos conservadores com os franceses em 1862 para coroar um rei
austríaco foi um movimento extremo, o último recurso pelo qual a enfraquecida
facção vice-reinal pretendeu controlar as reformas liberais, ainda que com recursos
alheios. Em tal contexto, a negação de soberania desencadeada após a moratória
declarada por Benito Juárez reabre uma situação de soberania múltipla, uma vez que,
292
diante da ocupação francesa, o presidente eleito transfere seu governo para San Luis
de Potosí em abril de 1863. Com efeito, desde sua formação, a reivindicação de
controle político da violência pelo governo central mexicano fora mediada e instável,
e as situações de soberania múltipla, recorrentes. Isso porque o centro de gravidade da
vida política fora deslocado, durante a luta insurgente, para estados e municípios
dotados de considerável autonomia fiscal e militar, capazes de derrubar o governo
central com movimentos orquestrados “da circunferência ao centro”. Com o
federalismo fiscal de 1824, essa atrofia institucional do poder central fora
constitucionalizada.
Pela topografia política criada na independência, portanto, havia muita
violência organizada que o governo central não controlava, na forma de milícias de
pueblos livres ou sob chefes regionais, das tribos guerreiras como os comanches e
apaches que resistiam no norte, de grupos bandoleiros percorriam o interior a saques.
Em outras palavras, o estado federal mexicano não controlava efetivamente os termos
da
mobilização
e
da
desmobilização
da
violência,
nem
os
parâmetros,
consequentemente, de decisão sobre a ameaça e a exceção. Comprimido pela
exiguidade de sua base fiscal, havia escassos meios para a construção de consenso, de
modo que a oposição, fosse ela conservadora ou liberal, encontrava recorrentemente
terreno fértil. Até 1867, quando a monarquia Habsburgo é definitivamente derrocada
pelas guerrilhas liberais, não é exagero dizer que “setores importantes da população
mexicana se negaram a reconhecer a legitimidade de qualquer governo que ocupasse
o poder na Cidade do México” (KATZ, 1990: 180).
A monarquia de 1863-1867 se concretiza por meio de uma guerra interestatal,
como ponto culminante da pressão militar estrangeira que o México esteve
particularmente exposto desde a conjunção crítica de 1808 a 1824. Naquela ocasião
ocorrera um deslizamento da situação anterior, de beligerância transatlântica e
interimperial entre Inglaterra, França e Espanha, para outra, ditada pelo
expansionismo dos Estados Unidos e pela diplomacia de canhoneiras. Alguns dias
após o Grito de Dolores, cabe recordar, uma reunião de colonos anglo-saxões
proclamou a dissolução formal de seus vínculos à monarquia espanhola na cidade de
Baton Rouge, na Flórida Ocidental.
De setembro a dezembro de 1810, o presidente estadunidense James Madison
aproveitou-se da proclamação de independência da efêmera República da Flórida
293
Ocidental para incorporar esse território estratégico, na foz do Mississipi, aos Estados
Unidos. Em 1819, os EUA obtêm da Espanha a cessão da totalidade da península da
Flórida, após terem ali incursionado ilegalmente em 1812. Um roteiro parecido ocorre
por ocasião da independência do Texas em 1835, único estado mexicano a preservar a
escravidão, e na República da Califórnia em 1846. O militarismo não se limitava aos
EUA: até 1825, os espanhóis ainda mantinham um bastião no forte de San Pedro de
Ulúa, e, em 1829 investiram militarmente contra Veracruz, imbuídos da reconquista
de sua mais pujante colônia americana. Os franceses já haviam bloqueado o porto de
Veracruz em 1838 antes de, em 1862, usá-lo como cabeça de ponte para a invasão do
país.
É importante notar que essas projeções extraterritoriais se entrelaçam com a
dinâmica de dissenso e oposição a um governo central vulnerável. No caso do Texas,
a relação é emblemática: inconformados com as reformas centralistas, em particular a
redução das milícias cívicas, sublevaram-se em 1835 os estados de Zacatecas e Texas,
reclamando sua liberdade e soberania sobre o poder central. Enquanto o primeiro caso,
mais próximo do centro do país, foi objeto de rápida repressão pelo exército, o
segundo escalou para um conflito internacional que redundou na independência e
anexação aos EUA. O pico de conflitos rurais no México independente coincide com
as malogradas guerras contra os Estados Unidos de fins dos anos 1830 aos 1840
(COATSWORTH, 1990: 56). Igualmente, as duas ondas de petições de pueblos
registradas por Antonio Annino (anos 1830/1840 e entre 1858-1867) ocorrem em
contextos de guerra civil e internacional (ANNINO, 1999; 2003).
Ora, sabemos que, do ponto de vista teórico, não há separação entre contestação
social, barganha política e rivalidade interestatal do ponto de vista da agonística da
ordem política. No caso da desesperada aliança dos conservadores mexicanos com os
franceses para restaurar um império no México, isso se efetiva não só como uma nova
situação de soberania múltipla, mas também como manobra geopolítica no contexto
atlântico. O império mexicano, que recoloca os conservadores no poder, é também a
aposta colonial de Napoleão III para aproveitar a janela de oportunidade oferecida
pela Guerra Civil nos Estados Unidos. O próprio fato de que Maximiliano de
Habsburgo, à revelia do que esperavam seus parceiros locais, tenha impresso ao seu
governo uma direção mais liberal é sintomática do ambiente ideológico de meados de
294
século, quando a restauração absolutista já parecia descreditada (WALLERSTEIN,
2011).
Ao fim e ao cabo, o triunfo da guerrilha liderada por Juárez entre 1863 e 1867
sela uma sinergia fundamental entre o movimento liberal e sentimento patriótico
mexicano. Em seu longo périplo pelo interior do país, Juárez e seus correligionários
vão construindo o imaginário de que a guerra pela reforma é a definitiva libertação
nacional. Por certo, essa sinergia entre patriotismo e liberalismo remonta aos conflitos
com os EUA desde os anos 1830 e, em particular, à aliança social por trás do Plano de
Ayutla (1854), cujo disparador imediato foi a venda de terras aos EUA pelo governo
de Sant’Anna em dezembro de 1853. Entre 1863 e 1867, contudo, ela atinge novo
patamar, anulando definitivamente o projeto de restauração do vice-reinado e seu
núcleo corporativo.
É interessante observar que essa nacionalização do liberalismo tem estreita
conexão com o controle político da violência pelo governo central, ou ainda, com o
processo de desencaixe da política de seus contextos locais. Em termos militares, os
liberais haviam se apoiado nas guardas nacionais populares formadas para a defesa
contra a invasão estadunidense em 1846, além do apoio de certos governos estaduais e
suas fontes de financiamento. Essas milícias eram compostas por pobres rurais, em
sua maioria indígena, arregimentados nas municipalidades. Sua remobilização em
1854 por Juan Alvarez em apoio ao Plano de Ayutla conduziu essa aliança a um
limiar crítico.
Derrubado o governo de Sant’Anna, os liberais se viram diante de um dilema.
De um lado, como apontou Florencia Mallon (1995), essas milícias populares
constituíam os mais leais aliados com que os liberais contaram nas décadas anteriores,
de predominância da facção centralista, tendo papel decisivo nas vitórias militares de
1854-1855; de outro, as pautas que mobilizavam essas milícias, como a autonomia
local, o direito à terra e a justiça social, não podiam ser encampadas a sério pelas
elites liberais sem comprometer seu próprio programa político. Ao transportar essas
milícias à Cidade do México em 1855, os liberais precisavam encaminhar esse dilema
posto entre sua agenda de reformas e a ativação política recorrente do mundo rural.
A saída, como observou Mallon (1995), foi a repressão das milícias pelo
exército, acenando à preocupação dos grandes proprietários rurais. A nacionalização
do liberalismo como horizonte ético-político é concomitante a uma inflexão chave ao
295
autoritarismo, que se aprofundaria nas décadas posteriores. Dessa forma, há uma
confluência entre o patriotismo inflamado contra as intervenções estrangeiras, a
nacionalização de um programa de reformas liberais e a repressão violenta ao
dissenso rural, desvencilhando-se definitivamente do “liberalismo popular” que
vicejara no período revolucionário de 1808 a 1824. Essa confluência jaz sob a criação
do estado federal de 1857 como pretensão de governo nacional, e não mais uma
confederação constituída por províncias soberanas. A desmobilização forçada das
milícias populares é parte de um esforço político mais amplo de controle sobre a
violência política, esforço esse que, derrotada a monarquia em 1867, adquiriria ímpeto
e potência em direção ao Porfiriato, como ficaram conhecidos os governos de Porfirio
Díaz entre 1876 e 1911.
Por fim, a composição desse quadro depende da obtenção de condições para a
reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo pelo governo central, que se
discernem com regularidade empírica somente a partir de 1867. Como foi dito, a
extinção das principais receitas do vice-reino não encontrou substituição efetiva após
a independência, quadro cronicamente agravado pela longa depressão econômica no
México dos anos 1820 aos 1850. Também observamos que, secundário nas cadeias de
valor emergentes sob hegemonia britânica, a economia mexicana combinou baixo
crescimento das exportações e baixa taxa de exportação per capita até os anos 1880,
em comparação às demais periferias latino-americanas (Tabelas 5.1 e 6.3). Assim
sendo, embora o governo federal instituído em 1824 dependesse de tarifas aduaneiras,
elas não forneciam uma propulsão fiscal consistente; não é surpresa que todos os
orçamentos federais até 1867 fossem deficitários (MARICHAL & CARMAGNANI,
2001).
Essa situação fazia do governo refém de seus credores. Após crise financeira
latino-americana de 1825-1827, o recurso aos capitalistas locais produziu um
loteamento de privilégios econômicos às famílias financistas da Cidade do México
(MARICHAL, 1989: 61-67). Em 1834, por exemplo, a firma de Manuel Escandón
recebeu como contrapartida do governo o direito de tributar diretamente a circulação
na maior artéria comercial do país, a estrada que ligava o porto de Veracruz à Cidade
do México. Alguns anos depois, em troca de crédito, um consórcio de mercadores
recebeu o controle majoritário da Empresa del Tabaco, a maior das fábricas
fumageiras estatais. Além disso, a amortização da dívida por meio da privatização de
296
terras públicas foi prática comum. Se a primeira guerra com os EUA não houvesse se
interposto, o governo mexicano havia acordado com seus credores em 1837 a
conversão de metade de sua dívida externa em terras no norte do país à taxa de quatro
acres por libra, o que implicaria a cessão de mais de 87 mil quilômetros quadrados,
quase o equivalente ao atual estado de Oaxaca.
Vulnerável pela inconstância da base fiscal, o governo central recorria à
distribuição de privilégios e vantagens, não só em troca de crédito, mas da própria
execução de serviços por privados. Ademais, como no caso da venda de terras
públicas, obtinha recursos extraordinários para fazer a guerra. A venda da Mesilla aos
Estados Unidos por Sant’Anna em 1853 rendeu-lhe 10 milhões de dólares para
aparelhar a luta contra a oposição liberal nos meses seguintes. O mesmo ocorreu após
a nacionalização das propriedades eclesiásticas por Juárez em 1859, que inflou os
recursos com que os liberais manobravam. Não obstante esses ganhos oportunistas, a
base fiscal do governo federal era inconstante para arbitrar decisivamente as situações
recorrentes de soberania múltipla. Após 1824, os governos estaduais retiveram o
direito aos impostos de circulação (alcabalas e peajes), o que tinha uma dupla
consequência: sustentar as bases regionais de mobilização política e colocá-las na
oposição à integração interregional de um mercado nacional.
A reprodução contraída do ciclo extrativo-coercitivo não é somente uma espiral
de endividamento e déficits fiscais, mas também uma tendência centrífuga do controle
político da violência. Com efeito, há uma acelerada desintegração desse controle se
comparamos a situação de 1821, quando do triunfo contrarrevolucionário garantido
pelo Exército, com a proliferação subsequente de vetores alternativos de ordenamento
da violência, fosse pela contestação rural, pelo separatismo, pela pressão militar das
grandes potências, intensificada como guerra de fronteira pelos EUA. O ponto mais
emblemático dessa tendência centrífuga talvez seja o hasteamento da bandeira
estadunidense no Palácio Nacional em setembro de 1847.
O imperativo de reversão dessa tendência produz uma gradual aproximação
entre liberais federalistas e conservadores centralistas após a humilhação militar de
1846-1848, comungando a necessidade de um estado suficientemente forte para
controlar a violência, enfrentar a resistência das “corporações” e integrar um mercado
em escala nacional (AGUILAR RIVERA, 2011). Essa síntese entre federalistas e
297
centralistas corresponde à inflexão autoritária do liberalismo ao nacionalizar-se na
segunda metade do século.
A partir de 1867, esse projeto de ordem começa a girar uma reprodução
ampliada do ciclo extrativo-coercitivo e desencadeia um movimento centrípeto na
política mexicana. Ao passar em revista os orçamentos do período 1867-1911,
Marichal e Carmagnani encontraram quase a metade deles sem déficits (19 dos 44).
Entre 1867/8 e 1881/2, as despesas correntes caíram de 80% para 42%, o que provia
ao governo um excedente anual de cerca de 2 milhões de pesos para manobrar sua
política. De 1895 a 1911, ainda seguindo os cálculos de Marichal e Carmagnani
(2001), o gasto federal per capita passa de 2 a 4 dólares sem alteração da relação
gasto/PIB. Dessa forma, o apaziguamento autoritário das décadas do Porfiriato tem
como pano de fundo uma expansão capitalista que provê excedentes fiscais ao
governo, que consegue controlar pela primeira vez sua dívida externa com a
renegociação feita em 1888.
O fortalecimento extrativo durante o Porfiriato tem duas fontes principais: o
crescimento dos impostos indiretos e um gigantesco programa de venda de terras
públicas. Embora os impostos aduaneiros tenham caído em proporção (de 58% da
receita em 1872 para 46% em 1910), eles dobram em valor e são acompanhados de
um crescimento notável dos impostos internos sobre o consumo, que chegam a 31%
da receita total (LÓPEZ, 2005: 08-12). A receita total sextuplica de 1872-1873 a
1905-1905 (Tabela 8.3). No montante de impostos aduaneiros, a carga sobre as
importações correspondia a mais de 95%, onerando sobretudo a população urbana e a
indústria nascente dependente da importação de bens de capital. Como já se disse na
segunda parte da tese, a tributação indireta sobre o consumo teve um resultado
socialmente regressivo, mas relativamente fácil de contornar politicamente. Ao longo
do Porfiriato, os salários rurais permaneceram nominalmente constantes, mas os
preços, sobre os quais incidia a tributação indireta, subiram cerca de 30%, tendência
que se acentua na crise de 1907-1910.
A inflexão para os tributos de importação se ressalta porque o desenvolvimento
capitalista associado decolou após 1870. Após uma tendência à queda no poder de
compra das exportações entre 1850-1870, firmara-se um crescimento anual médio de
5,9% (1870-1890) e 3,9% (1890-1912) (Tabela 6.3). Os Estados Unidos se tornaram o
principal parceiro comercial, absorvendo mais de 75% das exportações mexicanas em
298
1911/1912 (Tabela 7.3). Enquanto isso, o Império Britânico consolidava sua posição
como maior credor do setor público (92%) e origem de investimentos diretos (56%).
Essa triangulação econômica representa a transição hegemônica desde o contexto
mexicano, onde a ascensão estadunidense se sobressai precocemente (Tabela 7.4). O
estado mexicano conseguia ampliar sua base fiscal e usar os excedentes para
barganhar a lealdade de elites regionais, empresariais, intelectuais e eclesiásticas.
Por seu turno, a privatização das terras públicas gerava receita estatal mas
também dinamizava a acumulação por despossessão, expandindo a fronteira agrícola
e a mercantilização social. Alargava, com isso, a base sobre a qual o governo central
extraía tributos regularmente. A arrecadação com vendas de terras e serviços públicos
é em média quatro vezes maior que o crescimento geral da receita do governo no
período 1867-1912 (Tabela 8.5). A malha ferroviária mexicana passa de praticamente
zero a 25,6 mil quilômetros de 1850 a 1913, tornando-se a mais extensa no continente
depois de EUA e Argentina (Tabela 6.5).
Com o transporte ferroviário, supera-se abruptamente os obstáculos naturais
que haviam parcialmente resguardado o mundo rural mexicano do efeito disruptivo da
sociedade de mercado. Como as municipalidades e pueblos haviam perdido muita
alavancagem política a partir das reformas liberais, a mercantilização encontrava
comparativamente pouca resistência camponesa. Com o Porfiriato, que selou um
bloco inter-regional de elites, essa resistência encontrava outra estrutura de
oportunidades políticas; as ferrovias eram, no México como no resto do mundo,
artérias não só para mercadorias e força de trabalho, mas também para tropas e
burocratas.
A reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, pois, produziu uma
acelerada tendência centrípeta no controle político da violência. Um ícone da ligação
entre ferrovias e repressão foi o Corpo de Polícia Rural, os chamados rurales
nacionales, instituídos por Juárez e impulsionados por Porfírio Díaz. Esse grupo
paramilitar executava tarefas de escolta a diligências, ação antigrevista, policiamento,
proteção a investidores estrangeiros e mesmo espionagem e vigilância sobre
lideranças locais. Através desse corpo policial, o governo federal havia conseguido
cooptar bandoleiros, jagunços e ex-milicianos para combater a seu lado, valendo-se de
seu conhecimento e seus métodos (BAZANT, 1991).
299
Não à toa, os rurales federales e estatales (em nível estadual) ficaram célebres
por operar como força repressiva à margem da lei, deslocando-se rapidamente no país
graças às ferrovias e impondo o terror no mundo rural. Essa é, aliás, a contraface da
mudança no perfil das revoltas camponesas durante o Porfiriato, já apontada acima,
que, diante da maior prontidão repressiva, tornaram-se menos numerosas, menos
duradouras e mais localizadas. Mais do que um monopólio da violência legítima, as
polícias rurais mexicanas e seus ilegalismos representavam a capacidade de controlar
e direcionar a violência aos termos da ordem vigente (ver seção 1.3).
Um dos vetores decisivos dessa ordem era o emprego da força para sustentar
sistemas de trabalho coagido e servidão por dívidas, que foi predominante no sudeste
exportador. Diante da escassez de trabalhadores, os fazendeiros conseguiam burlar os
efeitos de um mercado livre de trabalho por meio da força pública e privada,
mantendo sua força de trabalho aparte das vicissitudes da economia monetária. Desde
a década de 1870, o exército tomou parte na deportação de yaquis derrotados para
fazendas de agave em Yucatán, para onde também se enviavam condenados judiciais
do centro do país e trabalhadores emigrados da Ásia. Arranjos de controle pessoal
sobre o trabalho continuaram vigentes no centro do país e em algumas regiões do
norte onde os fazendeiros dispunham de maior poder político, fosse pela ausência de
setores não-agrícolas que competissem pela força de trabalho, fosse pela distância
relativa da fronteira com os EUA.
O controle político da violência assegurava uma ampla franja de ilegalismos
locais, que atrelavam a insegurança camponesa ao disciplinamento do trabalho rural.
A sobrevivência do trabalho coagido não reflete uma suposta incompletude da crença
liberal pelas elites mexicanas, mas o poder com que os latifundiários lograram
modular, em determinados contextos, os efeitos previstos da autorregulação de
mercado aos seus interesses imediatos. Ao contrário do clero ou dos povos indígenas,
essas elites agrárias tinham como trunfo a inserção periférica no mercado mundial
para conseguir controlar o desenraizamento do trabalho.
É interessante observar como a centralização política incide também sobre as
municipalidades, crescentemente subjugadas por nomeações, intervenções e
compromissos com os poderes superiores. A própria imposição de ritos legais e
eleitorais por funcionários provinciais vai minguando o horizonte do município livre,
que fora reinventado sob o constitucionalismo liberal, reduzindo-o a uma instância
300
administrativa integrada ao aparato maior. Essa mudança de panorama se reflete nas
petições encaminhadas pelos pueblos, que são cada vez menos assinadas pelas
autoridades eleitas da municipalidade e mais por indivíduos isolados, isto é, sem
respaldo institucional do município (KATZ, 1990: 190-191). Há uma estreita conexão
entre a desativação política do mundo rural e o processo de desencaixe da vida
política de seus contextos locais, que ocorre de forma brusca a partir de 1884, quando
inicia o segundo mandato oficial de Porfirio Diaz. Com efeito, a fidelidade das
instituições locais fora forçosamente desvencilhada dos rumos da política nacional, e
os canais de associação entre elites de oposição e movimentos camponeses, cortados.
Essa foi a mecânica de apaziguamento do liberalismo autoritário, que conseguia,
assim, um alargamento sem precedentes de seu controle sobre a violência e sobre os
meios de pagamento.
8.3. Conjunção crítica II (1910-1940): a via revolucionária para outra nação
O tema dessa seção é o desmoronamento da ordem política liberal na
conjunção crítica que se precipita no México com a campanha antireeleição de 1910 e
se fecha com a consolidação de um bloco partidário interclassista por Lázaro
Cárdenas nos anos 1930. Interessa observar, para fins analíticos e comparativos, os
seguintes aspectos: de um lado, o precoce e radical desfecho do “longo século XIX”
por uma revolução social, que revolve de forma particularmente ampla o horizonte de
possibilidades na conjunção crítica de 1910 a 1940. De outro lado, é preciso notar
como a prevalência de uma nova ordem política passa por uma reorganização
significativa da seletividade inerente ao ciclo extrativo-coercitivo, de modo a
acomodar forças políticas de extração popular, do campo e da cidade, em um partido
unificado. Após um estiramento crítico da disputa, a desmobilização política e a
convergência a uma nova rotina institucional seriam particularmente exigentes,
envolvendo o aparato de estado em diversas frentes de reforma social.
A primeira dimensão a sublinhar é a relação entre a eclosão revolucionária e o
rastro de desarticulação social e compressão política produzido nas últimas décadas
do Porfiriato. O primeiro epicentro da sublevação foi justamente a região onde a
agricultura capitalista mais se desenvolvera: os estados do norte interligados à
economia estadunidense. Nas décadas anteriores, fora uma zona de migração interna
301
para aproximadamente 300 mil mexicanos, além de fronteira de expansão para as
ferrovias e o investimento estrangeiro (KATZ, 1992).
A exposição às flutuações econômicas nos Estados Unidos fez com que se
sentissem efeitos da recessão já a partir de 1907, resultando no fechamento de minas,
indústrias e madeireiras, no retorno de trabalhadores das fazendas nos EUA e no
rebaixamento recorde de salários pela abundância de força de trabalho. Como mostrou
Katz (1974), o norte estabelecera uma trajetória econômica diferente do resto do país,
na medida em que o assalariamento foi mais disseminado e os arranjos de partição
agrícola, mais favoráveis aos camponeses. Com a crise de 1907-1910, produz-se uma
inédita unificação política do mundo rural nortenho no movimento maderista. A
proclamação do Plano de San Luis de Potosí em finais de 1910, com as subsequentes
rebeliões no resto do país, configura um ponto de não-retorno na história do país.
O segundo epicentro revolucionário foi o centro-sul indígena, onde fora mais
violento o processo de expropriação de terras comunitárias e eclesiásticas. Com efeito,
o plano zapatista proclamado em Ayala em 1911 representa uma radicalização agrária
do que se propusera Francisco I. Madero. Não obstante, seu significado adquire maior
magnitude no contexto da disputa pela ordem política: como mostrou Warman (1990)
a partir da análise dos despachos, manifestos e circulares do Exército do Sul, o
zapatismo encarnava um horizonte de reorganização da sociedade tendo como base a
comunidade rural livre e o município autônomo, atribuindo um papel residual e
acessório aos órgãos políticos estaduais e nacionais.
Essa visão de mundo subentendia um gabarito alternativo para a seletividade do
uso da força, ao advogar, por exemplo, a restituição das terras mediante a ocupação
imediata e violenta, com indenizações financiadas pela expropriação dos inimigos da
revolução. Esse reposicionamento do uso da força era lastreado em balizas
ético-políticas avessas às reformas liberais, de modo que o movimento zapatista
resgatou e organizou uma série de documentos de origem colonial que reconheciam o
direito originário às terras comunitárias (BERNAND, 2016: 217).
Para além de um movimento social popular, indígena e agrarista originado em
Morelos, convém reconhecer que ele carrega uma seletividade alternativa em termos
de proteção e ameaça, ou de como organizar socialmente a fiscalidade. A sustentação
do Exército do Sul recai prioritariamente na forma de requisições sobre os
latifundiários, e Warman (1990) registra, nos despachos de Zapata, seu zelo em
302
controlar os abusos contra a população civil. Os termos do emprego da força, da
extração, da redistribuição fundiária e da autoridade política concatenam-se em um
horizonte do que seria uma sociedade bem ordenada. Extrapolando o campo da
oposição liberal antiporfirista, constituía-se como um projeto alternativo de ordem no
próprio transcorrer da luta política, alargando seu espectro de possibilidades.
Ainda que o zapatismo tenha sido usado para ilustrar o argumento, ele é parte
de uma conjuntura mais ampla de acirramento da agonística da ordem política pela
implosão dos procedimentos institucionais de mediação política. Em geral, a
polarização da Revolução Mexicana é segmentada pelas grandes facções que
vertebraram a política nacional, como o exército do sul liderado por Zapata, o do
norte liderado por Villa, e o movimento constitucionalista de Carranza. Ainda assim,
a dinâmica de disputa sobre o desmoronamento da ordem vigente adquiriu traços
próprios nos diversos teatros locais e regionais, como ilustra, entre outros, o estudo de
Buve (1990) sobre o Movimento Revolucionário de Tlaxcala.
O segundo pilar decisivo que baliza a conjunção crítica pós-1910 é a
progressiva incorporação do trabalho organizado à disputa política institucional.
Durante o Porfiriato, o acelerado desenvolvimento industrial e ferroviário incubou
associações de ajuda mútua, jornais operários e as primeiras confederações laborais
mexicanas, com destaque para a Casa del Obrero Mundial (COM), de inspiração
anarcossindicalista e internacionalista. Esse associativismo popular ganha peso no
transcorrer do processo revolucionário. Com a derrubada do intento reacionário do
general Huerta (1913-1914), Venustiano Carranza se alia à COM e forma os
chamados “batalhões vermelhos”, no que um trabalho clássico sobre o tema
identificou o “primeiro grande episódio de mobilização pelo alto do trabalho
organizado no México” (COLLIER & COLLIER, 2002: 205). Pelo artigo 123 da
constituição de 1917 se oficializam direitos trabalhistas (jornada de oito horas,
descanso semanal, salário mínimo, greve), se regulamentam a atividade sindical e a
negociação institucional entre patrões e empregados. O México se torna ponta de
lança da transformação mundial da “questão social” nessa conjunção crítica.
O segundo episódio relevante de mobilização trabalhista pelo alto ocorreria
justamente na oposição a Carranza, após sua inflexão autoritária nos anos 1916-1920.
Criada em 1918 como primeira associação trabalhista de âmbito nacional, a
Confederação Regional dos Trabalhadores do México (CROM) funcionaria como
303
pilar sindical da oposição encabeçada pelos sonorenses Álvaro Obregón e Plutarco
Elías Calles. Durante o governo de Obregón, essa nova relação entre estado e
sindicatos adquire contornos mais nítidos: a CROM passa a ocupar postos no governo,
é favorecida em disputas industriais, obtém ganhos relativos no conflito distributivo e
é preservada da repressão política, enquanto vão minguando – isoladas, perseguidas e
sem conquistas concretas – as forças sindicais anarquistas e comunistas. Já na década
de 1920, os principais dirigentes políticos contam com algum apoio assentado no
mundo sindical, enquanto as taxas de sindicalização tendem a crescer (COLLIER &
COLLIER, 2002). No movimento pelo qual as elites políticas estabelecem bases
sindicais às suas aspirações de governo, elas também interferem, discriminam e
moldam, pelas induções governamentais, a fisionomia organizativa da classe
trabalhadora, privilegiando os adeptos de um sindicalismo regulamentado, negociador
e eficaz.
Como projetos radicais de refundação social, tanto o radicalismo agrário
zapatista como o sindicalismo autônomo foram, à primeira vista, sufocados no
processo de construção da ordem política pós-revolucionária. Na sombra dessa
derrota aparente, desses e de outros movimentos populares do período, há uma
transformação mais profunda nos termos da disputa, no cálculo do dissenso posto pela
ativação política dos camponeses e dos assalariados urbanos. Com as derrotas
infligidas pelos constitucionalistas sobre a aliança Zapata-Villa entre 1915 e 1916, a
espinha dorsal do novo Exército Nacional se forma ao redor das tropas obregonistas
vindas do noroeste (TOBLER, 1990: 151-156). Ao contrário do modelo de exército
popular zapatista, estes eram geralmente mobilizados pelo alto, acomodando mais
naturalmente as hierarquias sociais à hierarquia militar, com um perfil também mais
profissionalizado, incluindo ex-federales convertidos em combatentes revolucionários.
Com isso, de 1920 até meados dos anos 1930, o Exército Nacional se converteu em
um instrumento fundamental de repressão agrária, alinhado aos interesses dos grandes
proprietários, que não raro chefiavam uma divisão em sua localidade, ou eram
ex-generais revolucionários recompensados com latifúndios.
Não obstante, essa manobra de neutralização do agrarismo radical não seria
exequível pela dissuasão violenta. Em paralelo à centralização do controle político da
violência pelos constitucionalistas, abrem-se dois flancos decisivos de ação
governamental entre os governos Carranza (1917-1920) e Obregón (1920-1924). De
304
um lado, há o primeiro movimento oficial consistente em direção à reforma agrária,
amparado na limitação da propriedade rural – ainda que em limites muito aquém
daqueles praticados pelos zapatistas – inserida no artigo 27 da Constituição de 1917.
A distribuição geográfica dessa primeira reforma agrária coincide com os espaços de
maior ativação política camponesa e indígena, deslanchando sobretudo em Morelos,
berço do Exército do Sul. Ali, a organização ejidal passa efetivamente a predominar
no mundo rural pelo efeito combinado das ocupações e titulações revolucionárias e da
reforma agrária nos anos 1920-1922.
O segundo flanco de ação governamental é o investimento em uma pioneira
política cultural e educacional no sentido de refundar o imaginário de pertencimento à
nação mexicana, resgatando sua etnicidade, seu nacionalismo popular e suas origens
pré-colombianas. O ícone maior dessa política é a Secretaria de Educação Pública,
instituída em 1921 e confiada a José Vasconcelos, que vinha então de uma
experiência reformista na reitoria da UNAM. O rechaço ao racismo e ao culturalismo
permitia manobrar as linhas de inclusão e exclusão política que o positivismo
porfirista havia engessado, abrindo um amplo terreno de política pública, de
iconografia nacional, de uma nova “estória de povo” que valorava aqueles que, no
desfecho da guerra civil, estavam sendo marginalizados politicamente. É
incontornável notar como um intercurso entre coerção e consenso, ou entre
imaginários e políticas públicas, se desenvolvia na reacomodação contingente das
subjetividades políticas camponesas, cujos projetos de sociedade, mesmo quando
derrotados, acabaram por alterar as condições pelas quais os vencedores poderiam
vir a sê-lo.
Outra forma de glosar o ponto seria identificar nisso uma série de ajustes na
seletividade do ciclo extrativo-coercitivo como pano de fundo das mudanças na
relação entre estado e classes trabalhadoras rurais e urbanas. Além de maior
generalização, esse ponto de observação permite iluminar uma mudança menos
imediata do que a reforma agrária, o loteamento de cargos públicos ou a mediação de
conflitos industriais. Durante a conjunção crítica de 1910 a 1940, há uma alteração do
padrão de extração do estado mexicano. Como vimos, o Porfiriato conseguira firmar
uma reprodução ampliada do ciclo fiscal através da substituição dos impostos de
circulação interna, que serviam de esteio para os governos estaduais, por impostos
sobre as importações e sobre o consumo (impuestos de timbre), além da venda direta
305
de patrimônio público. Essa modalidade de extração indireta incidia diretamente sobre
o custo de vida, um dos gatilhos da insatisfação popular durante a crise econômica de
1907-1910. A mudança na distribuição relativa do fardo fiscal adquire ímpeto com a
Primeira Guerra Mundial em 1914, que, por um lado, trava o influxo de importações
dos centros, e, por outro, abre inéditas oportunidades aduaneiras sobre as exportações
primárias (LÓPEZ, 2005: 20-29).
Essa nova conjuntura internacional coincidia com momentos críticos da guerra
civil revolucionária no México. Com efeito, as forças constitucionalistas contaram,
entre 1914 e 1916, com uma vantagem decisiva ao controlar as principais zonas
exportadoras e as aduanas atlânticas, enquanto que as forças da Convenção
(Zapata/Villa) precisavam angariar recursos de uma economia doméstica paralisada
pela guerra. A produção têxtil, de longe o principal setor industrial, caiu 38% de 1913
e 1918, e mesmo em 1921 a produção industrial total ainda era inferior à de 1910
(BULMER-THOMAS, 2003: 182). Com a demanda externa crescente por produtos
agropecuários, minerais e petróleo, e a melhora conjuntural dos termos de troca, a
arrecadação aduaneira sobre as exportações, antes ínfima, chegou a equiparar-se
aquela oriunda das importações. Nos meses entre outubro de 1914 e junho de 1915,
decisivos para o destino do embate revolucionário, 91% da arrecadação com
importações e 87% da arrecadação com exportações foram obtidas nas aduanas do
Golfo do México, controladas pelos constitucionalistas (Tabela 8.5).
No fim da guerra em 1920, pela primeira vez na história independente do
México, a tributação aduaneira representava menos de um terço da arrecadação
federal. A reforma fiscal promovida pelo bloco triunfante em 1916 teve como
objetivo emergencial aliviar as tarifas aduaneiras sobre bens de primeira necessidade,
buscando suavizar a carestia em um momento de crise econômica, greves e marchas
públicas nas cidades. Após um inchaço conjuntural da arrecadação com exportações,
cuja carga era diluída entre os consumidores estrangeiros, a restituição da estrutura
extrativa sobre o consumo popular se tornava politicamente proibitiva. Há uma
tendência que se põe em movimento de diversificação e interiorização da fiscalidade
como forma de reencontrar um esteio exequível para sua reprodução ampliada. Como
se vê na tabela 7.2, às vésperas da crise de 1929, o imposto de renda atinge a 6,7% do
orçamento federal, maior porcentagem à época na América Latina depois do Chile
(12,6%). Embora os impostos sobre as importações continuem relevantes, eles
306
perdem peso proporcional e subordinam-se cada vez mais à estratégia de
industrialização substitutiva, induzindo um contramercado pela taxação da
concorrência estrangeira.
Destarte, os ajustes na seletividade do ciclo extrativo-coercitivo são
perceptíveis também do ponto de vista da extração regular, refletindo os efeitos
encadeados da fricção política nessa conjunção crítica. A extensão dos efeitos da
derrubada revolucionária da ordem liberal oitocentista no México se revelaria,
contudo, no caráter de sua resposta à crise de 1929 (KNIGHT, 2014). Em boa medida,
o choque externo em princípios dos anos 1930 interrompeu uma trajetória de
centralização conservadora dos anos 1920, quando a recuperação econômica se
alinhara às tendências pró-capital, pró-latifúndio e pró-EUA dentro do governo. Uma
vez deflagrada a crise, a resposta imediata do governo mexicano seguiu a ortodoxia
econômica inspirada pela autorregulação de mercado, praticando uma contração fiscal
e monetária que tornou ainda mais devastador o efeito do choque externo. De 1930 a
1932, as exportações caíram 60%, as receitas do governo despencaram 34% e o PIB
do país, reduziu-se 18% (KNIGHT, 2014: 221).
Diante do colapso, há uma reorientação heterodoxa liderada por Alberto Pani,
que volta ao Ministério da Fazenda em 1932. A retomada do gasto público é
sustentada então pelo retorno à emissão de moeda fiduciária, produzindo uma política
de estímulos contracíclicos. Até aí, não há nada de distintivo com relação a outras
experiências de keynesianismo prático que irromperam naquele contexto. É com a
emergência da dissidência à esquerda do Partido Nacional Revolucionário (PNR),
liderada pelo general Lázaro Cárdenas, que uma espécie de segunda revolução toma
forma, dessa vez agenciada pelo alto. A ativação popular e a institucionalização de
bases camponesas e sindicais a um partido nacional, estratégia que torna viável a
presidência de Cárdenas entre 1934 e 1940, acaba por sedimentar os termos da disputa
política posterior, sepultando definitivamente o ciclo do “longo século XIX”.
No mundo sindical, a hegemonia da CROM estava bastante combalida. Embora
Cárdenas não tivesse alianças formais no mundo sindical durante sua campanha
eleitoral, o teor da oposição callista faz com que essa aproximação aconteça por
atração recíproca. A ênfase trabalhista do cardenismo já era notória desde o Plano
Sexenal adotado pela Convenção do PNR em 1933, que lançara sua candidatura.
Nesse sentido, Cárdenas opera uma reaglutinação sindical ao redor de uma nova e
307
mais abrangente confederação nacional, a Confederação de Trabalhadores do México
(CTM).
Ademais, a Comintern lança sua política de frentes populares em 1935, atraindo
a base sindical comunista ao bloco nacional-popular organizado pela CTM. Após um
interregno de afastamento relativo entre 1928 e 1934, o estado mexicano estava
imerso, de maneira irreversível, na mediação institucional da relação entre capital e
trabalho em escala nacional. Além de ganhos salariais e respaldo político aos
sindicatos da CTM, é instaurada uma reforma trabalhista das mais avançadas para a
época, prevendo inclusive a participação dos trabalhadores na gestão das empresas.
Em termos de respostas político-institucionais à crise de 1929, tratava-se de uma
trajetória radical.
No campo, a política cardenista é igualmente prenhe de consequências. Em
primeiro lugar, o reparto de terras atinge proporções insondáveis até então: entre 1934
a 1940, foram distribuídos cerca de 18 milhões de acres de terra, o número de
ejidatários cresceu de 940 mil para mais de 1,7 milhão, e a fatia das terras cultivadas
reconhecidas como ejidos passa de 15% a 47% no país (TOBLER, 1990). Além disso,
é criado um banco ejidal para solucionar o gargalo de crédito, e milícias rurais
camponesas como contrapeso ao Exército Nacional, que era até certo ponto
oposicionista. A institucionalização do apoio camponês ao governo ganha expressão,
em 1938, pela criação da Confederação Nacional Camponesa, que agrupava então
cerca de 3 milhões de trabalhadores rurais (COLLIERS & COLLIER, 2002). Após
uma tendência de dispersão das realidades agrárias regionais, criava um vetor
poderoso de nacionalização da disputa política no campo, de alinhamento da situação
local às estruturas nacionais de mobilização e formulação de política.
Em uma conjuntura internacional que permitia maior autonomia política, como
os anos 1930, a presidência de Cárdenas constitui uma espécie de segunda revolução
porque recorre às bases populares da revolução para conseguir atingir e manobrar o
poder de estado. Ao contrário dos movimentos anteriores, estabelece um aparato
institucional forte para incorporar as classes trabalhadoras ao estado, assentando o
legado revolucionário em uma estrutura corporativa e unitária encarnada no partido da
revolução. Aglutina o empresariado aos termos de um capitalismo dirigido,
nacionalista e industrializante. A extensão do reordenamento social durante a
conjunção crítica 1910-1940 é inseparável da radicalidade com que a revolução
308
demoliu a velha ordem, da intensidade com que utopias alternativas emergiram e
movimentaram a base da pirâmide social. Como projeto triunfante, o modelo
nacional-popular de Cárdenas culmina uma série de ajustes na seletividade prática do
ciclo extrativo-coercitivo, que conferem novos significados ao pertencimento, à
cidadania, à nacionalidade. Sua conformação não é o somatório das utopias
revolucionárias, mas um resultado contingente de seu confronto em circunstâncias
particulares.
309
9. ARGENTINA: CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA NO “LONGO
SÉCULO XIX”
“Rivadavia proclamou a ideia de unidade; Rosas a realizou. Entre os federais e os
unitários, a República foi centralizada; o que quer dizer que a questão é de vozes que
encobrem uma fogosidade dos povos jovens, e que no fundo, tanto um como outro
serviram sua pátria, promovendo a unidade nacional. Os unitários perderam, mas
triunfou a unidade. Venceram os federais, mas a federação sucumbiu”161
Juan Bautista Alberdi (1847)
O comandante britânico Home R. Pope não tinha sequer anuência do
primeiro-ministro quando desembarcou mil e seiscentos soldados no mal guarnecido
porto de Buenos Aires no inverno de 1806. Liderada pelo recém promovido general
William Beresford, a investida sobre a cidade encontrou mínima resistência armada e
o vice-rei retirou-se para o interior, instalando uma capital provisória em Córdoba.
Diante do aparente sucesso da empreitada, o governo britânico passou a endossar a
iniciativa, que, ato contínuo, promoveu a primeira abertura oficial de portos
latino-americanos às mercadorias inglesas.
Desde 1804, Espanha e Inglaterra estavam em guerra, mas o império espanhol
sofria grande desvantagem no Atlântico após a Batalha de Trafalgar (1805). A
incapacidade de resposta das marinhas inimigas fora o acicate para a iniciativa de
Pope e Beresford, que meses antes participaram na ocupação britânica da colônia
holandesa no Cabo da Boa Esperança. No entanto, essa resposta partiria da margem
oposta do Prata, das praças fortificadas de Montevidéu, que desde 1797 se constituíra
como o centro defensivo do vice-reino. Com menos de dois meses de duração, a
primeira ocupação britânica seria derrotada pelos milicianos chefiados pelo general
franco-espanhol Santiago de Liniers, prontamente alçado a herói pela população da
cidade (TERNAVASIO, 2009: cap. 1).
A despeito de sua rápida reversão, a invasão britânica catalisa duas tendências
cruciais: a militarização da sociedade portenha e sua extroversão comercial através
das fissuras do monopólio colonial. Com efeito, durante os anos 1800, a guerra e o
bloqueio continental haviam secado o fluxo de manufaturas francesas e alemãs que
161
Extraído de transcrição em Botana (2003: 665).
310
eram contrabandeadas pelo porto de Cádiz, deixando um mercado que seria
crescentemente ocupado por firmas britânicas.
Quando Napoleão invade a Espanha em 1808, o realinhamento na Europa
aproxima os britânicos da resistência juntista metropolitana e, consequentemente, das
colônias americanas leais a Fernando VII. É nesse contexto que o vice-rei Cysneros
decide, em 1809, autorizar pela primeira vez a importação legal de mercadorias
britânicas ao vice-reino espanhol. Os impostos oriundos dessas importações eram uma
forma de fazer frente à penúria fiscal da Caixa de Buenos Aires, agravada no triênio
1807-1809. Elevados os custos de proteção da cidade após as incursões britânicas
(1806 e 1807), a administração vice-reinal ainda sofria com a escassez de remessas de
prata do Alto Peru (Potosí). Abrir o porto era sem dúvida uma medida desesperada
para salvaguardar a autoridade do império, mesmo que pelo sacrifício das bases
históricas de seu funcionamento. Uma vez disponíveis essas receitas aduaneiras, era
cada vez mais impraticável restaurar o status quo ante em que elas não existiam.
O apetite pelos recursos se explicava pela necessidade de manter os novos
corpos milicianos instituídos na luta contra os ingleses. Desta feita, foram criados dois
regimentos de patrícios (brancos nativos de Buenos Aires) e outros três de diferentes
proveniências: um composto pelos chamados arribeños (do Alto Peru), um integrado
por negros livres e um por peninsulares, especialmente bascos, andaluzes e catalães
(BERNAND, 2016: 47). Mesmo com a redução da ameaça britânica e portuguesa em
1809, as tropas milicianas não são desmobilizadas pela imprevisibilidade social de
fazê-lo. São mantidos cerca de quatro mil soldados regulares após 1806, o que
corresponderia a aproximadamente 30% da população masculina, adulta e livre da
cidade de Buenos Aires (HALPERÍN DONGHI, 2005: 78-81).
Como notou Tulio Halperín Donghi, a militarização acarretava uma
transferência relativa de recursos fiscais para a plebe multirracial urbana na forma de
soldos, vestimentas e suprimentos. Sua presença armada na cidade perturbava as
hierarquias arraigadas da sociedade colonial. Assim, a desmoralização da autoridade
espanhola, incapaz de proteger a cidade, foi correspondida pelo fortalecimento dos
milicianos locais e do ayuntamento, que, em sessão deliberativa após a reconquista,
havia decidido a destituição do vice-rei e a nomeação imediata de Liniers para o
cargo.
311
No contexto de acirramento da rivalidade interestatal das últimas décadas do
século XVIII, a defesa no Atlântico Sul fora sabidamente o principal mote da
constituição do Vice-Reino do Rio da Prata em 1776. Relativamente marginal em
termos da sustentação extrativo-coercitiva do império, a foz do Prata não fora
particularmente afetada por rebeliões fiscais de caráter popular nas décadas seguintes.
Sua posição eminentemente defensiva era amparada pelos situados oriundos do Alto
Peru, que garantiam quase a metade das receitas do vice-reino (Tabela 9.1).
Ademais, o comércio entre as colônias espanholas foi liberalizado a partir de
1778 no bojo das reformas bourbônicas, reforçando os circuitos econômicos interiores
que ligavam as províncias do Litoral, Mendoza, Tucumán e o Alto Peru. A
interiorização administrativa era acompanhada de um adensamento das ligações
comerciais sob a pirâmide corporativa que tinha seu topo em Cádiz. À imagem da
guilda central, foi criado em 1794 o Consulado Comercial de Buenos Aires, que
agremiava a comunidade mercante da capital sob a tutela da Coroa (ADELMAN,
2006: 39-40).
Na década de 1790, a corrida interimperial no Atlântico já produzia efeitos
contraditórios sobre o governo das províncias do Prata. Com a guerra de 1793-1795, a
metrópole passa a sugar a prata de Potosí que permitia sustentar os gastos
administrativos do vice-reino, situação que se agravaria a partir de 1802. Por seu
turno, os mercadores portenhos ambicionavam liberalizar a entrada de mercadorias
estrangeiras no porto sem abdicar do arranjo corporativo que lhes conferia controle
sobre o comércio. No entanto, o efeito dessas importações se fazia sentir no interior
do país, especialmente após o decreto de Cysneros em 1809.
Incubadas pelos controles coloniais, as pequenas manufaturas nas províncias
(licores, têxteis, aguardente, vinho, calçados) viam estreitar-se os mercados do Litoral
e de Buenos Aires conforme eles acediam a bens importados. Não à toa, quando o
livre comércio se torna doutrina oficial da Revolução de Maio de 1810, e o mercado
peruano é engolfado pelas guerras de independência, as províncias do interior
adotarão uma postura fortemente protecionista. A raiz dessa divergência entre
portenhos e províncias remete necessariamente às injunções da crise imperial
espanhola e da decolagem industrial inglesa no Atlântico.
A convocação de nova sessão deliberativa (cabildo aberto) pelos criollos de
Buenos Aires em maio de 1810 respondia ao virtual colapso da resistência juntista na
312
península e, por consequência, da autoridade metropolitana. A destituição do vice-rei
Cysneros por decisão do cabildo foi a culminância na rivalidade entre o poder
imperial e as instituições municipais nos quatro anos anteriores, em que a colônia
vivera inédita confusão com relação à estrutura de autoridade. Ao contrário de outras
cidades hispano-americanas entre 1808 e 1809, inclusive no próprio vice-reino, como
Montevidéu, Chuquisaca e La Paz, a formação de uma junta autônoma de governo
leal a Fernando VII havia sido interdita em Buenos Aires pela ação de Liniers, quando
este ainda controlava a maior parte dos milicianos.
9.1. Conjunção crítica I (1810-1827): das margens do império ao impasse federal
O triunfo do cabildo em 1810 seguramente respondia às novas condições
vigentes na península. Ao instalar um governo soberano em Buenos Aires com base
na doutrina de retroversão da soberania, a indefinição política dava lugar a uma nova
situação de soberania múltipla: por um lado, a Junta da capital encaminhava
prerrogativas de representação das demais províncias no novo governo, despachando
suas milícias para impor-se aos cabildos recalcitrantes. Por outro, formava-se a partir
de Montevidéu e do Peru uma robusta resposta militar para destituí-lo. A erosão da
autoridade piramidal do império criaria um conflito profundo sobre os termos da
jurisdição, representação e autonomia política, revolvendo horizontes incompatíveis
sobre a dimensão territorial da soberania.
No movimento de maio percebe-se com nitidez a circulação de novas ideias
daquele ciclo revolucionário, como a ligação da monarquia ao despotismo, o
igualitarismo, a unidade soberana da nação e o estado de exceção como emergência
revolucionária. Esse republicanismo radical e centralista foi marca da chamada ala
jacobina da Junta, liderada por Moreno e Castelli. Ambos, assim como Bernardo de
Monteagudo, haviam adquirido formação em Charcas na época em que Victorián de
Villalba, da Real Audiência, recorrera às doutrinas da Ilustração para opor-se à mita.
A educação desses personagens em instituições coloniais não os manteve alheios às
controvérsias doutrinárias da época.
Em 1810, o projeto jacobino implicava instituir um Congresso Constituinte
com a chegada dos representantes da província, oficializando uma ordem política
independente da Espanha. Conforme o Plano de Operações elaborado por Moreno em
313
julho, e aprovado em sessão secreta da Junta, sua plataforma mobilizava temas
polêmicos como a reforma agrária, a expropriação dos espanholistas, o fim da
escravidão e da servidão, a repressão exemplar dos opositores e o controle do
comércio exterior sob uma estrita economia de guerra (MORENO, 2007; ver também
ANSALDI, 2010; PRIETO, 2009: 60). No transcorrer de 1810, essa ala foi derrotada
pela posição mais conservadora, que, sem dissolver de todo os laços com o império,
apregoava a criação de uma liga de cidades rio-platenses, colegiada, autônoma e leal
ao monarca espanhol deposto.
O triunfo da Revolução de Maio tem duas consequências importantes. A
primeira é que a Caixa de Buenos Aires se descola definitivamente da estrutura fiscal
e militar do império, passando a ser a tesouraria de um governo independente. Com
isso, as compensações alto-peruanas precisam ser definitivamente substituídas por
formas de arrecadação local, que se mostram então cronicamente insuficientes. Por
sua importância no novo cenário, a aduana se converte em um centro independente de
pagamentos de novo governo, servindo inclusive como moeda de troca, na forma de
concessões, privilégios e isenções particularistas, para obtenção de crédito
emergencial (HALPERIN DONGHI, 2005: 88).
No quinquênio 1811-1815, os impostos sobre importação e exportação
garantem, respectivamente, 41% e 5,6% da arrecadação total, e o déficit comercial faz
com que haja um escoamento sistemático de prata para o exterior. Em um contexto de
expansão da presença britânica em Buenos Aires, a decisão do novo governo pela
abertura comercial em 1810 demarca suas novas bases de extração regular como
estado independente. Ao invés de canalizar recursos do interior para sustentar uma
estratégia defensiva no Atlântico, passava-se a amealhar recursos no porto atlântico
para amparar uma guerra revolucionária ofensiva no interior.
O segundo desdobramento da revolução de 1810 foi a formação de entidades
representativas nas províncias, que deveriam deliberar sobre a adesão ao novo
governo. Com efeito, o regulamento expedido por Buenos Aires em 10 de fevereiro
de 1811 estipulava instruções para a formação das juntas provinciais e subordinadas,
o que produziu uma profusão de reivindicações autonômicas (Jujuy, Mendoza, Tarija,
etc.). Em tal contexto, a junta reunida em Assunção proclamaria em 1811 sua lealdade
ao Conselho de Regência na metrópole após repelir as tropas bonaerenses, criando um
governo no Paraguai integralmente separado do antigo vice-reino. Os cabildos,
314
antigas repartições administrativas das localidades, “passam de imediato a
converter-se em órgãos representativos do novo soberano, transformação preparada
pela figura do Cabildo Aberto surgida nos últimos anos do regime colonial”
(CHIARAMONTE, 2016: 110).
A geografia política de províncias autônomas no Rio da Prata remete às
previsões da Ordenanza de Intendentes de 1782, que definia a província como o
território governado por uma intendência. Essa medida se justapunha à tradição
hispânica de ampla jurisdição das cidades organizadas por seu cabildo. Em seu
contexto, a instituição de intendências no interior pretendia não descentralizar a
autoridade, mas sim o contrário, interiorizar o poder político imperial. A circunstância
criada pelas abdicações reais de 1808 e pela formação das juntas metropolitanas, com
base na reassunção da soberania pelos pueblos, servirá de gatilho para o movimento
centrífugo e autonomizante das partes do antigo vice-reino. A partir de 1811, o
movimento artiguista na Banda Oriental culmina e congrega esse imaginário
confederal de unificação política pela vontade soberana de províncias livres. Como
notou Chiaramonte (2016: 195), na linguagem política da década de 1810 há relativa
sinonímia entre as palavras “estado” e “província”. A filosofia política das Instruções
do Ano XIII (1813) de Artigas reaparecem nos textos constitucionais promulgados
nas províncias a partir de 1819 (CHIARAMONTE, 2016: 131).
Alinhadas aos interesses aristocráticos após a marginalização dos jacobinos, as
forças de Buenos Aires conseguem destruir o levante artiguista, e, com ele, a utopia
de inclusão rural de mestiços, guaranis, negros e pobres que integravam suas colunas.
Por outro lado, o governo portenho fracassaria repetidamente em reconectar-se às
receitas de Potosí nas expedições de Castelli (1811), Belgrano (1813) e Rondeau
(1815). Mais do que isso, o expansionismo de Buenos Aires criaria animosidades
também a sul, na fronteira delimitada pelo Rio Salado (hoje Salado do sul) com as
tribos independentes da planície pampeana.
Em abril de 1815, as tropas bonaerenses fazem uma incursão em território
indígena para controlar o roubo de gado e as deserções. A imprevisibilidade da
fronteira sul de Buenos Aires fez com que fossem numerosos os indígenas que não só
resistiram ao assimilacionismo republicano, mas eventualmente se alinharam às forças
realistas, como o célebre bando dos irmãos Pincheira (BERNAND, 2016: 64-67).
Quando a decisiva expedição de San Martín parte para libertar o Chile dos espanhóis,
315
embora sem aprovação de Buenos Aires, sua passagem pelos Andes é avalada por
uma assembleia de caciques pehuenques em 1816.
Só em 1820 a província de Buenos Aires firmou um convênio com as tribos
limítrofes para normalizar a fronteira no rio Salado, proibindo a transposição por
fazendeiros e militares. A projeto constitucional de 1819 previa a igualdade jurídica
entre indígenas e não-indígenas, o que por certo não se aplicava àqueles situados além
dessa fronteira (BERNAND, 2016: 67-70; LOVEMAN: 2014: 79-80). De fato, a
escalada militar havia destruído os estamentos coloniais e suas camadas subalternas
haviam se descolado parcialmente em uma margem móvel e multiétnica da sociedade.
Ora peões, ora soldados, ora contrabandistas, eram pessoas sem vínculos comunitários
fortes e sem um estilo de vida camponês arraigado à terra. Após a derrota da Liga dos
Povos Livres de Artigas em 1820, por ação combinada de portugueses, argentinos e
desertores artiguistas, não havia espaço para sua desmobilização e reassentamento
rural, mantendo-os à mercê de estancieiros e generais.
Para além da indefinição ético-política da ordem pós-colonial, a conjunção
crítica envolvia um estremecimento geral de hierarquias sociais sem oferecer
alternativa imediata e efetiva. Gradualmente, a linha de pertencimento que se firma no
contexto militarizado argentino será, pelo menos até a década de 1870, o serviço nas
milícias e na Guarda Nacional (1853) como recíproca da cidadania política, em uma
chave de disciplina social e pedagogia patriótica (MACÍAS & SÁBATO, 2013).
Na segunda metade da década de 1810, a situação de soberania múltipla
continental seria revertida em favor das independências. Embora a Espanha já não
dispusesse de meios para reagrupar à força os retalhos de seu império, isso não levou,
no outro extremo, à supremacia portenha no Rio da Prata. Em 1820, a tributação sobre
o crescente influxo de importações já correspondia a 86% da arrecadação, o que já
pesava desproporcionalmente sobre os bens de consumo popular (HALPERÍN
DONGHI, 2005: 168-191). No entanto, o ciclo extrativo-coercitivo do Diretório
sediado em Buenos Aires desmoronaria pela desproporção de seus compromissos
militares: “é, então, o crescimento desmesurado dos gastos, antes que a fraqueza dos
ingressos, o que empurra o Estado revolucionário ao colapso fiscal” (HALPERÍN
DONGHI, 2005: 109).
Nesse sentido, a queda da Liga artiguista e do Diretório revolucionário em 1820
pelas milícias do Litoral não só se encadeiam no tempo, mas conjuntamente estreitam
316
o horizonte de possibilidades aberto em 1810. Diminuído o risco da reconquista
espanhola, o poder de Buenos Aires, em estiramento fiscal crônico, perde centralidade
para as províncias, que o derrubam sob a bandeira federalista de sua autonomia
natural na batalha de Cepeda (1820).
Iniciar-se-ia então um ciclo de constitucionalização desses estados provinciais
em repúblicas representativas, reconhecendo ou não, conforme o caso, a legitimidade
futura de um poder federal superior (CHIARAMONTE, 2016: parte 2;
TERNAVASIO, 2009: cap. 5). De
1819
em
diante,
diversas
províncias
promulgariam cartas magnas que regulariam sua reivindicação de autogoverno,
assimilando balizas institucionais distintas do momento pactista liderado pelos
cabildos na década de 1810. Até 1819, quando começa o ciclo constitucional, as
províncias eram representadas por seu cabildo na forma tradicional de mandato
imperativo
empregado
pelas
cidades
castelhanas
nas
Cortes
de
Castela
(CHIARAMONTE, 2016: 260). Em geral, as constituições provinciais se pautaram
por executivos unipessoais, legislativos unicamerais e uma base eleitoral
relativamente ampla, calcada no sufrágio dos vizinhos (ALONSO & TERNAVASIO,
2011: 292).
A começar por Buenos Aires em 1821, os cabildos rio-platenses seriam
progressivamente extintos na década seguinte, sendo o último extinto em Jujuy em
1834, subsumidas às novas legislaturas provinciais. Em tal cenário, a encarniçada
polêmica sobre a unificação dessas repúblicas, que dividiria unitários e federais no
novo intento constitucionalista de 1824-1826, era sobretudo “um problema derivado
da dimensão territorial da soberania, e não do questionamento do novo idioma
constitucional” (ALONSO & TERNAVASIO, 2011: 290).
Incapaz de impor a centralização política ao antigo vice-reino, o governo
portenho volta-se ao hinterland da província, onde viceja a pecuária extensiva. Com
efeito, por trás da turbulência da guerra, a pampa úmida passava por um processo de
inserção acelerada na nova economia atlântica, de que o porto era o gargalo decisivo.
Graças às exportações agropecuárias, o déficit comercial de Buenos Aires com o
Reino Unido era menos acentuado que em outras repúblicas latino-americanas do
período (PLATT, 1972: 33). A grande propriedade rural se convertia em um segmento
de lucros extraordinários na economia local.
317
Essa condição econômica se associava a uma nova forma de encarar o governo
da província. A partir do governo de Martín Rodríguez (1820-1824), delineia-se uma
estratégia para reverter as medidas emergenciais do período de guerra, reduzindo o
peso do gasto militar, controlando as emissões monetárias e abrindo novas frentes de
ação governamental. Nesse período são criadas a universidade, a biblioteca e o museu
de história natural, além de um programa de obras viárias. Antes usadas como
garantia dos empréstimos emergenciais, as terras pertencentes ao governo deixaram
de ser alienadas a particulares em 1822, sendo então cedidas somente por contratos de
enfiteuses, com duração de 20 anos e aluguel de 8% de seu valor (GARAVAGLIA &
GAUTREAU, 2011). Também em 1822, o sistema de crédito é reorganizado com a
criação do Banco da Província. Com a criação dos primeiros órgãos especializados
em agrimensura e cartografia, inicia-se o esforço cartográfico das terras da pampa
através da composição dos informes submetidos pelos proprietários.
Nessa conjuntura, a expansão fiscal do governo portenho está largamente
ancorada no crescimento das importações: mesmo coletando 83,5% das receitas
regulares do triênio 1822-1824, essa tributação não chegou a inibir o influxo de
produtos importados, especialmente têxteis e cutelaria (PLATT, 1972: 17). A
demanda por esses produtos era inflada pela expansão da comunidade britânica
residente na capital, que salta de cerca de 120 indivíduos em 1810 para mais de 3 mil
em 1824, número muito superior ao de outros portos latino-americanos como
Valparaíso, Callao e Rio. O lastro aduaneiro permitia, por sua vez, a alavancagem de
crédito, interna e externamente. Ao valer-se do controle sobre o gargalo aduaneiro, a
província de Buenos Aires precipitava sua transição fiscal pós-independência,
sustentando o projeto reformista pela distribuição do ônus fiscal entre as demais
repúblicas provinciais (HALPERÍN DONGHI, 2005). A tensão política decorrente jaz
no cerne da Era das Revoluções no Rio da Prata.
O unitarismo portenho era informado por ideais de vanguarda ligados ao
cultivo da ciência, ao cosmopolitismo letrado e à liberdade econômica, o que
subsidiava um excepcionalismo civilizador com relação ao interior do país. A
articulação de um horizonte de progresso econômico com a autorregulação de
mercado e com o constitucionalismo liberal aparece nas páginas de periódicos
emblemáticos do período, como La Abeja Argentina ou El Argos de Buenos Aires
(ADELMAN, 2006: 368-372). Mais do que veículos de instrução pública, essas
318
publicações animavam um emergente debate intelectual e político que distinguia uma
elite dirigente pós-revolucionária.
A redução do gasto militar no triênio 1822-1824, auge das chamadas reformas
rivadavianas, corroborava a expectativa pacificadora do comércio. A paz
constitucional, a alta cultura e a ciência eram chaves de pertencimento da província ao
círculo das nações ocidentais enquanto o charque e as peles asseguravam sua inserção
nas novas cadeias de valor. Mais do que isso, encadeava-se pela primeira vez a
expansão fiscal e o reformismo liberal imbuído de aplainar o terreno de expansão do
segmento econômico internacionalizado, através de obras públicas, de mudanças
legais e do uso da força.
Não obstante, esse projeto de ordem é esgarçado ao limite de seu colapso entre
1825 e 1828. A guerra com o Brasil iniciada em 1825 pelo controle da Banda Oriental
faz disparar novamente os gastos militares, o que se agrava pelo bloqueio dos portos
de Buenos Aires e Montevidéu pela marinha brasileira. No Bacia do Prata, era a
primeira vez que o estrangulamento armado do comércio portuário revelava seu
extraordinário potencial de pressionar os governos dependentes das aduanas. Nos
anos de guerra, as receitas aduaneiras sobre as importações despencaram para apenas
20% da arrecadação (HALPERIN DONGHI, 2005: 140-141).
Em paralelo, a polarização entre unitários e federais no congresso constituinte
de 1824 faz com que as províncias do Litoral e do interior se abstenham dos custos do
esforço de guerra; pelo contrário, aproveitam-se da conjuntura para multiplicar as
sublevações armadas e isolar o governo unitário de Buenos Aires. Privado de suas
principais receitas e comprometido com gastos galopantes, o estado portenho lança
mão da emissão de papel não-conversível. A inflação decorrente se manifesta pela
dissociação entre o valor nominal e o valor real do papel-moeda em peso de prata:
$1,69 em 1826, $3,32 em 1827 e $2,92 em 1828 (HALPERIN DONGHI, 2005: 143).
O descontrole das emissões também compromete a rolagem da dívida externa
contraída em Londres em 1824, que colapsa definitivamente com o terremoto
financeiro mundial de 1826/1827. O Império Britânico realiza uma mediação do
conflito em curso na Banda Oriental tendo em vista a urgência de reabrir os portos à
navegação comercial e tentar normalizar o pagamento da dívida.
A posição privilegiada de Buenos Aires para controlar e tributar a entrada de
mercadorias pela Bacia do Prata acarretava, inegavelmente, uma pressão geopolítica.
319
A pressão vinda do Atlântico se entrelaçou com a oposição das províncias ao usufruto
que a capital fazia de sua posição estratégica. A sobreposição entre guerra interestatal,
disputa faccional e conflito social já havia aparecido muito claramente na crise de
1816, quando as forças luso-brasileiras invadiram o Uruguai para debelar a guerrilha
artiguista. Em 1827, o projeto unitário portenho sucumbe sob a pressão da guerra, a
despeito de sua associação com uma economia pampeana em expansão.
A conjunção crítica de 1806-1827 certamente não determina o curso da história
posterior. Permite discernir um ponto de não-retorno conforme as instituições
precedentes já não podem ser recosturadas, e, ao mesmo tempo, armar o conjunto de
vetores que balizam, por seu conflito ou sua afinidade, o processo de construção da
ordem sobre os escombros das instituições precedentes. Nesse sentido, (1) a
retroversão da soberania a repúblicas provinciais que tendem a constitucionalizar-se,
(2) a abertura comercial controlada desde a capital, (3) a mobilidade da fronteira com
as tribos indígenas autônomas, (4) a transição fiscal acelerada, (5) a militarização da
vida política, (6) a reivindicação opaca de poder de Buenos Aires sobre o conjunto
das Províncias Unidas e (7) a guerra interestatal como latência das reivindicações
políticas concorrentes no Prata, para agrupar as balizas mais significativas, não podem
ser literalmente somadas para decifrar a trajetória posterior.
Uma vez em movimento, essas tendências interagem como em um campo de
forças. Nesse sentido, a resultante desses vetores é empiricamente muito mais
irregular do que uma acumulação progressiva de capacidades estatais ou organização
política. Sem dúvida, a disrupção do reformismo centralista de Buenos Aires marca
uma descontinuidade, mas não o retrocesso ou a barbárie. Mais do que isso, essa
disrupção só ocorre porque geografias políticas alternativas existiam e inspiravam
efetivamente práticas opostas ao que a elite bonaerense tinha como progresso.
Antes de observar como esse campo de forças se desenvolve concretamente no
tempo, convém deter-se no significado da posição periférica e pós-colonial durante
essa conjunção crítica. Em termos da situação pós-colonial, a característica mais
decisiva é que, ao contrário do que vimos no caso mexicano, o vice-reino do Prata
constituía uma periferia no espaço imperial espanhol, uma região subsidiária à
submetrópole instalada no Peru. É somente a partir das reformas bourbônicas que o
poder político imperial vertebra uma cadeia de comando capaz de vincular as regiões
interioranas.
320
Por essa menor densidade político-administrativa, a repercussão prática da
retroversão da soberania após 1808 tendeu a engolfar as instituições municipais e
provinciais em um mesmo movimento, combinando a constitucionalização de
repúblicas provinciais com a supressão dos ayuntamientos. De forma geral, isso
permitiu maior controle da atividade política e da representação por elites locais, que
chefiavam as milícias. A evolução das províncias rio-platenses a um imaginário
confederal, tributário dos EUA e de Artigas, ocorreu de forma gradual e experimental,
adquirindo nitidez institucional só na década de 1820, quando a geografia política
piramidal do império definitivamente desaparece.
Em segundo lugar, essa posição relativamente periférica no espaço imperial
espanhol esteve diretamente associada à menor intensidade dos embates corporativos
na ordem política pós-colonial. A ofensiva revolucionária logra, entre 1810 e 1813,
decretar o fim dos tribunais indígenas e do tributo de castas, o fim da importação de
escravos e o “ventre livre”, a extinção dos títulos de nobreza, a abertura comercial, o
rechaço aos símbolos imperiais (escudo do rei, efígie nas moedas, etc.), além de criar
uma iconografia nacional (bandeira, hino) mesmo antes de oficializada a
independência (1816). No momento posterior, a oposição ao projeto reformista
liderado por Buenos Aires não adquire um perfil claramente corporativo nem
reacionário, no sentido de restaurar o ordenamento estamental, ainda que as
referências pactistas sejam correntes.
Em certo sentido, a sociedade colonial pesava menos sobre a margem de
manobra dos dirigentes revolucionários, para o que contribuiu, sem dúvida, os
triunfos dos colonos portenhos contra as invasões inglesas. Por outro lado, é
interessante observar que, mesmo em se tratando de sua ala radicalizada ou jacobina,
esses dirigentes tiveram sua formação iluminista no âmbito do debate do mundo
hispânico de finais do século XVIII, que interligava a metrópole aos centros de
cultura letrada na América. Sem anular a repercussão de França e Inglaterra para a
linguagem política rio-platense, é insofismável que a circulação de ideias era mais
delicada que a importação de uma “Europa” indistinta para uma América
modernizante, ou de uma Europa progressista contra um iberismo medievalista e
impermeável à mudança.
Ligada ao menor enraizamento das hierarquias coloniais, a preocupação da
cúpula imperial em controlar a produção econômica era secundária, uma vez que o
321
Rio da Prata era uma região em geral deficitária. Em termos fiscais, portanto, a
escalada militar atlântica não se expressa como crescente pressão extrativa ou
exaustão política da arrecadação, como observamos no México, mas pela traumática
interrupção dos situados oriundos de Potosí, que impele uma reorientação
emergencial para fora da governança imperial. Uma das razões para a acelerada
transição fiscal no Rio da Prata é sua desconexão dos circuitos imperiais que lhe
sustentavam.
Assim, as iniciativas de abertura comercial (1806, 1809 e 1810), a conversão da
Caixa de Buenos Aires em tesouro independente (1810), o fracasso das expedições
militares para reconquistar o Alto Peru (1811-1815) e, por fim, a substituição da
Caixa pela Contadoria da Província (1820) se encadeiam para demarcar uma guinada
crucial na base social do ciclo extrativo-coercitivo. Essa guinada foi magneticamente
atraída pelas oportunidades de associação ao novo ciclo sistêmico de acumulação, que
é a segunda parte da explicação para a acelerada transição fiscal pós-independência
nas Províncias Unidas e no Uruguai.
O significado da posição periférica tem como eixo fundamental a associação
intensiva à hegemonia britânica. A força desse empuxo comercial não se explica
unicamente pelo desígnio estratégico de elites políticas, mas incorpora certas
variáveis circunstanciais que lhe escapam à alçada, como a chamada “loteria das
commodities” (BULMER-THOMAS, 2003) e a conveniência logística dada pela
geografia da região (PLATT, 1972). Nas primeiras décadas do século XIX, a entrada
da pampa úmida nos circuitos mundiais de valor liderados pela industrialização
britânica é um fator decisivo para a rápida transição para tributos aduaneiros uma vez
abertos os portos do Prata.
Como demonstrou a experiência bonaerense de 1820-1824, essa ancoragem
fiscal permitia uma reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, com o governo
canalizando recursos, ainda de forma incipiente, para impulsionar a constelação
econômica ao redor do comércio exterior. Embora efêmero, o reformismo portenho
regulamenta o mercado fundiário e favorece sua concentração, organiza um sistema
de crédito, centraliza as instituições policial-judiciárias, cria a primeira instituição
topográfica e pacifica momentaneamente as fronteiras agrícolas. Ao distribuir terras
entre seus ilustres aliados, o ministro Rivadavia não se aliava à elite agroexportadora
pampeana, mas fundamentalmente concorria a formá-la.
322
Não obstante, o triênio 1825-1827 permite observar que a própria continuidade
dessa reprodução ampliada se apoiava sobre condições móveis, voláteis, contingentes.
Em primeiro lugar, obviamente, porque dependia de represar o descontentamento das
províncias extorquidas pelo controle portuário da capital. Em segundo, porque era
uma expansão fiscal ainda frágil perante as exigências militares de seu contexto
regional. Em outras palavras, era uma mobilização de capital e coerção eventualmente
curta demais para os dissensos potenciais de sua projeção no tempo e no espaço.
Embora houvesse condições para a reprodução ampliada do ciclo fiscal, não era claro
que havia meios para proteger essas condições de sua disrupção violenta. Nas décadas
seguintes, como veremos adiante, a tendência de vinculação intensiva à nova divisão
internacional do trabalho, conforme se fortalece, incidiria sobre essa correlação de
forças.
Além da contraposição capital-províncias, o precoce e acelerado empuxo
comercial tem duas consequências de maior duração para a construção da ordem
pós-colonial nas Províncias Unidas. Em primeiro lugar, o caráter marcadamente
pró-cíclico das finanças públicas. Assim como sinalizado na crise de 1825-1827, há
uma exposição às flutuações da economia mundial que se intensifica na segunda
metade do século XIX na mesma medida em que cresce o empuxo comercial externo
e a circulação de capitais estrangeiros. Em particular, o emergente capitalismo agrário
pampeano estabelece conexões privilegiadas com a economia britânica, cujos
momentos de expansão são intercalados com breves recessões periódicas (1837, 1847,
1857 e 1866), seguidas de duas crises profundas (1873 e 1890) – sendo a últimas
delas desencadeada na própria Argentina. Na primeira metade do século, a
arrecadação aduaneira é também fortemente exposta ao bloqueio militar do porto por
forças hostis, que, além de 1825-1827, se repetiria em 1838-1840 e em 1845-1848. A
vulnerabilidade à flutuação econômica e ao sufocamento militar são contrafaces das
extraordinárias oportunidades fiscais resultantes da inserção periférica pós-1806.
A segunda consequência de maior duração do empuxo comercial é a produção
de uma tendência forte de desencaixe social a partir da conjunção crítica 1806-1827.
De um lado, essa pressão se manifesta na drástica desarticulação dos circuitos
econômicos talhados no espaço imperial, expostos abruptamente à concorrência do
capitalismo industrial. Com efeito, as importações atuam como vetores da
mercantilização da vida econômica: testemunhos de época registram que os têxteis
323
ingleses, já em princípios do século, eram utilizados mesmo por pobres rurais da
pampa úmida (PLATT, 1972: cap. 1).
Essa permeabilidade às cadeias capitalistas de valor não era um fenômeno
puramente econômico, já que produzia uma intrusão sobre a autossuficiência e a
autonomia das províncias que se pretendiam soberanas. Na primeira metade do século,
o recurso à impostos provinciais de circulação foi uma tentativa de represar esse
efeito, contrapondo ao livre-cambismo portenho uma inclinação protecionista do
interior. Essa circunstância fazia com que a vida política das localidades estivesse
precocemente atrelada aos rumos da política bonaerense. É impossível entender a
emergência de Juan Manuel de Rosas, de quem trataremos na seção seguinte, sem ter
em mente esse anseio de autoproteção social, de um controle conservador sobre os
efeitos disruptivos do livre comércio afunilado pelo porto de Buenos Aires.
Ainda sobre a pressão de desencaixe exercida pela inserção intensiva na
economia mundial, convém observar que o mundo rural não tinha um enraizamento
forte. Diferentemente de outras regiões latino-americanas, “na pampa o avanço da
economia de mercado não trouxe a destruição de antigas comunidades camponesas”
(HORA, 2014: 35). A ausência dessas comunidades territorializadas alteraria a
dinâmica de resistência social à proletarização após o turbilhão das independências.
Ao invés de barganhar a autonomia de povoados, os trabalhadores rurais,
relativamente móveis e escassos, manobravam a partir da abundância de terras de
fronteira e da alternância com a atividade militar. A resistência territorializada foi
imposta somente pelas tribos autônomas no sul, em sua maioria nômades.
As estâncias pecuárias, que foram a ponta de lança da expansão agrícola
exportadora, recorriam a esses trabalhadores semiflutuantes. Essa expansão, contudo,
também encurtava a margem de manobra dos gaúchos da pampa frente à disciplina do
mercado de trabalho. Com a indústria da lã na década de 1850, institui-se o primeiro
setor baseado claramente no assalariamento, que a partir dali decolaria com a
imigração europeia. A menor rigidez das hierarquias coloniais, além de reduzir os
embates corporativos com a Igreja, fez com que o avanço da proletarização fosse
relativamente menos conflitivo.
Como dito, a conjunção crítica 1806-1827 não determina a direção da história
política posterior, mas posiciona os vetores decisivos que interatuariam na agonística
de construção da ordem pós-colonial. A transição de uma periferia defensiva do
324
império no Atlântico Sul para uma fronteira expansiva da nova divisão internacional
do trabalho coloca no centro da disputa o controle fiscal sobre o comércio exterior. A
retroversão da soberania na forma de repúblicas provinciais no Rio da Prata
estabelece os termos do conflito sobre o desencaixe da política de seus contextos
locais. E a militarização da sociedade sob a linguagem constitucional do liberalismo
permite situar o movimento das linhas de inclusão e exclusão política, movimentos
em que a cidadania e a nacionalidade são refratadas pelos imperativos de ordem.
9.2. A formação de um liberalismo hegemônico na Argentina (1810-1916)
A supremacia de Juan Manuel de Rosas se afirma sobre os escombros do
projeto centralista de Buenos Aires, engolfado pela polarização violenta que seguiu a
convenção constitucional de 1824-1826 e as eleições de 1826-1827. Rejeitando a
nomeação quatro vezes, obtém a concessão de poderes extraordinários pela legislatura
de Buenos Aires em 1829. Sua ascendência sobre a política argentina representa um
afunilamento da construção da ordem pós-colonial, encaixando a disputa política a
mecanismos muito mais estritos de negociação e repressão.
O trunfo de sua estabilidade foi justamente a ambiguidade com que transitava
entre práticas confederais e centralistas, confeccionando progressivamente um regime
de unanimidade política respaldado nas urnas e nas armas. O fio condutor de nossa
análise será como o governo de Rosas, embora apelando ao imaginário federal de
autonomia das províncias e a uma “estória de povo” criolla, pactista e interiorana, põe
em movimento, para preservar sua supremacia política, engrenagens institucionais
que minam as condições de possibilidade dessa mesma concepção de sociedade. Essas
engrenagens têm relação direta com o comércio exterior, com o crédito e com a
competição interestatal como pressão de centralização política nos bastidores do
unanimismo rosista.
Em primeiro lugar, Rosas representa um dique relativo à intrusão do comércio
estrangeiro, com o código protecionista de 1835 e a interdição de navegação a
embarcações estrangeiras nos rios interiores (PLATT, 1972: 76). Capitalizando sobre
a oposição das províncias ao unitarismo portenho, esse protecionismo se prestava a
controlar os efeitos sociais das sucessivas aberturas comerciais, modular a
desorganização social que o mundo rural e manufatureiro sofria com a exposição à
325
economia atlântica através de Buenos Aires. “Homem do campo”, descreve um
comissário francês em viagem pelo Rio da Prata, “Rosas foi de fato o chefe da reação
do homem do campo contra a influência da cidade” (apud ANSALDI, 1984: 20).
Sua antipatia com os estrangeiros, com os financistas e com a intelectualidade
europeizada se encarna em uma espécie de patriotismo algo nostálgico da sociedade
colonial. As altas tarifas e rigores aduaneiros substituíam a “proteção natural”
conferida pelos custos de transporte físico em outras regiões latino-americanas,
buscando resgatar os circuitos comerciais interiores do antigo vice-reino do Prata. O
que demandava proteção, desse ponto de vista, era o modo de vida provinciano, rural
e católico que a revolução chacoalhara. O método dessa proteção, ao reter impostos
em Buenos Aires, fortalecia sua primazia na Confederação Argentina (Tabela 9.2.)
Como seus antecessores, o governo de Rosas permaneceu amplamente
dependente de receitas aduaneiras. No primeiro momento, seu governo manobra uma
inflexão semelhante à do triênio 1822-1824, com um esforço de austeridade fiscal e
controle sobre as emissões de papel-moeda, descritas pelo próprio Rosas como um
“crime de lesa-pátria”. Por outro lado, verificam-se mudanças interessantes na
seletividade política do gasto: primeiro, a elevação do orçamento dedicado à
campanha (interior da província) por meio da compra de produtos locais e de salários;
segundo, a manutenção, em período de paz, da estrutura miliciana que arregimentava
a plebe rural ao estado rosista, contornando em parte o exército regular.
No quinquênio 1830-1835, os gastos com soldos, instalações e manutenção
militares mais que dobram os gastos não-militares, enquanto que, no último
interregno de paz, entre 1822 e 1824, a diferença havia sido de apenas 17%. Já os
salários não-militares destinados ao interior da província passam de 21% em
1822-1824 para 85% em 1835-1836, enquanto que as compras diretas, embora
pequenas no orçamento geral, crescem, entre 1830 e 1835, quatro vezes no total e
nove vezes no caso específico dos produtos vindos da campanha (HALPERÍN
DONGHI, 2005).
O deslocamento do centro de gravidade da capital para a província se
expressava, assim, na fiscalidade. O governo rosista passa a bombear recursos da
aduana para o interior. Mas o aceno ao latifúndio pecuário não se limitava ao
orçamento regular, pois sua principal demanda, o avanço da fronteira agrícola na
pampa, passava pelo emprego da força. Abandonando as referências assimilacionistas
326
por trás da igualdade jurídica oficializada em 1819, Rosas cinde a relação com os
indígenas em termos políticos, organizando o “negócio pacífico dos índios” com as
tribos amigas e a “guerra do deserto” (1832-1833) contra as inimigas, tratadas como
bárbaras, selvagens e criminosas.
O chamado “negócio pacífico” foi a aliança estabelecida com os pampas, os
tehuelches e a maioria dos chefes ranqueles em que estes, instalando-se no interior da
província, se comprometiam a enviar um contingente periódico para servir nas
milícias em troca de doações de animais e rações, obtidos com os latifundiários da
região (BERNAND, 2016: 149-151). Essa barganha interétnica tinha o efeito de
fortalecer o papel dos caciques, colaborando para a verticalização da organização
dessas tribos. Não obstante a aparente reciprocidade, a relação com as autoridades
provinciais era claramente assimétrica, funcionando como uma forma menos violenta
de subordinação às autoridades locais da província e, em última instância, ao
governador. Por trás dessa conciliação fronteiriça, a estância agropecuária vai
adentrando a sul e oeste no território de Buenos Aires.
A prova mais clara desse caráter assimétrico foi a investida punitiva liderada
por Rosas em 1833, conhecida inadequadamente como “guerra do deserto”.
Incursionando a sul do Rio Salado até Bahía Blanca e Patagones, e dali para o interior,
as tropas lideradas por Rosas obtiveram vitórias militares sucessivas do litoral
atlântico à cordilheira. Além de fortalecer-se perante os constitucionalistas de Buenos
Aires, que lhe pretendiam limitar os poderes extraordinários, a campanha permitiu
agregar a base de apoio rural com uma vasta distribuição de terras entre os aliados do
general. Como apontado por Roy Hora (2014), a ligação de Rosas com o latifúndio
pampeano não pode ser tomada em abstrato, apagando a seletividade política com que
discriminava entre os proprietários aliados e os dissidentes, estes últimos, em sua
maioria, antigos liberais unitários. Valendo-se de uma retórica antielitista,
instrumentalizada como perseguição à oposição, Rosas conduziu espionagem,
expropriações e exílio contra determinados estancieiros bonaerenses. Ao destruir
fortunas e incubar outras à sombra do estado, “o rosismo promoveu a renovação da
elite proprietária, não a sua destruição” (HORA, 2014: 36).
Por fim, o sustentáculo mais importante da ordem rosista nas décadas de 1830 e
1840 foi a tessitura de uma “política negociadora com os governadores baseada em
redes epistolares, dádivas materiais e concertação de pactos” (ALONSO &
327
TERNAVASIO, 2011: 297). Esse sistema informal de atrelamento das lideranças
regionais era inseparável da liderança pessoal de Rosas, da fiscalidade aduaneira e do
controle direto sobre o rito eleitoral. Através dele, o privilégio portuário de Buenos
Aires
podia
ser
pontualmente
redistribuído
às
províncias
por
estratégias
compensatórias orientadas à unanimidade política. Ainda que sob a bandeira das
autonomias provinciais, esse é o primeiro movimento consistente de englobar as
Províncias Unidas em um mesmo ciclo extrativo-coercitivo tendo Buenos Aires no
centro. Há uma ascendência política e fiscal sem correspondência formal imediata; ou
ainda, sob a aparente isonomia de repúblicas soberanas se descola uma situação
irremediavelmente assimétrica entre elas (Tabela 9.2).
Na ausência de aparato de governo, esse controle informal sobre as bases
regionais de dissidência depende da afiliação dos governadores, daí o zelo rosista com
os procedimentos eleitorais. A farta troca de correspondências de Rosas com seus
aliados e subordinados permite rastrear as meticulosas recomendações para as
diferentes etapas das eleições, a fim de assegurar os resultados esperados
(TERNAVASIO, 1999; POSADA-CARBÓ, 2000). O controle autoritário sobre o
processo eleitoral e seus resultados não invalida que “o sufrágio segue sendo o
principal elemento de legitimação do poder político” (TERNAVASIO, 1999: 140).
A neutralização da dissidência se apropria, de forma conservadora, do
imaginário pactista das eleições como ritual de expressão do consenso na comunidade,
e não de litígio faccional propriamente dito. No referendo convocado pelo próprio
Rosas em 1835, que o reempossa com poderes extraordinários, os votos favoráveis
somam 9316 e os contrários, apenas quatro. A exclusão política e o estado de exceção,
e sua linguagem correspondente, são recortadas mais pela divisão prática entre amigos
e inimigos do que por uma estratificação passível de se traduzir legal ou
sociologicamente.
Observando retrospectivamente a mecânica das crises da Confederação, é
possível notar situações análogas às que encilharam a crise de 1825-1827. Novamente
interatuam bloqueio externo do porto, a paralisia fiscal, o descontrole sobre as
emissões de papel-moeda, a rebelião armada de base provincial e a competição militar
regional. A contrariedade das grandes potências à guinada protecionista de 1835
extrapolou-se como violação de soberania no outono de 1838, quando a marinha
328
francesa, por ocasião de uma série de pequenas rixas com o governo portenho, fecha
os portos de Buenos Aires e Montevidéu.
O efeito sobre as finanças públicas argentinas é devastador. A rigor, o governo
já havia abandonado a austeridade monetária por força de seus gastos correntes, mas o
litígio internacional e o bloqueio subsequente criaram uma circunstância propícia para
descarrilhar completamente as emissões. Entre 1837 e 1840, são impressos 36
milhões de pesos, quase três vezes a base monetária existente até então (HALPERÍN
DONGHI, 2005: 196). Durante o bloqueio, a proporção da arrecadação obtida com as
aduanas chega a um mínimo histórico de apenas 26%.
Diretamente afetados pela paralisia do comércio exterior, os estancieiros no sul
da província de Buenos Aires se sublevam contra Rosas durante o bloqueio, em um
movimento conhecido como os Libres del sur (1837-1840). Nas províncias do Litoral,
o desenvolvimento de uma economia agropecuária extensiva, similar à de Buenos
Aires, fermentou outro movimento armado contra Rosas em 1838, lançado pelo
governador de Corrientes. A expansão da fronteira agrícola na pampa úmida atraía
essas províncias para o empuxo comercial atlântico e, consequentemente, à oposição
ao controle sobre a circulação exercido pela aduana de Buenos Aires. Em tal contexto
adverso, o estado bonaerense mobilizaria uma economia de guerra sob a retórica de
emergência patriótica. Com a reversão do bloqueio em 1840, salvo no limiar do
colapso, Rosas acumula vitórias militares internas e um poder pessoal sem
precedentes.
A partir de 1840, cria-se uma economia de guerra permanente, conforme o
clássico estudo de Tulio Halperín Donghi (2005). Com a abundância de meio
circulante, os exportadores são beneficiados pela desvalorização cambial em um
contexto internacional já favorável. Enquanto isso, a inflação afeta sobretudo os
setores com renda nominal fixa, como os funcionários públicos, e aqueles cuja pauta
de consumo era mais dependente das importações, como as classes médias urbanas.
Historicamente sem projeção política, esses setores passariam a vocalizar oposição ao
militarismo de Rosas.
A oposição decisiva, contudo, viria do federalismo do Litoral, sublevado em
1851 sob liderança de Urquiza. Mesmo com a agropecuária comercial em expansão
na pampa, o ciclo extrativo-coercitivo de Buenos Aires é novamente travado diante
das diversas frentes de dissenso: para além dos federais de Entre Ríos e Corrientes, a
329
aliança anti-Rosas agrega os unitários portenhos, as forças armadas brasileiras e os
colorados uruguaios, já vencedores na guerra civil. O porto havia sido novamente
bloqueado em abril de 1845 pelas marinhas de Inglaterra e França, com
consequências para a fiscalidade da província semelhantes às de 1838-1840, ainda que
menos acentuadas162. O bloqueio novamente afetava a economia do Litoral, refém das
vicissitudes do governo portenho. A competição militar regional desferiria o golpe
último no domínio rosista, deslocando o eixo do conflito para o heterogêneo grupo de
seus opositores.
O projeto de Rosas não sucumbiu às exigências funcionais do processo de
modernização, da acumulação capitalista ou a uma teleologia democrática. De certa
forma, sua fraqueza era compatibilizar ambições políticas muito discrepantes, o que
fora justamente sua força em meio à guerra civil dos anos 1820. Seus excedentes
fiscais dependiam do controle do trânsito portuário, o que o envolvia nos rumos da
política da Banda Oriental. A prerrogativa de preservar os circuitos econômicos do
interior implicava um protecionismo que não só conflitava com marinhas de guerra
mais poderosas no Atlântico, mas foi também aglutinando a oposição por parte dos
estancieiros do Litoral e da província. A mobilização militar exigia uma centralização
política que, na falta de respaldo constitucional ou monárquico, precisava ser tecida
informalmente pela força e pela fraude, pela rotinização de práticas autoritárias sob a
insígnia da emergência. Essa centralização informal do poder decisório no governo
portenho, alimentada, por sua vez, pela desproporção fiscal, corroía subterraneamente
o imaginário geopolítico por trás do federalismo rio-platense, que projetava um
conjunto de repúblicas provinciais soberanas, livres e unidas por tênues obrigações de
defesa comum.
Esses impasses não foram subitamente dissolvidos com a deposição de Rosas;
pelo contrário, tornaram-se mais evidentes na ausência da polarização personalista
que marcara a política em seu regime. Sabidamente, a província de Buenos Aires se
afasta da confederação pela outorga, no acordo de San Nicolás (1852), de poderes
discricionários temporários a Urquiza e de representação paritária das províncias,
independente de população e renda, na constituinte (OSZLAK, 2015: cap. 2). O
As consequências foram menos acentuadas porque, no bloqueio anglo-francês de 1840, o porto de
Montevidéu não foi afetado, de modo que o contrabando entre as duas margens do Prata aliviava o que,
entre 1838 e 1840, fora uma interdição quase total.
162
330
Partido Liberal (ex-Unitário) de Buenos Aires se divide pela aparição de setores
radicalizados opostos a qualquer forma de integração nacional.
A autoexclusão de Buenos Aires da nova constituição em 1853, que previa a
nacionalização da aduana, torna o impasse fiscal e militar ainda mais pulsante:
enquanto as receitas de Buenos Aires superam o conjunto das demais províncias, a
confederação se mostra cronicamente deficitária; com as províncias em crise, a força
militar da União federal permanece vulnerável, largamente dependente das tropas de
Entre Ríos sob Urquiza. Os intentos de centralizar a arrecadação e de estabelecer um
novo sistema bancário na Confederação não seriam bem-sucedidos. Tendo
conseguido liberalizar o comércio interprovincial, o novo governo acaba por retirar as
receitas aduaneiras dos entes federados sem ter meios de compensá-los, enquanto a
principal aduana permanecesse separada do país (Tabela 9.4). Sem condições para
apoiar seu projeto de “organização nacional” em uma reprodução ampliada do ciclo
extrativo-coercitivo, que permitisse distribuir bônus em escala federal, Urquiza
precisa se apoiar na aliança direta com os governadores e no respeito às autonomias
provinciais – o que, dado o estado de coisas, significava deixá-las à míngua.
Era evidente que havia uma rota de colisão nítida no impasse institucional de
1853 (GARAVAGLIA, 2014). O desenho das reformas liberais condensadas na
Constituição demandava considerável densidade administrativa para serem levadas a
cabo. A navegação dos rios interiores, a unificação monetária, a garantia processual
de direitos, o sistema de correios, um sistema educacional laico, a titulação e
adjudicação da propriedade privada e mesmo o alento à imigração europeia,
impensável no cenário pré-1852, exigiam uma considerável margem de manobra
fiscal e política, então inexistente.
Por outro lado, o crescimento das exportações primárias, a partir da década de
1850, adquire nova escala (Tabela 6.3). Em 1857, o governo portenho assume e
renegocia a moratória da dívida de julho de 1827 com o Baring Brothers de Londres,
o que reabre o influxo de capital estrangeiro. Concomitantemente, há uma
reorganização do mercado de terras da província através da Lei de Arrendamento de
Terras Públicas (1857), imbuída do duplo propósito de povoar e medir o interior da
província (GARAVAGLIA & GAUTREAU, 2011). Ainda em 1857, é feita a primeira
concessão de linha ferroviária em Buenos Aires. Como estado independente, o novo
governo portenho enganchava-se no empuxo comercial para adentrar seu controle
331
sobre o território e alavancar seu ciclo fiscal, deslanchando as forças de
desenraizamento social que haviam sido politicamente represadas nas décadas
rosistas.
Com a crescente pressão federal sobre o secessionismo bonaerense, a saída
para o impasse institucional atinge a via militar entre 1859 e 1861, ainda que sem uma
vitória acachapante para nenhum dos lados. Do impasse atinge-se um compromisso de
reintegração de Buenos Aires à federação: mantendo controle sobre a aduana e sobre
seu exército, a província irredenta seria então obrigada a subsidiar a federação com
1,5 milhão de pesos anualmente, conforme o convênio complementar assinado em
junho de 1860. Ao assegurar assim a viabilidade financeira das províncias, inverte-se
o cenário que falira a Confederação, quando se esperava que as províncias aportassem
regularmente ao Tesouro Nacional, compromisso que em geral se evadiam de honrar.
Com Mitre como primeiro governante constitucional da federação unificada, de
1862 a 1868, lança-se uma ofensiva política em Buenos Aires contra os setores que,
desde 1853, rejeitavam arcar com qualquer custo compensatório da unificação política
(posteriormente identificados como “autonomistas” portenhos). O triunfo de um
liberalismo em âmbito nacional estava lastreado na premissa de que o papel do
artifício político não seria modular as consequências da abertura econômica para a
sociedade, mas sim reorganizar a sociedade para desobstruir essa abertura, para
potencializar a inserção periférica na economia mundial. Resumindo algo do consenso
reinante, dizia Sarmiento que “nós não somos nem industriais nem navegadores, então,
nos séculos por vir, a Europa vai continuar nos provendo com manufaturas em troca
de nossos produtos primários; e ambos iremos lucrar com essa troca” (apud
SALVATORE, 1999: 34).
Assim, o sistema bancário, a dívida pública e a moeda corrente de Buenos
Aires seriam nacionalizados na década de 1860 (OSZLAK, 2015: cap. 3). Durante a
primeira metade do século, prevaleceu nas Províncias Unidas duas zonas monetárias
relativamente independentes: uma com papel moeda não-conversível, somente em
Buenos Aires, e outra, o restante do país, em que o meio circulante se limitava aos
pesos de prata metálica, oriundos sobretudo dos Andes (MARICHAL, 2008). Como
vimos, a circulação de moeda não-lastreada conferiu margem de manobra decisiva ao
governo de Rosas, especialmente durante os bloqueios marítimos.
332
A unificação do sistema monetário no conjunto da república tem efeito direto
sobre a elasticidade da dívida pública. Ainda que a arrecadação fiscal estivesse
crescendo pelo empuxo comercial, ela ainda estava muito aquém das exigências
abruptamente elevadas pela eclosão de dezenas de revoltas provinciais e, em 1864, da
Guerra do Paraguai. O ímpeto centralizador da década de 1860 não seria rompido pela
oposição armada graças às novas fronteiras abertas ao endividamento público. Ao
contrário, por trás dos déficits fiscais nominais ocorre uma expansão do peso social do
estado.
Como mostra a tabela 9.4, a dívida pública de longo prazo dispara, fazendo
com que, em 1871, a dívida total seja 6,5 vezes a arrecadação regular. Com efeito,
durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), os gastos militares e o pagamento do
serviço da dívida flutuam entre 71% e 87% de todo o gasto do governo. Ora,
lembrando uma máxima de Charles Tilly, “se o governo e seus agentes podem pegar
empréstimos, eles podem separar o ritmo de seus gastos do de suas receitas, e gastar
em antecipação à receita” (TILLY, 1990: 85). Essa elasticidade permite que a pressão
competitiva do subsistema interestatal do Prata produza uma expansão e não um
colapso; desse ponto de vista, a guerra tem um papel decisivo na propulsão do ciclo
extrativo-coercitivo na Argentina unificada. Mas isso não equivale à “guerra” abstrata,
modelada como um fator causal uniforme.
A guerra, nessa conjuntura particular, faz pressão sobre uma base expansível e
elástica: há crédito disponível e sua rolagem pode ser controlada a baixo custo, há
uma base produtiva local que pode responder ao estímulo logístico da guerra, bem
como aproveitar-se dos mercados abertos com a reconstrução paraguaia; e há, por fim,
uma arrecadação regular confiável, que pode ser elevada sem graves dissensos. O
comércio exterior argentino crescia no empuxo da conjuntura liberalização mundial.
Não menos importante, trata-se de uma vitória militar indiscutível, o que, como
ressalvou Sabine Kurtenbach (2011), não pode ser menosprezado na avaliação das
consequências institucionais da guerra.
A arrecadação total do estado argentino dá um salto, entre 1864 e 1867, de 71%
chegando ao patamar de 12 milhões de pesos, continuando a crescer mesmo com o
fim da guerra (Tabela 9.5). Enquanto isso, os gastos totais do estado passam de cerca
de 7 milhões em 1864 para 14 milhões em 1867, chegando mesmo a 21 milhões de
333
pesos em 1871163 (Tabela 9.5). As forças armadas regulares, cujo contingente vinha
sendo enxugado desde a independência, arranca de aproximadamente 6 mil antes da
guerra para 25 mil soldados em 1866. Explicando essa mobilização ao Congresso da
Nação em 1866, o vice-presidente Marcos Paz argumentou que “armar e equipar um
exército de 25 mil homens, prover sua subsistência e comodidades (...) era uma obra
que além de ser sobremaneira custosa para o Tesouro, requeria toda a atividade, a
energia e o zelo da administração” (apud OSZLAK, 2015: 107).
Com o esforço de guerra, ao mesmo tempo contra as províncias insurretas e
contra o Paraguai, consolida-se irreversivelmente a transição para um perfil de
confrontação “vertical” com o governo federal sobreposto às províncias, em contraste
com a situação de beligerância “horizontal” conformada na década de 1820
(OSZLAK, 2015: cap. 3 e 4). Entre 1862 e 1868, ocorrem 107 revoluções e 90
combates em nome da autonomia provincial, no qual sobressai a superioridade técnica
e numérica do exército nacional. Após a Guerra do Paraguai, a disputa faccional
argentina se desconecta definitivamente da geopolítica do Prata, isto é, perde seu
potencial de internacionalização. É somente nas décadas de 1860 e 1870, aliás, que
“argentino”164 adquire uso corrente como designação do conjunto dos habitantes da
república em lugar dos gentílicos regionais (MYERS, 2008: 181-182).
Mas o acesso ao crédito nessa situação decisiva não se explica unicamente pela
expansão capitalista na pampa úmida ou pela unificação financeira da República. Pelo
lado da oferta, havia uma abundância de liquidez nos anos 1860, resultado da
acumulação sistêmica deslanchada a partir de 1846 sob liderança britânica; essa
abundância faria com que mesmo mercados não-convencionais para a época, como a
Embora usando as mesmas fontes primárias, as Memórias do Ministério da Fazenda, Juan Carlos
Garavaglia (2016) apresenta dados ligeiramente diferentes de Oscar Oszlak (2015) para o gasto público
total em todos os anos depois de 1864. O mesmo não ocorre para os dados apresentados sobre a receita
nos mesmo anos. Não pude averiguar a razão da discrepância, talvez causada pela correção monetária,
mas optei por usar os dados de Oszlak, que detalha minuciosamente a composição desses gastos em
seus anexos (OSZLAK, 2015: 280-318). Além disso, mesmo sistematicamente mais baixos que o
apresentado por Garavaglia (2016), eles não deixam dúvida da abrupta distensão do orçamento durante
a guerra do Paraguai. A título de comparação, para o ano de 1871, Garavaglia (2016) registra um gasto
total de aproximadamente 40 milhões de pesos fortes, quase o dobro dos 21 milhões citados por
Oszlak.
163
Jorge Myers (2008) alerta para a importância do sistema educacional na consolidação dessa
mudança. É interessante constatar, em seu respaldo, a interiorização do Ministério de Justiça, Culto e
Instrução Pública. Usando os dados de 1876 fornecidos por Oszlak (2015: 127), verifica-se que de 12,8
mil funcionários públicos federais, 1.454 servem a esse ministério, dos quais 1.329 estão alocados fora
da cidade de Buenos Aires. Ou seja, mais de 90% dos funcionários atuavam fora da capital.
164
334
América Latina de forma geral, tivesse acesso a capital relativamente barato. Findas
as exigências da guerra em 1870, esse influxo de capital não cessaria.
No governo de Sarmiento (1868-1874), seria agenciada pelo estado a
imbricação entre capital estrangeiro e ferrovias: dois empréstimos (1870, 1873)
seriam contraídos em Londres pela Província de Buenos Aires; um, de grande valor,
pelo governo federal (1871), e outros dois, de menor monta, por províncias do litoral
(Entre Ríos, 1872; Santa Fe, 1874)165. Comandada pela geografia das exportações, a
malha ferroviária argentina passa da virtual inexistência nos anos 1860 para mais de
700km em 1870, saltando daí para 9.254 km (1890) e 31.859 km de extensão em 1910
(Tabela 6.5).
O endividamento externo que permitira essa alavancagem extrativo-coercitiva
no período 1857-1873 seria um flanco vulnerável com a crise financeira internacional
de 1873-1876. Desde a conjunção crítica de 1810-1827, observamos como a
associação intensiva com o novo ciclo de acumulação produzia um forte empuxo
fiscal por meio das aduanas, mas que esse empuxo era vulnerável à disrupção forçada
(pelo bloqueio do porto) e à oscilação econômica mundial. O gasto público se torna
pró-cíclico não só porque as receitas acompanham a expansão do comércio
internacional, mas também a euforia de crédito para a periferia segue os passos dessa
expansão (MARICHAL, 1989).
Em 1873, a Argentina é uma das periferias mais severamente atingidas pela
crise financeira internacional: de um lado, há uma quebra da ascendente de
arrecadação já que cerca de 95% dos recursos provinham de tributos sobre
importações e exportações. Reduzidas à metade, as receitas governamentais tomariam
seis anos só para retomar o patamar de 1873. De outro, o súbito ressecamento do
mercado internacional de capitais colocou enormes dificuldades para a rolagem da
dívida acumulada nos anos anteriores; para evitar a moratória, os governos argentinos
na década de 1870 optam por árduos sacrifícios orçamentários, girando ainda mais
sua seletividade fiscal para atender o capital estrangeiro (FILOMENO, 2006: 69-74).
Nas assiduamente lembradas palavras do presidente Avellaneda, discursando
no Congresso da Nação em 1876, a austeridade para honrar a dívida seria tal que se
pouparia mesmo sobre “a fome e a sede dos argentinos” (apud FILOMENO, 2006:
Para um panorama da expansão do crédito na América Latina no período 1850-1873, ver Marichal
(1989: cap. 3), que discrimina, em seus anexos, todos os empréstimos internacionais por data, credor,
devedor, valor do principal e juros acordados.
165
335
73). Com o enxugamento do comércio exterior e do gasto público, havia uma
irradiação social da crise, com desemprego, impostos sobre o consumo e redução
salarial em todos os setores. A sociedade argentina, fortemente desenraizada nas
décadas anteriores pelo roldão do mercado e da guerra, estava notavelmente exposta
na crise aos efeitos pró-cíclicos da intervenção de estado, o que se tornaria ainda mais
agudo na crise de 1890-1891.
Atravessada pela crise econômica e por suspeitas de fraude, as eleições de 1874
revelam uma derrota do centralismo liderado por Mitre, que inicia uma sublevação
armada contra o presidente eleito Nicolás Avellaneda. Alguns meses depois de
iniciada, a rebelião seria debelada pelo Exército Nacional com apoio de 60 mil
milicianos da Guarda Nacional recrutados em diversas partes do país (OSZLAK, 2015:
108). Com as derrotas militares de 1874 e 1880, a corrente nacional-liberal de Mitre é
decididamente deslocada pelo Partido Autonomista Nacional (PAN).
Por decisão de Avellaneda, a cidade de Buenos Aires é finalmente federalizada
em 1880 como previa a constituição de 1853. O levante de 1880 contra a
federalização é o último episódio marcante de rebelião armada em nome da
autonomia provincial do “longo século XIX” argentino. O movimento é amassado por
um exército nacional profissionalizado e com larga superioridade técnica, organizado
com uma logística moderna de ferrovias e telégrafos. Mais do que a derrota da
província de Buenos Aires, os eventos de 1880 representaram um duro golpe à
tradição cívica da “cidadania em armas”, que remonta pelo menos à expulsão dos
ingleses em 1806 e 1807 (SÁBATO, 1999). Do ponto de vista legal, a exigência de
participar nas milícias como contrapartida dos direitos políticos foi suprimida na
reforma eleitoral de 1877.
Nesse sentido, estava em curso um deslizamento das linhas de inclusão e
exclusão política. Induzida pela própria militarização da sociedade desde 1776, a
reciprocidade entre a cidadania e a milícia atingia, em princípio, a todos os homens
em idade apta. A isonomia era refratada pela hierarquia militar: os chefes dos corpos
milicianos correspondiam geralmente às elites políticas locais, que, controlando o
recrutamento e alistamento de soldados, controlavam indiretamente as eleições. Após
o terremoto social da Era das Revoluções, a mobilização política dos subalternos foi
canalizada majoritariamente para milícias forte cultura cívica e republicana, mas que
336
eles próprios não controlavam diretamente. Ainda assim, estabelecia-se um contato
imediato dos chefes locais com os anseios de seus subordinados.
Com a dissolução desse vínculo nos anos 1870, o movimento de coligação
interprovincial de elites, como a Liga dos Governadores (1870) que respalda a
candidatura de Avellaneda, tem como contrapartida o desligamento dos setores
plebeus da vida política nacional, um movimento prático nas linhas de pertencimento
que ficou identificado pela expressão “oligarquia” (ANSALDI, 2017). Sem depender
da mobilização regional para decidir suas querelas, os líderes abandonam os arranjos
de compensação, carisma e convencimento por trás milícias voluntárias, priorizando
uma barganha de outra natureza, que transcorre entre “notáveis” no plano nacional
(CATERINA, 2011). “Ausentes os mecanismos de alternância, raquíticos os espaços
de discussão pública mais ampla”, resume Romero sobre as décadas do PAN no poder,
“os conflitos se negociavam em círculos reduzidos, entre a Casa Rosada e o Círculo
de Armas, a redação de um jornal e os corredores do Congresso” (ROMERO, 2016:
30).
Embebido nas ideias dominantes de seu tempo, esse enrijecimento das linhas de
pertencimento político carrega forte componente racial, cujo ponto extremo foi a
solução militar e genocida contra os povos patagônicos a partir de 1879. Caduco o
republicanismo revolucionário da Junta de 1810 e rechaçada a negociação armada dos
tempos de Rosas, a campanha de extermínio colocava então praticamente toda a
população nativa no campo do estado de exceção, de suspensão das referências
liberais da constituição vigente. Os interesses do latifúndio exportador, aglutinados
em 1866 na Sociedade Rural Argentina, respaldavam a guerra como expansão da
fronteira agrícola, já que no rastro dos exércitos restava a propriedade privada. Um
neoinstitucionalista como Dye (2008) prefere concluir que, graças ao ingrediente
militar, a expansão territorial argentina foi comparativamente “mais efetiva por uma
definição inicial unívoca dos direitos formais de propriedade” (DYE, 2008: 204).
O que dissemos até aqui na tese nos permite olhar por um outro prisma: a
conversão da natureza em mercadoria “terra” – mensurada uniformemente e titulada
conforme a lei – significa a instituição de direitos por meio do não-direito, do estado
de exceção, da decisão política que circunscreve os limites sociais da proteção e da
ameaça. Pela Lei Orgânica de Territórios Nacionais (1884), a maior parte dos
territórios indígenas ocupados são postos sob a autoridade do governo federal, e
337
medidas de exceção são previstas para disciplinar os nativos sobreviventes e regrar a
colonização166 (BERNAND, 2016). No censo de 1914, optou-se por omitir qualquer
classificação racial sob a alegação de que “felizmente na Argentina não há razão para
preocupação; aqui a raça é completamente branca” (apud LOVEMAN, 2014: 193).
Assim, forma-se uma convergência entre o controle político da violência e o
dinamismo da inserção periférica na acumulação capitalista, por meio do
aplainamento das condições de expansão do setor internacionalizado da economia.
Esse é o encaixe decisivo por trás da reprodução ampliada do ciclo
extrativo-coercitivo que vai se firmando, com oscilações conjunturas, nas décadas de
1860 e 1870. Essa ampliação não depende simplesmente do estímulo externo, do
crescimento do volume ou do preço das exportações; ela se converte em um programa
de reforma social, em que a seletividade fiscal e coercitiva se presta a fabricar as
condições da acumulação capitalista. A rede ferroviária, o mercado de terras, a
imigração estrangeira, o código civil de Veléz Sarsfield (1869), o sistema nacional
correios e telégrafos são nós de uma malha infinitesimal de ativismo estatal que
alimenta, dilata, alarga os segmentos capitalistas da vida econômica e, com eles, a
base fiscal do estado.
Antes circunscrita à província portuária, a inserção intensiva na divisão
internacional do trabalho agora dita o ritmo do ciclo extrativo-coercitivo em escala
nacional, uma vez removidas as barreiras internas à circulação e esconjurado o
fantasma do bloqueio militar do porto. Com a economia aberta em um momento de
expansão sistêmica do comércio mundial, a tributação sobre as importações é o
diapasão das receitas regulares, enquanto que as exportações primárias regulam a
capacidade de importar; como liga elástica entre extração e gasto, o endividamento
público depende, em última instância, da robustez do comércio internacional. O gasto
público, por sua vez, propulsiona as condições de acumulação capitalista ao alavancar
a mercantilização social, capilarizando a presença de estado no interior (OSZLAK,
2015: cap. 4).
Como foi bem observado por Oszlak (2015), tratava-se de um mecanismo com
efeitos claramente regressivos, na medida em que onerava desproporcionalmente as
pessoas que dependiam de bens de consumo importados. Essas concentravam-se
A lei estabelecia a administração federal direta nas seguintes zonas: Terra do Fogo, Chaco,
Patagônia, Pampa e Misiones, com o intuito de aumentar o controle e a colonização. Só em 1950 essa
situação é revista e esses “territórios nacionais” adquirem a condição de província.
166
338
acima de tudo nas cidades e dispunham de escassas ferramentas associativas para
contestar politicamente o fardo fiscal, que ademais era cobrado de forma indireta. Em
seu levantamento, a tributação sobre itens de consumo popular oscilou em torno de
30% de todas as receitas ordinárias do governo federal nas últimas três décadas do
século XIX (OSZLAK, 2015: 246). A queda dessa proporção no começo do século
XX reflete a redução do peso desses itens na pauta de importação conforme uma base
produtiva nacional passa a atender o mercado de bens de consumo. Ainda assim, o
valor absoluto de impostos de importação por habitante, já elevado para os parâmetros
internacionais da época, cresce consistentemente nos anos pré-Primeira Guerra
(OSZLAK, 2015: 245). Nesse sentido, além de pró-cíclico, o ciclo fiscal tinha um
viés elitista em sua seletividade prática.
Na outra ponta, os excedentes fiscais permitiram ao Partido Autonomista
Nacional reconstituir uma rede de transferências, prebendas e prêmios que lhe
granjeava sustentação política junto às elites regionais. Ao contrário da imagem
convencional de um estado controlado pelo latifúndio pampeano em seu benefício, a
agregação de apoio dos governadores do interior funcionava, antes de tudo, como
contrapeso ao domínio econômico dos grandes proprietários rurais de Buenos Aires167
(HORA, 2014). Por trás do apaziguamento dos conflitos inter-regionais não está
simplesmente o fortalecimento do exército nacional, mas uma política de
interiorização de bônus pelo governo federal na forma de salários, subvenções, obras
públicas e política educacional: “o gasto estatal nunca beneficiou tanto às regiões do
interior atrasado como na etapa 1880-1916, particularmente na primeira metade desse
período” (HORA, 2014: 39). Após décadas de litígio sobre a posição privilegiada de
Buenos Aires, a federalização da capital institucionaliza o manuseio dos excedentes
fiscais aduaneiros para lastrear uma aliança inter-regional de elites, que consolidam a
nacionalização da política institucional sob a hegemonia de um só partido.
Em termos de processos mais amplos, portanto, a estabilidade sob o Partido
Autonomista Nacional (1880-1916) estava apoiada na aceleração da inserção
Como pontuou Roy Hora, “o crescimento econômico contribuiu a atenuar as dissidências políticas e
os questionamentos à elite governante, que desde 1880 encontrou muito mais espaço para promover
seus projetos de desenvolvimentismo autoritário. Do ponto de vista político, no entanto, o núcleo
fundamental, o núcleo fundamental dos apoios à coalizão governante não foi recrutado entre a elite
econômica pampeana, mas provinham das mais pobres oligarquias do interior. A partir da presidência
de Roca (1880-1886), esses grupos passaram a integrar o núcleo dos quadros estatais. Ao expandir seus
apoios, o Estado se tornava mais nacional, e desse modo atenuava sua dependência da base política
portenha que o havia constrito no passado” (HORA, 2014: 38-39).
167
339
periférica na economia mundial, na expansão fiscal e militar do estado central e no
estreitamento dos atores e práticas admitidos na arena política. Reduzindo a escala,
essa estabilidade foi tecida por inúmeros artifícios de repressão social, controle
judiciário e eleitoral, além de laços familiares, culturais, partidários e clientelistas que
afiliavam as elites dirigentes da capital e do interior. O gasto com a própria máquina
administrativa (especialmente salários e aposentadorias) crescem consistentemente no
período 1880-1916 não só em termos absolutos mas também proporcionais.
Há, ao fim e ao cabo, uma acomodação conservadora do processo de
desencaixe da vida política de seus contextos locais, processo esse que se acelerara
em meados do século e minara a geografia política confederal forjada na Era das
Revoluções. Em certo sentido, os elementos de conflito por trás da construção da
ordem “longo século XIX” perdem dinamismo pela fusão gradual entre liberalismo e
conservadorismo, pela neutralização da fricção entre imaginários centralistas e
confederais. Os motores de disputa política vão se engessando em uma concepção
cada vez mais homogênea e rotinizada de ordem vigente. No limite, a oposição que o
PAN tem dificuldade crescente de administrar não tem plataforma regional de
mobilização, mas se organiza sobretudo nas cidades entre as camadas médias e
populares contra as quais o partido dirigente blindara o sistema político. Esses novos
horizontes de engajamento político acumulariam força nas frestas do domínio
autonomista-nacional para eclodir no centro da cena no século XX.
9.3. Conjunção crítica II (1912-1946): os descamisados na política nacional
Ao colocar as engrenagens legislativas e administrativas para propulsionar uma
sociedade de mercado, o estado federal concorre a um movimento de desenraizamento
social que foi particularmente intenso na Argentina por dois motivos: de um lado, a
força de desencaixe era grande pela associação especial à hegemonia britânica, cuja
força dinâmica era o empuxo comercial; de outro, a destruição prematura das
resistências populares e territorializadas à proletarização. Sem laços corporativos nem
comunidades camponesas fortes, e frequentemente deslocada pelo vai-e-vem da
atividade militar, a população era ali particularmente exposta à mercantilização de sua
vida econômica.
340
Esse quadro se reforça pela injeção demográfica extraordinária resultante da
imigração europeia, inicialmente subvencionada e apoiada pelo estado, depois com
dinâmica própria. Entre 1870 e 1915, a Argentina recebeu 7 milhões de imigrantes, a
maior cifra do mundo em termos proporcionais, ainda que com uma alta taxa de saída
(58%). Mesmo com essa enxurrada de recém-chegados no porto, a fatia de imigrantes
internos na região de Buenos Aires também cresceu proporcionalmente, indo de 8,3%
(1869) a 11.1% (1914) e aumentando constantemente desde então168. De resto, a
disponibilidade mesma desses dados é sintomática da diversificação e interiorização
das engrenagens administrativas do estado federal, que realiza três censos nacionais
nesse intervalo de tempo, em 1869, 1895 e 1914 (OTERO, 2007: cap. 2).
Isso dito, não é surpresa que Buenos Aires, principal acolhedouro da força de
trabalho vinda do interior e do exterior, cresça rapidamente e comece a vicejar novas
formas de ação política, fora do escopo de negociação do partido oficial. Com fortes
conexões transatlânticas, o movimento operário argentino emerge nos anos 1860 e
1870 com associações de auxílio mútuo e periódicos operários, inicialmente com mais
força em setores de maior qualificação, como os trabalhadores das ferrovias e da
tipografia. A imigração estrangeira também favorece o surgimento de clubes
populares de recorte étnico-cultural, que sustentam uma rede básica de proteção social
entre os membros da comunidade. Entre fins dos oitocentos e início dos novecentos, a
primeira onda de atividade feminista no país se distingue por publicações voltadas às
trabalhadoras, como La Voz de la Mujer publicado entre 1896-1899. Havia uma caixa
de ressonância social para a reivindicação de direitos trabalhistas e políticos, que, para
as mulheres, reverberava também pela negação de seus direitos civis. Havia, com essa
emergente vida associativa popular e urbana, uma pressão social sobre as linhas de
inclusão política da ordem vigente.
A crise financeira e a falência do Banco Bahring em 1890169 catalisaram essas
novas frentes de oposição ao regime panista. Do ponto de vista dos trabalhadores,
uma ampla jornada de protestos operários e greves se inicia em 1889 em várias partes
De acordo com Otero (2007), as províncias que perderam sistematicamente população foram
Catamarca, Corrientes, Entre Ríos, La Rioja, Santiago del Estero, San Juan, San Luis, La Pampa, Santa
Fe y Tucumán, enquanto que Buenos Aires e Mendoza estiveram na situação contrária, como polos de
absorção migrante (OTERO, 2007: 151). Proporção de migrantes internos na população da província
de Buenos Aires passa de 8,3% (1869), 9,3% (1895) a 11,1% (1914), e segue crescendo: 14,3% em
1947, 16,6% em 1960, 22,9% em 1970.
168
169
Para um balanço da crise e seu contágio social, ver Marichal (1989: cap.6).
341
do país. Em junho de 1890, é instituída a primeira federação operária. Em paralelo,
como desdobramento de um levante de elites dissidentes em 1890, aglutina-se um
novo bloco de oposição por meio da União Cívica Radical (UCR) em 1891. Reunida
sob um programa de moralização da vida pública e do respeito à Constituição, a UCR
tentaria sem sucesso chegar ao poder por uma nova insurreição em 1905.
Seu crescimento e nacionalização ocorrem justamente após esse fracasso,
congregando às suas fileiras setores novos sem grande experiência política prévia
(juventude
universitária,
funcionários
públicos,
profissionais
liberais
e
os
arrendatários, chacareros, no campo). Em 1894, o Partido Socialista é criado por
reformistas letrados e assalariados de alta qualificação, estabelecendo uma relação
mais íntima com as doutrinas social-evolucionistas e cientificistas da época do que
com o movimento operário propriamente dito, no qual o anarcossindicalismo
predominava.
A reforma eleitoral de Sáenz Peña (1912) é um marco indiscutível para o
começo da abertura do horizonte de possibilidades ao se desintegrarem os
mecanismos da estabilidade institucional precedente. Promulgados o sufrágio
universal masculino e o voto secreto, o PAN abandonava o controle sobre o processo
eleitoral, soltando as rédeas da arena política. Com a eclosão da Primeira Guerra
Mundial (1914) e a vitória de Hipólito Yrigoyen (UCR) em 1916, definia-se um ponto
de não-retorno: a política argentina se encadeia ao processo sistêmico de
esfacelamento do “longo século XIX”. Durante a conjunção crítica que vai do
primeiro mandato Yrigoyen (1916) até a eleição de Perón em 1946, o conflito de
novas bússolas ético-políticas acarreta maior indeterminação da disputa sobre a
seletividade do ciclo extrativo-coercitivo. Enquanto isso, as condições de expansão
desse ciclo se tornam intermitentes e incertas pelo terremoto na economia mundial,
especialmente grave na órbita econômica de uma Grã-Bretanha em declínio.
Em um primeiro momento, o governo Yrigoyen promove um alargamento
relativo da arena política que pretende contrapesar a oposição formada nos circuitos
tradicionais, especialmente no Senado e entre os governadores. O presidente
reconhece um interlocutor legítimo no movimento dos universitários de Córdoba em
1918, que teve extensa repercussão pela América Latina. Em confronto à hierarquia e
o tradicionalismo reinantes nos estatutos da instituição, os estudantes ocuparam a
reitoria da universidade e declararam greve. Diante da crise instaurada após a
342
repressão policial, a mediação presidencial mostrou simpatia com o ativismo
estudantil e suas entidades representativas, determinando uma intervenção na
universidade para a reforma dos estatutos e a realização de novas eleições, com
representação discente nos órgãos diretores.
Esse novo ativismo presidencial se apresenta também na mediação entre capital
e trabalho em um contexto de acirramento do conflito distributivo. O radicalismo
argentino buscou constituir uma base de apoio sindical ao apoiar o sindicalismo
moderado, negociador e constitucionalista, alterando o teor do discurso oficial sobre o
trabalho organizado. Os governos autonomistas haviam calcado essa relação na chave
da exceção e da ameaça, valendo-se também da xenofobia para classificar a luta
operária como exótica, estrangeira, antipatriótica. Essa discricionaridade havia sido
instituída por dois regramentos principais: a Lei de Residência (1902), que permitia
encarcerar e deportar imigrantes envolvidos em atividades políticas, e a Lei de Defesa
Social (1910), que instituía uma ampla margem de medidas repressivas também para
os militantes nativos.
Ao longo das décadas de domínio do PAN, a declaração recorrente de estado de
sítio servira de preâmbulo para uma violência institucional sem peias. Em seus
primeiros anos, o radicalismo buscou distanciar-se da securitização da questão social.
O aceno de Yrigoyen a uma base popular significava o reconhecimento dos primeiros
direitos políticos para os sindicatos, a primeira proteção trabalhista e certas vitórias
pontuais. O presidente se envolve pessoalmente em algumas negociações grevistas,
promovendo-se publicamente a partir dessa posição conciliatória e arbitral (COLLIER
& COLLIER, 2002: 145-149).
Além desse alargamento estratégico da disputa política, o primeiro radicalismo
valeu-se do poder do governo federal para enfraquecer a oposição dos governadores:
em seu primeiro mandato, Yrigoyen utiliza 19 vezes o dispositivo constitucional de
intervenção federal nas províncias, sendo 15 deles por decreto presidencial
(ROMERO, 2016: 67-68). Nas eleições de 1922, o panorama já é outro: o oficialismo
ganha em todas menos duas províncias, atingindo o ápice de seu poder nacional. Com
efeito, o desencaixe dos contextos políticos locais acumulado no “longo século XIX”
permite que o radicalismo, atingindo a presidência, tenha recursos para controlar a
política nacional desde o centro. Certamente, não o faz sem contemporizar com os
poderes estabelecidos e modular sua retórica. A escolha de Marcelo T. Alvear para a
343
sucessão de Yrigoyen em 1922 torna a UCR mais palatável entre os circuitos políticos
e econômicos tradicionais, resfriando seu receio com as consequências da democracia
política. Pertencendo a uma família tradicional e com circulação nos espaços da elite
bonaerense, Alvear se afasta do apoio popular granjeado por seu antecessor.
Fora da esfera institucional, a ação política popular radicalizou-se para além do
perímetro político de Yrigoyen durante o ciclo de protestos e greves entre 1918 e
1922, tendo como episódio mais traumático o massacre operário durante a “Semana
Trágica” de fevereiro de 1919. Na Patagônia, a repressão policial e militar contra os
trabalhadores paralisados em 1921-1922 adquiriu também contornos de extermínio
(COLLIER & COLLIER, 2002: 147-148). O contágio internacional da revolução
soviética de 1917 em um cenário de crise econômica no pós-guerra produziu uma
ofensiva operária, não só na Argentina. Visto em perspectiva, assim, o trabalho
organizado se fortalece politicamente durante as décadas de 1900 e 1910, valendo-se
de diversos repertórios de ação direta e da relativa abertura institucional pós-1916.
Nas grandes jornadas operárias do pós-Primeira Guerra, a violência institucional se
tornou novamente a regra, preparando a guinada conservadora do radicalismo por trás
da candidatura de Marcelo T. Alvear.
É nesse contexto que as classes proprietárias se reorganizam como polo
reacionário para além do aparato de estado. A criação da Liga Patriótica Argentina
tinha como pressuposto o recurso a ilegalismos repressivos para conter o ativismo
sindical e os partidos de esquerda. Agentes provocadores, grupos armados
para-institucionais, técnicas de intimidação e divisão dos trabalhadores em luta foram
amplamente utilizados, com financiamento empresarial e a conivência das autoridades
policiais.
Em paralelo, é criada em 1919 a União Popular Católica Argentina, que passa a
disputar espaço nas fidelidades populares com uma versão conservadora do
Evangelho. Enquanto a Liga Patriótica apelava a um nacionalismo integrista e
voluntarista, aparentado com o fascismo italiano, os eclesiásticos agrupados sob a
União Popular Católica mobilizavam a doutrina social da Igreja formada ao redor da
encíclica Rerum Novarum (1891). A disputa não se fazia simplesmente nos
enfrentamentos de rua, mas em diversos espaços de sociabilidade popular, como as
escolas, bibliotecas populares e na atenção primária aos necessitados. A
criminalização da esquerda, obviamente, desequilibrava as condições em que tal
344
disputa era travada. Sem vinculação histórica ao mundo sindical, o radicalismo
argentino se alinharia à reação proprietária conforme se encurtava o espaço hábil para
a concertação do conflito de classe.
O golpe de setembro de 1930 acabaria por remover manu militari a União
Cívica Radical do jogo político, com uma sequência de intervenções arbitrárias nas
eleições. O choque da crise de 1929 desencadeara um cenário já conhecido de queda
das exportações, déficit governamental, desvalorização cambial e elevação dos
impostos, sobretudo de importação. Ainda, agrava-se a assimetria entre as províncias
do Litoral e as do interior, mudando também o padrão migratório do país (HORA,
2014b). Estanca a entrada de migrantes estrangeiros e diminui o poder de atração de
grandes cidades do interior, como Mendoza e Tucumán, acentuando a corrente
demográfica do mundo rural provinciano ao Litoral e à capital. Nos anos 1930, é
registrada a primeira redução absoluta da população rural na Argentina. Como conclui
Roy Hora (2014b), as cidades passaram a refletir a proeminência de uma Argentina
criolla, menos branca e cosmopolita, mais interiorana e nacionalista.
Os governos conservadores que seguem o golpe de 1930 se valem da força e da
fraude para neutralizar a polarização política, controlando pelo alto uma alteração
gradual na regulação econômica. Essa alteração tem três facetas principais: em
primeiro lugar, o maior nacionalismo acompanhado de ferramentas de gestão
macroeconômica, como o controle de câmbio e a criação do Banco Central (1935). O
governo estipula preços mínimos para proteger os exportadores agropecuários da
flutuação de mercado. A alta do fisco aduaneiro, com razões fiscais, acaba
impulsionando a base industrial pré-existente de bens de consumo, especialmente nos
têxteis, alimentos, químicos e metais. Um intento pioneiro de planejamento
estratégico da economia, abrangendo os diferentes ramos e suas necessidades
específicas,
Em 1940 é lançado o Plano de Reativação Econômica para lidar com a
conjuntura de guerra no exterior, lançando mão de um planejamento estratégico
abrangente dos diferentes ramos da economia, articulados à viga-mestra do comércio
internacional. As exportações passam de quase 30% do PIB em 1928 para apenas
15,7% em 1938 (Tabela 7.1). A preocupação em recuperar a arrecadação logo após o
choque da crise é substituída por uma agenda de obras públicas que negligencia as
pressões redistributivas. Na virada dos anos 1930 para os 1940, o maior dirigismo
345
estatal da economia se respalda em um novo nacionalismo, militarista, industrializante
e corporativo, com afinidade aos nazifascismos europeus. Criada em 1941, a Direção
Geral de Fabricações Militares é um segmento burocrático que se torna ponta de lança
do projeto de síntese entre nacionalismo econômico, industrialização dirigida e
militarização da administração pública (ROMERO, 2016: 100-107).
Em segundo lugar, com a crise de 1929 há uma aproximação ainda mais
acentuada com o Império Britânico. Ao contrário das demais repúblicas
latino-americanas, a Argentina mantém os pagamentos de sua dívida externa durante
os anos 1930, embora tenha se desvinculado do padrão-ouro já em dezembro de 1929
(CORTÉS-CONDE, 2008). Durante os anos 1920, a presença econômica dos EUA
havia aumentado consideravelmente na Argentina, mas isso não correspondia a uma
abertura recíproca do mercado estadunidense para produtos argentinos, concorrentes
com a produção doméstica.
A triangulação de superávits com a Inglaterra e déficits crônicos com os
Estados Unidos está por trás da campanha “comprar a quem nos compra”, lançada
pelo embaixador britânico e adotada pela elite agrária argentina. Quando é
estabelecido o sistema de preferências comerciais do Império Britânico em 1932, no
bojo da espiral protecionista do entreguerras, a Argentina firma um pacto bilateral de
cotas de comércio, o Acordo Roca-Runciman (1933). Nesse sentido, enquanto a
América Latina está migrando para a órbita econômica dos EUA, a Argentina tenta
preservar sua relação especial com os britânicos, apostando em uma imagem de país
moldada por sua “vocação agrícola”.
A terceira resposta à crise uma inflexão para formas não-convencionais de
extração. De fato, desde a Primeira Guerra os governos radicais haviam tentado
contornar os déficits com um arrocho fiscal, mas seus intentos de reorientar a
estrutura tributária haviam esbarrado nos interesses estabelecidos. Em 1931-1932, o
governo de Uriburu institui pela primeira vez um imposto direto sobre a renda em
caráter emergencial, uma ideia que havia sido levantada por Yrigoyen desde 1918. De
temporário a permanente, esse imposto seria desenvolvido posteriormente nos
governos peronistas.
Além disso, a regulamentação de diferentes taxas de câmbio permitia cobrar
um ágio, que incidia sobretudo nos ganhos dos exportadores sem o ônus de um
imposto oficial (CORTÉS-CONDE, 2008). Com efeito, o estado argentino estava
346
longe de conseguir prescindir dos tributos aduaneiros, mas há uma tendência clara à
diversificação e à interiorização na conjunção crítica 1912-1946. A turbulência
econômica mundial pressionava novas agendas de ação estatal, e essas novas
atividades não poderiam ser custeadas pela estrutura oitocentista de arrecadação.
Excluídos da disputa política institucional, os trabalhadores sofreram uma
perda significativa no conflito distributivo durante a chamada Concertação
(1932-1943), que foi impermeável às suas reivindicações (HORA, 2014b). Com a
substituição de importações, a indústria emprega muito, mas em más condições de
trabalho e a baixos salários; a sindicalização aumenta principalmente entre esses
trabalhadores precarizados. Seguindo uma tendência mundial dos anos 1930,
especialmente após 1935, os comunistas ganham mais espaço nas organizações
sindicais, com destaque para a criação de uma federação única reunindo os
trabalhadores da construção civil (FONC na sigla original) em 1936.
Diante das promessas de abertura política do presidente eleito Roberto Ortiz, os
comunistas formam uma “frente popular” com radicais, socialistas e sindicalistas em
1939; o intento é prematuramente abortado em 1940 e dissolvido com forte repressão,
simultaneamente ao fracasso das frentes antifascistas na França e na Espanha. Como
observam Collier e Collier (2002: 156) o grande hiato temporal da incorporação
política do trabalho organizado na Argentina, e o desenvolvimento econômico que
ocorre nesse ínterim, fazem com que a classe operária não só adquira escala e
densidade organizativa, mas também passe pela “acumulação de frustrações políticas”
pela demora em encontrar ressonância institucional às suas demandas.
Em outros termos, a Concertação (1932-1943) foi se fechando em sua direção
militar, tentando reverter as consequências da espiral de lutas populares de 1907 a
1923. Com a urbanização, a industrialização e a alfabetização aumentando nos anos
1930, há maior pressão desde baixo sobre essa saída autoritária para a questão social,
isto é, sobre sua tentativa de recuar as linhas de exclusão política à situação prévia à
conjunção crítica. No começo dos anos 1940, 20% da força de trabalho não-agrícola
na Argentina está sindicalizada, a maior taxa na América Latina do período (HORA,
2014b).
O golpe de 1943 é crucial em tal contexto não porque lançou nova ofensiva
repressiva, proscrevendo os comunistas e intervindo nos sindicatos e universidades,
mas porque abriu, institucionalmente, uma válvula de escape para administração
347
desses conflitos com a nomeação do Gen. Juan Domingo Perón na Secretaria do
Trabalho (1943-1946). Nessa posição, “Perón buscou refazer a imagem do trabalho
como fonte de conflito e ideologias estrangeiras para a de um respeitado ator político
estimado por sua contribuição para a vida política, econômica e social do país”
(COLLIER & COLLIER, 2002: 338). Através desse movimento, com sua seletividade
própria, suas cristalizações institucionais e seu apelo ético-político, conformam-se
bases para a construção da ordem que estão definitivamente além do que fora o
“longo século XIX” argentino.
Não é o caso de tentar um balanço extensivo sobre a experiência peronista, mas
somente apontar as razões pelas quais ela delimita os vetores resultantes da conjunção
crítica. Em primeiro lugar, e mais importante, há um atrelamento intensivo do estado
com o mundo do trabalho organizado nas cidades. De um lado, isso significava o uso
do poder de estado para hegemonizar o sindicalismo: o reconhecimento dos sindicatos
legalizados era controlado pela Secretaria do Trabalho, o que indiretamente regulava
os direitos de associação, greve e proteção, permitindo-lhe apoiar o sindicalismo
enquanto isolava e perseguia os comunistas. A elevação da taxa de sindicalização
após 1943 fortalece o peso político dos trabalhadores enquanto consolida o
oficialismo entre eles, tendo como pivô uma CGT reorganizada. Essa aliança é
suportada pela intermediação do conflito industrial e por uma agenda ampla de gasto
social, lastreada inicialmente nas divisas acumuladas durante a guerra. O peronismo
não recorre a uma base política sindical, mas ativamente a impulsiona, molda e
legitima, marcando os termos da incorporação histórica – retardada, voluntarista e
confrontacional – da classe trabalhadora à política institucional.
Em segundo lugar, o peronismo sepulta o “longo século XIX” porque dá forma
institucional à política de massas que irrompeu por inúmeras frestas da ordem política
oitocentista. Em lugar do movimento regressivo dos anos 1930, em que se pretendeu
desativar à força a participação política popular, Perón consegue fazer dessa
participação, e do controle partidário sobre ela, sua grande alavancagem política. A
população que havia sido proletarizada durante o “longo século XIX” desaguava em
um movimento amplo, voluntarista e nacionalista, que ressignificava a nação a partir
de novas linguagens e práticas associativas. Com a ampla vitória eleitoral de 1946,
amparada pelo Partido Laborista, criado após a vigília pela libertação de Perón em
outubro de 1945, esse movimento reorganiza ao seu redor de si a política argentina,
348
conquistando a presidência, a maioria nas duas casas parlamentares e quase todos os
governos provinciais. Todas as forças políticas se reposicionam no tabuleiro: o
radicalismo e a CGT se dividem no respaldo ao bloco peronista; os comunistas se
diluem e se enfraquecem; a Igreja e o Exército inicialmente apoiam o general,
enquanto que o latifúndio pampeano pela primeira vez se coloca na oposição ao
governo argentino170.
Em terceiro lugar, fecha-se a conjunção crítica porque, nos anos 1940, vão se
recolocando as condições de governabilidade e expansão do sistema mundial sob
hegemonia estadunidense. Nesse contexto, as utopias oitocentistas de mercado
autorregulado são suplantadas por uma macroeconomia do pleno emprego, com
industrialização substitutiva, mediação política entre capital e trabalho e uma
economia mista pela nacionalização de serviços públicos. As condição de reprodução
ampliada do ciclo extrativo-coercitivo já não adaptam ou retornam aos trilhos da
expansão precedente, mas estipulam uma orientação fora dos marcos saturados
durante aquela conjunção crítica. A arrecadação desloca-se de seu eixo aduaneiro e o
gasto adquire um perfil mais redistributivo. Com a criação do IAPI em 1946, o
governo consegue canalizar rendas do setor primário-exportador para sua agenda
social.
É óbvio que um movimento como foi o peronismo formaria dissidências e
novas coalizões reativas. Em certa medida, como notam Collier e Collier (2002: 350)
formam-se gradualmente duas culturas políticas irreconciliáveis na vida política do
país, com reconstruções históricas opostas: o ruralismo argentino cultua uma era de
ouro liberal e cosmopolita anterior a 1930, enquanto que o peronismo cliva um
passado indistintamente oligárquico contra o qual se insurge o povo nos anos 1940,
liderado por Perón. A incompatibilidade desses dos campos aponta as linhas de força
do período posterior, embora sua origem possa ser rastreada às crises de 1873 e 1890,
que disparam o “longo século XX” como arco histórico. A sobreposição desses arcos,
no período decisivo de indeterminação entre 1912 e 1946, forma uma espécie de
esquina na trajetória de formação do estado argentino.
O trabalho rural foi regulamentado em 1944 à revelia dos interesses do latifúndio, mas a reforma
agrária foi completamente interdita: um campesinato de pequenos produtores decididamente não
compunha o imaginário sindical, nacional e popular que o peronismo organiza.
170
349
10. BRASIL: CONSTRUÇÃO DA ORDEM POLÍTICA NO “LONGO
SÉCULO XIX”
“Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati”
“História para ninar gente grande”, Samba-enredo da G.R.E.S. Estação Primeira
de
Mangueira (2019)
No inverno de 1807, a monarquia portuguesa estava no centro do cabo de
guerra entre franceses e ingleses. Em novembro, as tropas do general Junot
marchavam sobre o vale do Tejo quando a Corte portuguesa foi transportada em naus
para o Brasil, então maior possessão ultramarina portuguesa. A manobra, sustentada
pelo chamado “partido inglês” do Conselho de Estado, com destaque para Dom
Rodrigo Sousa Coutinho, teria implicações maiúsculas para a trajetória do império
luso-brasileiro na Era das Revoluções. No momento mais crítico para a legitimidade
monárquica no continente europeu, a transferência preservava a integridade do reino
de Dom João VI, agora sediado no Rio de Janeiro com proteção britânica.
O resultado mais saliente desse artifício foi descompassar os efeitos da
transição hegemônica mundial do momento crítico de fratura da ordem no espaço
imperial português. Em outras palavras, a crise política decisiva para a monarquia é
conflagrada nos anos 1820 e atinge seu ápice nos anos 1830, em uma circunstância
em que as conexões do litoral brasileiro com o novo ciclo de acumulação, calcadas na
chamada “segunda escravidão” atlântica, já eram relativamente fortes e acumuladas
em seus efeitos. Por mais extraordinário que o episódio da transferência
intercontinental da Corte possa ser em si, ele não abre a janela de possibilidades
históricas, mas suspende ou retarda, por um artifício político contingente, essa
abertura.
350
Essa chave de leitura não corrobora o mero continuísmo na interpretação da
independência brasileira, argumento que se apoia no contraste com as experiências
hispano-americanas ou mesmo com a Revolução Francesa. Em certo sentido, a
comparação focada unicamente no evento da independência induz a essa visão
continuísta por arrancar o evento do feixe de processos do qual ele é um momento.
Em seu centro e em suas periferias, o império português não foi imune, no caos
sistêmico da Era das Revoluções, à fratura das relações ético-políticas baseadas na
integridade monárquica, à reconfiguração da economia atlântica e ao acirramento do
conflito por projetos alternativos de ordem. Contudo, essas faces da crise não se
produziram de forma simultânea como reproduções automáticas de uma determinação
internacional. O vetor resultante da ordem política pós-colonial precisa ser
compreendido à luz do encaixe particular em que a crise da autoridade política se
situa; no contexto brasileiro, o gatilho fundamental para tal seria a abdicação de Pedro
de Alcântara em 1831, e não a declaração de independência propriamente dita, ou a
fuga da Corte em 1808.
Como nos capítulos anteriores, nosso ponto de partida será localizar a colônia
brasileira na corrida interimperial da segunda metade do século XVIII, para o que são
centrais as reformas pombalinas. Em primeiro lugar, a transferência do governo geral
de Salvador para o Rio de Janeiro (1763) e a extinção do governo independente no
norte, o Grão-Pará e Maranhão (1774), unificam o espaço luso-brasileiro na América.
Com essa reorganização, o poder metropolitano se apoiava em dois centros coloniais,
o Estado do Brasil e o Estado da Índia sediado em Goa, o primeiro em expansão fiscal
e administrativa, o segundo minguando em declínio. Servindo como elo entre o tráfico
de escravos e ciclo minerador em curso no interior, o poder sediado no Rio de Janeiro
funcionava como uma submetrópole atlântica do império.
Entre 1735 e 1765, as exportações de metais preciosos do Brasil atingiram a
média anual de 750 mil libras esterlinas, puxando uma duplicação do comércio
exterior total entre 1710 e 1760 (BLACKBURN, 1998: 487-488). O ouro brasileiro
não simplesmente alavancava o ciclo extrativo-coercitivo do império português, mas
também subsidiava o emergente sistema financeiro inglês como corolário do
alinhamento político estabelecido após a Restauração (1668). Por sua abundância e
pureza, a moeda de ouro de quatro escudos, emitida de 1727 a 1822 em Portugal e no
Brasil, chegou mesmo a funcionar como uma “moeda universal do mundo atlântico”
351
(ABREU & LAGO, 2001: 335). Como dito na Parte II da tese, a adoção precoce do
padrão-ouro e o barateamento do capital circulante no alvorecer da industrialização
britânica são contrafaces da reorganização por que passava então o império português.
Sob controle do governo do Rio de Janeiro, o imposto sobre o ouro (quinto)
substitui então os dízimos, tributos indiretos sobre instalações e bens de consumo,
como maior fonte de arrecadação do governo colonial no Brasil. Mas a estrutura fiscal
era bastante compósita e dispersa em suas rubricas, com poucos impostos levantados
em todo o território brasileiro (COSTA, 2003). A marca mais importante do período
foi menos a proliferação de novas tributações do que o esforço tenaz da autoridade
colonial de restringir o contrabando e os ilegalismos fiscais cotidianos. Uma das
mudanças decisivas do período pombalino, com efeito, foi transformar as capitanias
hereditárias em repartições a cargo de funcionários régios, ligados diretamente à
metrópole. Em termos fiscais, essas capitanias transformadas em províncias deveriam
sustentar-se com os recursos que angariassem localmente, remetendo os excedentes
diretamente ao recém-criado Erário Régio em Lisboa.
Instituídas para tal em diversas províncias brasileiras, as Juntas de Fazenda não
só estabeleciam essa rede administrativa, mas também incorporavam métodos mais
rigorosos de controle e contabilidade. Com isso, a fisiologia do estado colonial se
traduz em relatórios periódicos provenientes das províncias, forjando uma rede
documental subsidiária aos movimentos financeiros do tesouro. Nesse sentido, por
trás da aparente centralização pombalina, “tais reformas consagravam a capitania
como uma jurisdição fiscal dotada de autonomia em relação a outras esferas da
administração colonial e fora dela” (COSTA, 2003: 161).
Premido pela competição geopolítica, o reformismo pombalino pode ser
resumido como um desígnio racionalista de expansão do ciclo extrativo-coercitivo:
obter mais recursos, ter mais soldados de prontidão e mais funcionários
comissionados, aumentar o controle administrativo do império para obter mais
recursos, soldados e funcionários. Seu principal herdeiro político foi Sousa Coutinho
(Conde Linhares, 1808) ministro de Marinha e Ultramar (1795) e ministro e secretário
de Estado dos Negócios da Guerra e Estrangeiros (1812).
Face ao desmoronamento do sistema dinástico europeu, Coutinho estava ciente
de que a sobrevivência de Portugal dependia de seu espaço imperial ultramarino,
especialmente o Brasil. Em um frequentemente citado memorando de 1797, o então
352
ministro alertava ao rei que Portugal sem suas colônias se tornaria, mais cedo ou mais
tarde, uma província espanhola (ADELMAN, 2006: 244-245). A transferência
apressada da Corte em 1808 representava, nesse sentido, a culminância da política de
“transferência do controle para a periferia” que Coutinho pautava como
desdobramento do reformismo ilustrado em meio à guerra revolucionária na Europa
(ADELMAN, 2006: cap. 3).
Em uma palavra, a instalação da monarquia no Rio de Janeiro oferecia uma
solução prática para o problema da soberania no Brasil, constituído agora como um
“centro no novo mundo para um império do velho” (ADELMAN, 2006: 228). Ao
estabelecer esse improvável ponto de repouso, alimentava-se uma sobrevida para a
tendência anterior de intensificação competitiva do apetite fiscal e da militarização
dos impérios atlânticos. Ao invés de sua ruptura, com consequências imprevisíveis, a
transferência afastava momentaneamente o império português do redemoinho da Era
das Revoluções e prolongava sua trajetória de autoconstrução pela reforma. Isso se
vislumbra inicialmente em três vias: o surto tributário no período joanino, o
aprofundamento da militarização no Prata e a agitação social antifiscal. Vamos
observar cada uma delas para em seguida inserir a abertura comercial de 1808-1810
como evento pivô no reencaixe na transformação da economia atlântica.
A estrutura fiscal que perduraria na maior parte do século foi estabelecida após
a chegada da família real, com a adaptação de cobranças existentes e a instituição de
novos impostos internos (ABREU & LAGO, 2001; COSTA, 2003). Além dos
impostos sobre o comércio exterior e os dízimos, havia coletas no trânsito
interprovincial, o quinto sobre o ouro, o subsídio à Corte cobrado sobre a carne, a
cana, os destilados e os tecidos de lã, o subsídio literário cobrado sobre os
abatedouros, uma cobrança instituída para capitalizar o Banco do Brasil, a sisa (10%)
sobre a transferência de propriedade urbana, a meia-sisa (5%) sobre a venda de
escravos ladinos, o imposto sobre o selo, a décima sobre os imóveis e sobre a herança,
entre outros impostos de menor expressão. O aumento da carga tributária não
significava exatamente uma ruptura com o perfil fiscal da colônia, mas antes uma
oxigenação do mercantilismo. A descontinuidade mais saliente, como apontou a
professora Wilma Costa (2003), é que os tributos instituídos por Sousa Coutinho
durante o período joanino alcançaram abrangência territorial, válidos de forma
relativamente uniforme nas diferentes províncias.
353
A transferência em 1808 também cria condições para que o império português,
agora sediado na América, tome a ofensiva na disputa geopolítica no Prata, herdada
da corrida interimperial de fins do século XVIII. Ademais, frente à situação de
soberania múltipla aberta no império espanhol após 1808, ele se reposiciona como
bastião da reação. No segundo semestre de 1811, as forças imperiais invadiram pela
primeira vez a Província Cisplatina, em socorro ao governo realista que beirava o
colapso em Montevidéu. No ano de 1816, auge do movimento federalista gaucho de
Artigas, o império luso-brasileiro novamente exerceria uma espécie de veto militar ao
radicalismo agrário, dessa vez com a cumplicidade do Diretório recém instituído em
Buenos Aires.
Prorrogada, dessa maneira, a disputa luso-espanhola sobre o estuário do Prata,
agora as incursões joaninas adquiriam novo aspecto: a cisão simbólica entre o rumo
indesejável das ex-colônias espanholas, engolfadas pela guerra civil e pela revolução,
e a presumida estabilidade monárquica ao império luso-brasileiro, capaz de conservar
a ordem interna. Prontamente absorvida pelas elites políticas do Rio de Janeiro, essa
leitura concluía que “o sistema democrático adotado pela América espanhola”, como
dizia o Correio Braziliense em 1809, “[possa] ser-nos tão incômodo como a
dominação francesa” (apud PIMENTA, 2003: 126).
Separar-se da situação hispano-americana nos turbulentos anos após 1808 era
mais que uma convicção conservadora ou uma estratégia retórica: era um código para
renovar a relação especial da monarquia bragantina com a Grã-Bretanha. Como
aponta Adelman (2006: 253), a decisão de Sousa Coutinho de despachar as tropas
para o sul em 1811 tinha como pano de fundo a negociação em curso para levantar
novos empréstimos em Londres, uma demonstração de força diante da incerteza,
elevada pelos levantes recém ocorridos em Buenos Aires e Caracas. A imagem de
solidez e segurança da monarquia servia a lastrear-lhe a penúria fiscal, que por sua
vez se agravava a cada novo empreendimento militar.
A pressão fiscal do período joanino encontrava alguma razão nas
extravagâncias da Corte recém transplantada, mas tinha raízes mais profundas no
endividamento progressivo da monarquia lusitana ao longo do meio século precedente,
no esforço de acompanhar (ou pelo menos sobreviver em meio a) a corrida
354
interimperial171. Uma vez que a ruptura política fora represada, a deterioração fiscal
seguia seu curso, transferindo maior ônus para a sociedade colonial brasileira.
A insurgência republicana no Recife em 1817, principal episódio de confronto
político do período joanino, tem estreita relação com o fardo dos “novos impostos”
instituídos após a chegada da família real. A incidência de inúmeros tributos sobre as
transações cotidianas fazia com que seu ônus fosse imediatamente sentido pela
população urbana. A leitura então corrente de que a província subsidiava sem
contrapartida a Corte no Rio de Janeiro se verifica e exprime na revogação sumária,
nos dois meses de vigência do governo provisório, de todos os impostos criados após
1808 (BERNARDES, 2003: 237-238).
Essa oposição antifiscal não esgota, por suposto, os horizontes ético-políticos
revolvidos no movimento nordestino, que agregou as províncias vizinhas em uma
república federal e aboliu o tráfico de escravos. Embora frequentemente retratado
como um antecedente da independência, o levante na verdade dá prolongamento às
dissidências na colônia, de curto fôlego e grande ambição, como foram a
Inconfidência Mineira (1789) e a Revolta dos Alfaiates em Salvador (1798). A
prontidão repressiva do estado imperial interceptou suas possibilidades, mas não suas
origens. Embora reduzir esses movimentos à questão fiscal seja pobre, é forçoso notar
que cada movimento de constrição fiscal da colônia pela Coroa encontra alguma
espécie de contestação localizada, mais ou menos radical, mais ou menos
bem-sucedida.
Como dito antes, o ponto de apoio da relativa estabilidade monárquica
portuguesa entre 1807 e 1820 foi a proteção britânica. Em certo sentido, falar na
aliança entre os dois estados acaba encobrindo a assimetria subjacente a cada
movimento de aproximação. A vinda da família real com escolta britânica foi
consumada após a ameaça de destruição de toda a frota portuguesa em caso de
recalcitrância; para evitar sua utilização pelos invasores franceses, os britânicos já
haviam feito o mesmo com a frota estacionada em Copenhagen alguns meses antes. A
abertura dos portos em 1808 e a negociação do acordo de preferência comercial de
1810 também foram respaldados pela coação diplomática e pela pressão direta da
comunidade mercantil inglesa (ADELMAN, 2006: 232). E mesmo na década de 1810
Em 1798, a dívida pública atingia quase 80% da receita anual, o que contrasta fortemente com os
anos entre 1762 a 1776, quando ela era inexistente.
171
355
os navios negreiros eram abordados e confiscados na costa brasileira por patrulhas
navais britânicas, seguindo o compromisso bilateral de erradicação do tráfico. O fato é
que, não obstante a coerção e a assimetria envolvida, o império português estava
fincado na órbita geoeconômica britânica durante a transição hegemônica.
Em tal contexto, a erosão dos monopólios e controles coloniais teve, como
efeito imediato, encaixar precocemente o mercado brasileiro à industrialização
britânica. Enquanto a América hispânica praticava impostos na faixa de 20 a 30%
sobre as importações, o acordo de tratamento preferencial de 1810 fazia com que os
produtos britânicos pagassem no máximo 15%, em um mercado consumidor que não
fora atingido por maiores abalos políticos. Aliás, pelas aproximações disponíveis, o
Brasil é um dos raros lugares com crescimento demográfico expressivo no continente,
atingindo a casa de quatro milhões de habitantes em 1823 (BULMER-THOMAS,
2003: 21).
Diante do bloqueio continental (1806-1814) e da guerra anglo-americana de
1811-1812, o Brasil se torna o principal receptor dos têxteis ingleses, posição que
manteria até meados do século (PLATT, 1972: 25-28; TOMICH, 2004: 60-61).
Enquanto importantes complexos exportadores regionais periclitavam no novo século,
como era o caso da mineração, do algodão e do cacau, as importações baratearam-se.
Esse desequilíbrio incidia diretamente sobre a economia regional e sobre as finanças
provinciais; na Amazônia, durante a vigência dos acordos com a Inglaterra, Mark
Harris (2017) descreve um quadro de fuga de moeda, com desvalorização e uso
frequente de falsificações. “De uma economia que fornecia à metrópole cacau, arroz e
café, e trazia poucas mercadorias, o Pará tornou-se um importador substancial nas
décadas de 1820 e 1830” (HARRIS, 2017: 160).
Nova sede da monarquia, o Rio de Janeiro tinha condições especiais para
reposicionar-se na economia atlântica. Em uma palavra, a escravidão negra fora o
alicerce de toda a operação de deslocamento do centro de gravidade do império para
sua submetrópole brasileira. Ao contrário da América Espanhola, onde o tráfico fora
delegado a estrangeiros pelo sistema de asientos, no Brasil ele fora majoritariamente
controlado pela comunidade mercantil local. Nesse sentido, a flexibilização das
restrições corporativas tendia a favorecer a posição de elite luso-brasileira,
especialmente fluminense. O Rio de Janeiro se torna o principal porto escravocrata do
356
Atlântico quando a escravidão parecia irreversivelmente refutada pelas convicções
morais do novo século.
Se o abolicionismo do Império Britânico impunha certos riscos ao negócio, a
proletarização em suas cidades industriais oferecia uma nova seara de expansão para
os produtos tropicais, já não mais satisfeitos pelas plantations dos domínios imperiais
franceses ou ingleses. Essa seria a janela de oportunidade da “segunda escravidão” no
Brasil, nos Estados Unidos e em Cuba (TOMICH, 2004: cap. 3). Como golpe de
misericórdia contra o exclusivo colonial, a abertura dos portos após 1808 propulsiona
a demanda por escravos no Brasil, inflando a cafeicultura no cinturão agrícola adjunto
ao porto do Rio de Janeiro (MARQUESE, 2013). Como aponta Tomich (2004: 63), o
capital britânico ergueria uma chamada “ponte de crédito” para expansão das
plantações e da infraestrutura subsidiária no Vale do Paraíba, logo convertido no
epicentro da produção mundial de café. Ao contrário da instabilidade das demais
atividades exportadoras, o café apoiado na “segunda escravidão” se torna uma
periferia dinâmica do novo ciclo de acumulação.
O nó geográfico dessa associação era o porto do Rio do Janeiro, onde o
contingente de escravos africanos desembarcados dobra de 1810 a 1820 e continuaria
a crescer sistematicamente até fins da década de 1830. Em paralelo, o controle sobre o
porto significava impostos sobre o comércio exterior, em um momento em que o furor
tributário joanino não deixava “escaparem nem os pecados dos fiéis já que se taxavam
até mesmo os bilhetes de confissão” (COSTA, 2003: 171). Enquanto o engenho
mercantilista incidia sobre a miríade de impostos internos, cuja exigência
administrativa e a resistência social eram grandes, o empuxo do mercado mundial
alavancava a captação de impostos aduaneiros, mesmo sob o regime livre-cambista
imposto pelo Império Britânico de 1810 a 1844. Em outras palavras, as linhas da
transição fiscal se desenhavam mesmo antes que o império português expusesse com
nitidez suas linhas de fratura política, ou ainda, sem que o Brasil fosse sequer
imaginado como um estado ou uma nação independente.
Como corolário da situação atípica em vigor desde 1808, o gatilho da crise
imperial tem origem na metrópole europeia, conjunturalmente associado ao
movimento liberal na Espanha. Segundo o argumento a seguir, o movimento liberal
do Porto insere uma cunha na estrutura de dominação política do império português
que evoluiria para sucessivas situações de soberania múltipla, inclusive no Brasil
357
independente. Nessas balizas, a independência propriamente dita, proclamada em
1822, precisa ser situada mais como um artifício protelatório, uma manobra dinástica
para represar os riscos da fricção política. A separação do Brasil cria um repouso
constitucional provisório, que seria engolfado definitivamente na crise que leva à
abdicação de Pedro I no Brasil em meio à guerra civil portuguesa, a qual ele pretendia
arbitrar.
Para assentar as bases sociais da construção do estado pós-colonial brasileiro no
“longo século XIX”, portanto, é preciso olhar menos para o evento formal da
independência e mais para sua problemática de fundo: a convergência de um projeto
hegemônico de ordem com a reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo. Isso
dito, o cenário em que os termos da ordem pós-colonial estiveram em real disputa foi,
salvo melhor juízo, os anos da Regência (1831-1840). Em última instância, o
alargamento do horizonte de possibilidades históricas não depende simplesmente da
eclosão ou radicalidade dos movimentos de oposição, mas das oportunidades políticas
postas pela fissura da institucionalidade vigente.
10.1. Conjunção crítica I (1820-1840): a antecipação monárquica e a “segunda
escravidão”
De saída, cumpre reconhecer que a eclosão da revolta no Porto é também parte
das reações à drenagem fiscal do período joanino. Como vimos, a pirâmide fiscal do
império previa que as administrações provinciais remeteriam seus excedentes ao
Erário Régio; de fato, as receitas oriundas do ultramar cresceram de modo
extraordinário nos primeiros anos do século, de cerca de 750 contos de réis anuais
(entre 1801 e 1803) para mais de 3.100 contos de réis anuais entre 1813 e 1814
(Tabela 10.1). Por força das circunstâncias, esses recursos permaneciam no Rio de
Janeiro ao invés de serem remetidos a Portugal, onde o esforço de guerra era custeado
por impopulares coletas extraordinárias172. Além disso, as concessões corporativas
usufruídas pelas câmaras de comércio metropolitanas foram virtualmente anuladas
pela abertura dos portos brasileiros. Por fim, a ingerência britânica sobre as forças
172
A ausência do rei e dos rendimentos “do domínio” forçava Portugal a intensificar o esforço
arrecadador empurrando “para baixo” o peso da tributação. Perdidas as oportunidades da burguesia
mercantil com o fim do “exclusivo”, reduzidas as receitas alfandegárias, retidos na América os
rendimentos da coroa, a metrópole sem rei precisava arcava com todo o ônus da crise militar no
continente.
358
armadas de Portugal após a Guerra Peninsular era atribuída à ausência do monarca, o
que acarretava dissenso em torno do controle político da violência. Embora com
sinais invertidos, ambos os movimentos em Portugal (1820) e no nordeste brasileiro
(1817) fundamentalmente contestavam a seletividade extrativo-coercitiva vigente no
império após a transferência da Coroa.
O primeiro liberalismo português tem, pois, um subtexto claramente
colonialista: reunificar a monarquia com a metrópole, usando o constitucionalismo
liberal para reinstituir a hierarquia do império. A aparência de restauração encobre o
deslizamento prático que divide dois lócus de autoridade, duas reivindicações de
soberania: as Cortes em Lisboa e a Corte no Rio de Janeiro (SLEMIAN, 2006: 63-80).
Ao contrário do que ocorrera em Salvador em 1798 ou no Recife em 1817, o polo
emergente não podia ser prontamente anulado pela força, cujo uso estava inibido
politicamente (ver seção 1.3). Mais do que isso, o processo constituinte então
desencadeado gerou efeitos concêntricos pela eleição dos deputados constituintes
pelas províncias brasileiras, com liberdade de expressão e imprensa.
Em suma, havia um estremecimento irreversível da ordem imperial, mas ele
não era oriundo de um nacionalismo anticolonial brasileiro, sequer discernido
nitidamente na ocasião. Mesmo a província irredenta de Pernambuco, onde a devassa
aos envolvidos com a república de 1817 ainda prosseguia em 1821, elegeu
regularmente seus representantes para a constituinte de Lisboa, beneficiando-se de
uma súbita anistia que converteu os prisioneiros em heróis locais. Seguindo o roteiro
do que ocorrera meses antes no Maranhão, no Pará, no Piauí e na Bahia173, a tensão
principal da junta diretora formada no Recife em 1821 foi com o gabinete regencial
sediado no Rio de Janeiro. A razão principal do conflito foi a criação do Conselho dos
Procuradores das Províncias, por obra do ministro José Bonifácio de Andrada, em
fevereiro de 1822. Tido como instrumento de controle oficial das províncias, o
Conselho era deslegitimado pelos diretores pernambucanos como uma “desnecessária
Como resume Andrea Slemian: “Em 10 de junho de 1822, a Junta instalada no Maranhão escrevia
ao ministro Bonifácio afirmando não poder cumprir o decreto de 16 de fevereiro para eleição de um
procurador na Província ‘sem ordens das Cortes, a cujas Soberanas Autoridades’ ela havia jurado
‘fidelidade e obediência’112. No dia seguinte, era a vez do Governo do Pará fazer o mesmo, sob
justificativa de que não reconhecia ‘outro centro de Poder Legislativo, e Executivo que não seja o
residente no Soberano Congresso Nacional em Portugal’113. Ambas as Juntas mantinham
solidariedade também com a do Piauí, como ficou documentado na correspondência que trocaram entre
si em que reiteravam a fidelidade a um único centro comum: Lisboa. A da Bahia, em agosto, também
negava obediência aos decretos vindos do Rio, mesmo sem contato direto com as Juntas do Norte”
(SLEMIAN, 2006: 67-68).
173
359
e ilegítima duplicação da representação da Nação”, então já reunida nas cortes de
Lisboa (BERNARDES, 2003: 242).
De fato, para a conjunção crítica de 1820 a 1840, uma das balizas fundamentais
seria a reforma do estatuto legal das províncias após a Revolução do Porto (GOUVEA,
2008). Embora Pombal tivesse acabado com as capitanias hereditárias em 1759,
permanecera até 1821 certa ambiguidade entre os termos província e capitania como
unidades do império português no Brasil. Em outubro de 1821, instituem-se as juntas
provisórias eleitas na própria província e, alguns meses depois, o movimento é
contrapesado pela criação do Conselho de Procuradores antes mencionado. Com a
independência em 1822, ambas as instituições são revogadas, mas seu conteúdo é
mantido com outra forma: o cargo de presidente de província é atrelado ao poder
central, enquanto que os representantes nos conselhos gerais de província são eleitos
localmente.
Não é verdade que “com a independência a classe dominante local se
nacionaliza alegremente”, como disse o sempre mordaz Darcy Ribeiro (RIBEIRO,
1995: 252). As autoridades provinciais estavam divididas em suas lealdades políticas
e isso enveredou, inclusive, para o uso da força contra aquelas, especialmente no norte,
fiéis às Cortes lisboetas. Ainda assim, a cisão em duas assembleias constitucionais (a
brasileira foi instalada em março de 1823) foi uma segunda manobra de desescalar o
conflito aberto em 1820, sendo a primeira delas o retorno de Dom João VI a Portugal
para aplacar o movimento vintista. Ainda uma terceira se daria com a dissolução da
constituinte por decisão do imperador, neutralizando as clivagens ascendentes na
assembleia174. O último dos artifícios se daria em terras portuguesas, com a imposição
da constituição de 1826 sobre o texto votado pelos constituintes. Em suma, a
Independência do Brasil se situa em um encadeamento de movimentos de controle
sobre a imprevisibilidade da disputa política, cujo sucesso foi temporário tanto no
Brasil como em Portugal. Mesmo que não tenham sido definitivos, esses movimentos
moldaram os resultados finais.
De 1808 a 1824, essas manobras foram possíveis por meio de modulações da
continuidade monárquica. A crise do Primeiro Reinado solapou esse esteio
ético-político, fazendo com que a disputa pela ordem descarrilhasse dos trilhos
Sintoma da polarização dos debates constitucionais do período, um deputado da Bahia chegou a
propor que na Constituição ficasse estipulado que se “uniriam confederalmente” as províncias, o que
gerou reação tremenda especialmente dos parlamentares fluminenses (ver SLEMIAN, 2010: 122).
174
360
institucionais175. Nos anos 1830, abrir-se-ia efetivamente uma situação de soberania
múltipla no Brasil independente, em que as reivindicações alternativas de governo nas
periferias do império pressionavam suas linhas de inclusão e exclusão política. Por
certo não há homogeneidade nas causas nem nos horizontes revolvidos pelos
movimentos insurgentes do período, mas há uma confluência prática que rompe o
controle político da violência pelo governo central. As oportunidades políticas
advinham então, de um lado, da vulnerabilidade da monarquia em seu interregno
dinástico e, de outro, de um desenvolvimento da institucionalização das províncias
desde o primeiro liberalismo português, ou mais remotamente, das reformas
fazendárias de Pombal.
No que tange a institucionalização das províncias, o Ato Adicional de 1834 é o
marco decisivo. De um lado, os conselhos foram promovidos a Assembleias
Legislativas provinciais, contando com maior número de representantes. Havia uma
contrapartida fiscal imediata, embora juridicamente ambígua: essas assembleias foram
autorizadas a criar impostos que não estivessem na jurisdição central, a qual manteve
o monopólio sobre os impostos de importação (ABREU & LAGO, 2001: 345-346).
Ademais, as principais taxas criadas após 1808 foram progressivamente transferidas
para o âmbito provincial, ao qual foi reservada também a prerrogativa de organizar
força armada por meio da Guarda Nacional (DOLHNIKOFF, 2003).
Havia uma base de poder em escala regional, que, em circunstâncias extremas,
serviu de plataforma para organizar reivindicações alternativas de soberania. Ausente
o continuísmo dinástico, a questão da subordinação das províncias ao poder central
atingiria então sua prova de fogo. Resultado de debates parlamentares polarizados
desde 1831, o Ato Adicional precisaria ser capaz de capturar o sentido dos pleitos de
autonomia regional aos limites do quadro constitucional recém reformado, e não além
dele.
A emergência de projetos alternativos de ordem, nessa conjunção crítica,
encontraria seu combustível nas divisões sociorraciais formadas pelo colonialismo,
A descontinuidade representada pela abdicação em 1831 foi bem capturada por Andrea Slemian,
que instrumentaliza a discussão de Koselleck sobre o tempo histórico em termos muito próximos aos
que viemos trabalhando: “não há dúvida que a saída de Dom Pedro I aprofundou, no plano imediato,
uma instabilidade política em diversas partes do Brasil, materializada tanto pelas desordens,
insubordinações e tentativas de rebeliões, como pela abertura de novo campo de expectativa com
relação ao futuro, que ia da projeção de possibilidades mais radicais de transformação completa do
regime à manutenção da legitimidade monárquica do Império” (SLEMIAN, 2010: 142; grifo
adicionado).
175
361
especialmente na escravidão negra. No Brasil do século XIX, Lynch sugeriu que a
ausência relativa de radicalismos socialistas e filojacobinos, simétrico à fraqueza de
posições flagrantemente reacionárias, teria constituído um espectro ideológico
centrista, se comparado com a Europa Ocidental, então mais polarizada (LYNCH,
2011). Sendo de fato nítido que um liberalismo centrista estava emergindo
hegemônico no mundo atlântico após a Era das Revoluções (WALLERSTEIN, 2011),
o diagnóstico do “império da moderação” perde de vista que sua mais candente
questão social, que servia de baliza para a radicalidade das utopias políticas, era o
horizonte de emancipação racial interdito pela monarquia.
Do compromisso programático com a abolição, presente desde a Conjuração
Baiana (1798), até a promessa instrumental de alforria aos que aderissem à luta, como
na Revolução Farroupilha (1835-1845), alguma forma de desestabilização das
hierarquias raciais era necessária para a ativação política popular. Ou melhor, a
própria ativação política popular, dada a estratificação da sociedade brasileira,
implicava certa desestabilização de hierarquias raciais. Nesse sentido, o extremo
progressista do espectro político imperial se identifica não no socialismo sindical
europeu, mas em movimentos com base popular e perfil anticolonial, como a Revolta
dos Malês, a Cabanagem ou a Balaiada. O fato de que eles não tenham
institucionalizado uma facção estável no Império é, antes de tudo, um sintoma do
triunfo do liberalismo escravista ou, como define Lynch (2011), de uma “democracia
para o povo dos senhores”.
A Cabanagem no Pará adquiriu um perfil popular e interracial desde seu
primeiro levante em janeiro de 1835. A coincidência dos movimentos insurgentes
com o calendário de festejos populares, sua sinergia com os rios como artérias de
contágio regional, o predomínio da língua geral sobre o português e a evocação
simbólica às lideranças indígenas caídas na resistência aos portugueses construíram
uma peculiar “ponte entre o liberalismo radical e a cultura amazônica colonial”
(HARRIS, 2017: 181). Com efeito, o imaginário revolucionário já circulava no Pará
desde a invasão luso-brasileira de Caiena em 1808, cujo intuito fora precisamente
contê-lo. Sem resposta militar possível, estando a França bloqueada pela marinha
britânica, a ocupação da Guiana manteve, por nove anos contínuos, centenas de tropas
paraenses no que era uma colônia de degredo de agitadores radicais franceses
(HARRIS, 2017: cap. 1).
362
A veiculação de ideias liberais, contudo, não explica por si só a disrupção do
tecido social amazônico nos anos 1820 e 1830. Como mencionamos, uma parte dessa
explicação se encontra na desorganização da economia regional após a liberalização
comercial, em um contexto em que o cacau, principal produto local, teve seu valor de
mercado reduzido a um décimo de 1821 a 1830 (HARRIS, 2017: 169). No entanto, o
elemento central para a sublevação de camponeses e indígenas foram as mudanças
institucionais nas primeiras décadas do século XIX, que impulsionavam uma nova
intrusão do poder central e um processo desencaixe da política de sua rotina regional.
O marco inicial desse processo é a extinção em 1798 do Diretório dos
Indígenas, um regramento corporativo do período pombalino. Ainda que abrigasse
abusos, o Diretório permitia considerável autonomia aos índios aldeados através de
seus caciques. No século XVIII, posições de prestígio nas maiores cidades
amazônicas foram eventualmente ocupadas também por lideranças indígenas, fosse no
judiciário, no exército e mesmo nas assembleias municipais (HARRIS, 2017: cap. 4).
No século XIX, sob a aparência de liberalização, acabou-se por enrijecer as
hierarquias sociorraciais e o controle lusobrasileiro sobre as terras e sobre o poder
local, pano de fundo da revolta que eclodiu em 1835.
A abertura comercial também afetara a economia pampeana do Rio Grande do
Sul, que sofria concorrência do charque do Rio da Prata no centro do país. A
insubordinação dos estancieiros gaúchos tinha estreita relação com a seletividade do
ciclo extrativo-coercitivo: o elevado imposto de importação sobre o sal pressionava as
charqueadas gaúchas, enquanto que o charque platino era desonerado para alimentar a
expansão da fronteira agrícola do café. O fardo do recrutamento militar pesava
desproporcionalmente sobre aquela região fronteiriça, em contato imediato com o
republicanismo provincial que, à época, se constitucionalizava no Prata. A decisão de
guerra contra o poder central em 1835, nesse sentido, enlaça a situação de soberania
múltipla do Império com a geopolítica do Prata, em particular pelas conexões dos
Farrapos com os blancos uruguaios. Por outro lado, em sua base social, a rebelião
mobilizava peões negros e indígenas para lutar ao lado dos estancieiros contra o poder
imperial escravocrata – um movimento cujas consequências podiam extrapolar as
intenções de seus iniciadores.
Como o movimento gaúcho de 1835-1845 serviu de matéria-prima para uma
mitologia histórica conservadora, as vozes críticas têm repetidamente apontado para a
363
hipocrisia e a instrumentalidade dos compromissos sociais estabelecidos pelos
dirigentes farrapos, em sua maioria eles mesmos proprietários de escravos. A
verdadeira alma da revolta teria sido desvelada na infame traição dos Lanceiros
Negros em Porongos (1844). Embora necessário, esse contraponto presume que uma
convicção abolicionista é condição para desestruturar a escravidão, concluindo de
saída que a revolta não produz, nem poderia produzir, nenhuma abertura real de
possibilidades.
No entanto, as consequências da mobilização militar de escravos e gaúchos, por
mais pragmática que tenha sido, e certamente não o foi para a cúpula farroupilha
como um todo, estavam também em jogo na guerra. A traição de Porongos é parte da
acomodação dos líderes do movimento já derrotado, mas essa trajetória não estava
inscrita em sua eclosão. Em caso de triunfo, isto é, de inibição política da resposta
militar do Império, essas mesmas elites agrárias teriam outro cálculo do dissenso a
fazer: governar uma república lavrada por um exército multiétnico, cuja alforria fora
conquistada pelas armas176.
A traição de Porongos representa não só a acomodação cúmplice dos
estancieiros derrotados à ordem imperial, mas também o sucesso desta em racializar a
repressão aos movimentos de resistência naquela conjunção crítica. Ao manipular a
ameaça de uma guerra de raças, nos diferentes quadrantes do império, a Corte
conseguia romper certas solidariedades de classe operadas regionalmente para
desescalar a contestação à sua autoridade. Que se tenha lançado mão dessa
racialização – da Amazônia à Bahia, do Maranhão ao pampa – não é suficiente para
explicar seu sucesso. O problema explicativo da Era das Revoluções brasileira no
longo século XIX é, então, a resolução conservadora da situação de soberania
múltipla instituída após o Ato Adicional.
Medindo forças com múltiplos projetos alternativos de ordem, mais ou menos
radicais perante a existente, a monarquia sediada no Rio de Janeiro consegue
neutralizá-los, reaglutinar o controle político da violência e constituir-se como vetor
de nacionalização da política. Um projeto hegemônico de ordem pós-colonial passa a
Como lembra Izecksohn (2015), a mobilização de escravos já ocorria em determinadas
circunstâncias desde o período colonial, e foi regulamentada após a independência no sentido de
ressarcir os proprietários que cedessem seus escravos à tropa. Ainda assim, o expediente não abria
maiores brechas no regime escravocrata. No caso do Rio Grande do Sul, a mobilização sob a bandeira
republicana criou essa brecha de indefinição. No norte da América do Sul, por exemplo, ela gerou
fissuras políticas sucessivas das quais o regime de trabalho escravo nunca se recuperaria.
176
364
ser articulado pelo “liberalismo escravocrata” dos saquaremas fluminenses,
associados ao comércio portuário e à classe senhorial do café (SALLES, 2012). Para
entender como foi possível essa resolução conservadora, enquanto fechamento
progressivo do horizonte de possibilidades na virada para os anos 1840, vamos
resgatar alguns aspectos que mostram como a resposta foi sendo sinalizada até aqui,
na conjugação da situação periférica com a trajetória pós-colonial de formação de
estado.
Pudemos perceber anteriormente que as manobras protelatórias da monarquia
bragantina durante a Era das Revoluções colocaram-na em uma posição particular na
geografia econômica do ciclo de acumulação emergente. O substrato dessa posição
era a “segunda escravidão” como polo periférico da industrialização britânica, o qual
se solidificara no Brasil por meio da prioridade comercial entre 1810 e 1844. Com
isso, no momento de decolagem hegemônica, o litoral brasileiro se torna uma cabeça
de ponte para o capital britânico na América do Sul: à época da independência, 60
casas comerciais britânicas já operavam no Rio de Janeiro, 20 na Bahia e 16 em
Pernambuco (MARICHAL, 1989: 18). No ciclo de endividamento externo dos anos
1820, os credores ingleses exigiram juros de cerca de 15% na Argentina e 30% no
México, enquanto que o acerto do Brasil com o banco Rothschild & Sons em
1824-1825 previa entre 3 e 5% sobre o valor nominal dos títulos (MARICHAL, 1989:
34). Com a crise em 1826/1827, o Brasil é o único país latino-americano a manter os
pagamentos da dívida externa.
A contrapartida comercial disso é muito clara: enquanto os mercados
latino-americanos estão desintegrados pela crise, o Brasil absorve quase 50% das
exportações têxteis britânicas. Não obstante a agitação política em curso no continente,
o valor das importações brasileiras provenientes do Império Britânico não cairia
abaixo de 2,5 milhões de libras ao longo das décadas de 1820 e 1830. Isso ocorre
precisamente porque não há interrupção dos circuitos exportadores de produtos
tropicais dependentes da escravidão negra, renovada sob os auspícios do estado.
Mais especificamente, como dito antes, o dinamismo extraordinário do café no
Vale do Paraíba estava reorganizando não só o mercado internacional dessa
commodity177, mas também as oportunidades fiscais disponíveis no Brasil. Sem que a
Marquese (2013) sinaliza que a produção mundial de café decuplica desde o triunfo da revolução
negra do Haiti, então principal polo exportador, até o fim da escravidão no Brasil em 1888. Além disso,
recorrendo a estimativas de época, demonstra como a produtividade dos cafezais no Vale do Paraíba
177
365
estrutura fiscal brasileira tenha passado por grandes controvérsias normativas, que
desmantelassem por convicção seu perfil mercantilista, o centro de gravidade da
arrecadação se deslocava silenciosamente para as aduanas, desproporcionalmente para
a aduana do Rio de Janeiro (Tabela 10.2), que puxavam o crescimento do orçamento
imperial, correspondendo a mais da metade de seus ingressos.
Dessa forma, a musculatura fiscal, creditícia e militar do centro do império está
muito mais desenvolvida quando, nos anos 1830, a ordem política é posta em xeque.
Em múltiplos cenários simultâneos, esse centro é capaz de impor o processo de
desencaixe da política de seus contextos locais, submetendo a “autonomia” das
províncias aos termos do Ato Adicional, ou seja, à ordem constitucional vigente. Com
isso, se reverte a abertura do horizonte de possibilidades que vinha ocorrendo no
espaço imperial português desde a crise de 1820.
Na década de 1830, há efetivamente uma conjugação entre o confronto de
marcos ético-políticos incompatíveis, fissuras no controle político da violência e a
mobilização política de subalternos. A força centrípeta do império para contrarrestar
esses movimentos jaz, por tudo que se disse, na propulsão precoce do ciclo
extrativo-coercitivo por sua inserção na geoeconomia da “segunda escravidão”. Em
outras palavras, a abertura retardada da conjunção crítica faz com que ela ocorra sobre
efeitos já acumulados da transição hegemônica em nível sistêmico. De submetrópole
do império português o Brasil se reposiciona como periferia associada o novo ciclo de
acumulação, o que só foi possível pelo controle do potencial disruptivo local da Era
das Revoluções, protegendo-se as hierarquias sociorraciais mesmo que sob
ilegalismos práticos.
10.2. A formação de um liberalismo hegemônico no Brasil (1838-1930)
Na passagem para o Segundo Reinado, há um encadeamento de eventos que
vão circunscrevendo os limites da política por diversas frentes, sem que sejam eles
manifestações das mesmas causas ou passos de um plano arquitetado de antemão. O
era consideravelmente superior ao que se obtinha no Caribe: enquanto no Haiti pré-revolucionário se
produzia aproximadamente 0,22 toneladas métricas/ano por cada escravo, essa taxa chegava a 1,23 no
Brasil pré-Abolição. Com o crescimento da importação de escravos africanos após a abertura dos
portos, o Brasil já atinge predominância indisputável no mercado mundial de café nos anos 1830.
366
chamado “regresso” conservador de 1838, o enfraquecimento das revoltas armadas a
finais da década de trinta, a revisão centralista do Ato Adicional em 1840, o golpe da
maioridade de Pedro II e a derrota dos liberais em 1842 compõem o núcleo da
inflexão. Se ampliarmos um pouco o escopo, seria possível identificar sua gestação já
no Código Penal de 1835, que remetia a escravidão à esfera privada pela doutrina
liberal da propriedade, e sua cristalização definitiva em 1847, quando a criação do
cargo do presidente do gabinete de ministro normaliza a rotina parlamentarista do
sistema político monárquico. O episódio mais saliente desse encadeamento
possivelmente é a antecipação da maioridade do imperador em 1840, inicialmente
conchavada pelos liberais alijados do poder. Uma vez consumado, no entanto, o
restabelecimento da figura imperial concorreu à normalização política sob hegemonia
dos conservadores e seus intelectuais públicos. Essa hegemonia não significava o
controle total ou ininterrupto sobre o aparato de estado, mas a direção política mais
ampla capaz de definir a ordem política e seu contrário (SALLES, 2012).
Como também mostrou Ricardo Salles (2012), o principal eixo desse projeto
conservador, i.e. a plataforma que congregou seus atores e suas agendas, foi a defesa
política da escravidão. De fato já não havia condições para sua sobrevivência
espontânea, inercial. Em 1831 o tráfico internacional de escravos fora oficialmente
abolido por coação britânica e inúmeras fissuras pareciam se abrir no regime durante
o período regencial. Sob pressão, o resgate do trabalho escravo dependia não só de
sua defesa ideológica, mas de uma ampla franja de ilegalismos e omissões que
dependiam da direção de estado.
Para contornar a ilegalidade do tráfico após 1831, a tolerância com o
contrabando de cativos se completava com a ausência de censos nacionais até 1872,
quando entra em vigor a lei do ventre livre (COSTA, 2005). Dessa forma, os escravos
contrabandeados eram, para todos os efeitos, registrados como ladinos178. A
Com a proibição do tráfico intercontinental, os únicos escravos oficialmente aceitos seriam ladinos,
ou seja, nascidos no Brasil. Como a importação seguia ocorrendo ilegalmente, grande número de
escravos no Brasil eram falsamente apresentados como ladinos. A iniciativa estatal de catalogação
demográfica poderia revelar essas fraudes, o que prejudicaria os grandes proprietários e, no limite,
geraria incerteza e crise no mercado doméstico de escravos. É interessante lembrar que, no começo da
década de 1850, uma tentativa de levantamento cadastral da população gerou reações não só dos
latifundiários, mas sobretudo da população liberta receosa de que o registro civil pudesse significar na
prática o retorno à escravidão (a própria lei de 1851 ficou popularmente conhecida como “lei do
cativeiro”). Uma vez mantido o escravismo, os ilegalismos ao seu redor não beneficiavam somente os
ricos proprietários de escravos, mas uma ampla camada de pessoas livres cuja liberdade era, por
diversas razões, insegura pelos critérios legais.
178
367
escravidão se equilibrava na sombra da lei por cumplicidade do poder político, que,
com o Código Penal de 1835, oficializara a regulação cotidiana do trabalho escravo
pelos próprios proprietários. Como doutrina dessa abstenção, recriava-se o
pensamento liberal em uma chave escravocrata (MARQUESE, 2003).
Essa flexão do liberalismo contra o trabalho livre não é uma anomalia arcaica,
como outrora se pensava. De fato, não foram poucas as vozes ilustradas, a começar
por José Bonifácio de Andrada, que advogaram ao estado o papel de ativamente
promover a transição para o trabalho livre (AZEVEDO, 1987: 33-59). Tampouco
esteve o país apartado do liberalismo econômico emergente na Era das Revoluções,
que vinculava indivíduo, interesse e progresso ou, mais rapidamente, comércio e
civilização. Como mostra Marquese (2003), é precisamente sobre esse edifício
ético-político que a defesa intransigente da “segunda escravidão” vai se alojar, tal
qual ocorria no sul do EUA.
Ademais, a reinvenção da escravidão pelo saquaremismo fluminense extraía
força das oportunidades econômicas que prometia: se nas sociedades em
industrialização o estado se incumbira de assegurar a oferta e disciplina dos
assalariados, o estado liberal brasileiro escudava a escravidão para garantir a força de
trabalho adequada à expansão cafeicultora. A rigor, isso não ocorria enquanto na
Inglaterra se produzia a proletarização estudada por Polanyi, mas justamente porque
ela estava ocorrendo, na escala e no ritmo em que estava ocorrendo.
A instituição de um mercado de compra e venda de terras no Brasil é discutida
por iniciativa dos conservadores desde 1842, mas só é definitivamente aprovada em
1850, mesmo ano da suspensão efetiva do tráfico internacional de escravos. Em um
movimento, o governo estipulava a universalização teórica da propriedade privada
sobre a terra e seu próprio monopólio sobre as terras devolutas. O controle sobre os
efeitos dessa reforma estava estreitamente ligado à reprodução interna da escravidão
no campo e à regulação do incipiente mercado de trabalho livre. O poder dos
latifundiários assegura que a mercantilização da terra no Brasil passa ao largo de
qualquer radicalismo agrário, além de cumprir papel decisivo na transição para o
assalariamento na cafeicultura, ao represar força de trabalho sem acesso à terra. A
baixa ativação popular durante a Era das Revoluções fez com que o reformismo
fundiário brasileiro fosse essencialmente maleável aos interesses estabelecidos no
campo, o que não significa exatamente que ele tenha sido “letra morta” (SILVA,
368
2015). Pelo que foi dito na primeira parte da tese, há um conteúdo político inerente ao
hiato entre as formas jurídicas e as práticas que as materializam.
Em outros termos, o projeto saído hegemônico dos conflitos regenciais é mais
denso que um conluio pela preservação da escravidão o quanto mais fosse possível.
Sob a direção da classe senhorial fluminense, o reformismo incide sobre as condições
de reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo que se vinculara ao comércio
internacional no ápice do imperialismo de livre comércio britânico.
Se a tarifa Alves Branco solidificaria a transição fiscal em 1844, ao transferir
decididamente o fardo fiscal para os bens importados, essas importações se
baratearam pela elevação dos preços do café: na década de 1850, os termos de troca
do comércio exterior brasileiro teriam um considerável ganho conjuntural, algo acima
de 50% (BULMER-THOMAS, 2003: 79). Em tal conjuntura, o agenciamento de
estado a esse segmento de lucros extraordinários se torna a ponta de lança da
centralização política. Em 1860, ocorre a primeira reorganização ministerial
brasileira179, cuja tônica foi fortalecer um ramo burocrático de infraestrutura, ferrovias
sobretudo, voltado à integração aos mercados mundiais (RODRIGUES, 2016: 40-44).
Associada às oportunidades fiscais nas aduanas, a decolagem da cafeicultura
também ampara o desenvolvimento de um mercado da dívida pública após 1840. De
fato, o orçamento apresentou curtos interregnos de superávit no Segundo Reinado, o
que inchou cumulativamente a dívida interna. Se até 1840 o governo rolava sua dívida
majoritariamente com a casa de Rothschild em Londres, na década de 1850 o estoque
da dívida externa já é inferior às obrigações denominadas em própria moeda (Tabela
10.3). Embora o fomento às instituições financeiras estivesse no horizonte desde o
período joanino, é só em 1853 que o Banco do Brasil efetivamente entra em operação.
Ao regulamentar as firmas de capital aberto, dissolvendo a estrutura corporativa
precedente, o Código Comercial instituído em 1850 também facilitou a criação de
bancos privados, que adquirem importância crescente na emissão de moeda, pelo
menos até 1866, quando o monopólio de emissão do Tesouro foi restituído por lei
(ABREU & LAGO, 2001: 367). As filiais de casas financeiras internacionais também
iniciam suas atividades nesse contexto, a começar pelo London and Brazilian Bank
em 1862.
Como mostra o diagrama ministerial elaborado por Rodrigo Rodrigues (2016:40), essa primeira
reforma cria a Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, desmembrada do Ministério do
Interior.
179
369
Em termos proporcionais, ainda assim, o pagamento de juros da dívida pública
perde peso com relação à arrecadação nas duas décadas entre 1845 (34%) e 1865
(15%), quando a Guerra do Paraguai desregula abruptamente o orçamento (Tabelas
10.3 e 10.4). Como no caso da Argentina, há um salto no endividamento pelas
exigências de guerra; um único empréstimo contraído em Londres atinge quase 7
milhões de libras, o maior do século, mas não consegue cobrir mais de 15% dos
gastos com o conflito (MARICHAL, 1989: 92-93). O grosso do esforço de guerra é
sustentado pela emissão de moeda, daí sua monopolização em 1866, e pela elevação
astronômica da dívida interna, que vai de 80 mil a 234 mil contos de réis apenas no
quinquênio 1865-1870.
A capacidade de endividamento confere, assim, a elasticidade que faz com que
as exigências galopantes de uma guerra travada a longa distância não produzam uma
implosão política, um travamento social do ciclo de extração e coerção. Pelo contrário,
há fortes indícios de que, sob déficits assombrosos e conflitos frequentemente
violentos, uma ampliação desse ciclo é catalisada pela guerra. Em primeiro lugar,
estando suas fontes afastadas do teatro de guerra, e a economia mundial em franca
expansão, a arrecadação total praticamente dobra de 1865/1866 a 1869/1870, patamar
este que, ao contrário dos gastos, não recuaria com o fim da guerra.
Em segundo lugar, produz-se uma nacionalização da mobilização militar,
engolfando as Guardas Nacionais e as polícias em um contingente inédito de mais de
120 mil combatentes ao longo da guerra. Essa imensa extração humana naturalmente
produziu resistência na medida em que o Exército extrapolava seu antigo perímetro de
instituição penal. Se os despossuídos recorriam às fugas, deserções e mesmo às
revoltas violentas, os fazendeiros se viam lesados pela drenagem de sua força de
trabalho que era também sua propriedade (IZECKSOHN, 2001).
Ao mesmo tempo, o recrutamento deixava uma janela aberta no sistema
escravocrata, análoga, mas mais ampla, ao que havia sido a pena das galés180 desde
1857 (AZEVEDO, 1987: 180-199). Embora o número de escravos libertado para o
serviço militar tenha sido oficialmente baixo, cerca de 4 mil, há forte indício de
180
O Código Criminal de 1835 previa a pena de morte para escravos que atentassem contra seus
senhores, o que foi revisto em 1857, tornando o degredo nas galés a pena máxima oficial. Desde então,
os escravos se valeram desse subterfúgio para escapar ao cativeiro, já que, uma vez condenados, seriam
remetidos às galés imperiais, e não mais mortos. Segundo um delegado paulista da época, os escravos,
quando questionados pelas razões dos crimes, frequentemente respondiam ao juiz que “matei para
servir ao Rei! Matei para sair do cativeiro!” (AZEVEDO, 1987: 196).
370
subnotificação, uma vez que aqueles que conseguiam fugir do cativeiro se alistavam
como libertos (IZECKSOHN, 2015). Ainda, há situações cujo impacto social não é
quantificável, como a decisão do próprio Imperador de libertar centenas de escravos
das fazendas imperiais para o Exército em 1866.
Para impulsionar o recrutamento em escala nacional, diversas fissuras eram
abertas nas hierarquias raciais e, consequentemente, no próprio regime de trabalho
escravo, afetado internacionalmente pela abolição nos EUA em 1863 (IZECKSOHN,
2001; MARQUESE, 2013). No Brasil, o surgimento do movimento abolicionista
(1868) e a Lei do Ventre Livre (1871), aprovada à revelia das províncias do centro-sul,
descongelam o revestimento institucional da “segunda escravidão”, fragmentando o
que havia sido seu núcleo de sustentação política. Essa fragilidade se avoluma por
múltiplas ações rebeldes de escravos em seu próprio local de trabalho, ressucitando o
velho fantasma da revolução negra: “o Brasil”, escreve Silvio Romero em 1883, “não
é, não dever ser, o Haiti” (apud AZEVEDO, 1987: 70).
Em outras palavras, a aceleração do ciclo extrativo-coercitivo sob a pressão da
guerra estremeceria suas bases sociais, o que repercutiu igualmente sobre os arranjos
de autonomia provincial conformados na conjunção crítica. Dohlnikoff (2003) se
esforçou por mostrar que, por trás da aparência de centralização imperial, as
principais províncias conservavam o fundamental das prerrogativas estabelecidas pelo
Ato Adicional, reformado, mas não revogado, pelo regresso conservador. Não
obstante, a ênfase da autora no vigor da autonomia administrativa provincial
institucionalizada entre 1821 e 1840 perde de vista que mantê-la nos limites
constitucionais do Ato Adicional foi precisamente um triunfo do poder central diante
de possibilidades mais radicais aventadas desde 1817181.
Isso dito, é claro que o poder sediado no Rio de Janeiro logrou a unificação
política após 1840 franqueando ampla autonomia de gestão provincial às suas elites
locais, por delegação, omissão ou acordo. Essa autonomia provincial, por sua vez,
Ao comentar a cooptação dessas elites locais, Dohlnikoff diz que elas “passavam assim a se
responsabilizar e a se interessar pela preservação do próprio Estado, constituindo-se como elite política,
com profundos laços na organização socioeconômica regional, mas também comprometida com a
unidade e o Estado nacionais. (...) O jogo político regional passava assim a vincular-se a outro mais
amplo” (DOHLNIKOFF, 2003: 465). Ora, esse jogo político mais amplo, i.e. nacional, estava
vertebrado por um conjunto de instituições (parlamentarismo monárquico, escravidão, religião católica,
Guarda Nacional, aliança com a Inglaterra, as nomeações de presidentes, etc.) que delimitavam a
política regional. A ideia de que essas elites locais passam “a se responsabilizar e a se interessar” pela
preservação do estado é o testemunho efetivo de sua associação subordinada ao projeto hegemônico
articulado pelos saquaremas da capital.
181
371
repercutia no controle direto sobre as instâncias municipais, politicamente esvaziadas
desde o Regimento das Câmaras Municipais aprovado em 1828182. Socavados os
projetos secessionistas ou confederais, o bloco saquarema assegura a Corte como
epicentro político do estado, deixando que os cenários regionais lhe gravitem, com
considerável autonomia prática sobre as decisões de extração e gasto, ameaça e
exceção.
A pressão produzida pelo esforço de guerra entre 1864 e 1870 não acirrou
simplesmente as tensões sociorraciais, mas também os atritos decorrentes desse
arranjo de autonomia provincial. O primeiro sinal de desajuste é o enfraquecimento
legal da Guarda Nacional, cujo oficialato fora o veículo por excelência de
incorporação das elites regionais à estrutura do império. Durante a Guerra do Paraguai,
quase metade dos soldados foram mobilizados por meio da Guarda. Em 1873, no
processo de desmobilização, são retiradas as competências policiais ostensiva da
corporação e, indiretamente, seu papel no controle eleitoral.
Em certa medida, há uma inversão de papeis: enquanto o Exército, até então
uma instituição disciplinar, adquire maior projeção política, a Guarda Nacional, cuja
origem foi fundamentalmente política, perde os instrumentos de regulação da vida
civil (CARVALHO, 1999: 326-338). Na conjunção entre a mobilização militar e a Lei
do Ventre Livre, é rompido em 1872 o silêncio cadastral vigente desde a
independência: o primeiro censo, além da ideologia de progresso subjacente,
implicava uma intrusão administrativa em escala nacional.
Contudo, nos anos 1870 e 1880, o abalo no funcionamento do poder provincial
tinha raiz fiscal. Como vimos, a transferência de competências tributárias para as
assembleias provinciais na década de 1830 adotara um princípio quase federativo, ao
implicitamente lhes conceder a prerrogativa de criar impostos desde que fora da
jurisdição central, que taxava principalmente as importações. Essa vaga linha
divisória foi objeto de constantes atritos legais entre o governo central e as províncias,
cujos subterfúgios para elevar sua receita acabam invadindo indiretamente a
competência da Corte.
182
A estrutura do Ato Adicional não interferiu na condição subordinada das câmaras municipais
perante as assembleias provinciais. Como diz Dohlnikoff: “Orçamentos e posturas eram examinados
[pelas assembleias provinciais] e adquiriam valor legal apenas depois de aprovados por ela. Tanto em
São Paulo, como no Rio Grande do Sul e Pernambuco, os deputados não hesitavam em rejeitar
orçamentos e posturas, impondo alterações e reformulações” (DOHLNIKOFF, 2003: 461).
372
Diante disso, até a explosão da dívida pública durante a Guerra do Paraguai, o
governo central foi relativamente condescendente com os ilegalismos tributários
praticados no resto do país, mesmo que estes implicassem uma sobrecarga fiscal
adversa para uma maior circulação de mercadorias (COSTA, 1998; DOHLNIKOFF,
2003). Essa lassidão administrativa começa a se tornar insustentável com o
endividamento de guerra (Tabela 10.3). É oportuno lembrar que, da mesma forma que
então ocorre na Argentina, a dívida acumulada pelo império é catapultada pela crise
mundial que marca o momento de financeirização da hegemonia britânica em 1873,
mas que afeta também o comércio internacional do qual dependia a arrecadação
imperial.
Após décadas de crescimento sustentado, a receita total tem o primeiro episódio
de grave oscilação, recuperando só em 1878/1879 o patamar de 1871/1872 (Tabela
10.4). Se o pagamento de juros como proporção da receita caíra até 1865, há um salto
no período de guerra que não é revertido nas décadas subsequentes, mas antes o
contrário: dali em diante o pagamento de juros cresce mais rapidamente que a
arrecadação. Como aponta Wilma Costa (1998), o endividamento público nesse
contexto fornece “a peça que falta” para dar inteligibilidade à crescente contestação,
por parte das províncias, do que seria uma excessiva centralização do império: “o
peso da dívida pública interna e externa funciona como uma formidável bomba de
sucção que o serviço da dívida faz operar em direção à Corte e, de lá, para Londres e
para a praça bancária do Rio de Janeiro” (COSTA, 1998: 149). Tal qual em 1827,
Brasil não suspende os pagamentos de sua dívida externa, distribuindo socialmente
seus sacrifícios. Com isso, a disciplina fiscal e administrativa exigida pelo cenário
internacional adverso sufoca a relativa permissividade política que acomodara as
elites regionais desde 1840.
A “formidável bomba de sucção” incide sobre uma situação especialmente
assimétrica no plano nacional: o desenvolvimento da cafeicultura exportadora,
impulsionado pela nova malha ferroviária e pelos preços internacionais ascendentes,
destoava da desarticulação generalizada dos demais complexos exportadores nas
últimas décadas do século XIX, com exceção da borracha no Pará (Tabela 10.5). A
sucção de recursos para o governo central, nesse contexto, pressiona setores
econômicos já em crise no sul e nordeste, cuja força de trabalho escrava estava sendo
exportada em grande quantidade para São Paulo.
373
Por seu turno, os governos provinciais apelavam ao poder central para obter
compensações pela crise da escravidão, abrindo mais uma faceta do estiramento fiscal
dos anos 1870. Sem poder cobrir as diversas demandas sobre seus recursos escassos, a
elite imperial tentou aplacar a insatisfação das províncias com concessões pontuais,
subsídios específicos a ferrovias, engenhos e projetos de imigração que, como um
todo, deterioravam ainda mais os déficits orçamentários (COSTA, 1998: 151-153). A
pressão fiscal nos anos 1870 e 1880 corre subterrânea à maior instabilidade vivida
pelo sistema político imperial entre 1868-1889, interrompido pelo golpe militar de 15
de novembro.
Em suma, fosse pela desestabilização das hierarquias raciais no declínio geral
do liberalismo escravista, fosse pelo atrito resultante da sucção fiscal sobre as
províncias, a conjugação entre desmobilização militar e a crise internacional de
1873-1879 colocou sob pressão a ordem política. O último aspecto que cabe observar
nessa seção é como a resposta a essa pressão foi uma tendência de desdemocratização
da política institucional que anuncia o gradual declínio do “longo século XIX”. Ainda
que inconstante, essa tendência responde aos dilemas postos pela expansão notável do
perímetro de influência do estado brasileiro na vida social, resultante da conexão,
soldada no momento anterior, entre empuxo comercial, endividamento público e
mobilização para a guerra.
Como dito no capítulo 6, ainda em um escopo mais abrangente, esse
fechamento institucional funciona como forma de neutralizar a imprevisibilidade
política do desencaixe social acumulado nos oitocentos. No caso brasileiro, isso tinha
estreita relação com o controle social face à erosão gradual da escravidão até sua
completa extinção em 1888. Ao reconfigurar a fisionomia do poder central por um
arranjo inter-regional de elites, a república federal consegue relançar uma
“democracia para o povo dos senhores” quando já não havia mais escravos. A
desdemocratização não é abstrata, mas relacional; seu transcurso no tempo só é
inteligível se avaliado perante a massa de reivindicações, repertórios e subjetividades
que precisam ser afastados, no extremo à força, do funcionamento ordinário do
sistema político.
O primeiro sinal desse processo se encontra no próprio sistema eleitoral, cuja
reforma de 1881 reduziu drasticamente o número de cidadãos aptos a votar. Até então,
o critério para os votantes primários havia sido unicamente a renda, com valores
374
relativamente baixos e de comprovação bastante informal. Ao instituir o voto direto
para todos os cargos eletivos, a reforma tornou mais rigoroso o critério censitário e
proibiu de votarem os analfabetos, então 85% da população brasileira. Enquanto nas
eleições de 1872 votaram mais de um milhão de pessoas, em 1886 o eleitorado
chegou a pouco mais de 100 mil, 0,8% da população brasileira (CARVALHO, 2002:
38-42).
Essa abrupta contração seria lentamente relaxada durante o período republicano
conforme as elites regionais passaram a exercer maior controle sobre as eleições.
Embora o voto fosse direto, a participação eleitoral passou a ser filtrada, no plano
nacional, pelo mecanismo de concertação entre elites que estabilizara a República. “O
fato da eleição ser decidida previamente às urnas refletiu-se em baixíssimos níveis de
competitividade eleitoral, resultando em desmobilização e apatia políticas”
(VISCARDI, 2001: 80). O comparecimento médio às urnas na Primeira República foi
de apenas 2,65%, lembrando-se que o voto era facultativo desde 1881.
A força do federalismo, como demonstra Cláudia Viscardi (2001), não adveio
de uma aliança rígida entre São Paulo e Minas Gerais (a conhecida política do “café
com leite”), mas em alinhamentos móveis e no revezamento negociado entre os
principais estados da federação. Esse arranjo só se revela maduro a partir da sucessão
de Rodrigues Alves em 1906, após, portanto, os períodos de hegemonia paulista
(1894-1906) e de cesarismo militar (1889-1894). Esse federalismo não era imune às
crises, mas conseguiu administrá-las razoavelmente até 1930.
Sua política não era necessariamente instrumental e subordinada à lavoura
cafeeira, ou seja, não se pode resumi-la à regulação oficial dos preços do café
acordada em 1906. Como mostrou extensivamente Sônia Mendonça, a criação do
Ministério da Agricultura entre 1906 e 1909 serviu na prática para fazer política para
as elites econômicas marginalizadas pelo café, no momento em que o revezamento
negociado no executivo começava a se azeitar (MENDONÇA, 1997). As transações e
contrabalanceamentos que estabilizaram o jogo político republicano se davam em
diferentes âmbitos do aparato de estado, mas sempre no perímetro restrito dos
notáveis, daqueles que se reconheciam como capazes para a tarefa da política.
É óbvio que, para ser possível, essa tendência de desdemocratização delimita
uma definição do que a política é e por quem deve ser feita. Novamente não há ali
propriamente uma descontinuidade com a ordem liberal oitocentista mas antes um
375
enrijecimento tendencial, uma perda de maleabilidade de suas linhas de inclusão e
exclusão. Em parte isso se devia à própria expansão da “fisiologia do estado”, de sua
capacidade administrativa pelas razões que já tratamos. De outro lado, essa definição
da política encontrava afinidade nas filosofias sociais elitistas que conquistam a
minoria letrada na virada do século.
A mais importante delas foi a filosofia positivista adaptada pela Escola Militar
da Praia Vermelha183, que se torna a linguagem da primeira geração republicana.
Como observou Moniz Bandeira (1973: 207), “os republicanos de 1889 imitaram
Jefferson e Hamilton com sotaque de Auguste Comte”. No centro do pensamento
elitista da época estava também o racismo darwinista difundido desde a Escola de
Medicina da Bahia, bem como a nova criminologia cientificista que adentrou o
protocolo das polícias, das prisões e dos manicômios184. Não obstante suas
divergências, as elites republicanas comungavam referências de uma utopia
aristocrática, não raro revestida de urgência, como se fosse tarefa da elite dirigente
proteger o país de seus ímpetos autodestrutivos, da ociosidade, da degeneração racial,
da violência ou das epidemias. Para além do revezamento eleitoral e das transações
sobre o aparato, a coesão do arranjo inter-regional de elites repousava sobre essa
comunhão ético-política que as distinguia do país que governavam.
Por fim, havia o nó fiscal responsável pelo estiramento da monarquia, que o
pacto republicano desatou pela federalização, agora oficializada. Os impostos de
exportação foram legalmente transferidos para o âmbito dos estados, que podiam
taxar também o trânsito interestadual. Em paralelo, os custos da transição para o
trabalho livre passariam a ser administrados a nível estadual, o que também já ocorria
na prática no final do Império.
Com o desenho federativo, a flagrante e crescente assimetria regional passaria a
moldar o poder central, ao invés de esperar-se que este pudesse contrabalançar aquela
183
Como mostra Nogueira (1977), o pensamento positivista irradiado pela Escola Militar da Praia
Vermelha, criada em 1874, destoa da linha defendida pelos chamados Apostólicos, isto é, os discípulos
ortodoxos de Comte cujo expoente maior era Teixeira Mendes. Enquanto os últimos seriam opostos a
qualquer ato de violência, os militares positivistas estiveram profundamente identificados com o golpe
militar de 1889. De forma geral, a crença dos ortodoxos na evolução gradual e pacífica da humanidade
os colocava alheios à política da época, ao passo que o positivismo republicano, menos intelectualista e
ascético, fez da reforma social e institucional seu objetivo prático.
Sobre a influência da criminologia positivista e sua relação com o arcabouço legal da Primeira
República, ver Alvarez, Sala & Souza (2003).
184
376
por seus próprios meios185. Às pressões por recursos se respondeu com concessão de
autonomia, o que podia significar recursos para uns estados, para outros não. Mesmo
para contrair empréstimos internacionais havia autonomia de estados e municípios
fazê-lo sem autorização do governo federal, o que geraria um surto de endividamento
nos anos 1920 (MARICHAL, 1989: 194-200).
Sobre esse arranjo, o desenvolvimento da fiscalidade foi acentuando seus traços
regressivos conforme se expandia, não só em termos regionais mas principalmente
sociais. Embora o valor das importações tenha se mantido estável nos primeiros anos
da República, os impostos arrecadados sobre ele cresceram 120% entre 1890 e 1898,
o que resultou em uma elevação de 200% no índice de custo de vida após o
encilhamento (BULMER-THOMAS, 2003: 109-112). O fundo de estabilização
emergencial contraído em Londres em 1898 faz decolar o endividamento externo da
nova república, que em 1913 comprometia cerca de 60% do gasto público
(FILOMENO, 2006: 57).
Quando a Primeira Guerra Mundial comprimiu as oportunidades fiscais
aduaneiras e o mercado internacional de crédito, a União ampliou a cobrança de
impostos de circulação interna sobre bens de consumo corrente nas cidades, das velas
às bengalas (COSTA, 1998). A mobilização pelo custo de vida, com efeito, seria
fundamental gatilho da incipiente ativação política dos pobres urbanos nos anos 1900,
1910 e 1920. O “controle conservador sobre o Estado”, conclui Wilma Costa (1998:
167), “expressava-se na transferência para os setores assalariados e para a classe
média emergente, dos custos da manutenção da máquina pública”.
Em suma, a tortuosa conquista da abolição da escravatura, resultado de uma
longa mobilização social de âmbito nacional, constituía fatalmente uma medida axial
de democratização da sociedade brasileira, dada sua história pregressa. No próprio
processamento dessa medida, o sistema político respondeu com formas de fechamento
institucional que permitissem controlar vetores de radicalização, que viam na
emancipação chance para um reordenamento mais amplo das hierarquias sociorraciais
e suas bases econômicas. A monarquia, como bem destrincha Lynch (2018), não tinha
Sobre a transição para o regime republicano e federal, pode-se apontar que “muito embora não
tenham se operado mudanças muito radicais, o nível de autonomia concedido aos estados, aliado às
mudanças nos critérios de representação política parlamentar, erigiram um sistema federalista cuja
principal marca foi a rejeição da isonomia entre as unidades federadas” (VISCARDI, 2001: 77; grifo
adicionado).
185
377
razão intrínseca para sucumbir em meio ao processo. Mas sua derrubada militar fez
com que o republicanismo, que afinal dera tração a movimentos democratizantes em
diversos outros contextos do “longo século XIX”, funcionasse então como baliza
ético-política do enrijecimento da ordem política liberal, cada vez mais entrincheirada
ao redor do café, da dívida externa e da pressão extrativo-coercitiva sobre a população
urbana.
10.3. Conjunção crítica II (1917-1945): as ruas, o povo e o desenvolvimento
Nessa seção final, o objetivo é observar a trajetória do Brasil no colapso do
ciclo sistêmico de acumulação liderado pela Grã-Bretanha, mostrando como se
esgotam as vias de reprodução do modelo de formação do estado que, à marcha
forçada, havia sido arrastado desde a crise dos anos 1870. Com isso, os marcos
amplos com que o liberalismo oitocentista havia organizado a política começam a se
desmanchar irreversivelmente, premidos entre uma conjuntura internacional adversa e
uma espiral de contestação social desde baixo. Dessa indefinição da ordem política se
produz uma reorientação forte nos apelos ético-políticos vigentes, na fiscalidade do
estado brasileiro e nas linhas divisórias da proteção e da ameaça. Conforme se
sedimenta, essa reorientação vai sepultando o “longo século XIX”, fechando o
horizonte de possibilidades de sua crise. Na política brasileira, o autogolpe do Estado
Novo em 1937 é possivelmente o marco mais forte para identificar essa inflexão na
conjunção crítica, seu encerramento em formas institucionais resilientes, sua
superação definitiva pelo ciclo sistêmico liderado pelos Estados Unidos.
Em primeiro lugar, o circuito econômico do café atraiu aceleradamente a
economia brasileira para a zona de influência dos Estados Unidos186, cuja organização
social, de resto, havia sido exemplo para o movimento republicano brasileiro desde
1870. Em 1913, o mercado estadunidense já absorve um terço das exportações
brasileiras, muito à frente do Reino Unido (13%), da Alemanha (14%) e da França
(12%) (Tabela 7.3). O fluxo comercial não encontrava coincidência com o de capitais,
ainda dominado pela financeirização britânica; essa triangulação perduraria até a crise
de 1929, quando a referência da libra e da City londrina definitivamente desaparece.
Quando Vargas anuncia a moratória unilateral da dívida externa brasileira, logo após
186
Vale lembrar que, desde 1870, o café brasileiro entrava sem impostos nos Estados Unidos.
378
o autogolpe de 1937, o governo britânico lança apenas palavras ultrajadas em defesa
dos credores lesados. Já o governo dos EUA, imbuídos de sua “política de boa
vizinhança”, consegue retomar os pagamentos em 1939 através de créditos do Exim
Bank, ou seja, atrelando a dívida à expansão do comércio bilateral (MARICHAL,
1989: 194-200).
A atração provocada pela ascensão dos Estados Unidos não se restringia, pois,
ao fascínio por suas instituições ou por sua tecnologia, ou mesmo pela parceria
diplomática tecida pelo Barão de Rio Branco (1902-1912), mas também pelo formato
da relação econômica bilateral: enquanto a diplomacia econômica britânica,
especialmente após a Primeira Guerra, se voltava mais à rolagem e a desgastantes
renegociações sobre a dívida acumulada, com um comércio bilateral cronicamente
desequilibrado contra o Brasil, os Estados Unidos forneciam então superávits
imprescindíveis pela abertura de seu mercado ao café, além da exportação de novos
capitais. Durante a Primeira Guerra, os Estados Unidos tomam espaço também na
pauta de importações brasileiras, em um movimento generalizado então na América
Latina (Tabela 7.4).
A Primeira Guerra também teve um impacto positivo sobre a industrialização
substitutiva no Brasil, o que fez com que o número de operários industriais urbanos
no país chegasse a 275 mil em 1920, praticamente o dobro do começo década
(CARVALHO, 2002: 58). Embora a agitação operária tenha despontado ainda nos
últimos anos do século XIX, e suas primeiras organizações de grande escala surgido
na primeira década do século XX, verifica-se um pico histórico de greves no país
entre 1917 e 1920, cuja força põe no horizonte de possibilidades a regulação da
jornada de trabalho, a segurança laboral e a indenização em caso de acidentes, o
direito a férias e o reconhecimento da autonomia sindical (COLLIER & COLLIER,
2002: 68-72).
Com efeito, as cidades industriais do centro-sul do país se colocavam no mapa
dos movimentos anarquistas que tiveram na imigração seu principal veículo de
internacionalização. Em 1922, parte desses militantes de formação anarquista forma o
Partido Comunista Brasileiro, cuja influência no mundo sindical cresceria de forma
expressiva até 1930. No mesmo ano, um grupo de jovens oficiais nacionalistas tentam
depor o governo no fracassado levante no Forte de Copacabana no Rio de Janeiro. No
segundo aniversário da revolta do Forte, militares tenentistas protagonizam uma
379
revolta de maior escala no estado de São Paulo, cuja capital sofre bombardeio aéreo
pelo governo federal. Já no final dos anos 1920, esses novos movimentos políticos
ecoam também no mundo rural por meio da Coluna Prestes e do Bloco
Operário-Camponês, este último ligado ao PCB.
Em meio à turbulência sistêmica, esse ciclo multiforme de contestação política
na virada para os anos 1920 permite distinguir no Brasil a abertura da crise terminal
do “longo século XIX”. Ao contrário do México e da Argentina, onde determinados
eventos são fortes o suficiente para demarcar essa abertura, no caso brasileiro ela
ocorre de forma menos unívoca, mais inconstante. Como notou Viscardi (2001), ao
longo da década de 1920 o próprio sistema de revezamento de elites vai sofrendo
avarias por intentos hegemonistas de certos estados, em uma fase de “progressivo
esgotamento do modelo sucessório, estabelecido a partir da sucessão de R. Alves, em
1906” (VISCARDI, 2001: 75). As oportunidades políticas, nesse sentido, acabam
alargadas em situações de maior polarização interna do pacto de elites, como foram as
eleições de 1922 e 1930.
De forma geral, a resposta institucional à ebulição política dos anos 1920 estava
atrelada ao enrijecimento das linhas de inclusão e exclusão pelo arranjo republicano:
de um lado, pela tentativa de anulá-la através de uma escalada da repressão social; de
outro, porque o reformismo social até 1930 tem pouca densidade187. Seus resultados
práticos são poucos à exceção da Lei Eloy Chaves de 1923, que trazia para a órbita do
estado as caixas mutuais que os operários organizavam até então de forma autônoma.
Com relação à escalada de repressão, a trajetória é bastante clara: à violência usada
contra as greves de 1917-1920 seguiu-se um governo baseado no arbítrio da exceção
(o quadriênio de Arthur Bernardes é quase todo conduzido sob estado de sítio),
culminando, em 1927, com a chamada Lei Celerada, que criminalizou extensivamente
os movimentos sociais operários e militares, em particular seus veículos de imprensa
e agitação. Sem movimentar suas linhas de exclusão política, o governo intensificava
Em 1919, o governo decidiu responsabilizar legalmente os patrões pelos acidentes de trabalho, mas
a previsão dependia de tramitação na justiça comum, o que dificultava o acesso dos trabalhadores pelos
recursos exigidos ou pela parcialidade indiscreta dos juízos. Em 1923 o governo criou o Conselho
Nacional do Trabalho, que não adquiriu maiores funcionalidades práticas. A Lei Eloy Chaves
estabeleceu pela primeira vez um sistema público de previdência social, inicialmente voltado para os
trabalhadores ferroviários, mas rapidamente estendido a outras categorias. Ao contrário das caixas
mutuais anteriores, as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) eram organizadas não por
categorias, mas por empresas, previam a contribuição compulsória do empregador e eram fundos com
representação tripartite, administrados pelo estado (SANTOS, 1979).
187
380
o policiamento contra subjetividades e práticas tidas como contrárias à ordem pública,
dos operários aos capoeiras, das greves às religiões extraoficiais.
A crise que derrubaria a Primeira República, contudo, adveio de um litígio no
mecanismo de revezamento de elites regionais: diante da perspectiva de São Paulo
hegemonizar a federação, como se percebia a eleição de Júlio Prestes em 1930, os
estados secundários liderados pelo presidente do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas,
recorreram a um golpe de força com apoio militar. No que fora um movimento para
preservar o equilíbrio da federação se deslizou para uma plataforma de reformas mais
profundas, conforme se delineava um discurso negativo sobre o regime republicano,
tido agora como oligárquico, corrupto e ultrapassado.
Com a tomada do poder por Vargas em 1930, a reconstituição da ordem
oitocentista já não era possível. Há alguns traços de aparente continuidade, como a
política de estímulo aos preços do café pelo estado, agora ativada como política
contracíclica e emergencial nos anos 1930 e financiada por créditos públicos188.
Igualmente, a sustentação política inicial de Vargas não difere fundamentalmente dos
compromissos pactados entre elites estaduais. No entanto, a meta do desenvolvimento,
que emerge como novo imaginário de ordem, implica um deslocamento dessas balizas.
Naquela conjuntura, o sistema mundial vivia o ápice de sua crise de governabilidade,
o que oferecia considerável margem de autonomia para a hetedoxia do novo governo.
Com a criação do Estado Novo, essa autonomia seria também imposta internamente.
Do pacto de dirigentes estaduais que sustentou a tomada do poder em 1930, Vargas
vai solidificando um tripé de âmbito nacional: os trabalhadores urbanos e o
empresariado, atrelados por entidades representativas, e a corporação militar, cujo
viés anti-oligárquico fora incensado pelo tenentismo.
Para observar a emergência desse projeto de ordem, vamos observá-lo a partir
de seus dois campos cruciais: o desenvolvimento e a nação. O desenvolvimento
correspondia a um novo horizonte de regulação econômica contrário à autorregulação
de mercado, posicionando o estado na articulação política entre a industrialização
capitalista, a legislação social e o mundo sindical. Isso significava movimentos
correspondentes nas linhas divisórias entre proteção e ameaça, entre ônus e bônus
fiscais. A organização operária não poderia mais ser respondida unicamente com
Essa prática é conhecida desde Celso Furtado na historiografia econômica brasileira como um
“keynesianismo antes de Keynes”.
188
381
criminalização; a arrecadação não dependeria unicamente de impostos sobre o
consumo popular; a evolução da indústria nacional, tema caro aos tenentistas que
aderiram a Vargas, exigiria contramercados garantidos pelo estado.
Uma dos primeiros sinais de descontinuidade é a criação, em 1930, do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e do Ministério de Educação e Saúde,
que colocaram a política social, pela primeira vez, no organograma ministerial
brasileiro (RODRIGUES, 2016: 36-51). Logo nos primeiros meses do governo
provisório de Getúlio, o interventor nomeado para São Paulo, Lins e Barros, sinalizou
a favor de pautas trabalhistas no estado: a exigência do interventor de 5% de aumento
salarial e jornada de 40 horas semanais – em meio à crise que desocupara quase
metade da capacidade instalada na indústria paulista – radicalizou a oposição do
empresariado até a revolta armada do estado contra o Catete em 1932 (WOLFE, 2014:
86).
Ao longo da década de 1930, o estado brasileiro foi ocupando mais claramente
um espaço intermediário nas relações entre capital e trabalho, no que, com o Estado
Novo, se tornaria, de jure e de facto, uma estrutura corporativa de mediação de
interesses. A sindicalização se torna uma política oficial de estado: as reuniões,
instalações e princípios do sindicato eram projetadas como sociabilidade básica dos
trabalhadores urbanos, bem como uma via de acesso a seus direitos políticos e sociais.
Essa política teria como vetores o imposto sindical obrigatório, a Comissão de
Enquadramento Sindical e a Comissão Técnica de Orientação Sindical, a CTOS
(GOMES, 2005: cap. 6). Como mostra Ângela de Castro Gomes, o salto quantitativo
da sindicalização ocorre só entre 1942 e 1943, quando a máxima operação da CTOS
converge com a instituição da CLT, primeira legislação geral do trabalho no país. Ao
cabo de uma década, forma-se um pilar de sustentação do estado brasileiro no
trabalho urbano organizado, o que seria impensável e inexequível para as elites
políticas do século XIX.
Esse alargamento das linhas de inclusão política discriminava uma cultura do
trabalhador honesto, nacional, disciplinado e organizado por sindicatos tutelados, na
qual se franquearia proteção e direitos sociais, de todos os comportamentos tidos
como potencialmente perigosos, como a militância comunista ou a malandragem
desregrada. Não à toa, a inclusão política dos trabalhadores ocorre principalmente
após 1937, quando o estado de exceção permite sufocar a influência comunista, ou
382
seja, assegurar o controle estatal sobre a sindicalização. Outra linha divisória
fundamental foi a exclusão dos trabalhadores rurais. Uma vez que o sistema
corporativo não vinculava o campesinato, não havia vetores de nacionalização da
disputa política no campo, no qual amplas margens de arbítrio eram ainda admitidas
ao poder local. Enquanto as relações industriais passaram a ser objeto de intervenção
e regulamentação estatal, sendo regidas no plano nacional, o trabalho no campo
permaneceu fora do perímetro da cidadania.
A criação de uma legislação trabalhista foi revestida por um discurso de
concessão magnânima. Ao invés de “cruentas reinvindicações populares para fazer o
progredir o Estado”, dizia o ministro do trabalho em seu programa de rádio, a
melhoria da condição dos trabalhadores no Brasil “provém da sabedoria do Estado e
da clarividência das leis, para fazer progredir o povo” (apud GOMES, 2005). Esse
imaginário de harmonia deliberadamente exclui de sua história o formidável ciclo de
luta popular por direitos que arranca no período 1917-1922. A figura paternalista de
Getúlio é manipulada para obliterar o vínculo entre a mobilização subalterna e a
conquista de direitos. No entanto, se mantemos o olhar posto no movimento de
abertura e fechamento dessa conjunção crítica, fica nítido que “foram essas lutas que
geraram, sob uma ditadura implementada exatamente para contê-las, a primeira
legislação geral do trabalho” (FONTES, 2010: 316).
O reordenamento corporativo da questão social executa, assim, uma
apropriação seletiva de aspirações, atores e utopias revolvidas na crise da ordem
oitocentista. Ao fazê-lo, institucionaliza uma novo formato da arena política
(representação funcional), um apelo ético-político (desenvolvimento nacional) e uma
redoma de pertencimento (cidadania regulada). Um processo análogo ocorre do ponto
de vista do imaginário nacional, cuja produção desde o estado se torna crucial no
período varguista.
Essa apropriação incide sobre uma disputa prática em curso nos anos 1920 e
1930 sobre o significado da nação, sobre o sentido de resgatá-la das amarras do
passado. O declínio do positivismo e do racismo científico abriram um terreno de
indefinição sobre a matriz nacional no qual incursionaram o modernismo, o
comunismo e o integralismo, para ficar apenas em exemplos abrangentes. A
efervescência da nacionalidade no pensamento social brasileiro do período era
implicitamente uma controvérsia sobre as linhas de pertencimento político, sobre o
383
que era digno de proteção e o que era uma potencial ameaça para a cultura da nação.
De um lado, os próprios termos da polêmica sinalizam a obsolescência do edifício
ético-político do século XIX; de outro, o leque de perspectivas dá o tom da
indefinição do presente.
O que se processa sob Getúlio é a definição desse novo imaginário nacional por
meio de saberes e políticas de estado, criando mecanismos de persuasão política
adaptados a uma sociedade de massa. Para que haja um movimento das linhas de
inclusão e exclusão política com consequências reais, produz-se determinadas
especializações e ramificações do aparato de estado. Por exemplo, nos anos 1930 o
governo Vargas desloca a ênfase na imigração estrangeira, já em declínio, para uma
valorização da migração interna proveniente do nordeste, ressignificado como um
repositório da brasilidade. Para a consecução da política foram criados o
Departamento de Povoamento (1930) e o Departamento de Imigração (1938), além da
promulgação da Lei dos Dois Terços em 1931 (que obrigava as empresas nacionais a
contratar pelo menos 2/3 de trabalhadores brasileiros) e das quotas migratórias
estipuladas pela Constituição de 1934. A questão da força de trabalho se imiscuía com
a segurança e com a cultura nacional. Assim, ser um “trabalhador brasileiro” não era
simplesmente uma retórica de apelo popular, mas uma condição que tinha
consequências palpáveis para aqueles que nela se encaixavam, em função de políticas
específicas orientadas por esses critérios.
O mesmo ocorre com a promoção de cultura popular. É óbvio que a
nacionalização de determinados signos culturais envolve diversas partes que não são
propriamente estatais, desde os artistas até a difusão comercial do rádio nos
domicílios. Mas ela passou decisivamente pela operação de órgãos especializados,
como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)189, o Serviço de Recreação
Operária ou a burocracia do Ministério da Educação e Saúde sob Gustavo Capanema.
As novas searas de atuação do estado brasileiro acarretavam tarefas de censura,
educação pública, censos e fomento artístico que se cristalizavam em novos ramos de
aparato governamental. Nesse contexto, de resto, é criado o Departamento
Administrativo do Setor Público (DASP/1938), voltado à profissionalização dos
quadros da gestão pública. Por trás da ressignificação da nação ou do povo brasileiro
O Departamento de Imprensa e Propaganda foi criado em 1938, mas o primeiro órgão especializado
em comunicação social foi criado já em 1931.
189
384
pelo governo Vargas estava a interiorização e adensamento do aparato governamental.
O Código Nacional de Trânsito, instituído por decreto em 1941, seria uma das
primeiras leis feitas no Rio de Janeiro que teve consequências reais no conjunto do
território brasileiro (WOLFE, 2016: 92).
Em termos políticos, uma nacionalização correspondente se efetiva na disputa
partidária por meio das agremiações gestadas por Vargas (PTB e PSD) e daquela que
lhe faz oposição (UDN). O PTB encarna o pilar sindical e urbano do varguismo,
enquanto o PSD reúne lideranças empresariais e regionais, com força no interior. A
competição eleitoral nasce então moldada pela revolução pelo alto conduzida entre
1930 e 1945, que, para reassentar bases novas de sustentação política, precisou levar a
novo patamar o desencaixe da vida política de seus contextos locais e regionais.
Levado
a
cabo
esse
reordenamento,
o
equilíbrio
entre
o
programa
nacional-desenvolvimentista e a democracia eleitoral não era impossível, mas se
tornaria objeto de um jogo instável.
Convêm algumas palavras de síntese. Na conjunção crítica entre 1820 e 1840,
como vimos, a reinvenção liberal da escravidão permitira o rápido deslizamento de
submetrópole imperial à inserção periférica no novo ciclo de acumulação. A
propulsão do ciclo extrativo-coercitivo acabou por abreviar a crise política,
cadenciada por modulações da legitimidade monárquica de 1808 a 1831. Esse
abreviamento, por sua vez, diminuiu a extensão do abalo às hierarquias sociorraciais
herdadas do colonialismo.
Na gradual transição da órbita britânica para o ciclo sistêmico liderado pelos
Estados Unidos, é possível distinguir uma série de deslocamentos associados na
sociedade brasileira: do Rio de Janeiro a São Paulo, da monarquia à república, do
trabalho escravo ao trabalho livre. O Brasil perde importância para a geoeconomia do
império britânico e vice versa. Quando a crise de governabilidade mundial atinge seu
pico nos anos 1930, é pelo autoritarismo de simpatias fascistas que Vargas completa a
transição para os trilhos do “longo século XX”, em que a autorregulação de mercado é
suplantada pela utopia do desenvolvimento como capitalismo regulado.
385
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 5 de julho de 1969, a revista do Partido dos Panteras Negras nos Estados
Unidos trazia um texto curto chamado “O fascismo é” (SAMYN, 2018: 277-278). Em
uma sucessão de cenas secamente descritas, o texto por inteiro forma o quadro que
completa seu título: “Porcos fardados correndo furiosamente nos guetos negros,
espancando, assediando, intimidando e assassinando”. Na frase sequinte, uma torção:
“Isso se torna Fascismo Constitucional quando Porcos Chefes e Comissários vão para
estações de rádio e TV, dizem frases vazias sobre ‘Lei e Ordem’ (...)”. Em poucas
palavras, o texto enseja o que seria a sua arrebatadora frase final: “O fascismo é a
América”.
Entre os anos 1950 e 1960, os Estados Unidos institucionalizaram o estudo
científico da democracia, modelando-a em seu próprio regime representativo. A
Ciência Política como a conhecemos foi gestada nesse ambiente. A democracia na
América, idealizada pelos fundadores da República no século XVIII, era o contrário
lógico dos regimes autoritários, fossem eles comunistas ou nazifascistas. Por
definição, a democracia congrega a participação livre das pessoas comuns através de
eleições, e as elites políticas estão controladas pelo voto popular e por freios e
contrapesos institucionais. Há um senso prevalecente do que a realidade é, no qual o
fascismo é a antípoda dos Estados Unidos da América.
Para os Panteras Negras em 1969, o fascismo não se expressava em grandiosas
marchas nacionalistas como na Alemanha ou na Itália, mas pela execução de uma
política silenciosa de massacre da população negra sob uma fraseologia constitucional.
Para os descendentes dos escravizados nos Estados Unidos, a política funcionava na
prática não como democracia, mas como “Fascismo constitucional”, uma produção
institucional de medo, racismo e segregação. O “fascismo é a América” porque ele “é
o demagogo, preto ou branco, que encoraja guerras raciais para resolver problemas de
classe”. Espalhando pânico e violência em “Detroit, Harlem, Watts, Vietnã e Porto
Rico”, os fascistas “então fazem longos discursos sobre como eles odeiam a onda
crescente de violência”.
O que atravessa a denúncia é a indignação e a revolta contra a forma como a
violência está organizada na prática, quem são seus alvos, quais são seus métodos e
suas justificações. Por trás das incursões violentas dos “porcos fardados”, existe uma
386
construção política do que é uma ameaça que precisa ser neutralizada. Para fazê-lo as
autoridades “bombardeiam o povo com estatísticas flexíveis sobre ‘áreas de alta
criminalidade’ que são, na verdade, os guetos pretos”. Com isso, sem volteios
retóricos ou prosa tratadística, o texto contesta radicalmente a fronteira do que precisa
ser protegido, que, já o sabemos, é uma das formas mais profundas de indignação
perante a autoridade. Ao falar de raça e de classe, desvela-se uma seletividade
informal do uso da coerção, com o intuito de criminalizar a pobreza e a negritude.
Lutar contra o comunismo no Vietnam ou contra a criminalidade nos bairros
negros dos Estados Unidos é, portanto, uma linha ultrajante de separar a proteção da
ameaça. Para dizê-lo, os Panteras Negras torcem e invertem o imaginário hegemônico
de democracia no país. O texto não diz simplesmente que a violência policial precisa
parar. Há uma disputa pelo significado ético da violência, que é inseparável da forma
como se compreende a realidade em que ela ocorre. A violência usada contra os
policiais, aponta o texto, é chamada “de anarquia, ou comunismo, ou fascismo”, ao
mesmo tempo em que “chamam a violência contra o povo de ‘lei e ordem’”.
Os signos com que a ordem política estadunidense aspira representar o mundo
estão invertidos, subvertidos. Se a violência contra o povo é escamoteada como “lei e
ordem”, não estamos na antípoda do fascismo. Os contrários não se excluem. Há
“democracia” e “fascismo constitucional” na mesma realidade, porque há uma disputa
política por seu sentido. Por assumir que não há razão necessária para que as coisas
sejam como são e continuem assim, o dissenso incuba um horizonte alternativo e
subalterno de ordem política.
O texto resenhado até aqui não foi escrito na América Latina nem no “longo
século XIX”, e tampouco a tem como tema. Ainda assim, ele consegue em poucos
parágrafos ilustrar o que dissemos sobre a construção social da ordem política como
um processo de conflito. Como mostramos em diversas oportunidades, a importância
do conceito começa quando ele deixa de ser a mera sublimação da desordem, da
violência, do caos. Assume, ao invés disso, um conflito amplo em torno dos
parâmetros de ordenamento social, no qual é definida inclusive a noção mesma de
desordem, de crime, de subversão, de conspiração. A vigência de uma ordem política
aspira naturalizar determinados critérios de distinção para a realidade, como entre o
fascismo e a democracia, interpretando o mundo de modo a que essas linhas sejam
necessárias, inevitáveis, justas ou legítimas. Pensar a democracia estadunidense em
387
1969 como “Fascismo constitucional” é uma forma de observar a ordem vigente pelo
prisma de sua contestação (capítulo 1).
Ao pensar sobre a construção da ordem política na América Latina do século
XIX, tentamos propor uma abordagem que não se limitasse a concatenar os
indicadores usuais, como a captação de recursos fiscais, o ganho de escala dos
exércitos, a diferenciação dos ramos burocráticos. Para não reificar a própria ideia de
“estado”, consideramos que a construção da ordem engloba um confronto sobre o
próprio sentido do processo. Na oratória de um padre de uma localidade do interior,
na reunião dos vizinhos de uma municipalidade, no jornal operário que circula em
uma grande cidade, na conspiração de um golpe de estado, na revolta de uma
província que se pretende autônoma, no aparte de um parlamentar e em outros
inúmeros cenários onde a disputa foi travada, a conteúdo mesmo da relação entre
governantes e governados foi tensionado, refraseado, subvertido.
Contudo, como disse certa vez Pierre Bourdieu (2014), a história mata os
possíveis, o que vale para a construção histórica de uma ordem hegemônica sobre
suas alternativas. Ao iluminar possibilidades exterminadas no percurso, estamos em
melhores condições para desnaturalizar o processo tal qual ele ocorreu. Nesse quadro,
buscamos definir uma tendência nos termos postos pela Pergunta 1: o que significa
dizer que há uma tendência à concentração da vida política em torno a um estado
moderno? Usando os termos explicados ao longo da tese, significa dizer que a
reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo tem como subproduto um processo
de desencaixe da política de seus contextos locais e regionais (Gráfico 5.2).
Como vimos, na conjunção crítica das independências, houve uma tendência de
retroversão da soberania a espaços municipais e provinciais, que abria o espectro de
possibilidades de realização da política nesses diferentes contextos (capítulo 4). Com
o esgarçamento dos impérios ibéricos, afloraram imaginários discrepantes de como
organizar, no tempo e no espaço, as relações de dominação política, que encontravam
vazão pela proliferação de reivindicações de autonomia local. Ao longo do século, o
espaço para essa autonomia foi sendo constrito. O desenraizamento da vida política
fez com que ela ficasse mais atrelada a referências remotas oriundas do poder central,
distanciada de seu entorno imediato e presencial. A resolução de conflitos, a gestão da
vida coletiva e o exercício da autoridade dependem crescentemente de nomeações,
regras e recursos que são processados por uma organização política de maior escala.
388
Os funcionários, a arrecadação e os ramos burocráticos operam como intrusões à
autonomia local, adensando os canais de integração com as circunstâncias da disputa
política nacional.
A pergunta 2 se indagava pela explicação do processo na América Latina. Para
tal, a tese buscou encadear dois processos em uma reação autocatalítica, isto é, uma
reação cujos produtos funcionam como catalisadores dela própria. Esses dois
processos são a autoconstrução dos estados pós-coloniais latino-americanos e o ciclo
sistêmico de acumulação liderado pelo Império Britânico. Como foi extensivamente
tratado, um terreno de benefícios recíprocos entre estadistas e capitalistas é soldado
por meio das receitas aduaneiras e da produção estatal de mercadorias fictícias, a terra,
o trabalho e o dinheiro (Gráfico 5.1). A rigor, não havia um deus ex machina na
produção da regulação de mercado, pois não há uma exterioridade propriamente dita:
a musculatura administrativa exigida pelo reformismo liberal era ela própria um
resultado da inserção periférica na economia mundial. Por assim dizer, o estado fez o
mercado enquanto o mercado fazia o estado. Formam-se ali as condições para a
reprodução ampliada do ciclo extrativo-coercitivo, a qual alivia as pressões sociais
sobre sua seletividade prática (Gráfico 1.2). Esse foi o caminho para a prevalência do
liberalismo no século XIX.
Por fim, a tese se perguntava sobre a posição das experiências
latino-americanas diante da reflexão eurocêntrica estabelecida sobre o tema. O
primeiro passo para tal foi a discussão do capítulo 3, que descartou uma saída pela via
da substituição de importações intelectuais. Não se tratava, pois, de rechaçar a
literatura unicamente por sua posição de enunciação, mas de pensar estratégias para
subvertê-la desde um ponto de vista periférico. Como foi dito na introdução, a
formulação da agenda de pesquisa tem origem em estudos eurocêntricos, mas não
irrelevantes. Ao refazer as conexões que o eurocentrismo havia invisibilizado, pondo
no centro o colonialismo e o capitalismo como fenômenos mundiais, a sociologia do
estado não podia simplesmente assimilar “novos casos” sem refazer suas fundações.
Assim, para superar seu viés modernizador, a sociologia histórica latino-americana se
insere em um movimento mais amplo de reconstrução conceitual, “provincializando a
Europa”.
Nesta tese, as duas categorias fundamentais para operacionalizar esse
movimento foram de estado pós-colonial e de estado na periferia (capítulo 3). A
389
primeira assimila o colonialismo moderno como vetor de extroversão do sistema
mundial pela negação de soberania, engendrando espaços imperiais estratificados. A
constituição de um novo estado é uma saída possível para o confronto político no
interior desses espaços imperiais, movendo a linha de reconhecimento da soberania
como igualdade formal. Realizada essa separação, um estado pós-colonial se constitui
como retroação, ricocheteio, rebatimento do vetor de expansão imperial do sistema de
estados.
Na
superfície,
no
entanto,
ex-metrópoles
e
ex-colônias
acabam
indistintamente reconhecidas como “estados soberanos”, ou mesmo como novos e
velhos estados. Essa equiparação resulta do apagamento de conexões históricas
coloniais (capítulo 2).
A ideia de estados modernos na periferia também busca contemplar um
desenvolvimento desigual do sistema mundial, sublinhando que a mobilização de
capital e coerção não é insensível às assimetrias existentes na economia mundial. Isso
não precisa necessariamente levar a um determinismo econômico estreito, que
presume uma coincidência regular entre os traços da política institucional no centro e
nas periferias. Em escala sistêmica, cada ciclo de acumulação corresponde a um feixe
de cadeias de valor que vinculam de forma específica cada localidade, cada região,
cada estado. Isso envolve a espacialização de formas diferentes de trabalho, de
apropriação do excedente, de interação com a natureza. Ao colocar em primeiro plano
o desenvolvimento desigual entre centros e periferias, a categoria advoga que a
formação de estados precisa ser compreendida no contexto de um sistema mundial
que não é homogêneo, nem no tempo, nem no espaço (capítulo 2).
Como os estudos de caso detalham (capítulos 8, 9 e 10), essas duas categorias
são relacionais e históricas, portanto heterogêneas. Mais do que uma regra
determinista, que permite inferir traços regulares em todos os casos, a abordagem
exige uma costura empírica própria a partir das injunções da trajetória observada. Em
outras palavras, a “dimensão imperial da política” e a “inserção periférica no ciclo de
acumulação” não têm conteúdo dado de antemão, mas precisam ser investigados no
entrelaçamento específico de eventos e processos que transcorrem sob determinadas
condições iniciais.
Esse parece ser o caminho mais promissor para contrapor o viés modernizador
que a sociologia política normaliza a história latino-americana a modelos
eurocêntricos de desenvolvimento. Não podemos retirá-la desses modelos sem
390
desintegrá-los. A tese aposta que é possível desintegrá-los sem que isso nos deixe sem
qualquer teoria. Mais do que isso, a sociologia histórica, posta contra o eurocentrismo,
pode contribuir para reconstruir uma teoria crítica do estado a partir de seus processos
de formação.
À luz do que já foi dito, cumpre reavaliar a posição desta pesquisa em seu
contexto intelectual. Por um lado, é possível apontar direções pelos quais ela possa ser
melhor desenvolvida para além da tese. Uma dessas direções de grande potencialidade
seria sofisticar o emprego do método comparado, articulando estes ou outros estudos
de casos em um desenho mais rigoroso. Por sua explícita afinidade com a análise de
sistemas mundo, uma ferramenta metodológica útil seria a “comparação incorporada”
(MCMICHAEL, 1990; 1992). Ademais, uma comparação potencialmente fértil
ampliaria o escopo para além da América Latina, aquilatando as categorias de “estado
pós-colonial” e de “estado na periferia” em outros contextos. Essa via permitia
fortalecer o diálogo da sociologia histórica com as novas historiografias
anti-eurocêntricas, algo que esta tese apenas arranhou a superfície.
Um segundo caminho promissor parece ser a manipulação de novas escalas
espaço-temporais. Por exemplo, a certa altura da tese, o vilarejo de Buriticá foi
mencionado para ilustrar um fenômeno bastante amplo da crise do Império Espanhol,
em que os indígenas dessa localidade manusearam diferentes linguagens políticas para
resguardar-se do ativismo republicano do governo provisório criado em Antioquia. O
caso foi mobilizado por essa ocasião e em nenhum momento retomado. No entanto,
outro desenho de pesquisa, com uma ênfase historiográfica mais robusta, poderia
tomar essa localidade como ponto de referência para observar o desencaixe da vida
política e suas resistências ao longo do século XIX. Esse aprofundamento não
necessariamente invalidaria o que se disse no âmbito das grandes escalas espaciais,
mas demandaria uma nova tessitura de processos e eventos, com consequências
potencialmente reveladoras.
De forma mais geral, essa pesquisa se insere em um movimento de resgate da
sociologia histórica como campo de pesquisa no Brasil. Nos anos 1970 e 1980, o
influxo da literatura norte-americana recolocou em pauta a discussão sobre processos
políticos em grandes escalas, distanciando-se da tradição ensaística da primeira
metade do século (REIS, 2015). A paulatina rearticulação atual dessa agenda de
391
pesquisa certamente não obedece aos mesmos parâmetros daquele contexto, mas suas
recomensas são também novas.
Além disso, a pesquisa se afilia às tentativas de atualizar o pensamento crítico
latino-americano dos anos 1960 e 1970 como plataforma para uma teoria social desde
as margens (BRUCKMANN, 2001: cap. 3; DOMINGUES, 2008). Revisita o
argumento do desenvolvimento desigual do ponto de vista da sociologia política,
refazendo a aposta em uma ciência social integrada, híbrida e interdisciplinar. Em seu
momento, tanto a sociologia histórica anglo-saxônica como o estruturalismo
latino-americano foram pivôs da crítica às teorias da modernização, desidratando o
que havia sido um paradigma científico dominante. Diante do que hoje desfruta de
prestígio e circulação nos estudos latino-americanos, a retomada contemporânea
dessas correntes oferece vitalidade criativa para enfrentar o desafio de um
conhecimento social anti-eurocêntrico, seja na forma de uma “reconstrução
pós-colonial de conceitos” (BHAMBRA, 2007; 2014), de uma “convergência teórica”
entre a crítica pós-colonial e a teoria social clássica (KNOBL, 2016), ou de um
necessário “movimento instituinte” na teoria social periférica (BRINGEL &
DOMINGUES, 2015). É em tal contexto que o argumento se coloca.
392
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ANEXOS
Tabela 4.1. Evolução comercial das grandes potências, 1720-1820 (total, em
milhões de libras esterlinas)
1720
1750
1780
1800
Grã-Bretanha
13
21
23
67
França
7
13
22
31
Espanha
10
14
18
12
Portugal
2
3
4
4
Países Baixos
4
6
8
15
Alemanha
8
15
20
36
Rússia
8
14
17
30
Europa (outros
países)
62
103
137
228
Fonte: BLACKBURN, 1998: 381. Notar que “comércio” é a soma de importações e exportações,
incluindo re-exportações; o último composto por quase metade do comércio de alguns estados
importantes nesse século, como a França. As figuras são dadas em termos de valores atuais da libra
esterlina; entre 1713/16 e 1750 os preços declinaram cerca de 10% na Grã-Bretanha, enquanto que na
última metade do século eles subiram mais de um terço (BLACKBURN, 1998: 381).
Tabela 4.2. Transferências fiscais do Reino de Nova Espanha (1720-1799)
Períodos
(5 anos)
Situados para o
Caribe (mil pesos)
Envios à Espanha
(mil pesos de prata)
Total
Situados
(%)
Espanha
(%)
1720-24
4.449
3.234
7.733
58,17
41,83
1725-29
3.085
3.059
6.144
50,21
49,79
1730-34
4.197
5.106
9.303
45,11
54,89
1735-39
4.656
4.373
9.029
51,57
48,43
1740-44
6.912
1.690
8.603
80,35
19,65
1745-49
8.959
4.532
13.492
66,41
33,59
1750-54
5.617
4.988
10.605
52,97
47,03
1755-59
10.287
7.186
17.474
58,87
41,13
1760-64
12.490
4.375
16.865
74,06
25,94
1765-69
12.415
1.962
14.377
86,35
13,65
425
1770-74
15.239
5.895
21.134
72,11
27,89
1775-79
19.299
8.455
27.755
69,54
30,46
1780-84
39.182
6.644
45.827
85,50
14,50
1785-89
22.466
9.911
32.378
69,39
30,61
1790-94
23.185
24.323
47.509
48,80
51,20
1795-99
24.118
18.850
42.696
56,13
43,87
Fonte: MARICHAL (2007: 269).
Tabela 4.3. Revoltas Regionais, Camponesas e de Castas (1700-1899)
Anos
Nome atribuído
Localidade
1712-1713
Revolta Tzeltal
Chiapas (México)
1749-1750
-
Huarochirí (Peru)
1756
Actopán (México)
1761
Revolta de Canek
Yucatán (México)
1769
Seguidores do “Novo Salvador”
Tulancingo (México)
1780-1784
Tupác Amaru
Sul do Peru
1810-1811
Movimento de Hidalgo
Bajío (México)
1812
Movimento de independência
Huánuco (Peru)
1825-1833
Rebelião Yaqui (Banderas)
Sonora (México)
1832-1840
Guerra dos Cabanos
Noroeste (Brasil)
1833
-
San Vicente (El Salvador)
1836-1838
-
Papantla (México)
1837
Revolta de Rafael Carrera
Guatemala
1838-1841
Balaiada
Maranhão (Brasil)
1839
-
Chimborazo (Equador)
1842-1843
-
Guerrero (México)
1844
-
Guerrero (México)
1845
-
Oaxaca (México)
1845
-
Puebla (México)
1847-1849
Guerra de Castas Maya
Yucatán (México)
1847-1849
Revolta da Sierra Gorda
Sierra Gorda (México)
1847-1848
-
Veracruz (México)
426
1849-1850
-
Oaxaca (México)
1849
-
Guerrero
1852
Movimento dos Marimbondos
Pernambuco (Brasil)
1852
Ronco de Abelha
Paraíba (Brasil)
1855-1873
Lozadismo
Nayarit (México)
1858
Carne sem Osso
Brasil
1861
-
Hidalgo (México)
1865
Morant Bay
Jamaica
1866-1867
Revolta de Juan Bustamante
Huancané (Peru)
1868
Revolta de Julio López
México (México)
1869-1870
-
Chiapas (México)
1872-1873
-
Jujuy (Argentina)
1874-1875
Quebra Quilo
Nordeste (Brasil)
1871
-
Chimborazo (Equador)
1876
Motins da Federação
Barbados
1875-1899
Rebelião Yaqui
Sonora (México)
1877
-
Sierra Gorda (México)
1877-1883
-
Huasteca (México)
1880
Revolta do Vintém
Capital (Brasil)
1883-1884
-
Huancayo (Peru)
1885
Revolta de Itusparía
Ancash (Peru)
1888-1889
Federação de Comas
Huancayo (Peru)
1889
-
Chayanta (Bolívia)
1897
Canudos
Bahia (Brasil)
1899
Rebelião de Zárate
Bolívia
1899
-
Chayanta (Bolívia)
Fonte: COATSWORTH (1990: 38-39). As informações apresentadas pelo autor sofrem inegável
problema de subnotificação, mas ainda assim oferecem um panorama inicial para o período.
Tabela 4.4. Guerras Cimarronas e Revoltas de Escravos (1700-1830)
Anos
Nome Atribuído
Localidade
1726
-
Rio Serámica (Suriname)
1731-1739
Primerra Guerra de Cimarrones
Jamaica
427
1731
-
Berbice (Guiana/HOL)
1731-1733
-
Yaracuy (Venezuela)
1733-1734
-
St. John
1735
-
Orizalba/Córdoba
1747
-
Yare (Venezuela)
1757-1758
-
Suriname
1759
-
St. John
1759
-
St. Croix
1760
Rebelião de Tackey
Jamaica
1763-1764
Rebelião de Cuffey
Berbice (Guiana/HOL)
1765
-
Granada
1765-1793
Guerra de Boni
Suriname e Guiana Francesa
1769-1773
Primeira Guerra do Caribe
St. Vincent
1771-1774
-
Tuy (Venezuela)
1774-1775
-
Demerara (Guiana/HOL)
1785-1790
Primeira Guerra de Cimarrones
Dominica
1791-1804
Revolução Haitiana
Haiti
1795
-
Coro (Venezuela)
1795
-
Demerara (Guiana/HOL)
1795-1796
Segunda Guerra de Cimarrones
Jamaica
1795-196
Segunda Guerra do Caribe
St. Vincent
1795-1797
Guerra de Eédon
Granada
1796-1797
Guerra de Brigand
Santa Lúcia
1809-1814
Segunda Guerra de Cimarrones
Dominica
1816
Rebelião de Bussa
Barbados
1816
-
Bahia (Brasil)
1822
-
Suriname
1823
-
Guiana Britânica
1831-1832
Guerra dos Batistas
Jamaica
Fonte: COATSWORTH (1990: 46-47). As informações apresentadas pelo autor sofrem inegável
problema de subnotificação, mas ainda assim oferecem um panorama inicial para o período.
428
Tabela 4.5. Conflitos de Escravos (1700-1889)
Insurreições de
Levantes em
escravos
plantations
-
-
2
1710-19
-
-
-
1720-29
1
1
4
1730-39
2
4
4
1740-49
-
1
5
1750-59
1
3
1
1760-69
3
3
8
1770-79
2
2
10
1780-89
1
-
1
1790-99
4
4
5
1800-09
1
-
4
1810-19
-
2
3
1820-29
2
-
14
1830-39
1
-
9
1840-49
-
-
11
1850-59
-
-
1
1860-69
-
-
4
1870-79
-
-
5
1880-89
-
-
13
Anos
Guerras Cimarronas
1700-09
Fonte: COATSWORTH (1990: 41). As informações apresentadas pelo autor sofrem inegável problema
de subnotificação, mas ainda assim oferecem um panorama inicial para o período.
Tabela 5.1. Exportações, População e Exportações per Capita (c.1850)
País
Exportações (mil US$)
População (mil)
Exportações per capita
Argentina
11.310
1.100
10,3
Bolívia
7.500
1.374
5,5
Brasil
35.850
7.230
5,0
Chile
11.308
1.443
7,8
Colômbia
4.133
2.200
1,9
Costa Rica
1.150
101
11,4
Cuba
26.333
1.186
22,2
429
Equador
1.594
816
2,0
Guatemala
1.404
847
1,7
México
24.313
7.662
3,2
Paraguai
451
350
1,3
Peru
7.500
2.001
3,7
Uruguai
7.250
132
54,9
Venezuela
4.865
1.400
3,3
159.484
30.381
5,2
Améria Latina
Fonte: BULMER-THOMAS (2003: 37).
Tabela 5.2. Projetos e códigos civis na América Latina no século XIX
Lugar
México
Bolívia
Peru
Equador
Uruguai
Venezuela
Chile
Colômbia
Brasil
Ano
Legislação
1828-1829
Código Civil para o Estado Livre de Oaxaca
1829
Projeto de Código Civil para o Estado Livre dos Zacatecas
1854
Código de Comércio (Código Lares, Teodosio Lares)
1831
Código Civil
1835
Código Mercantil Santa Cruz
1836
Código Civil Santa Cruz do Estado Norte-Peruano
1836
Código Civil Santa Cruz do Estado Sul-Peruano
1852
Código de Comércio da República do Peru
1837
Projeto de Código Civil (José Fernández Salvador)
1859
Código Civil da República do Equador
1831
Código de Comércio
1852
Projeto de um Código Civil para o Estado Oriental do
Uruguai (Eduardo Acevedo)
1868
Código Civil para o Estado Oriental do Uruguai
1865
Código de Comércio do Estado Oriental do Uruguai
1854
Projeto de Código Civil (Julián Viso)
1862
Código Civil
1844
Projeto de Código de Comércio
1862
Código de Comércio
1855
Código Civil (Andrés Bello)
1865
Código de Comércio
1859
Código Civil do Estado da Cundinamarca
1873
Código Civil para os Estados Unidos da Colômbia
1853
Código de Comércio
1860-1864
Esboço de código civil (Augusto Teixeira de Freitas)
1882
Projeto de código civil brasileiro (Felicio dos Santos)
430
Brasil
Argentina
Paraguai
1893
Projeto de código civil brasileiro (Cohelo Rodrigues)
1899
Projeto de código civil brasileiro (Clovis Bevilaqua)
1916
Código Civil Brasileiro
1850
Código de Comércio
1869
Código Civil (Dalmacio Vélez Sarsfield)
1860
Código Comercial de Buenos Aires
1861
Código Comercia da Argentina
1876
Código Civil (Código Argentino adaptado para o Paraguai)
Fonte: URIBE-URÁN, 2006: 92.
Tabela 6.1. Evolução dos Termos de Troca na América Latina, 1820-1940
(1900=100, agregado para todos os países)
Fonte: BÉRTOLA & OCAMPO, 2010: 104.
Tabela 6.2. Evolução dos Termos de Troca por país, 1870-1930 (1870-1874=100)
Volume das exportações
Termos de troca
Poder de compra
1870-74
1910-14
1925-29
1870-74
1910-14
1925-29
1870-74
1910-14
1925-29
Argentina
100
1.141
1.639
100
129
115
100
1.476
1.883
Brasil
100
146
447
100
108
103
100
158
462
Chile
100
416
712
100
181
222
100
754
1.578
Colômbia
100
809
2.967
100
127
125
100
1.023
3.695
Cuba
100
928
1.847
100
84
63
100
779
1.166
México
100
460
981
100
70
75
100
321
735
Peru
100
211
1.227
100
77
72
100
163
885
Uruguai
100
287
437
100
203
171
100
582
746
Fonte: BÉRTOLA & OCAMPO, 2010: 105.
431
Tabela 6.3. Crescimento Anual Médio das Exportações (X’s) e do Poder de
Compra das Exportações (PPX’s)
País
1850-1870
1870-1890
1890-1912
X’s
PPX’s
X’s
PPX’s
X’s
PPX’s
Argentina
4,9
4,1
6,7
8,2
6,7
5,4
Bolívia
2,8
2,0
2,3
3,8
2,5
1,2
Brasil
4,3
3,5
2,5
4,0
4,3
3,0
Chile
4,6
3,8
3,3
4,8
5,0
3,7
Colômbia
7,8
7,0
0,5
2,0
2,4
1,1
Costa Rica
4,7
3,9
5,6
7,1
0,5
-0,8
Cuba
3,5
2,7
2,3
3,8
2,4
1,1
Equador
4,9
4,1
1,7
3,2
3,9
2,6
Guatemala
3,2
2,4
6,9
8,4
1,1
-0,2
México
-0,7
-1,5
4,4
5,9
5,2
3,9
Paraguai
4,4
3,6
6,0
7,5
2,2
0,9
Peru
6,4
5,6
-4,9
-3,4
6,9
5,6
Uruguai
3,1
2,3
3,7
5,2
3,4
2,1
Venezuela
4,6
3,8
2,4
3,9
1,2
-0,1
4,5
3,7
2,7
4,2
4,5
3,2
América
Latina
Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 64.
Tabela 6.4. Investimento Direto e em Portfolio na América Latina (c.1914)
Dívida Externa do Setor Público
Investimento Direto Estrangeiro
US$ (mi)
UK (%)
EUA (%)
US$ (mi)
UK (%)
EUA (%)
Argentina
784
50,8
2,4
3.217
46,7
1,2
Bolívia
15
0
20
44
38,6
4,5
Brasil
717
83,4
0,7
1.196
50,9
4,2
Chile
174
73,6
0,6
494
43,1
45,5
Colômbia
23
69,6
21,7
54
57,4
38,9
Costa Rica
17
47,1
0
44
6,8
93,2
Cuba
85
58,8
41,2
386
44,0
56,0
Equador
1
100
0
40
72,5
22,5
432
Guatemala
7
100
0
92
47,8
39,1
México
152
92,1
7,9
1.177
54,0
46,0
Paraguai
4
100
0
23
78,3
21,3
Peru
17
47,1
11,8
180
67,2
32,2
Uruguai
120
75
0
355
43,4
0
Venezuela
21
47,6
0
145
20,7
26,2
2.229
67,8
13,8
7.569
47,4
18,4
América
Latina
Fonte: BULMER-THOMAS,2003: 102.
Tabela 6.5. Ferrovias por extensão (km)
País
1850
1870
1890
1910
Argentina
-
732
9.254
31.859
Bolívia
-
-
209
1.440
Brasil
-
745
9.973
24.614
Chile
-
732
2.747
8.070
Colômbia
-
80
282
1.061
Costa Rica
-
-
241
878
465
1.295
1.731
3.846
Equador
-
-
92
587
Guatemala
-
-
186
987
México
13
349
9.718
25.600
Paraguai
-
91
240
373
Peru
-
669
1599
3317
Uruguai
-
20
983
2.576
Venezuela
-
13
454
858
Cuba
Fonte: BÉRTOLA & OCAMPO (2010: 106).
Tabela 6.6. Emprego Fabril em 1925
Chile
82.000
% da População
Economicamente Ativa
6,1
Brasil
380.000
3,7
México
160.000
3,2
Contingente Operário
433
Venezuela
12.000
1,5
Uruguai
39.000
7,0
Colômbia
47.000
1,8
Peru
21.000
1,2
Argentina
340.000
8,3
Fonte: COLLIER & COLLIER, 2002: 67.
Tabela 6.7. Concentração de exportações por mercadoria exportada (c. 1913)
País
1o produto
%
2o produto
%
Total
Milho
22,5
Trigo
20,7
43,2
Bolívia
Estanho
72,3
Prata
4,3
76,6
Brasil
Café
62,3
Borracha
15,9
78,2
Chile
Nitratos
71,3
Cobre
7,0
78,3
Colômbia
Café
37,2
Ouro
20,4
57,6
Costa Rica
Banana
50,9
Café
35,2
86,1
Cuba
Açúcar
72,0
Tabaco
19,5
91,5
Equador
Cacau
39,2
Açúcar
34,8
74,0
Guatemala
Café
84,8
Banana
5,7
90,5
México
Prata
30,3
Cobre
10,3
40,6
Paraguai
Erva-mate
32,1
Tabaco
15,8
47,9
Cobre
22,0
Açúcar
15,4
37,4
Lã
42,0
Carne
24,0
66,0
Café
52,0
Cacau
21,4
73,4
Argentina
Peru
Uruguai
Venezuela
Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 58.
Tabela 7.1. Peso do Comércio Exterior sobre o PIB, 1928 e 1938 (em %)
País
Exportações/PIB
Exportações+Importações/PIB
1928
1938
1928
1938
Argentina
29,8
15,7
59,7
35,7
Brasil
17,0
21,2
38,8
33,3
Chile
35,1
32,7
57,2
44,9
Colômbia
24,8
24,1
62,8
43,5
434
Costa Rica
56,5
47,3
109,6
80,7
Guatemala
22,7
17,5
51,2
29,5
México
31,4
13,9
47,7
25,5
Peru
33,6
28,3
53,2
42,6
Uruguai
18,0
18,2
38,0
37,1
Venezuela
37,7
29,0
120,4
55,7
Fonte: BULMER-THOMAS (2003: 190).
Tabela 7.2. Receita Pública, total e composição por país (c. 1929)
Quantia (US$)
País
Estrutura (em porcentagens)
Sobre
Sobre
Impostos
Imposto de
Importação
Exportação
Diretos
Renda
27,5
45,7
2,4
3,6
0
17,8
5,9
32,3
13,7
9,0
N/d
Brasil
282,1
7,2
43,9
0
4,0
3,1
Chile
148,1
34,0
30,0
24,3
17,7
12,6
Colômbia
73,2
9,2
54,0
0,5
4,9
3,6
Costa Rica
8,9
18,0
56,8
7,9
2,8
0
Cuba
79,3
22,1
50,3
4,5
5,7
5,5
Equador
12,1
6,1
32,9
6,4
6,6
1,8
Guatemala
15,4
7,2
47,4
13,6
1,3
0
México
146
9,7
37,7
3,5
6,7
6,7
Paraguai
5,8
6,9
49,3
10
6,9
0
Peru
56,2
9,1
27,7
6,5
10,3
6,0
Uruguai
61,3
34,1
19,2
1,2
Venezuela
44,5
14,4
20,1
0
Total (mi)
Per capita
Argentina
308,3
Bolívia
40,8
51,1
0
Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 178.
Tabela 7.3. Direção das Exportações (c. 1913)
País
Total
(US$ mi)
EUA (%)
Reino
Alemanha
Unido (%)
(%)
França (%)
Total
(%)
Argentina
510,3
4,7
24,9
12,0
7,8
49,4
Bolívia
36,5
0,6
80,8
8,5
4,9
94,8
435
Brasil
315,7
32,2
13,1
14,0
12,2
71,5
Chile
142,8
21,3
38,9
21,5
6,2
87,9
Colômbia
33,2
44,5
13,5
7,1
2,0
67,1
Costa Rica
10,5
49,5
41,3
4,8
0,9
96,1
Cuba
164,6
79,7
11,2
2,8
1,0
94,7
Equador
15,8
24,3
10,3
16,6
34,1
85,3
Guatemala
14,5
27,1
11,1
53,0
0,1
91,3
México
148,0
75,2
13,5
3,5
2,8
95,0
Paraguai
5,5
0
-
22,0
0,6
28,1
Peru
43,6
33,2
37,2
6,7
3,5
80,6
Uruguai
71,8
4,0
11,2
19,5
17,4
52,1
Venezuela
28,3
29,4
7,6
19,3
34,7
91,0
1.588,2
29,7
20,7
12,4
8,0
70,8
América
Latina
Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 74.
Tabela 7.4. Comércio da América Latina com os EUA, 1913, 1918, 1928
Exportações para os EUA
Importações dos EUA
(% do total)
(% do total)
País/Região
1913
1918
1928
1913
1918
1928
29,7
45,4
34,0
24,5
41,8
38,6
67,2
83,5
57,4
53,5
78,1
65,7
73,9
66,1
68,9
55,2
76,8
59,6
América do Sul
16,7
34,9
25,1
16,9
25,9
31,4
Argentina
4,7
29,3
8,3
14,7
21,6
23,2
Brasil
32,2
34,0
45,5
15,7
22,7
26,7
Chile
21,3
56,8
33,1
16,7
41,5
30,8
Peru
33,2
35,1
28,8
28,8
46,8
41,4
Uruguai
4,0
25,9
10,7
12,7
13,2
30,2
Venezuela
28,3
60,0
26,5
32,8
46,7
57,5
América Latina
México, América
Central e Panamá
Cuba, República
Dominicana e
Haiti
Fonte: BULMER-THOMAS, 2003: 156.
436
Tabela 8.1. Estrutura de Arrecadação do Vice-Reino de Nova Espanha,
1795-1799
Receita Líquida (mil pesos)
% do Total
Impostos sobre a mineração
3.988
26
Impostos sobre o comércio
3.730
24,3
Tributo indígena
1.159
7,5
Monopólios de estado
4.819
31,45
Transferências fiscais da Igreja
658
4,3
Receitas administrativas
91
0,6
Outras receitas
224
1,47
Empréstimos forçados
652
4,2
15.324
100
Total
Fonte: MARICHAL & CARMAGNANI (2001: 288).
Tabela 8.2. México: receitas do governo federal, 1826-1831 (em milhares de pesos
de prata)
1826-27
1827-28
1828-29
1829-30
1830-31
1826-31
%
8.474
6.074
6.516
5.502
10.367
7.386
54
924
1.008
933
964
1730
1.111
8,1
117
107
84
121
226
129
0,9
979
1.381
1.620
1.960
1.356
1.459
10,7
1.279
1.426
1.323
1.071
1.271
1.280
9,4
Outras fontes
2.411
1.611
3.334
2.573
2.317
2.249
16,5
Totais
14.191
11.642
12.814
12.200
17.275
13.624
100
Impostos sobre o
comércio exterior
Impostos internos
Impostos sobre a
prata e as moedas
Transferências
dos estados
Monopólios de
estado*
Fonte: MARICHAL & CARMAGNANI (2001: 300).
* Inclui monopólios sobre o tabaco, correios, sal, pólvora e loteria
437
Tabela 8.3. México: receitas federais e impostos sobre o comércio exterior, de
1872 a 1930)
Receita
Federal
Impostos ao
Comércio
%
Exterior
Impostos às
Importações
%
Impostos às
Exportações
%
1872/73
15.739
9.244
58,7
8.128
51,6
1.063
6,7
1874/75
17.266
9.177
53,1
8.393
48.6
726
4,2
1879/80
21.936
13.438
61,2
12.338
36,2
1.029
4,6
1884/85
29.869
15.705
52,5
15.229
50,9
310
1,0
1889/90
40.813
22.552
55,2
22.181
54,3
98
0,2
1894/95
44.570
19.681
44,1
18.091
40,5
1.227
2,7
1899/00
64.261
29.945
46,6
28.247
43,9
872
1,3
1904/05
92.083
41.028
44,5
38.918
42,2
917
1,0
1909/10
106.328
49.690
46,7
46.566
43,8
501
0,4
1914/15
-
-
-
-
-
-
-
1920
238.243
71.992
30,2
55.228
23,1
11.031
4,6
1925
336.717
94.914
28,1
76.337
22,6
18.577
5,5
1929
322.335
116.001
35,8
107.959
33,4
8.042
2,4
Fonte: LÓPEZ, 2005: 11.
Tabela 8.4. México: taxa de crescimento das receitas federais, entre 1867/8 e
1881/2
Receitas Federais Totais
5,6%
Receitas Patrimoniais
21,5%
Receitas de Serviços Públicos
9,0%
Impostos sobre Importações
10%
Impostos sobre Exportações
-6,1%
Imposto sobre a Circulação
18%
Imposto Direto
0,1%
Fonte: MARICHAL & CARMAGNANI, 2001: 309.
438
Tabela 8.5. México: Impostos aduaneiros por região de outubro de 1914 a junho
de 1915 (em pesos correntes)
Aduanas
Direitos de importação
Direitos de exportação
4.745.348,18
4.264.685,15
Pacífico
198.888,50
256.065,04
Norte
263.294,10
304.219.,12
-
101.768,80
5.208.350,50
4.986.737,11
Golfo
Sul
Totais
Fonte: LÓPEZ, 2005: 23.
Tabela 9.1. Receitas do Vice-Reino do Prata, 1795-1805 (em milhares de pesos de
prata)
Remessas de Potosí e outras tesourarias do reino
20.077
Corporações e outros ramos (tabaco, dízimo, consulado, etc.)
2.184
Aduana
4.553
Tributos
9
Impostos à produção
Impostos ao comércio
184
3.013
Cobranças às funções públicas
972
Multas e sanções
584
Monopólios de estado
374
Venda e aluguel de propriedade estatal
419
Contribuições voluntárias
327
Bens alheios
795
Devoluções
89
Total
33.788
Fonte: HALPERÍN DONGHI, 2005: 52-53.
439
Tabela 9.2. Orçamento de Províncias da Confederação Argentina e de Buenos
Aires, anos selecionados (em mil pesos fortes)
Ano
Província
Receitas Fiscais Totais
1841
Buenos Aires
1.965
1838
Entre Ríos
102
1841
Corrientes
101
1841
Santa Fe
60
1841
Córdoba
139
1838
Tucumán
25
1840
Jujuy
40
Fonte: HALPERÍN DONGHI (2005: 10).
Tabela 9.3. Orçamento Comparado da Província de Buenos Aires e da
Confederação Argentina, 1859
Confederação Argentina
Buenos Aires
Ministério do Interior
10.443
19.303
Ministério de Relações Exteriores
1.172
1.505
Ministério da Fazenda
6.786
20.304
Ministério de Justiça, Culto e Instrução
Pública
Câmaras e Administração do Crédito
Público
Totais
7.7076
-
-
602
47.729
91.943
Fonte: OSZLAK (2015: 92).
Tabela 9.4. Argentina: receitas gerais e dívidas do governo federal, 1864-1871
(em mil pesos fortes)
1864
7.005
Dívida de Longo
Prazo
13.709
18.133
Relação
Dívida/Receita
2,6
1867
12.040
29.492
36.317
2,9
1869
12.693
39.741
46.881
3,7
1871
12.682
74.164
82.984
6,5
Receitas Totais
Dívida Total
Fonte: GARAVAGLIA (2016: 05).
440
Tabela 9.5. Argentina: gastos e receitas do governo federal, 1863-1890 (em mil
pesos fortes)
Receita Total
Despesa Total
1863
6.478
Impostos
de
Importação
4.273
Ministério
da Fazenda
Guerra
Marinha
e Marinha
1864
7.005
4.268
7.119
2.812
2.983
-
1865
8.295
5.321
12.517
4.019
7.099
-
1866
9.568
6.686
13.745
4.017
8.308
-
1867
12.040
8.713
14.110
3.412
9.292
-
1868
12.496
9.660
16.693
3.296
10.444
-
1869
12.676
9.949
14.953
4.312
8.056
-
1870
14.833
12.092
19.439
7.498
9.259
-
1871
12.682
10.176
21.166
9.784
8.033
-
1872
18.172
14.464
26.483
16.027
6.770
-
1873
20.217
16.516
31.025
14.423
11.004
-
1874
16.526
12.512
29.784
13.005
9.416
-
1875
17.206
12.893
28.567
9.413
10.181
-
1876
13.583
9.577
22.153
9.660
7.378
-
1877
14.824
10.843
19.924
9.021
7.353
-
1878
18.451
12.033
20.840
10.627
5.712
-
1879
20.961
12.844
22.523
11.066
7.622
-
1880
19.594
12.055
26.919
8.933
11.428
1.263
1881
28.381
10.292
8.055
2.079
1882
58.007
31.880
7.627
2.005
1883
44.831
13.096
8.118
2.943
1884
56.440
19.774
7.818
3.512
1885
50.505
17.744
7.734
3.985
1886
54.394
20.696
8.331
3.144
1887
64.693
29.536
8.328
3.312
1888
75.877
24.034
8.764
4.177
7.925
3.353
3.342
-
441
1889
107.251
26.754
9.478
7.301
1890
95.363
26.103
9.697
6.261
Fonte: OSZLAK, 2015: 112-117.
Tabela 10.1. Rendas Internas e Externas do Reino de Portugal e Algarves,
1801-1803 e 1813-1814 (em contos de réis)
Receita
Alfândegas
Décima *
Contribuição para a defesa
do país
Renda anual líquida do
ultramar**
Fonte: COSTA (2003: 175).
1801-1803 (média)
3.941
739
1813-1814 (média)
4.601
694
0
1.498
759
***3.134
* imposto territorial de todo o reino
** compreendidos diamantes, quinto do ouro, marfim, urzela e madeira.
*** Desse total 1.604 eram arrecadados diretamente pelo tesouro real do Rio de
Janeiro, 600 eram sobras das capitanias da Bahia, 480 de Pernambuco, 300 do
Maranhão e 150 de Minas Gerais, Ceará e Angola.
Tabela 10.2. Brasil: arrecadação das principais alfândegas, 1860, 1880, 1888 (em
mil contos de réis)
Províncias
1860
1880
1888
Rio de Janeiro
18,4
42,0
48,5
Pernambuco
6,5
9,5
11,1
Bahia
5,0
9,5
11,8
Pará
1,3
5,5
8,6
Santos
0,5
5,2
10,8
Rio Grande do Sul
2,0
4,6
4,5
Maranhão
1,1
2,5
2,2
Ceará
0,3
1,3
1,6
0,2
1,2
35,5
80,3
100,6
36,0
81,4
103,2
Manaus
Total
Total de todas as
Alfândegas
Fonte: COSTA (1998: 156).
442
Tabela 10. 3. Brasil: dívida acumulada e pagamento de juros por quinquênio,
1840, 1889 (em contos de reis)
Ano
Dívida externa
Juros
Dívida interna
Juros
1840
44.240
2.216
30.282
1.993
1845
59.078
5.899
48.529
2.889
1850
53.782
2.757
54.312
4.026
1855
52.242
3.434
59.615
3.556
1860
45.677
4.059
63.191
3.770
1865
69.073
3.636
80.376
4.801
1870
156.771
8.039
234.312
14.525
1875
132.635
6.548
285.592
17.237
1880
177.338
7.572
363.569
23.618
1885
199.800
7.956
405.640
23.954
1889
270.395
(*)19.148
543.585
(*)25.178
Fonte: COSTA, 1998: 147.
Tabela 10.4. Brasil: receitas e despesas, 1840-1889 (em contos de réis)
Ano Fiscal
Receita
Despesa
Diferença
1840/41
16.311
22.772
-6.461
1841/42
16.319
27.483
-11.164
1842/43
18.712
29.165
-10.453
1843/44
21.351
25.947
-4.596
1844/45
24.805
25.635
-830
1845/46
26.199
24.464
1.735
1846/47
27.628
26.680
948
1847/48*
24.732
26.211
-1.479
1848/49
26.163
28.289
-2.126
1849/50
28.200
28.950
-750
1850/51
32.697
33.225
-528
1851/52
37.713
42.775
-5.062
1852/53
38.103
31.654
6.449
1853/54
34.516
36.234
-1.718
443
1854/55
35.985
38.740
-2.755
1855/56
38.634
40.243
-1.609
1856/57
49.156
40.374
8.782
1857/58
49.747
51.756
-2.009
1858/59
46.920
52.719
-5.799
1859/60
43.807
52.606
-8.799
1860/61
50.052
52.358
-2.306
1861/62
52.489
53.050
-561
1862/63
48.342
57.000
-8.658
1863/64
54.801
56.494
-1.693
1864/65
56.996
83.346
-26.350
1865/66
58.523
121.856
-63.333
1866/67
64.777
120.890
-56.113
1867/68
71.201
165.985
-94.784
1868/69
87.543
150.895
-63.352
1869/70
94.847
141.594
-46.747
1870/71
95.885
100.074
-4.189
1871/72
101.337
101.581
-244
1872/73
110.713
121.874
-11.161
1873/74
102.652
121.481
-18.829
1874/75
104.707
125.855
-21.148
1875/76
100.718
126.780
-26.062
1876/77
98.970
135.801
-36.831
1877/78
109.221
151.492
-42.271
1878/79
111.801
181.469
-69.667
1879/80
120.393
150.134
-29.741
1880/81
128.364
138.583
-10.219
1881/82
130.698
139.471
-9.015
1882/83
129.698
152.958
-23.260
1883/84
132.593
154.257
-21.664
1884/85
121.974
158.496
-36.522
1885/86
126.883
153.623
-26.740
444